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O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas.

Uma necessidade de sistematização pelo Direito

O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas. Uma necessidade de sistematização pelo Direito

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Discorre-se sobre a utilidade prática ou não de se reformar ou manter a referida teoria em nosso ordenamento nos dias atuais.

Não é a toa que a disregard é atualmente vista como uma verdadeira doença que causa insegurança, instabilidade e aumento dos riscos nas operações comerciais, trazendo no seu bojo efeitos nefastos para o desenvolvimento dos mercados organizados.

(…) O Brasil, sempre na contramão, mas guiado pelo instinto de colônia, segue tendo nesse complexo anacrônico de stardands jurídicos fontes de inesgotável inspiração e legitimação para prosseguir alargando o campo de incidência da disregard doctrine a tal ponto de tornar, em muitos tipos societários, inútil a personificação societária, pelo menos para quem pretende se defender contra o uso do judiciário para fins lotéricos. (NUNES, Marcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. p. 121 São Paulo: Quartier Latin, 2007.)

RESUMO

A presente monografia tem por objeto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou a disregard doctrine, e, a partir de seu estudo, objetivamos especificamente demonstrar quais são os requisitos necessários para aplicação da teoria citada; enfrentar o problema da ampliação pela jurisprudência e pela legislação das situações em que deve ser aplicada a teoria; discorrer sobre institutos jurídicos igualmente previstos no ordenamento jurídico que possam responsabilizar diretamente os sócios sem necessariamente desconsiderar a personalidade jurídica; e, finalmente, discorrer sobre a utilidade prática ou não de se reformar ou manter a referida teoria em nosso ordenamento nos dias atuais.

Palavras-chave: Direito comercial, direito empresarial, limitação da responsabilidade dos sócios, responsabilidade pessoal dos sócios, desconsideração da personalidade jurídica.

ABSTRACT

This monograph focuses on the theory of piercing the corporate veil or disregard the doctrine and, from his study, we specifically demonstrate what are the requirements for application of the theory said, addressing the problem of magnification by case law and legislation situations in which the theory should be applied; discuss legal institutions also provided in the legal responsibility that may directly partners without necessarily disregard the legal and, finally, discuss the practical use or not to retire or to maintain such theory in our land today.

Keywords: Commercial law, corporate law, limited liability of partners, personal liability of members, piercing the corporate veil.


Introdução

A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica foi importada pelo ordenamento jurídico brasileiro dos sistemas europeu e norte-americano nos fins da década de 60, sendo aqui introduzida pelo jurista Rubens Requião.

Tal teoria foi concebida, inicialmente, para superar situações de abuso e fraude que envolviam a utilização indevida da personalidade jurídica. Ou seja, deveria ser aplicada quando os sócios utilizavam de maneira ilícita a sociedade para contrair obrigações, não sendo, por isso, responsabilizados pessoalmente, porquanto o princípio da separação patrimonial era uma barreira para tanto. Assim, em tese, tal teoria serviria para suprir essa deficiência do sistema.

Ocorre que, com o passar dos anos no Brasil, tal teoria ganhou nova roupagem, deixando de ser aplicada somente às situações de abuso e fraude para ser aplicada em inúmeras outras situações, a exemplo de falência por má-administração ou mero inadimplemento contratual.

Porém, esse novo tratamento conferido pela jurisprudência e pela legislação pátria tem impactado no próprio sistema jurídico, causando profundas rachaduras, além de repercutir negativamente na ordem econômica, o que não pode ser desconsiderado pelo operador do Direito.

Por tais motivos, e considerando que a doutrina brasileira e mesmo alienígena já começam a questionar a utilidade prática da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em face de outros institutos igualmente previstos no ordenamento jurídico, é que entendemos por bem definir esse atualíssimo e recorrente assunto como tema de monografia.


1. ORDEM ECONÔMICA E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

1.1 Breves considerações sobre a ordem econômica

A Constituição Federal trata da ordem econômica em seu Título VII, consistindo no conjunto de princípios e normas que disciplinam e dirigem a atividade econômica em nosso país. Todos os agentes econômicos estão sujeitos a ela.

As normas constitucionais "estatuem" a atividade econômica real e vigente, consagrando, por meio do juízo do ser, o modo de produção capitalista, que tem sua base no reconhecimento da propriedade privada, da empresa e do contrato. Paralelamente, o Estado, por meio do juízo jurídico do dever ser [01], procura "dirigir" [02] a atividade econômica para alcançar escopos de ordem social, em benefício de todos, o fazendo por meio de normas diretrizes e princípios, a exemplo da "função social da propriedade".

Para SILVA NETO a "ordem econômica é o plexo normativo, de natureza constitucional, no qual são fixadas a opção por um modelo econômico e a forma como deve se operar a intervenção do Estado no domínio econômico" [03]. Tem por fundamentos antagônicos a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, e por finalidade assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. E é somente do perfeito equilíbrio destes dois fundamentos díspares que será possível convergir para a finalidade buscada pela ordem econômica.

A livre-iniciativa decorre do clássico direito à liberdade previsto desde o preâmbulo da nossa Constituição, porém aqui destinado à seara econômica, e assegura a todos, pessoas físicas ou jurídicas, a possibilidade de desenvolver uma atividade econômica no território nacional. REALE [04] a conceitua da seguinte forma:

A livre-iniciativa não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1° e 170.

Vale frisar que a livre-iniciativa não é um cheque em branco em benefício do empresário para perseguir o lucro em detrimento de valores igualmente constitucionais enumerados no art. 170, além de outros previstos no decorrer da Constituição. Ultrapassada a fase do Estado Liberal, vivemos a fase do Estado Social e Democrático de Direito, de sorte que o empresário faz jus à livre-iniciativa, mas desde que administre sua liberdade sem ferir os interesses da coletividade. E a fim de aparar essas arestas e evitar colisões entre o individual e o coletivo é que surge o Estado interventor para dirigir e administrar os interesses em jogo. Para BORBA VIANNA [05]:

Com isso, o constituinte procurou neutralizar e reduzir as distorções que possam advir do abuso da liberdade de iniciativa, tal como exposto por Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

"O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios da valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada restringe-se como princípio da função social da propriedade".

Neste contexto, a Constituição da República visa proteger não apenas o interesse individual do empresário (liberdade de indústria ou comércio, liberdade de empresa, liberdade de contrato, etc.), mas igualmente procura vincular o desenvolvimento de empresas dentro de um quadro social estabelecido pelo poder público, tendo como fim último a justiça social. Destarte, a liberdade de iniciativa "será legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário".

A livre-iniciativa, como princípio fundamental do Estado Democrático do Direito, serve de base para a ordem econômica constitucional, todavia não pode concorrer nem entrar em colisão com outros direitos fundamentais, igualmente tutelados na Constituição, v.g., ir contra o interesse geral, a utilidade social, a liberdade e a segurança das pessoas, a dignidade da pessoa humana dentre outros direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.

Este é, pois, o o fundamento da livre iniciativa previsto no texto magno e essencial para o desenvolvimento econômico de nosso país.

Por outro lado, outro fundamento da ordem econômica é o trabalho humano, que tem como marco evolutivo o Estado Social, face o incremento das conquistas sociais destinadas aos trabalhadores, assegurando-lhes o mínimo para uma existência digna, e garantido-os contra a espoliação por parte empregador.

Ademais, também não se pode perder de vista que a valorização do trabalho humano está diretamente vinculada com o desenvolvimento econômico e social como um todo, pois, não obstante o mercado poder substituir o trabalhador por máquinas (capital, tecnologia etc.), não poderá sobreviver sem consumidores. E, o trabalhador de hoje desempregado ou subempregado não se tornará o consumidor de amanhã, de modo que, da mesma forma que não pode haver mercado sem consumidores, não pode haver consumidores sem emprego que os remunere dignamente.

É frente a esta engrenagem (capital – trabalho – consumidor) que o Estado pós-moderno procura atuar nas relações socioeconômicas, procurando dar guarida tanto à garantia social do trabalhador, como também garantir ao mercado (empresa) as condições necessárias para o desenvolvimento de suas atividades produtivas. Isso sem nunca relegar para segundo plano a valorização do trabalho humano, a qual é adotada como fundamento não só da ordem econômica (art. 170 CR) e da ordem social (art. 193 CR), mas também da própria República Federativa do Brasil (art. 1° CR), devendo ser entendida como um dos componentes necessários para se alcançar justiça social e existência digna da pessoa humana.

CARVALHO FILHO [06] sintetiza a valorização do trabalho humano da seguinte maneira:

Pode-se dizer, em síntese, que a valorização do trabalho humano corresponde à necessidade de situar o homem trabalhador em patamar mais elevado do que o relativo a outros interesses privados, de forma a ajustar seu trabalho aos postulados da justiça social.

Além destes dois fundamentos, o Estado ainda deve observar e perseguir princípios previstos igualmente no art. 170, a exemplo da propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, dentre outros. Trata-se de um ambiente fluído formatado pelo Constituinte originário, para permitir a intervenção do Estado sempre visando corrigir as distorções da economia liberal e atingir o fim último da ordem econômica que é assegurar a todos uma vida digna. Diga-se, inclusive, que a tônica da intervenção estatal nos dias de hoje tem sido conferir maior concretude às normas que amparam direitos difusos e coletivos, a exemplo daquelas que tutelam o consumidor e o meio ambiente.

Por seu turno, a desconsideração da personalidade jurídica tem impacto direto na ordem econômica pois não apenas está umbilicalmente ligada a atividade empresarial, por conseguinte à livre-iniciativa, como, quando não aplicada corretamente, gera insegurança jurídica aumentando consideravelmente os custos dos empreendimentos, além de paralisar, em muitos casos, os investimentos que devem ser feitos no setor produtivo.

Logo, qualquer discussão que tenha por base a disregard doctrine não está imune à análise prévia do binômio livre-iniciativa versus valorização do trabalho humano, além da observância dos princípios diretivos da ordem econômica, devendo o operador do Direito buscar sempre o equilíbrio no trato das normas econômicas para só então atingir a finalidade perseguida que é conceder a todos uma vida digna. Enfim, por força da diretriz constitucional, a utilização ou não da disregard doctrine deve, em última instância, conduzir todos a uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

1.2 Custo empresarial

É inegável que a atividade empresarial tem por objetivo o lucro e, como visto no item anterior, a nossa Constituição Federal prestigia a propriedade privada e a livre-iniciativa.

Assim, nada mais legítimo do que a atividade empresária lançar mão de todos os artifícios legais para reduzir ou, quando possível, eliminar seus custos, por conseguinte, aumentando sua margem de lucro. Essa é, basicamente, a engrenagem do sistema capitalista e que mantém a roda da economia sempre girando e, direta ou indiretamente, beneficiando toda a sociedade [07].

Ocorre que, em contrapartida, a atividade empresarial gera também impactos sociais negativos, quando, por exemplo, polui um rio, esgota recursos naturais em dada localidade, muda uma comunidade de determinada região geográfica, etc. E é exatamente quando os custos sociais superam o valor dos benefícios sociais que surge o que tecnicamente se convencionou chamar de externalidade, conceituada por ULHOA COELHO como "todo efeito produzido por um agente econômico que repercute positiva ou negativamente sobre a atividade econômica, renda ou bem-estar de outro agente econômico, sem a correspondente compensação" [08].

A maneira como o Estado administrava as externalidades, permitindo sua internalização [09], patrocinou o surgimento de duas correntes de pensamento: a economia do bem-estar, surgida na década de 1920 em Cambridge, tendo como principal teórico Artur Pigou, e a análise econômica do direito, surgida em 1960, tendo a frente Ronald Coase da Escola de Chicago. De acordo com a primeira, as externalidades decorrem de falhas no mercado, e a correção cabe ao Estado por meio do sistema tributário. Já a segunda defende que as externalidades não refletem falhas no mercado, mas situações conflitantes que devem ser solucionadas pelos próprios interessados. (…) O que é favorável a um agente econômico é desfavorável ao outro, e cada um deles procurará nortear suas opções segundo padrões racionais de eficiência, isto é, gastando o menos para lucrar o máximo possível [10].

Como aponta nossa doutrina, tais escolas não são mais capazes de explicar a intervenção do Estado na economia, contudo, como legado para o Direito, as críticas da análise econômica do direito explicitou que "algumas normas jurídicas repercutem diretamente no custo da atividade econômica" [11].

Desta maneira, existem aquelas normas jurídicas cuja previsibilidade permite um cálculo preciso e quantitativo do seu custo, a exemplo de uma norma tributária que majore a alíquota de um determinado tributo ou uma norma trabalhista que determine o uso de um equipamento de segurança. Outras normas jurídicas, contudo, não permitem tal aferição de forma objetiva, e sua estimativa é feita de forma qualitativa, tal é o caso da norma de responsabilidade objetiva consumerista ou aquela que disciplina a disregard doctrine.

Tem-se, assim, que ambas espécies de normas jurídicas devem ser consideradas no cálculo que o empresário elabora para fixar o valor final de seu produto ou serviço, pois, se omisso, o empreendimento possivelmente estará fadado à falência por má-administração. E partindo da mensuração dos custos de um empreendimento, inclusive os derivados de obrigações jurídicas, passando pela análise dos riscos decorrentes, o empresário terá a possibilidade de decidir ou não pelo início ou continuação de suas atividades. Logo, a análise do "direito-custo", nos dizeres de ULHOA COELHO, é de vital importância para o empresário:

Em qualquer hipótese, a interpretação das normas do direito-custo exige a maior objetividade possível, com vistas a ensejar a relativa antecipação das decisões judiciais ou administrativas derivadas dessas mesmas normas. O cálculo empresarial é condição da preservação do lucro e este, por sua vez, é a alavanca das atividades econômicas no capitalismo. De fato, se não vislumbrar atraente perspectiva de lucros na exploração de uma empresa, o empreendedor privado dará às suas energias e aos seus recursos outra destinação. Pode-se pretender a superação do sistema capitalista, pelas grandes e inumeráveis injustiças que gera, mas, enquanto ele reger a economia e as nossas vidas, não se poderá negar ao lucro importantíssima função de móvel fundamental da produção e circulação de bens ou serviços (que, a final, são atividades indispensáveis à sobrevivência de todos). A interpretação o quanto possível objetiva das normas de direito-custo está ligada ao próprio funcionamento da estrutura econômica do sistema capitalista. E, ressalta-se, a objetividade possível aqui reclamada alimenta tanto o cálculo matemático como o qualitativo. Ambos pressupõem informações confiáveis, embora com graus de precisão diversos [12].

Mas quando não há segurança jurídica, seja porque a produção legislativa é deficiente, seja porque existem inúmeras decisões judiciais conflitantes sobre o mesmo assunto, o direito-custo é elevado, e o medo substitui ao animal spirits [13] keynesiano. Com isso, perdem a economia nacional, pois novos negócios e investimentos deixam de ser realizados; os trabalhadores, pois novos postos de trabalhos não são criados; os consumidores, pois deixa de haver concorrência no mercado; e , o que é pior, o próprio Estado cria um entrave à ordem econômica.

A recente polêmica a respeito do falso dilema entre a estabilidade econômica e o desenvolvimento acabou ensejando o consenso do Governo e da opinão pública no sentido de reconhecer que a estabilidade é condição do desenvolvimento, não constituindo, todavia, um fim em si, mas um dos ingredientes necessários e essenciais para o progresso do país.

A oportuna e adequada ênfase dada à manutenção do poder aquisitivo da moeda se explica e justifica num país, como o nosso, que talvez seja o que, por mais tempo, no mundo, conviveu com a inflação galopante, tendo, inclusive, criado mecanismos que permitiram um certo nível de desenvolvimento num clima de contínua instabilidade monetária. Ou seja, como já foi afirmado, o Brasil não tendo podido alcançar a virtude, conseguiu neutralizar o vício inevitável.

Não se deu, todavia, a devida atenção a um outro ingrediente necessário e indispensável ao desenvolvimento que é a segurança jurídica, abrangendo duas vertentes que são, respectivamente, a estabilidade legislativa e a estabilidade judiciária [14].

Importante frisar que, consoante será visto ao longo desse trabalho, não se está defendendo a flexibilização de direitos trabalhistas, consumeristas, ambientais, ou qualquer outro que seja, com o objetivo de reduzir os custos empresariais, forjando, por conseqüência, o aumento do lucro individual em detrimento da coletividade. Longe disso. O que se procura demonstrar é o quanto é custoso para o país manter normas jurídicas tecnicamente incoerentes e incompatíveis com a noção de sistema jurídico, como é o caso das que, atualmente, tratam da disregard doctrine [15].

Não se tem notícia ainda de estudos mais aprofundados para se apurar o efetivo prejuízo imposto ao país diante da insegurança jurídica (fruto também da assistemática utilização da disregard doctrine) gerada aos investidores do setor produtivo da economia brasileira. Mas certamente, os números serão estarrecedores, não só pela fuga de capital estrangeiro para outros países onde existam regras mais claras e precisas, como também pela ausência de aplicação no setor produtivo dos capitais já existentes no país, os quais acabam sendo redirecionados para a poupança do investidor ou para a especulação imobiliária.

No âmbito da economia, estudos realizados já deram conta de que os custos do crédito consignado disponibilizado pelo mercado financeiro são muito inferiores ao crédito pessoal concedido ao consumidor. Isso porque "a satisfação do crédito consignado independe da intervenção do Judiciário (e do moroso processo de cobrança que é disparado em casos tais), trazendo uma certeza jurídica muito mais clara sobre o adimplemento da obrigação devida". [16]

Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica em nosso país da forma como se apresenta atualmente representa elevado custo para os empreendimentos econômicos em razão da insegurança jurídica que sua aplicação tem ocasionado, acarretando, por tabela, grande dano à ordem econômica.

1.3 A crise do Direito e a disregard doctrine

Muito do que se discute atualmente em torno da disregard doctrine tem uma origem muito mais profunda do que se pensa, não se limitando a uma debilidade específica de determinado instituto de um ou de alguns dos ramos do Direito. Se nos afigura, metaforicamente, poderíamos afirmar que a problemática que envolve a teoria da desconsideração é apena uma febre sintomática que revela que o paciente esconde uma enfermidade muito mais grave, necessitando, pois, de uma intervenção urgente visando reverter seu quadro clínico, sob pena de entrar em um estado comatoso irreversível.

Portanto, a insegurança jurídica ocasionada pela aplicação da disregard doctrine em nosso país, seja pelo tratamento legislativo dispensado à matéria, seja pelo seu manejo pelos magistrados, decorre, em verdade, da crise do Direito, decantada ao longo da história por vários juristas, a exemplo, de Orlando Gomes, mas que ainda não mereceu um enfrentamento corajoso por parte da doutrina.

Ao longo deste trabalho, vamos repetir inúmeras vezes que o que falta à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nosso país é a noção de sistema jurídico e um tratamento uniforme.

Ora, isso não é objeto de estudo departamentalizado do Direito Empresarial, do Direito Econômico, do Direito Trabalhista, do Direito Consumerista, mas sim da própria Ciência e da Teoria Geral do Direito, que se dedicam a fincar suas bases estruturantes e conceitos. Logo, perpassando pela técnica jurídica quando disseca a disregard doctrine, recebendo a análise fragmentada dos ramos jurídicos, é preciso ainda ter em mente a noção global do Direito, sob pena de configurar, como já se configura, a máxima de Dabin [17]: "a desordem no próprio ordenamento que pretende fazer reinar a ordem".

Segundo o pensamento de NADER [18]:

Para que o Direito cumpra a finalidade de prover o meio social de segurança e justiça, é indispensável que, paralelamente ao seu desenvolvimento filosófico e científico, avance também no campo da técnica. Se a Filosofia do Direito ilumina o legislador quanto aos valores essenciais a serem preservados; se a Ciência do Direito estabelece princípios estruturais para a organização do sistema jurídico, tais conquistas permanecerão sem qualquer alcance prático se o homo juridicius não for também um homor faber, isto é, se ao conhecimento teórico do Direito não for associado o prático. Sem este, a idéia do Direito e a aspiração de justiça não serão suficientes para o controle social. Somente com a conjugação da filosofia, ciência e técnica, a ordem pode apresentar-se como um instrumento apto a orientar o bem comum.

Ademais, por fim, tenha-se em mente a lição de Gomes [19] proferida em 1951, mas que se faz ainda atual, porquanto o contexto jurídico não se alterou, aplicando-se perfeitamente à problemática que cerca a disregard doctrine:

Para atingir o objetivo de racionalização jurídica da realidade social, o jurista constrói incessamente. Segundo Du Pasquier, a atividade construtora diversifica-se em três planos, dos quais são mais importantes os que se reservam à sistematização e à criação. A construção sistemática "consiste em reunir numa idéia geral regras diversas que a tôdas explica, num conceito que as religa entre si". A construção criadora "parte da observação da vida real, para inferir conceitos adaptados ao tempo". No primeiro caso a operação consiste em estabelecer "relações puramente lógicas entre regras e conceitos". No segundo, em criar os conceitos em que se condensem os fins da política jurídica, para modelagem das realidades sociais.

Os esforços que têm sido empregados, tanto para a sistematização como para a construção, não revelam rendimento apreciável. Possivelmente, o atraso da técnica do Direito, a pobreza do novo conceitualismo jurídico, se deve em grande parte às hesitações e tergiversações que fervem no caldeirão da política jurídica. Mas os juristas, dedicando-se à construção sistemática, podem favorecer e estimular a construção criadora, porquanto a expansão das fôrças sociais jurígenas, ao longo do tempo reprimidas e comprimidas, tem determinado a formação desordenada de regras, de cunho aparentemente circunstancial ou isolado, nas quais se concentram, todavia, tendências gerais.

A reconstrução sistemática do Direito se apresenta, dêsse modo, como o mais instante cometimento que clama e reclama pela dedicação dos juristas que não traem, dos teóricos que não empregam a inteligência e o saber para deformar a realidade social no propósito de arrefecer o calor de suas sugestões.


2. PESSOA JURÍDICA E A CRISE DA PESSOA JURÍDICA

2.1 Pessoa jurídica: conceituação.

Via de regra, pode-se conceituar a pessoa jurídica como o ente decorrente da união de personalidades jurídicas distintas, seja proveniente de pessoas físicas, jurídicas ou da combinação de ambas, cujos esforços e patrimônios são destacados, fundidos e direcionados à produção de um resultado econômico em comum.

O Direito reconhece tal fenômeno social, fruto da engenhosidade intelectual humana, e, por meio da técnica jurídica ou ficção, atribui a este ente uma personalidade jurídica autônoma em relação aos sócios que compõem a sua estrutura, permitindo, por conseguinte, ser sujeito de direito e obrigações no ordenamento jurídico, inclusive podendo praticar atos jurídicos em face dos próprios sócios que integram a sua estrutura [20].

Uma vez constituída, a pessoa jurídica passa a ser um pólo que erradia diversos efeitos jurídicos, sem confundir-se com a personalidade individual daqueles que a integram, sendo o principal deles a separação patrimonial.

Com isso, passa-se a responsabilizar e titularizar direitos e deveres de um patrimônio distinto em relação aos sócios e aos terceiros, independentes do agrupamento de pessoas (físicas e/ou jurídicas) que o criaram, visando facilitar as relações da vida em sociedade [21].

Conforme ensinamentos de GOMES,

o fenômeno da personalização de certos grupos sociais é contingência inevitável do fato associativo. Para a realização de fins comuns, isto é, de objetivos que interessam a vários indivíduos, unem eles seus esforços e haveres, numa palavra, associam-se. A realização do fim para que se uniram se dificultaria extremamente, ou seria impossível, se a atividade conjunta se permitisse pela soma constante e iterativa, de ações individuais. Surge, assim, a necessidade de personalizar o grupo, para que possam proceder como uma unidade, participando do comércio jurídico com individualidade, tanto mais necessária quanto a associação, via de regra, exige a formação de patrimônio comum constituído pela afetação de bens particulares dos seus componentes. Esta individuação necessária só se efetiva se a ordem jurídica atribui personalidade ao grupo, permitindo que atue em nome próprio, com capacidade jurídica igual à das pessoas naturais. Tal personificação é admitida quando se apresentam os pressupostos necessários à subjetivação dos interesses para cuja realização os indivíduos se associam. Assim se formam as pessoas jurídicas.

São, em síntese, grupos humanos dotados de personalidade, para a realização de fim comum.

Ainda de acordo com a melhor doutrina,

a pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente dos membros que a compõe, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo, por si só, comprando, vendendo, alugando etc., sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é uma conseqüência lógica de sua personalidade jurídica, constituindo uma de suas de suas maiores vantagens [22].

Não pode ser descartada, entretanto, a fundação, que é pessoa jurídica porém decorrente da destinação de um patrimônio [23] exclusivo ao exercício de certas atividades sociais, a saber: religiosas, morais, culturais ou de assistência. Ocorre que as sociedades empresárias de responsabilidade limitada são a grande maioria no universo das pessoas jurídicas [24]. E essa é, pois, a razão que se opta por colocar uma regra geral, a universalidade de pessoas e o desenvolvimento de atividade econômica na conceituação da pessoa jurídica.

Em paralelo à conceituação exposta anteriormente, podemos, de igual sorte, lançar mão da conceituação de MOTA PINTO, in verbis:

as pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por uma massa de bens, dirigidos à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem jurídica atribui a personalidade jurídica. Trata-se de organizações integradas essencialmente por pessoas ou essencialmente por bens, que constituem centro autónomo de relações jurídicas – autônomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos [25].

Por fim, a par das conceituações doutrinárias retro citadas, cite-se que a Convenção Interamericana sobre Personalidade e Capacidade de Pessoas Jurídicas no Direito Internacional Privado, da qual o Brasil é signatário [26], define a pessoa jurídica como "toda entidade que tenha existência e responsabilidade próprias, distintas das dos seus membros ou fundadores e que seja qualificada como pessoa jurídica segundo a lei do lugar de sua constituição".

2.2 Histórico e natureza jurídica da pessoa jurídica.

Frise-se, de imediato, que não há um momento específico na história que se tenha como marco inicial para o surgimento da pessoa jurídica pois, como aponta nossa doutrina, o fenômeno associativo acompanha a própria história de evolução da humanidade [27].

A doutrina se serve até mesmo do direito romano para demonstrar o quão complexa é a discussão em torno da origem da pessoa jurídica e daí derivando também o problema da responsabilização, sendo que, no período romano, todo problema de responsabilização caia na vala pessoal dos sócios.

Nesse sentido, BORBA VIANNA [28] sustenta que

não obstante os romanos já utilizarem agrupamentos de pessoas para gerir negócios comuns (antes dos romanos, porém, existiram contratos associativos que podem ser considerados antecedentes remotos das sociedades), foi apenas após a República (por volta de 500 a.C.) que as pessoas jurídicas tiveram reconhecimento.

Por seu turno, DE FARIAS [29] afirma o seguinte:

Não há referência à pessoa jurídica na Antiga Roma ou mesmo no Direito germânico, somente podendo ser mencionada, já no Império Romano, a notícia das universitates ou collegia (grupos de estudos), sem qualquer personalidade reconhecida pela ordem jurídica.

Por isso, a referência doutrinária de que a pessoa jurídica, com o seu moderno significado, é de construção moderna na história do direito.

Outrossim, PIERANGELO CATALANO [30] relata que foi a partir do séc. XVI e, sobretudo, do séc. XIX, que surgiram abstrações modernas sobre o sujeito de direito, a pessoa jurídica e o Estado.

Segundo CARNEIRO MARTINS [31],"o conceito de pessoa jurídica no Direito é algo que passou, ao menos desde o início do século XVII, por diversas fases de concepção e, ainda hoje, é objeto de muita discussão e pouco consenso, principalmente com relação a seus desdobramentos e efeitos".

Enfim, discussões seculares e nos mais diversos ordenamento tem se seguido procurando identificar a origem da personalidade jurídica, porém ainda sem encontrar uma solução neste início de século XXI. De fato, trata-se de uma tarefa investigativa árdua muito importante [32] e essencial para dirimir uma série de questões correlatas, mas que foge ao propósito deste trabalho.

Podemos, contudo, extrair a ilação de que não há um marco histórico específico que remonte à origem da pessoa jurídica, mas sim o que há é uma evolução do instituto da pessoa jurídica sob a ótica de diversos juristas que se sucederam até o presente momento, visando conferir cientificidade [33] e segurança jurídica em torno de tão importante instituto para a sociedade contemporânea.

No que tange à definição da natureza jurídica observa-se o mesmo problema, uma vez que infindáveis tertúlias tem se protraído no tempo sem se vislumbrar, por enquanto, um termo final. Ressalte-se que, atualmente, ao menos é ponto pacífico que o Direito reconhece a pessoa jurídica, superando-se a teoria esclerosada da negação da personalidade jurídica. Inclusive, sobre a referida teoria, cite-se o seguinte comentário, in verbis:

As teorias do primeiro grupo (o da negação) "não constituem explicação da natureza das pessoas jurídicas, visto que não admitem o fenômeno da personificação" (GOMES, 2007, p. 168). Teóricos como Ihering, Bekker e Barthélèmy acreditavam, respectivamente que a associação dos indivíduos para um fim comum não representavam nada além do que eles próprios como sujeitos de direito, que o fato associativo é traduzido por um patrimônio destinado a um fim, patrimônio esse que não teria titular, sendo direito sem sujeito; e, por fim, que o fenômeno associativo era, na realidade, uma propriedade coletiva.

As formulações teóricas do grupo que defendia a inexistência da pessoa jurídica têm valor ilustrativo ante a realidade fática e legal da pessoa jurídica [34].

Pois bem, a disputa que se tem hoje em dia se dá exclusivamente na seara da afirmação da personalidade jurídica, avultando em importância a Teoria da Ficção, capitaneada por SAVIGNY, e da Realidade, valendo salientar que

contudo, não obstante renomados juristas ainda sustentarem que a natureza jurídica das pessoas jurídicas decorre das teorias ficcionistas (para os quais a pessoa jurídica é mera criação (ficção) da lei, não tendo existência real), prevalecem hodiernamente as teorias realistas, para as quais a pessoa jurídica não decorre de uma simples criação legal, mas existem por si mesmas, através de um fenômeno espontâneo e próprio. Ainda, dentro da teoria realista, se sobressai a teoria da realidade técnica, "pois se entende que não só a pessoa jurídica tem existência diversa da de seus membros, como sua vontade é diversa da de seus componentes. Por outro lado, sua capacidade não é a de seus integrantes, mas a que lhe foi atribuído no ato constitutivo, ou modificativo, admitido pelo direito positivo" [35].

Lançando mão do direito comparado e seguindo a pesquisa de BORBA VIANNA, tem-se que no direito norte americano e no direito francês privilegia-se a teoria da ficção, enquanto que no direito brasileiro e no italiano há prevalência da teoria da realidade técnica.

Não obstante essa saudável disputa que se arrasta ao longo dos séculos entre as correntes da Ficção e da Realidade, prevalecendo a Realidade Técnica, tenha-se em mente a conclusão do autor antes citado:

Entretanto, em ambas é possível identificar a personalidade jurídica societária e trabalhar sobre a sua aquisição, efeitos e término (inclusive no que concerne à disregard doctrine), pois, enquanto para os ficcionistas a lei que criou poderá também suspender seus efeitos, para os realistas, a desconsideração é enfocada como um instrumento do direito positivo para ajustar as construções jurídicas e seus efeitos metajurídicos [36].

Desta maneira, no que tange à natureza jurídica da pessoa jurídica, conclui-se que as teorias negativistas se encontram superadas, e, dentre as teorias afirmativas, a teoria da Realidade Técnica tem aceitação majoritária no Brasil.

2.3 Aspectos gerias e principais efeitos da pessoa jurídica.

Tem-se que o Código Civil em vigor trata especificamente das pessoas jurídicas em seu Título II [37].

Interpretando comparativamente o atual diploma civil e o anterior, BORBA VIANNA [38] nos ensina que o fundamento utilizado pelo Código revogado, ao afirmar que a pessoa jurídica não pode ser confundida com a pessoa dos sócios (societas distat singulis), já não é o mesmo utilizado hodiernamente. Isso porque o Código de 1916 tinha influência francamente liberal, "onde a função do Estado era a de proteger a liberdade da atividade econômica, privilegiando a liberdade de contratar, a propriedade privada e a livre-iniciativa". Ao passo em que o Código de 2002, sob a iluminação da Constituição Federal de 1988, deve ser interpretado "de modo a não mais privilegiar apenas a livre iniciativa, corrigindo desigualdades sociais e garantindo direitos sociais".

E esse foi também o pensamento da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, resumido nas palavras de MIGUEL REALE:

Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente, reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e corajosas metas do governo [39].

Assim, avulta em importância o domínio dos fundamentos e dos princípios constitucionais da ordem econômica vistos no Capítulo I, a fim de se extrair a máxima efetividade das normas quando de sua aplicação. Por isso, ora tenderá prevalecer os interesses dos empresários, ora dos consumidores, ora dos trabalhadores, ora da administração tributária, etc, conseqüentemente em benefício da sociedade em geral. Se nos afigura, é o mais puro e legítimo exercício do Estado Social e Democrático de Direito, embate perfeitamente normal, desde que sejam observados critérios científicos e técnicos seguros.

Mas o que não pode haver é uma injusta e preconceituosa interpretação apriorística em favor de um único segmento da sociedade, subvertendo o próprio sistema jurídico, tal como ocorre na maioria das vezes quando a demanda envolve o direito consumerista ou o direito trabalhista. Proceder dessa maneira significa negar o próprio o texto constitucional.

Feito esse necessário parêntese, tem-se que o Código Civil classifica a pessoa jurídica em de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, Autarquias, inclusive associações públicas e demais entidades criadas por lei) e de direito privado (associações, sociedade, fundações, organizações religiosas e os partidos políticos), consoante dicção dos arts. 41 e 44 respectivamente.

Por força do art. 45 do referido Diploma, "começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo". Assim, se já existe um contrato social [40], plurilateral como prefere TULLIO ASCARELLI [41], ainda que não registrado na Junta Comercial, já há provas suficientes do fenômeno associativo, embora inexista personalidade jurídica.

Portanto, atualmente, o divisor de águas para aquisição e início da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro é o registro no órgão competente [42]. Perfilha-se o entendimento que afirma que a personalidade jurídica só se adquire em face do registro regular no órgão competente, sendo tal de natureza eminentemente constitutiva.

Assim, percebe-se que nosso ordenamento jurídico adotou, quanto ao processo de criação da pessoa jurídica, o sistema das disposições normativas (que é um meio termo entre o critério do reconhecimento e o da livre associação), pelo qual a formação da pessoa jurídica se dá pela vontade humana, atendendo às condições legais (em nosso caso, o registro público). Sem a inscrição no ato constitutivo no registro competente, não terá a entidade personalidade jurídica (CC, art. 45) e, via de conseqüência, as pessoas naturais que a compõem responderão pessoalmente pelas obrigações assumidas [43].

Ora, se não há registro ou este é irregular se estará simplesmente diante de uma sociedade de fato ou irregular respectivamente, daí advindo as conseqüências legais previstas, sobretudo a possibilidade de os sócios virem a responder diretamente com bens próprios, como assumem o risco de antemão [44].

Vale ressaltar que sociedade e pessoa jurídica são institutos distintos, motivo pelo qual é perfeitamente possível se falar da existência de sociedade que não seja pessoa jurídica, da mesma forma que existe pessoa jurídica que não é sociedade.

Ademais, frise-se que é importante o direito fixar um termo legal inicial e preciso para a existência de uma nova pessoa jurídica (o registro regular), sob pena de se macular o próprio princípio da segurança jurídica que deve reger as relações sociais. Admitir tese contrária é alimentar propósitos burlescos, o que apenas serviria para aprofundar ainda mais a crise da pessoa jurídica, que será vista logo adiante.

Assim, com o início da pessoa jurídica, alguns efeitos podem ser observados, valendo destacar: a) capacidade jurídica [45]; b) capacidade de estar em juízo; e c) separação/autonomia patrimonial.

Como já discorrido no item 2.1, uma vez constituída, a pessoa jurídica passa a ser novo sujeito de direito e obrigações perante a ordem jurídica, independente da personalidade daqueles que a integram. Assim, a pessoa jurídica pode titularizar diversos negócios jurídicos, todavia, o fazendo por meio de seu presentante legal [46]. Assim, possui capacidade jurídica ou de exercício, que consiste na capacidade genérica de ter direitos e específica de exercê-los.

No que pertine ainda a capacidade jurídica, vale lembrar que a pessoa jurídica não pode "exercer atos que sejam privativos de pessoas naturais, em razão de sua estrutura biopsicológica (verbi gratia, a adoção ou o casamento)" [47], embora no ordenamento brasileiro são passíveis de cometer crimes [48].

Já a capacidade de estar em juízo significa que a própria pessoa jurídica é quem detém o poder de demandar e o dever de ser demandada em juízo, quando a lide envolva ato ou fato jurídico relativo às suas atividades.

A separação/autonomia patrimonial é a própria essência da pessoa jurídica contemporaneamente. E uma vez que tal efeito exige uma análise em separado, tendo correlação direta com o cerne de nosso trabalho, passar-se-á ao tópico seguinte.

2.4 Separação/autonomia patrimonial.

No passado, no momento em que as iniciativas empresariais passaram a demandar maior vulto de capital e os riscos do negócio eram enormes demais para serem suportados exclusivamente por um ou poucos comerciantes, tornou-se indispensável sua socialização. Era preciso repartir o risco junto à sociedade, sob pena de frear o próprio progresso da humanidade. E tal só foi possível graças à construção da engenhosa noção de separação/autonomia patrimonial da pessoa jurídica frente aos seus sócios integrantes.

Portanto, os sócios ou investidores sabedores de antemão que seus bens pessoais não ficariam expostos ao insucesso ou infortúnios da iniciativa empresarial, porquanto a pessoa jurídica nos limites de seu patrimônio suportaria-os, poderiam, enfim, financiar a atividade comercial para mares dantes inimagináveis.

Segundo nos ensina a doutrina, no período da Idade Média é que a limitação da responsabilidade ganha contornos precisos face o desenvolvimento inicial da sociedade em comandita, e, mais a frente, com a Companhia das Índias Orientais e Ocidentais, que se têm como berço das sociedades anônimas.

Diante do já exposto, pode-se concluir que – de certa maneira – as sociedades por ações são derivadas das sociedades em comandita, principalmente no que diz respeito à limitação da responsabilidade dos sócios/acionistas que, a exemplo do comanditário, decorre da natureza creditória dos seus direitos aos resultados da empresa. Ou seja, "essa, que já era então a principal causa de limitação de responsabilidade na Idade Média, persiste na modernidade, como seu primeiro fundamento". (WARDE JUNIOR, 2007, p. 97) [49]

Fica fácil perceber que o instituto da pessoa jurídica está em constante mutação e evolução, tal como o Direito, visando atender aos interesses históricos.

Se na era romana já havia a noção da pessoa jurídica mas não se tinha a concepção da separação patrimonial, no período do mercantilismo as necessitudes da civilização agregaram tal efeito à pessoa jurídica [50]. Por outro lado, contemporaneamente, há um esforço nítido em romper com tal evolução, embora as necessidades de separação patrimonial se mostrem ainda atuais.

Esta reconhecida valorização da empresa na atualidade não teria alcançado seu escopo principal se não fosse a regra de ouro do Direito societário, ou seja, a existência da limitação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas contraídas pela sociedade, através da personalização das sociedades.

Por certo, como toda atividade empresarial, existe um risco de insucesso no regular desenvolvimento de suas atividades. É sobretudo em razão disso que as sociedades com responsabilidade ilimitada dos sócios praticamente não existem mais na atualidade, sendo tratadas apenas doutrinariamente nos curso de graduação das faculdades de direito.

Destarte, se não existisse a limitação da responsabilidade pessoal dos sócios, quem investiria em ações de uma S/A se o patrimônio do investidor estivesse sujeito ao risco do negócio? Ou ainda, qual empresário colocaria em risco todo o seu patrimônio pessoal (amealhado muitas vezes durante décadas) numa sociedade limitada, se o mero insucesso do negócio (muitas vezes provocado por crises econômicas públicas, concorrência acirrada, globalização, insolvência de credores, de fornecedores ou de clientes etc.) pudesse lhe tomar todo o seu patrimônio pessoal?

Sem a pessoa jurídica personalizada (com existência distinta de seus sócios) e com responsabilidade ilimitada, a atividade empresarial não teria atingido seu estágio atual. Num mundo capitalista globalizado, onde cada vez mais é necessário investir e aprimorar a organização empresarial, as pessoas jurídicas empresárias representam um dos mais significativos fatores para a compreensão do regime capitalista [51].

Ora, os empresários mobilizam os fatores de produção; compreensivelmente precisam ser remunerados pelo seu empreendedorismo [52]. Da mesma forma que os trabalhadores, precisam que o Estado lhes assegure garantias mínimas, sendo, portanto, a autonomia/separação patrimonial a principal destas, e que vai permitir, por conseguinte, a operabilidade dos princípios constitucionais da ordem econômica.

Entretanto, é da da histeria coletiva que prega o Estado Social a todo custo, não importando como e a custa de quem, sendo displicente com a ciência jurídica, que exsurge o discurso corrosivo que visa implodir a pessoa jurídica, face a indiscriminada responsabilização do sócio, tão apenas por ser sócio. Se existem fraudes e abusos, o Direito deve reprimi-los, mas de forma coerente, e não de forma exclusivamente preconceituosa, pois isso, em última instância, viola o próprio Estado de Direito.

Cumpre ainda lembrar que em razão da elevada carga tributária do país, uma das maiores do mundo, boa parte dos dias do ano os empresários gastam trabalhando exclusivamente para o Estado, sem que haja a contrapartida Estatal. Por isso, uma desconsideração da personalidade jurídica indevida, visando atender meramente aos caprichos de determinado magistrado trabalhista ou consumerista, no afã de aplicar a "justiça social", tem um ônus ainda maior não apenas para o sócio, que passará a trabalhar forçadamente e sem remuneração ainda que haja vedação constitucional nesse sentido, mas sobretudo para a própria sociedade, pois significará um empreendimento a menos em atividade no mercado.

Dessa maneira, assiste integral razão a CARNEIRO MARTINS, para quem "o desenvolvimento da atividade empresarial tem como um dos pontos de sustentação a limitação da responsabilidade de sócios e administradores" [53], além do que "as razões econômicas possuem, sim, uma relevância bastante significativa".

Esse é o princípio da autonomia patrimonial, alicerce do direito societário. Sua importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção e circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos, mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucesso na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver nova atividades empresarias. No final, o potencial econômico do país não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços. O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica [54].

Isto posto, no momento de constituição da pessoa jurídica, os sócios promovem a subscrição e integralização do capital social, de sorte que destacam parcela de seu patrimônio pessoal para compor o patrimônio inicial [55] do novo ente que se constitui. É a partir dele que os negócios jurídicos irão se suceder. Assim, as obrigações assumidas pela pessoa jurídica devem ser solvidas com seu respectivo patrimônio e não o de seus sócios, sob pena de configurar confusão patrimonial. Da mesma forma, em havendo dano contratual ou extracontratual a pessoa que deve ser responsabilizada é a jurídica, e não a pessoa dos sócios.

Nesses termos, é indiscutível a importância do efeito da separação/autonomia patrimonial para a vida moderna.

2.5 A crise da pessoa jurídica.

No estágio atual de desenvolvimento da sociedade, não há como dissociar a figura da pessoa jurídica da circulação e distribuição de riquezas. Ela tem importância fundamental para a realização de inúmeros negócios jurídicos, só possível, graças à reunião de pessoas distintas, o congressamento de esforços, e, sobremaneira, à limitação de responsabilidade.

Portanto, é através dela que empreendedores dos mais diversos segmentos se sentem a vontade para por em prática todo o seu potencial empresarial, conseqüentemente, criando novos postos de trabalho, satisfazendo as necessidades dos consumidores, impulsionando a arrecadação tributária [56], enfim, a pessoa jurídica é o vetor indutor por excelência da produção de riquezas no mundo moderno.

Como visto até o momento, é inegável a importância da personalidade jurídica para o desenvolvimento da sociedade nos últimos dois séculos, podendo se afirmar, sem medo de errar, que a civilização contemporânea não teria atingido seus níveis de desenvolvimento social e econômico sem que o Estado houvesse estabelecido a autonomia patrimonial da personalidade jurídica societária [57].

A despeito da mencionada importância, tem-se discutido há algum tempo acerca da "crise da pessoa jurídica". ULHOA COELHO [58], em seu Curso de Direito Comercial, menciona dois fatores de desprestígio da autonomia das pessoas jurídicas, quais sejam: a) uso fraudulento ou abusivo do instituto; b) tutela de credores não empresários, ou, como prefere, com direito não proveniente de negociação. O mesmo autor ainda adverte:

Mas, lamentavelmente, o desprestígio da plena eficácia da personalização das sociedades empresárias não se encontra somente nos dois casos em que parece justo revitalizá-lo (na coibição de fraudes e na tutela dos créditos não negociáveis). Se a responsabilização dos sócios por dívidas sociais se verificasse apenas nos casos de uso desvirtuado do instituto, ou na proteção do crédito não negocial, a teoria da desconsideração e a estrita obediência às exceções legais teriam sido suficientes para preservação da função econômica do postulado fundamental do direito societário. Isto é, se a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas apenas não produzisse efeitos na hipótese de fraude, ou para proteção de não empresários, então ainda estaria atendendo, de modo adequado, à finalidade de estímulo aos investimentos. Como, no entanto, a responsabilização dos sócios se tem verificado também em casos em que não há tais pressupostos, extrapolando os limites da desconsideração e contrariando a lei, corroem-se induvidosamente as bases do instituto.

A recuperação dos fundamentos do direito societário depende, por isso, da compreensão, pela comunidade jurídica da correta medida da irresponsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade, de forma a se compatibilizar, de um lado, a limitação das perdas (estímulo aos investimentos), e, de outro, a tutela da boa-fé e dos não empresários.

BORBA VIANNA [59], seguindo os passos de José Lamartine Correa de Oliveira, tipifica a crise do uso fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica como crise de função [60], mas, por outro lado, afirma o seguinte:

Com efeito, a crise da pessoa jurídica não pode ser vista como algo isolado no seio da sociedade, provocado apenas pela crise de reconhecimento ou pela crise de função (nos dizeres de José Lamartine Corrêa de Oliveira), mas deve ser considerada como uma crise fruto de diversos outros fatores extra-societários (políticos, legislativos, protecionistas, fiscais, etc.) que também influem e estimulam a propagada crise da pessoa jurídica hodiernamente.

Nos dias de hoje, são indissociáveis as noções de pessoa jurídica e de autonomia/separação patrimonial. Com base na evolução histórica anteriormente referida, pode-se seguramente afirmar que são faces da mesma moeda. Mas, a despeito dessa força atrativa, cada vez aumentam as hipóteses de responsabilização pessoal dos sócios por atos praticados pela pessoa jurídica, o que põe por terra todo esforço científico erigido até aqui, dando respaldo à crise ora em discussão.

Numa apressada análise, poder-se-ia pensar que o aumento das hipóteses de responsabilidade pessoal dos sócios é que gera a crise da pessoa jurídica. Mas isso não é verdade. Ao que parece, o aumento das referidas hipóteses é um efeito decorrente da crise, que também não decorre da limitação da responsabilidade, mas, sim, limita-se ao uso indevido da pessoa jurídica por empresários inescrupulosos. O Direito deve partir exatamente desse ponto para apresentar uma resposta satisfatória às pessoas que subvertem o sistema jurídico.

Assim, como será visto no capítulo seguinte, a disregard doctrine seria uma forma de afastar a crise da pessoa jurídica, porém tal solução está aparentemente desgastada, levando muitos a defender a extinção da referida teoria.

Conclui-se, neste item, que a crise da pessoa jurídica existe, decorre de seu uso indevido, mas que, até o presente momento, o Direito ainda não apresentou uma resposta satisfatória ao problema.


3. PANORAMA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine).

Em inúmeras situações patológicas a pessoa jurídica acabou por ser o instrumento viabilizador de abusos de direito ou cometimento das mais diversas fraudes, à custa dos que com ela contratavam, terceiros, Poder Público, e o que é pior: subvertendo toda a construção jurídico-científica que gravita em torno do próprio instituto.

Assim, a pessoa jurídica e a separação patrimonial se por um lado incrementaram a economia, por outro passaram a ser um manto protetor que acobertava as mais diversas fraudes e abusos, pois alguns sócios, àvidos por lucro fácil, tinham a certeza da impunidade através de artifícios cada vez mais inteligentes e sofisticados que fincavam o muro da pessoa jurídica como proteção à responsabilização pessoal dos mesmos.

Por tal razão, foi concebida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) a fim de não apenas coibir a fraude e o abuso de direito quando a pessoa jurídica era utilizada indevidamente, mas, sobremaneira, para manter a higidez do sistema jurídico [61]. Enfim, como bem delimitado por GUIMARÃES NUNES [62], "a desconsideração da personalidade jurídica cuida de responsabilidade por ato ilícito".

De acordo com ULHOA COELHO [63]:

Deve-se ressaltar, contudo, que a solução para evitar manipulações como estas não é abolir a autonomia da pessoa jurídica, como regra. O problema não está no perfil básico do instituto, mas no seu mau uso. O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição de fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo de terceiros vítimas de fraude.

A disregard doctrine não significa, pois, a extinção da pessoa jurídica. Muito pelo contrário, propõe a sua continuidade. Para tanto, sugere a responsabilização direta dos sócios em face do reconhecimento da ineficácia da pessoa jurídica para a prática específica do ato ou negócio viciado. Por assim dizer, não foi a pessoa jurídica quem cometeu a fraude ou o abuso de direito, mas sim os próprios sócios. "A pessoa jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abusos de direito" [64] [65].

REQUIÃO [66] sustenta que a teoria em comento teve origem no "direito anglo-saxão, espairando-se para o direito germânico e mais recentemente repercutindo na literatura jurídica da Itália".

Baseando-se na doutrina estrangeira, GUIMARÃES NUNES [67] aponta que a origem histórica da disregard doctrine se deu, em verdade, nos Estados Unidos em 1809, no caso Bank of Unites v. Devaux, por meio do voto do Justice Marshall. Mas o mesmo autor reconhece que foi o caso inglês Salomon v. Salomon & Co [68] o de maior repercussão e responsável pelo lançamento mundial das bases da teoria sob comento.

Por seu turno, CARNEIRO MARTINS [69] leciona que

A desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem no ordenamento jurídico americano e não no sistema inglês, através do bastante referido caso Salomon & Salomon Brothers Co. E foi exatamente ao analisar a solução aplicada pelos juízes americanos que o teórico alemão Rolf Serick sistematizou, em sua tese de doutorado, no ano de 1953, as soluções aplicadas judicialmente, através da busca pelos critérios gerais ensejadores do afastamento da autonomia das pessoas jurídicas – e, consequentemente, de sua autonomia patrimonial -, formulados e adotados pelos tribunais norte-americanos.

(…) Rolf Serick não foi o primeiro a abordar questões relativas ao afastamento da autonomia das pessoas morais, mas foi o primeiro a sistematizá-la e, sem dúvida, o primeiro a organizar o assunto sob a ótica do direito continental europeu, modelo ao qual se filia o Brasil (…).

No Brasil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida por Rubens Requião em conferência realizada na Universidade do Paraná no final da década de 60, que defendeu que o "juiz brasileiro também tem o direito de se indagar, em casos de fraude, a desconsiderar a pessoa jurídica" [70]. Importante frisar, que o mesmo defendia a aplicação da disregard doctrine, mesmo sem o anteparo legal.

Que fique claro, portanto, que uma vez apercebido pelos tribunais anglo-saxões que a pessoa jurídica, em certas e determinadas situações, não estava cumprindo sua função jurídica, perspicazmente contornou o problema da autonomia/separação patrimonial, lançando as bases da disregard doctrine. Coube a ROLF SERICK, pai da referida teoria, sistematizá-la e imprimir-lhe cientificidade, permitindo-se, por conseguinte, sua utilização ao redor do mundo. Inclusive, em seu estudo, CARNEIRO MARTINS [71] separa 04 princípios estabelecidos por SERICK para que haja, em tese, a correta aplicação da disregard doctrine, quais sejam:

a) Se a estrutura formal da pessoa jurídica é utilizada de maneira abusiva, o juiz poderá desprezá-la para que fracasse o resultado contrário ao Direito, para o que prescindirá da regra fundamental que estabelece uma radical separação entre a sociedade e os sócios (SERICK, 1958, p. 241);

b) Não basta alegar-se que se não houver a desconsideração da personalidade jurídica não poderá lograr-se a finalidade de uma norma ou de um negócio jurídico.

É que se trata da eficácia de uma regra do Direito de Sociedade de valor tão fundamental que não deve ser obstada nem de maneira indireta (SERICK, 1958, p. 246);

c) As normas que se fundam em qualidades ou capacidades humanas que pertinem a valores humanos também se devem aplicar às pessoas jurídicas quando a finalidade da norma diga respeito a esta classe de pessoas (SERICK, 1948, p. 251);

d) Se a forma de pessoa jurídica é utilizada para ocultar que de fato existe identidade entre as pessoas que intervém em determinado ato, poderá ser ela descartada quando a norma a aplicar pressuponha que a identidade ou diversidade dos sujeitos interessados não é puramente nominal, mas verdadeiramente efetiva (SERICK, 1958, p. 256)

Pois bem, diante do que já foi exposto no presente tópico, tem-se que situações que envolvam a utilização da pessoa jurídica de forma indevida, fraudulenta, caracterizando atuação individual dos sócios, merecem ser reprimidas, face a responsabilização direta dos verdadeiros culpados. Daí, inevitável será a desconsideração episódica da pessoa jurídica.

Ocorre, todavia, que a jurisprudência e o legislador brasileiro constantemente têm alargado a base de incidência da teoria em comento, privilegiando, em muitos casos, a teoria menor [72] da desconsideração da personalidade jurídica, permitindo sua aplicação em detrimento da efetiva existência dos requisitos da fraude ou do abuso de direito. Não é por outra razão, que a doutrina nacional já se mobiliza pela defesa do fim da própria disregard doctrine, seguindo exemplo da doutrina alienígena [73].

3.2 Hipóteses de responsabilidade dos sócios cotistas.

De acordo com o art. 1052 do Código Civil em vigor, "na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social".

No ato de constituição de uma sociedade limitada, o sócio já define qual a medida de sua responsabilidade ao subscrever cotas do capital social, estando obrigado a integralizá-las. Porém, de acordo com a norma jurídica acima, ficará solidariamente obrigado à integralização do capital social total em havendo omissão dos demais sócios, sendo-lhe assegurado, todavia, o direito de regresso em face dos mesmos. Mas, uma vez integralizado o capital social, a regra é sua irresponsabilidade, cabendo aos que contratam com a sociedade avaliar se o patrimônio da pessoa jurídica pode fazer frente às obrigações assumidas pela mesma. É a aplicação prática do princípio da autonomia/separação patrimonial visto no item 2.4.

No Brasil não há a regra do capital mínimo [74] para operacionalizar a sociedade limitada, existindo, de igual sorte, "nenhum sistema de controle da realidade do capital social", de modo que os sócios estão livres para pactuar o capital inicial prudente para início das atividades sociais, embora sujeitos ao princípio da boa-fé. Assim, aqueles que contratam com a sociedade é que devem avaliar o grau de risco e a possibilidade do patrimônio da pessoa jurídica honrar com os compromissos firmados, daí repercutindo nos custos da atividade econômica desenvolvida.

Tal regra geral da limitação da responsabilidade, segundo ULHOA COELHO, cede em função de três exceções, momento em que os sócios podem vir a ser responsabilizados diretamente, a saber: a) falta de integralização do capital social (visto anteriormente); b) tutela dos interesses não negociais [75]; e c) repressão a práticas de fraudes perpetradas pelos sócios. Estas duas últimas exceções é que causam tumulto no meio jurídico, pois acabam por confrontar toda a técnica que envolve a separação patrimonial de um lado e a responsabilização pessoal dos sócios de outro.

A lei 8.078/90, que trata do Código de Defesa do Consumidor, não diferencia as hipóteses de responsabilidade direta e desconsideração da personalidade jurídica lançando tudo na vala desta última [76], por conta da adoção da teoria menor da personalidade jurídica. Chega a associar má administração com fraude, abuso e ilícito, o que é, deveras, lastimável. Ou seja, com redação demasiadamente ampla visa amarrar todas as hipóteses possíveis para responsabilizar diretamente o sócio, sendo irrelevante as noções de pessoa jurídica, de autonomia/separação patrimonial, de fraude ou abuso de direito. Melhor seria que em um único artigo se dissesse que a pessoa jurídica não tem eficácia no âmbito consumerista, sendo os sócios sempre responsabilizados pessoalmente, já que o objetivo é puramente este. Assim, atualmente, por força do § 5º do diploma consumerista, os sócios sempre poderão responder pessoalmente, ficando tal decisão adstrita exclusivamente ao juízo de valor do magistrado [77].

A lei 8.884/94 estabelece no artigo 16 que "as diversas formas de infração da ordem econômica implicam a responsabilidade da empresa e a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, solidariamente". Sendo que no artigo 18 [78] trata da desconsideração da personalidade jurídica, a despeito da última parte da norma não ser causa da aplicação da teoria, sendo uma ampliação equivocada. Aqui o legislador utilizou a técnica de separar claramente as hipóteses de responsabilização direta do sócio-administrador, daquelas em que a responsabilização se dá por meio da desconsideração da personalidade jurídica. Talvez, com a observação feita antes, seja a norma que existe em nosso ordenamento mais próxima do ideal.

A lei 8.620/93 tratava no artigo 13 [79] da hipótese de responsabilidade pessoal e solidária dos sócios de empresas por cotas de responsabilidade limitada de débitos junto a Seguridade Social. Era fonte de profunda controvérsia doutrinária e jurisprudencial, tendo sido até mesmo objeto de ação direta de inconstitucionalidade. Mas a lei 11.941/2009 veio em boa hora revogar tal dispositivo, não obstante tentativas de mantê-lo vivo [80]. Assim, somente a pessoa jurídica pode ser responsabilizada perante o INSS. A presente hipótese, pois, deixa de ser exceção à regra geral.

O Código Tributário Nacional prevê as hipóteses de responsabilidade dos sócios nos arts. 134 [81] e135 [82], que tratam da responsabilidade por transferência de terceiros. Da leitura da primeira norma, depreende-se que se tratam, na verdade, de hipóteses taxativas de responsabilidade subsidiária, pois só terá lugar nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte. Além do que mister se faz a ação ou indevida omissão à pessoa designada como responsável. Condição sine qua non, pois, é que o sócio exerça alguma função de administração da pessoa jurídica para que haja sua responsabilização pessoal lastreada em tal dispositivo. Logo, sócio meramente cotista não pode ser responsabilizado se não concorreu com o ato. Já no que toca ao art. 135, a responsabilidade do sócio será pessoal, desde que resulte de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos.

Por oportuno, vale lembrar ainda que, por força de comando constitucional [83], só por meio de lei complementar é possível tratar de responsabilidade tributária [84], razão pela qual a jurisprudência tem que analisar com um cuidado muito maior seus alargamentos realizados, a exemplo da aceitação de presunções formuladas pelo fisco. Com a inserção da súmula vinculante no Brasil, seria muito fácil positivar novas situações de responsabilidade tributária por meio do Poder Judiciário. Inclusive, o STJ, corretamente, já afastou as presunções de que falta de pagamento [85] e mudança de endereço [86] por si só não são causas de responsabilidade direta dos sócios.

Como se evidencia, quando a atribuição da responsabilidade não for adstrita ao direito empresarial, tocando outros ramos jurídicos, verifica-se que outros princípios e fundamentos jurídicos são levados em consideração, cabendo ao legislador sopesar, por exemplo, entre a livre iniciativa e a tutela do consumidor, a fim de tutelar satisfatoriamente os interesses em jogo. Por isso, parte da doutrina já vem tratando a "tutela dos interesses não negociais" como "relativização da pessoa jurídica", como forma de conferir harmonia ao sistema, embora isso já se mostre quase impossível diante da mixórdia que tomou forma. Vejamos o que diz BORBA VIANNA [87] sobre a mencionada relativização:

Em razão disso, quando se estiver diante de um impasse como o de um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor ou à qualidade do meio ambiente, utilizando-se da nova ordem constitucional de 1988, poder-se-á responsabilizar, dependendo das circunstâncias concretas de cada caso (v.g., da repercussão social do caso e do ato praticado contra o consumidor ou o meio ambiente), a pessoa responsável pelo prejuízo ou mesmo seus dirigentes que estão agindo em nome da pessoa jurídica.

Todavia, tal responsabilidade não se dará através da aplicação da disregard doctrine como impropriamente prevê o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Meio Ambiente (nos artigos supra referidos), mas sim, através de uma nova técnica jurídica, que, não obstante ainda não ter merecido o devido tratamento doutrinário, já foi chamada de "relativização da pessoa jurídica" por parte da doutrina, definida da seguinte forma:

"A relativização da pessoa jurídica significa que, à luz dos princípios gerais da atividade econômica previstos na CF e da função social da pessoa jurídica, os danos causados aos consumidores ou ao meio ambiente devem ser reparados, independentemente da pessoa jurídica, ou seja, ainda que esta não possua patrimônio suficiente ou adequado à indenização, hipótese em que os bens do sócio, que aceitou os riscos de explorar aquela determinada atividade econômica, devem responder pelos prejuízos causados".

Ou seja, esta formulação doutrinária (relativização da pessoa jurídica), muito próxima da teoria menor tratada por Fábio Ulhoa Coelho, ignora a existência da personalidade jurídica concedida à pessoa jurídica, responsabilizando diretamente os administradores (sócios etc.) da sociedade sempre que restar obstacularizado o integral ressarcimento do consumidor ou do meio ambiente.

Pois bem, no que se refere à terceira exceção, repressão a prática de fraudes perpetradas pelos sócios, a responsabilização do sócio se dá por meio da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica vista no item 3.1, ao qual remetemos o leitor, ou por força do artigo 1.080 do Código Civil que assim dispõe: "as deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente a aprovaram".

Neste tópico, pode-se concluir que a regra geral aponta pela irresponsabilidade dos sócios em prestígio ao princípio da autonomia/separação patrimonial.

Ocorre que, a depender do interesse objeto de tutela, o legislador estabelece hipóteses em que os sócios poderão ser responsabilizados pessoalmente. Às vezes isso se dá exclusivamente, solidariamente, ou subsidiariamente. Em determinadas situações de forma taxativa, noutras de forma aleatória, deixando ao puro critério do magistrado no momento de aperfeiçoamento da norma jurídica.

Por seu turno, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica se aplicaria em situações em que não haja previsão legal de responsabilização direta dos sócios, mas, consoante lições de Rolf Serick, desde que presente requisitos específicos para sua aplicação, a exemplo da fraude e do abuso de direito. Inclusive, registre o pensamento de STOLZE & PAMPLONA FILHO [88], in verbis:

De fato, há uma distinção nítida entre responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade e desconsideração da pessoa jurídica.

A disregard somente se justifica para as hipóteses em que não há responsabilidade. Se o sócio já é diretamente responsável, não há que se falar em desconsideração. A teoria da desconsideração da pessoa jurídica serve, exatamente, para achar, desvendar, revelar o verdadeiro "negociante", que se escondeu com a "máscara" da pessoa jurídica. Serve, pois, para as situações em que o ato é, em princípio, lícito, só sendo ilícito na medida em que se revela que houve um abuso no exercício do direito de constituir ou valer-se de uma pessoa jurídica.

Em verdade, o que tem ocorrido, a despeito dessa tentativa de sistematização [89], é que quando se legisla ou se julga matéria atinente a responsabilidade, não há a menor preocupação com a cientificidade ou técnica no trato com a matéria, muito menos uniformidade. A responsabilidade empresarial é uma coisa, a consumerista é outra, a tributária é totalmente estranha a ambas e assim por diante. E o que é pior: quando são confrontadas geram teratologias jurídicas, que sequer a doutrina por meio da disregard doctrine ou, mais modernamente, da relativização da pessoa jurídica tem explicado de forma satisfatória. Enfim, é preciso um freio de arrumação, antes que o dano à ordem econômica seja irreversível.

Ainda, é preciso deixar claro que não se vislumbra aqui a desregulamentação da responsabilidade pessoal dos empresários ou o fim da teoria da desconsideração da personalidade, porquanto imprescindíveis ao próprio ordenamento. Não se entoa a tese de total irresponsabilidade dos empresários sob o manto da pessoa jurídica, pois parece ser mais coerente o pensamento de EROS GRAU [90]: "é necessário que o Estado se empenhe na defesa do capitalismo contra os capitalista".

Em poucas palavras: o tema responsabilidade pessoal dos sócios, por conseguinte a disregard doctrine, precisa de um tratamento sistemático, uniforme, coerente e seguro para que possa, a partir de então, ser adaptado às especifidades de cada ramo jurídico, e não como é feito atualmente, de forma aleatória e indiscriminada. É preciso simplificar, ao revés de ampliar e complicar, de modo a prestigiar a segurança jurídica, valor tão caro ao ordenamento jurídico brasileiro.

3.3 Críticas à disreagard doctrine

A doutrina [91] nacional costuma relacionar, com razão, os seguintes equívocos à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Vejam que tais casos catalogados afastam-se daqueles princípios vetores relacionados por ROLF SERICK para aplicação fidedigna da disregard doctrine:

. presunção de fraude;

. inversão do ônus probatório [92];

. ausência de prévio acertamento da responsabilidade do sócio;

. a insuficiência de bens sociais como critério para a desconsideração;

. a restrição do princípio da autonomia da pessoa jurídica às obrigações negociáveis;

. aplicação na generalidade dos casos de dissolução irregular;

. o uso da desconsideração nos casos de fraude a credores ou a execução;

. possibilidade de aplicação ex officio.

Pois bem, visando superar essa aplicação desastrada pelo Poder Judiciário brasileiro, a doutrina [93] sugere o fim da mencionada teoria e adoção de outros institutos, quais sejam:

. abuso de direito;

. simulação;

. negócio indireto com fins ilícitos;

. fraude à lei;

. fraude à execução;

. teoria da aparência;

. teoria ultra vires;

. relação obrigacional;

. capital social;

. função social do contrato e as exigências que daí decorrem, sobretudo a tutela externa de crédito;

. boa-fé objetiva, seus deveres anexos e demais cláusulas gerais trazidas pelo novo Código Civil, tudo sem prejuízo das diversas hipóteses previstas em lei, por meio das quais os sócios respondem quando violam norma legal pré-existente e/ou contrato/estatuto social.

Entende-se corretíssima a preocupação e crítica da doutrina, mais que abalizada, acerca da aplicação da teoria da desconsideração personalidade jurídica no Brasil. Pelas razões demonstradas até aqui, a aplicação açodada pelo Poder Legislativo e Pelo Poder Judiciário brasileiros têm causado enorme dano a ordem econômica. Porém, não se acredita que o fim da disregard doctrine do cenário nacional e a aplicação autônoma dos institutos previstos na parte geral e das obrigações do direito civil seria a melhor solução para se acabar com a crise da pessoa jurídica. Ao contrário, a confusão apenas aumentaria, porquanto os tribunais perderiam a noção da preservação da personalidade jurídica e as hipóteses judiciais de responsabilização pessoal dos sócios seriam ampliadas op judice, sem mencionar o fato de que inúmeros juristas admitem a aplicação da teoria mesmo inexistindo previsão em texto legal.

Veja, a disregard doctrine é ancorada nas teorias da fraude e do abuso do direito, não tendo uma origem autônoma. Além do que, mesmo antes da sistematização da referida teoria, aqueles outros institutos já estavam ao alcance dos juristas de outrora, e, mesmo assim, havia a crise da pessoa jurídica. Por isso, tem-se que a teoria da desconsideração positivada representa uma evolução e garantia à livre-iniciativa, ainda que esteja longe do ideal. Trata-se de uma teoria concebida diante das particularidades que envolvem a pessoa jurídica, sobretudo a preocupação fundamental em preservar a personalidade jurídica, a autonomia patrimonial, por conseguinte, a ordem econômica.

O problema que há com a dita teoria é precisamente no seu alargamento indevido para além das situações de fraude ou abuso de direito, que precisa ser corrigido urgentemente pelo Poder Legislativo, uma vez que no âmbito do Poder Judiciário já é quase impossível corrigir-se atualmente, afora aqueles outros equívocos técnicos catalogados por CEOLIM, conforme visto, mas que também podem ser superados por meio de uma norma jurídica precisa.

Assim, defeitos existem na aplicação do teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas se entende que decretar o seu fim será um retrocesso desnecessário. Também não se pode ser inocente a ponto de acreditar que uma lei uniforme sobre o tema vá erradicar com todos os problemas que existem atualmente, pois o Direito não se restringe a tanto, salvo na concepção dos exegetas. Logo, o caminho mais indicado é aperfeiçoar a aplicação da disregard doctrine em nosso país.

3.4 Pretensões Legislativas.

O Projeto de Lei n° 2.426/2003 de autoria do então Deputado Federal Ricardo Fiúza tinha por objetivo regulamentar o disposto no art. 50 do Código Civil, exatamente em razão da insegurança jurídica promovida pela jurisprudência ao tratar da disregard doctrine, como fica claro na justificação do projeto ora transcrita:

Embora só recentemente tenha sido introduzido na legislação brasileira, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo utilizado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras razões que autorizam um magistrado a declarar a desconsideração da personalidade jurídica.

Como é sabido e consabido o instituto em referência tem por escopo impedir que os sócios e ou administradores de empresa que se utilizam abusivamente da personalidade jurídica, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, prejudiquem os terceiros que com ela contratam ou enriqueçam seus patrimônios indevidamente. A "disregard doctrine" pressupõe sempre a utilização fraudulenta da companhia pelos seus controladores, (Ver lei inglesa art. 332, Companies Act de 1948). Na Inglaterra, essa responsabilidade dos sócios e administradores originalmente só era admitida no caso de dolo. Atualmente já é extensiva aos casos de negligência ou imprudência graves na conduta dos negócios (reckless trading). De acordo com o art. 333 da Companies Act, admite-se a propositura de ação contra o administrador (officer), nos casos de culpa grave (misfeasance e breach of trust), mas tão-somente para que sejam ressarcidos os danos causados à sociedade pelos atos contra ela praticados. Nos Estados Unidos, a doutrina da transparência tem sido aplicada com reservas e tão somente nos casos de evidente intuito fraudulento, quando a sociedade é utilizada como simples instrumento ou alter ego do acionista controlador. Em tais hipóteses de confusão do patrimônio da sociedade com o dos acionistas e de indução de terceiro em erro, a jurisprudência dos Estados Unidos tem admitido levantar o véu (judges have pierced the corporate veil) para responsabilizar pessoalmente os acionistas controladores (v. o comentário Should Shareholders be Personally Lieble for the Torts of their Corporations? In Yale Law Journal, nº 6, maio de 1967, 76/1.190 e segs. E especialmente p. 1.192).

Esses casos, entretanto, vêm sendo ampliados desmesuradamente no Brasil, especialmente pela Justiça do Trabalho, que vem de certa maneira e inadvertidamente usurpando as funções do Poder Legislativo, visto que enxergam em disposições legais que regulam outros institutos jurídicos fundamento para decretar a desconsideração da personalidade jurídica, sem que a lei apontada cogite sequer dessa hipótese, sendo grande a confusão que fazem entre os institutos da co-responsabilidade e solidariedade, previstos, respectivamente, no Código Tributário e na legislação societária, ocorrendo a primeira (co-responsabilidade) nos casos de tributos deixados de ser recolhidos em decorrência de atos ilícitos ou praticados com excesso de poderes por administradores de sociedades, e a segunda (solidariedade) nos casos em que genericamente os administradores de sociedades ajam com excesso de poderes ou pratiquem atos ilícitos, daí porque, não obstante a semelhança de seus efeitos, a matéria está a exigir diploma processual próprio, em que se firme as hipóteses em que a desconsideração da personalidade jurídica possa e deva ser decretada.

Todavia, convém lembrar a inconveniência de se atribuir a todo e qualquer sócio ou administrador, mesmo os que não se utilizaram abusivamente da personalidade jurídica ou até mesmo daqueles que participam minoritariamente do capital de sociedade sem praticar qualquer ato de gestão ou se beneficiar de atos fraudulentos, a responsabilidade por débitos da empresa, pois isto viria a desestimular a atividade empresarial de um modo geral e a participação no capital social das empresas brasileiras, devendo essa responsabilidade de sócio ser regulada pela legislação societária aplicável ao tipo de sociedade escolhido.

Essas as razões que me fizeram apresentar este projeto de lei, que espero mereça a aprovação do Congresso Nacional e venha a ser sancionado como lei pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

O parecer do Dep. Léo Alcantra recebido na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio foi positivo no sentido de aprovação do projeto, contudo foi arquivado posteriormente com fundamento no art. 105 [94] do Regimento Interno da Câmara dos Deputados Federais. Assim, o país perdeu uma grande oportunidade de avançar no trato do tema. Tratava-se de um projeto de qualidade, em que pese, de lege ferenda, acreditar-se que poderia vir a ser modificado para melhor.

Em nosso sentir, uma vez que aqui se defende o tratamento uniforme da matéria, deveriam não apenas ser suprimidos os arts. 5° e 6° do Projeto, mas ainda ser veiculado por meio de lei complementar, para ter validade na seara tributária e previdenciária, além de constar dispositivo revogando expressa e discriminadamente todas as outras normas que façam menção a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, a exemplo do art. 18 da Lei 8.884/94 e art. 28 da Lei 8.078/90. Ou seja, somente a nova legislação iria regular a desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro. Mas nada impede que possa vir a ser admitida no projeto uma norma específica de inversão do ônus da prova a ser aplicada na seara consumerista, ambiental e trabalhista, desde que oportunizado efetiva e previamente o contraditório, justamente para se atender aos desígnios constitucionais.

Não tem sentido exigir em cada um dos micro-sistemas jurídicos requisitos e hipóteses distintas para a desconsideração, uma vez que a aplicação da teoria é limitada à repressão ao abuso de direito e fraudes, somente! Outrossim, em havendo situações específicas de atribuição de responsabilidade direta dos sócios em cada um dos ramos do Direito, permanece a necessidade dessas serem previamente tipificadas em respeito ao princípio da segurança jurídica, concorrendo, todavia, a exigência de uma razão lógico-jurídica, sob pena de a norma padecer de eficácia social.

Repise-se não é lógico que o sistema societário disponha pela limitação da responsabilidade dos sócios às quotas ou ações por eles integralizadas e, em paralelo, para fins de consumo, que são bastante abrangentes, de responsabilidade ambiental, trabalhista, de direito concorrencial a regra praticamente contrária ao regime geral de responsabilização de sócios e administradores [95].

Havia, ainda, o Projeto de Lei n° 7.160/2002 que visava dar nova redação ao artigo 50 [96] do Código Civil. Inclusive, estabelecia que a pessoa jurídica têm existência distinta de seus membros, noção que não foi textualmente reproduzida pelo novo Diploma Civil. Logo, tal correção seria muito bem bem vinda. Porém, também foi arquivado com fundamento no art. 105 do Regimento Interno no ano de 2007.

Cite-se o Projeto de Lei n° 5140/05 que traz o art. 883-D da CLT, para dizer que "a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, à execução trabalhista, exige prévia comprovação de ter ocorrido abuso de direito, desvio de finalidade, confusão patrimonial, excesso de poder, ocorrência de fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social".

Tem-se ainda que a Comissão de Juristas [97] encarregada de elaborar o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil já discute o assunto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito processual, tamanha a importância do assunto em destaque. Inclusive, em mensagem ao Sen. José Sarney, o Min. Luiz Fux expressa a necessidade de

n) Regular, na Parte Geral, a desconsideração da Pessoa Jurídica na forma da lei civil como condição para a fixação da responsabilidade patrimonial dos sócios na futura fase de cumprimento da sentença bem como regular o instituto na execução extrajudicial, garantido o contraditório prévio, aos sócios no próprio processo satisfativo.

Apenas um dos problemas que envolve a desconsideração, qual seja a necessidade de contraditório prévio, será tocada pela reforma do Código de Processo Civil. Mas permanecerá a necessidade de alteração substantiva cujos projetos anteriormente transcritos procuram tratar, sob pena do esforço processual se tornar inócuo.

Portanto, atualmente, há um esforço legislativo no sentido de barrar o uso indiscriminado da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, trazendo mais segurança para nosso sistema, e, por conseguinte, diminuindo o custo-Brasil [98]. Uma vez que existem vários projetos legislativos, muitos dos quais arquivados, pode-se aproveitar o conteúdo dos mesmos para dar continuidade aos trabalhos já realizados. Mas repita-se que há uma necessidade imperiosa de positivar uma única norma específica para tratar de forma uniforme a desconsideração da personalidade jurídica, daí decorrendo a utilização por todos os ramos jurídicos, por conseguinte mantendo-se a harmonia de nosso sistema.


Conclusão

No decorrer do presente trabalho, procurou-se demonstrar que a personalidade jurídica, em especial a autonomia/separação patrimonial, é deveras importante para o desenvolvimento da atividade econômica no país, para assegurar o aumento dos postos de trabalho, incrementar a arrecadação tributária, atender aos interesses dos consumidores, enfim, para assegurar efetivamente a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Contudo, viu-se que a aplicação assistemática da disregard doctrine em nosso ordenamento é fonte de profunda insegurança jurídica, o que faz aumentar consideravelmente os custos empresariais, além de ainda afugentar novos investimentos. Enfim, a teoria da desconsideração jurídica da forma como está posta no Brasil ocasiona desnecessariamente grave dano à ordem econômica.

Por isso, defendeu-se que é necessário repensar e aperfeiçoar a aplicação de tal teoria a fim de manter a coerência do sistema jurídico. O ideal seria a produção de apenas uma legislação para tratar da disregard, elaborada exclusivamente para reprimir abusos e fraudes, tal como idealizada inicialmente por Rolf Serick.

Viu-se ainda que outra solução apontada pela doutrina nacional e alienígena, mas que não é defendida por esta monografia, é superar a aplicação da disregard doctrine por meio da aplicação de institutos jurídicos presentes na parte geral do Código Civil, porquanto entendem que a teoria é desnecessária e apenas causa confusão.

Que fique claro, portanto, que o caso é grave e merece rápido enfrentamento, sob pena de o dano à economia do Brasil se tonar irreparável em pouco tempo, sobretudo, agora, que se destaca no cenário internacional como importante player.

E é justamente por isso, que o Congresso Nacional tem que se empenhar em produzir uma legislação eficiente que vise consertar a mixórdia que tomou forma nessa seara, inclusive assegurando o devido processo legal, ampla defesa e contraditório, pois somente assim o comando do art. 170 da Constituição Federal ganhará concretude.


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Notas

  1. "A introdução, no nível constitucional, de disposições específicas, atinentes à conformação da ordem econômica (mundo do ser), não consubstancia, em rigor, uma ruptura dela. Antes, pelo contrário, expressa – como venho afirmando – o desígnio de se aprimorar, tendo-se em vista a sua defesa. A ordem econômica (mundo do dever ser) capitalista, ainda que se qualifique como intervencionista, está comprometida com a finalidade de preservação do capitalismo. Daí a feição social, que lhe é atribuída, a qual, longe de desnudar-se como mera concessão a um modismo, assume, nitidamente, um conteúdo ideológico". (GRAU, EROS ROBERTO. A ordem econômica na constituição de 1988. 13 ed. p. 73. São Paulo: Malheiros, 2008)
  2. "Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isto é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica". (GRAU, EROS ROBERTO. A ordem econômica na constituição de 1988. 13 ed. p. 173 São Paulo: Malheiros, 2008)
  3. SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito constitucional econômico. p. 135 São Paulo: Ltr, 2001.
  4. apud VIANNA, Guilherme Borba. A importância econômica e social da personalidade jurídica societária e sua crise na contemporaneidade. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007. p. 37. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2007-08-27T082254Z-617/Publico/Guilherme%20Borba%20Vianna%20-.pdf>. Acesso em: 20/05/2010.
  5. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 38.
  6. CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de direito administrativo. p. 762. 16 ed. Rio de Janeiro: LUMEN IURIS, 2006.
  7. "Além disso é preciso não ter receios de se assumir um fato bastante lógico: a finalidade da empresa é o lucro. Condicionado, claro, seja às normas trabalhistas, tributárias, ambientais, mas, o objetivo primeiro da empresa é a perseguição do lucro e isso não deve ser objeto de constrangimento.
  8. Na medida em que atende aos condicionamentos acima, está, de maneira própria, executando sua função social, pela via de abstenção de causar prejuízos aos interesses da coletividade, não sendo cabível impor um assistencialismo empresarial ou uma filantropia compulsória, sob pena de fazer com que as empresas percam seus traço de "organização produtora de lucros, como defendido neste trabalho". (MARTINS, Irena Carneiro. A importância da limitação da responsabilidade de sócios e da limitação da responsabilidade de administradores para as relações econômicas no ordenamento brasileiro. p. 137. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, 2008. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1454 >. Acesso em: 20/05/2010.

  9. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 1. p. 33. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
  10. "Quando o direito considera relevante uma certa externalidade e determina a sua compensação, opera-se a 'internalização'. Isto é, a externalidade, que se define como efeito não compensável, deixa de ser externalidade". (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 1. p. 34. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008)
  11. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 1. p. 35. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. "Para a economia do bem-estar, o estado é o agente do processo de internalização das externalidades, cabendo-lhe definir e dimensionar os custos sociais e impor a compensação aos agentes econômicos. Já para a análise econômica do direito, a contribuição do estado na internalização das externalidades deve se limitar à redução dos custos de transação entre os particulares. As normas jurídicas, em Pigou, em especial as de conteúdo tributário, são o instrumento para o estado internalizar as externalidades; enquanto para a análise econômica do direito, elas devem simplesmente reproduzir o mercado na competição perfeita (law as market mimiker) (Pacheco, 1994:37)" (Op. cit. p. 36)
  12. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 1. p. 37. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
  13. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 1. p. 38/39. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
  14. "O economista John Maynard Keynes, mais conhecido como Lorde Keynes, denominou a interseção entre o cálculo racional (dos componentes relativos à decisão de empreender) e a ação empresarial (o efetivo investimento) de animal spirits. (...)
  15. De acordo com o entendimento keynesiano acima aludido, pode-se deduzir que essa certeza subjetiva (o animal spirits) que impulsiona o empreendedor é exatamente o que diferencia daquele que desiste ao ponderar todos os riscos envolvidos em uma operação, o que por vezes desestimula a realização do empreendimento ou – possivelmente – o brilho do êxito". (MARTINS, Irena Carneiro. A importância da limitação da responsabilidade de sócios e da limitação da responsabilidade de administradores para as relações econômicas no ordenamento brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, 2008. p. 30. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1454 >. Acesso em: 20/05/2010)

  16. WALD, Arnold. A estabilidade do Direito e o custo Brasil. Revista Jurídica Virtual. Vol. 1 n. 6. p. 02/03. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_06/Estabilidade_direito.htm > Acesso em: 09/04/2010.
  17. No item 4.3, é demonstrado que o efeito da separação/autonomia patrimonial decorrente da aquisição da personalidade jurídica é essencial para mitigar os riscos de eventual insucesso empresarial, e foi graças a tal efeito que a economia mundial pode se desenvolver até o presente momento.
  18. VIANNA, Guilherme Borba. A importância econômica e social da personalidade jurídica societária e sua crise na contemporaneidade. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007. p. 165/196. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/1/TDE-2007-08-27T082254Z-617/Publico/Guilherme%20Borba%20Vianna%20-.pdf>. Acesso em: 20/05/2010.
  19. apud GOMES, ORLANDO. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica. p. 121/134. Disponível em: <http://www.direitogv.com.br/subportais/raiz/RDGV_01_p121_134.pdf>. Acesso em: 20/05/2010.
  20. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 21 ed. p. 216. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
  21. GOMES, ORLANDO. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica. p. 121/134. Disponível em: <http://www.direitogv.com.br/subportais/raiz/RDGV_01_p121_134.pdf>. Acesso em: 20/05/2010.
  22. Cite-se, a título de exemplo, a hipótese em que um dos sócios não integraliza a sua quota do capital social que foi subscrita. Nesta situação, a própria pessoa jurídica pode ingressar em juízo em face do sócio inadimplente ("CC/02, Art. 1.004. Os sócios são obrigados, na forma e prazo previstos, às contribuições estabelecidas no contrato social, e aquele que deixar de fazê-lo, nos trinta dias seguintes ao da notificação pela sociedade, responderá perante esta pelo dano emergente da mora.").
  23. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 75
  24. DINIZ, MARIA HELENA. Curso de direito civil brasileiro. Direito de empresa. v. 8. 2 ed. p. 538. São Paulo: Saraiva, 2009.
  25. Conforme classificação de DE FARIAS, a união de pessoas caracteriza a pessoa jurídica intersubjetiva (universitas personarum), enquanto que a afetação de um patrimônio corresponde à pessoa jurídica patrimonial (universitas bonorum). (DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito civil. Teoria geral. 2 ed. p. 251/256 Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005).
  26. Informação disponível no site do Departamento Nacional do Registro de Comércio www.dnrc.gov.br. Acesso em: 20/05/2010.
  27. apud VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 67 (nota de rodapé). No mesmo sentido: "De outra banda, a pessoa jurídica é a entidade formada pela soma dos esforços de pessoas naturais ou por uma destinação específica de patrimônio, visando à consecução de uma finalidade específica e constituída na forma da lei. Em outras palavras, é o ente formado pelo conjunto de pessoas naturais ou por um acervo patrimonial afetado para uma finalidade." (DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito civil. Teoria geral. 2 ed. p. 101/102 Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005)
  28. Decreto n° 2.427 de 12/12/1997.
  29. "Também o desenvolvimento econômico dos povos demonstrou a necessidade de o homem firmar grupos para atingir suas metas.
  30. No início, simples núcleos primitivos de produção, que se confundiam com a própria família, e, posteriormente, com o florescer do desenvolvimento tecnológico, grandes e complexos conglomerados empresariais, impondo, inclusive, a necessidade de o Estado intervir na economia para coibir abusos.

    A respeito da interferência do desenvolvimento econômico no direito, pontifica Antônio Luis Machado Neto: 'realmente, temos aí um processo de raiz e procedência dominantemente econômicos, embora de largas repercussões socioculturais sobre o inteiro elenco da vida coletiva'. E mais adiante: 'como uma rápida alteração da vida coletiva, o desenvolvimento tenderá, normalmente, a criar fenômenos de inadaptação, entrechoques de sistemas entre uma vida econômico-industrial emergente e uma organização social estática e tradicionalista'.

    Nesse contexto, a pessoa jurídica, figura moldada a partir de um fato social, ganha singular importância" (GAGLIANO, Pablo Stolze. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v. I. p. 190. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003).

  31. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 67.
  32. DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito civil. Teoria geral. 2 ed. p. 249/250. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005
  33. apud VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 69.
  34. apud MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 27.
  35. "Por outro lado, existem ainda renomados juristas como Angelici (Giurisprudenza Commerciale, 1977) e Rubens Requião que desqualificam a problemática do estudo da pessoa jurídica, pois, para eles, o 'problema da personalidade jurídica das sociedades comerciais comporta um tratamento prático. Daí porque nos afastamos das abstratas preocupações científicas e doutrinárias, a respeito das teorias, dissertação imprópria em um compêndio de Direito Comercial. Valemo-nos, por isso, da destemida afirmativa de Messineo, que alheando-se das querelas que tanto afadigaram os juristas, considerou de somenos importância o problema sobre a realidade ou ficção das pessoas jurídicas, satisfazendo-se com a circunstância de possuírem elas uma realidade no e para o mundo jurídico' (REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 1, p. 385). Em outro texto, continua Rubens Requião: 'Não é nosso objetivo, nem comporta o âmbito resumido, deste estudo, disgressões sobre as fatigantes polêmicas sobre a teoria da pessoa jurídica, máxime quando elas, segundo o testemunho de Cunha Gonçalves, ´longe de esclarecerem o problema, só tem servido para o tornarem mais confuso...´(REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Disregard Doctrine. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, V. 803, set. 2002, p. 754." VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 70, nota de rodapé).
  36. A Ciência do Direito, na irreparável definição de Miguel Reale constante em sua exposição de motivos do Código Civil, é a "ciência de experiência social concreta".
  37. MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 27.
  38. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 71.
  39. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 73.
  40. "O princípio da autonomia da pessoa jurídica da sociedade não estava claramente determinado no Código Comercial de 1850. Ao contrário, diversos preceitos estabeleciam solidariedade entre sócios e sociedade, cogitavam de interferências nas relações societárias de fatos típicos da vida de pessoas naturais, como a morte ou a declaração de incapacidade moral. A imprecisão no reconhecimento da sociedade, como pessoa distinta da dos sócios, correspondia ao incipiente grau de desenvolvimento da teoria das pessoas jurídicas, quando do aparecimento da codificação mercantil brasileira (Mendonça, 1941, 3:77/82).
  41. antigo Código Civil, de 1916, não apresentou a mesma imprecisão. Nele, o princípio da autonomia da pessoa jurídica estava claramente estabelecido, bem como sua inteira aplicação às sociedades". (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 2. 11 ed. p. 19/20. São Paulo: Saraiva, 2008.)

  42. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 12.
  43. Novo código civil: exposição de motivos e texto sancionado. 2. ed. Atual. p. 23/24 - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. Dentre os princípios fundamentais que norteou a referida Comissão, leia-se o seguinte: "f) Atualizar, todavia, o Código vigente, não só para superar os pressupostos individualistas que condicionaram a sua elaboração, mas também para dotá-lo de institutos novos, reclamados pela sociedade atual, nos domínios das atividades empresárias e nos demais setores da vida privada". op. cit. p. 25.
  44. BORBA VIANA menciona ser a teoria contratualista italiana a mais aceita pela doutrina e jurisprudência societária, em que pese existirem teorias anticontratualistas, como a teoria do poder corporativo disciplinar, teoria da disciplina taxativa legal e a teoria institucionalista. Op. cit. p. 84.
  45. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 85.
  46. Porém nem sempre foi assim. Vide VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. p. 82/83.
  47. DE FARIAS, Cristiano Chaves. Op. cit. p. 268.
  48. É prática usual em nosso país abrir um "comércio" em caráter experimental sem a devida consultoria jurídica de uma advogado, com o objetivo de diminuir os custos e fugir da pesada carga tributária. Somente no caso de sucesso do empreendimento, bem posteriormente, é que se passa à formalização da empresa, o que, tal retardamento, pode redundar em enorme prejuízo. Interessante observar é que graças a esta cultura da esperteza é que observamos um elevado número de negócios que não vão à frente em nosso país.
  49. Vide DE FARIAS, Cristiano Chaves. Op. cit. p. 272. Outrossim, o mesmo autor textualiza que "(...) às pessoas jurídicas não são reconhecidos e assegurados, automaticamente, os direitos da personalidade, admitindo-se, na verdade, uma verdadeira extensão da técnica dos direitos da personalidade para a sua proteção. Ou seja, empresta-se às pessoas jurídicas a técnica de proteção da personalidade para assegurar-lhe tutela jurídica contra violações de seus interesses".
  50. A melhor doutrina diferencia a presentação da representação, sendo o termo correto a presentação, uma vez que a pessoa jurídica possui capacidade jurídica e para externalizar sua vontade se faz presente por meio de seu administrador. Logo, não é o caso de representação.
  51. DE FARIAS, Cristiano Chaves. Op. cit. p. 252. De acordo com DOLINGER, a atribuição da nacionalidade a uma pessoa jurídica envolve uma questão técnico-jurídica, enquanto que a atribuição da nacionalidade a pessoa física envolve uma questão política. (DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 7 ed. p. 486. Rio de Janeiro: Renovar, 2003)
  52. Art. 173, § 5° e art. 225, § 3°, ambos da Constituição Federal.
  53. MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 26.
  54. Sobre os fundamentos da personalidade jurídica, sua autonomia e limitação da responsabilidade social vide MARTINS, Irena Carneiro. Op. cit. p. 29/41.
  55. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 181/182.
  56. "(...) A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção ou circulação de bens ou serviços. Sem essa proteção patrimonial, os empreendedores canalizariam seus esforços e capitais a empreendimentos já consolidados. Os novos produtos e serviços somente conseguiriam atrair o interesse dos capitalistas se acenassem com altíssima rentabilidade, compensatória do risco de perda de todos os bens. Isso significa, em outros termos, que o preço das inovações, para o consumidor, acabaria sendo muito maior do que costuma ser, sob a égide da limitação da responsabilidade dos sócios, já que esses preços deveriam cobrir custos e gerar lucros extraordinários, capazes de remunerar o risco de perda total do patrimônio, a que se expôs o empreendedor. A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é, em suma, direito custo (cap. 2, itens 3 e 4)". (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 2. 11 ed. p. 402. São Paulo: Saraiva, 2008)
  57. Op. cit. p. 31.
  58. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 16.
  59. " No entanto, urge esclarecer que o capital social disponibilizado para dar início (no momento da criação) ou suporte (aumento do capital) para a sociedade, não significa, necessariamente, o patrimônio da sociedade, o qual será acumulado no decorrer de suas atividades, e que já não se confunde com o capital social". VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 181/182.
  60. As receitas derivadas do Estado quando bem administradas consistem na melhor forma de distribuição de riquezas, face o investimento maciço em educação, saúde, segurança pública, cultura, ou seja, o emprego verdadeiro do erário naquelas atribuições tipicamente estatais que, infelizmente, tem sido delegadas impropriamente às pessoas jurídicas privadas, sob a equivocada idéia da função social da empresa, responsabilidade social corporativa ou coisa do gênero. Ora, se o Estado não exerce efetivamente seu papel constitucional, qual será a razão de sua existência?
  61. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 172.
  62. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 19/23.
  63. VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 112/115.
  64. "Ou seja, a crise de função significa a utilização do instituto da personalidade jurídica para atingir finalidades contrárias em relação aos princípios básicos que fundamentam o ordenamento jurídico. Márcia Carla Pereira Ribeiro explica que metade do século passado (XX), ´o Direito vivencia a era dos fins dos valores", de modo que, "se os fins inegavelmente justificam a investida estatal no domínio econômico, os resultados da opção intervencionista contemporânea não têm fornecido conclusões incontroversas'. Isso, no campo da personalização societária, remete ao deslocamento da condição inicial de solução de problemas, para a condição atual de causa de problemas societários, problemática esta que hoje faz diversos juristas repensarem as benesses e os malefícios gerados pela personalidade jurídica societária". VIANNA, Guilherme Borba. Op. cit. p. 113.
  65. CARNEIRO MARTINS (2008, p. 72) sobre a origem da disregard doctrine ensina que "há os que defendem o aspecto do aprimoramento do instituto da personalidade moral e há os que argumentam que, em realidade, a teoria corresponde a uma resposta à crise da limitação da responsabilidade dos sócios, consagrada – em definitivo – na Era Industrial", defendendo, todavia, que o "sistema – diante de determinadas situações anômalas – oferece como resposta o remédio da desconsideração da personalidade jurídica, como uma maneira de, até mesmo, preservá-la. Ao menos na teoria". Por isso advoga que os dois posicionamentos antes citados não são excludentes.
  66. NUNES, Marcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. p. 56. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
  67. Op. cit. p. 34/35.
  68. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. ed. 27. p. 392. São Paulo: Saraiva, 2007.
  69. "É preciso repelir a idéia preconcebida dos que estão imbuídos do fetichismo da intocabilidade da pessoa jurídica, que não pode ser equiparada tão insolitamente a pessoa humana no desfrute dos direitos incontestáveis da personalidade, mas também não devemos imaginar que a penetração do véu da pessoa jurídica e a desconsideração da personalidade jurídica se torne instrumento dócil nas mãos inábeis dos que, levados ao exagero, acabassem por destruir o instituto da pessoa jurídica, construído através de séculos pelo talento dos juristas dos povos civilizados, em cuja galeria sempre há de ser iluminada a imagem genial de Teixeira de Freitas, que no século passado, precedendo a muitos, fixou em nosso direito a doutrina da personalidade jurídica". REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. p. 3 Disponível em: <http://www.merson.hpg.ig.com.br/abusoefraude.htm>. Acesso em: 19/02/2010.
  70. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. ed. 27. p. 391. São Paulo: Saraiva, 2007.
  71. Op. cit. p. 89/90.
  72. Sobre o referido case, vide NUNES, MARCIO TADEU GUIMARÃES, op. cit. p. 90/91.
  73. Op. cit. p. 73.
  74. Op. cit. p. 1.
  75. Op. cit. p. 74/76.
  76. "A teoria menor da desconsideração é, por evidente, bem menos elaborada que a maior. Ela reflete, na verdade, a crise do pincípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. O seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma. Por outro lado, é-lhe de todo irrelevante a natureza negocial do direito creditício oponível à sociedade. Eqüivale, em outros termos, à simples eliminação do princípio da separação entre pessoa jurídica e seus integrantes. Se a formulação maior pode ser considerada um aprimoramento da pessoa jurídica, a menor deve ser vista como o questionamento de sua pertinência, enquanto instituto jurídico". (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito de empresa. v. 2. 11 ed. p. 47. São Paulo: Saraiva, 2008)
  77. "Por fim, deve ser destacado que existe uma corrente doutrinária nos Estados Unidos que vem pregando o fim da disregard doctrine, de onde sobressaem os excertos do jurista Stephen M. Bainbridge, professor titular da UCLA (Universidade Católica de Los Angeles), o qual sustenta que a disregard doctrine deixa para os juízes uma grande discricionariedade, o que vem provocando incerteza e falta de previsibilidade, aumentando os custos de operações comerciais, sobretudo para pequenas empresas, além de não existirem provas de que a disregard doctrine tenha sido utilizada para proporcionar efeitos sociais benéficos, já que os juízes somente se preocupam com os casos concretos, em detrimento das implicações sociais causadas pela responsabilidade pessoal dos acionistas". (VIANNA, GUILHERME BORBA.,Op. cit. p. 145). Cumpre recordar, todavia, que o direito americano segue a common law, de tal sorte que não há positivação das hipóteses de aplicação da teoria em destaque. Assim, a doutrina brasileira deve analisar com ressalvas a tese sustentada por Stephen M. Bainbridge.
  78. Em que pese essa regra que caracteriza a sociedade por cotas de responsabilidade limitada ao capital social, existe posicionamento divergente a saber: "Fram Martins tem, a respeito do limite da responsabilidade dos sócios pelas obrigações da limitada, uma posição isolada na doutrina, mas que merece ser discutida, com o intuito de introduzir a questão da responsabilidade dos sócios pela reintegração do capital social. Para ele, quando a lei define o capital social como o limite de responsabilidade dos sócios, isso significaria que, estando a sociedade impossibilitada de honrar seus compromissos, os credores sociais poderiam cobrar dos sócios a importância equivalente ao capital social, ainda que já estivesse este totalmente integralizado (1957: 304/305). Sua posição, decorrente da interpretação da lei das limitadas revogada pelo Código Civil, em 2003, não podia e nem pode ser aceita, porque eqüivale à afirmação de que o direito societário brasileiro teria adotado uma espécie de dever de reintegrar o capital social, na hipótese de exaurimento do patrimônio líqüido da limitada. Esse dever, que existiu no direito italiano enquanto vigorou o Codice de Commercio del Regno Dítalia (1882 a 1942), expressa-se pela obrigação de os sócios aportarem novos recursos na sociedade sempre que o patrimônio social é significativamente reduzido. O dever de reintegração confere ao capital social a função de garantia dos credores. Trata-se, no entanto, de figura inexistente no direito brasileiro (cf. Penteado, 1988 : 22/29)" (COELHO, FÁBIO ULHOA. Op. cit. p. 406)
  79. "Os credores não negociais (o fisco, empregados e titulares do direito à indenização) não têm instrumentos para preservar seus interesses em face da separação patrimonial da sociedade e da limitação da responsabilidade dos sócios. Todos deveriam ter direito e responsabilizar os sócios empreendedores, de forma ilimitada, pelas obrigações sociais. Contudo o direito brasileiro tutela, convenientemente, apenas o credor tributário e o INSS" (COELHO, FÁBIO ULHOA. Op. cit. p. 407).
  80. Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
  81. "O artigo 28 acaba por potencialmente consagrar o direito de um consumidor em detrimento de um empreendimento que consagra diversas relações sociais (emprego, contratos, etc), o que faz denotar um excessivo zelo com o crédito de uns em detrimento de direito de outros". (MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 62).
  82. Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
  83. "Art. 13. O titular de firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social. Parágrafo único. Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações para com a Seguridade Social, por dolo ou culpa".
  84. Conferir Portaria PGFN Nº 180, de 25 de fevereiro de 2010.
  85. Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.
  86. Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
  87. CF/88, Art. 146. Cabe à lei complementar: III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.
  88. Irena Carneiro Martins (Op. cit. p. 89/91) nos ensina que que há corrente que defende que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na seara tributária necessita de sua positivação. São adeptos de tal corrente: Heleno Taveira Torres, José Lamartine Correa de Oliveira, Luciano Amaro, Osmar Vieira da Silva.
  89. AgRg no REsp 276779 , rel. Min. José Delgado, DJU 02.04.2001.
  90. REsp 970635 / SP. Rel. Min. NANCY ANDRIGHI. Data julgamento: 10/11/2009 .
  91. Op. cit. p. 186.
  92. GAGLIANO, Pablo Stolze; & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v. I. Parte Geral. p. 166. São Paulo: Saraiva, 2003.
  93. Obviamente que existem outras hipóteses de responsabilidade no cenário nacional, sendo nossa enumeração aqui meramente exemplificativa.
  94. GRAU, EROS ROBERTO. A ordem econômica na constituição de 1988. 13 ed. p. 56. São Paulo: Malheiros, 2008.
  95. CEOLIN apud MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 92
  96. Não vislumbramos falha nos sistemas jurídicos em que se admite a inversão ao ônus da prova, salvo quando o magistrado não oportuniza o direito de defesa.
  97. GUMARÃES NUNES apud MARTINS, IRENA CARNEIRO. Op. cit. p. 93.
  98. Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as: I - com pareceres favoráveis de todas as Comissões; II - já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno; III - que tenham tramitado pelo Senado, ou dele originárias; IV - de iniciativa popular; V - de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da República. Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou Autores, dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura subseqüente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava.
  99. MARTINS, Irena Carneiro. Op. cit. p. 102/103.
  100. De acordo com a proposta: "Art. 50. As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros. § 1º. Nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial praticados com abuso da personalidade jurídica, pode o juiz declarar , a requerimento da parte prejudicada, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, que lhes deram causa ou deles obtiveram proveito, facultando-lhes o prévio exercício do contraditório; § 2º O requerimento deve indicar objetivamente quais os atos abusivos praticados pelos administradores ou sócios da pessoa jurídica; § 3º Nos casos de fraude à execução, não será desconsiderada a personalidade jurídica antes de declarada a ineficácia dos atos de alienação, com a conseqüente excussão dos bens retornados ao patrimônio da pessoa jurídica".
  101. Instituída pela Ato n° 379 do Presidente do Senado Federal em 2009.
  102. "Uma última nota ainda, a respeito da racionalidade do direito moderno: ele é racional porque permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo àqueles que se dão nos mercados. Nada disso era possível enquanto as decisões do príncipe ou monarca fossem subjetivamente tomadas, ainda que com fundamento na eqüidade; no direito moderno seu fundamento é objetivo, é a lei." (GRAU, EROS ROBERTO. A ordem econômica na constituição de 1988. 13 ed. p. 35. São Paulo: Malheiros, 2008.)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Jorge Leal Spínola. O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas. Uma necessidade de sistematização pelo Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18129. Acesso em: 19 abr. 2024.