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Segurança jurídico-tributária e proteção da confiança do contribuinte no Estado de Direito

Segurança jurídico-tributária e proteção da confiança do contribuinte no Estado de Direito

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Propõe-se aclarar o sentido e o conteúdo da segurança jurídica, relacionando-a com o princípio da proteção confiança e delimitando os contornos gerais de aplicação de ambos no âmbito do Direito Tributário.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SEGURANÇA JURÍDICA; 2.1 DEFINIÇÃO PRELIMINAR DE SEGURANÇA JURÍDICA; 2.2 DIMENSÕES FORMAL e MATERIAL DA SEGURANÇA JURÍDICA; 2.3 NATUREZA E FUNDAMENTO NORMATIVO DA SEGURANÇA JURÍDICA; 3 SEGURANÇA JURÍDICA E PROTEÇÃO DA CONFIANÇA; 4 SEGURANÇA JURÍDICA E PRINCÍPO DA CONFIANÇA NO DIREITO TRIBUTÁRIO; 5 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS

RESUMO: A segurança jurídica é um preceito básico de grande relevância para o sistema jurídico. Tamanha é a sua utilidade e amplitude no Direito que, não raro, sua invocação é procedida de forma descompromissada, sem grande preocupação com a delimitação do seu efetivo conteúdo. A imprecisão traz empecilhos, porquanto mine parte das possibilidades de aplicação do instituto. No Direito Tributário, cuja principal atribuição implica na afetação de direitos fundamentais do cidadão, como a propriedade e a liberdade, os reclames de segurança jurídica são ainda mais intensos. A proposta do ensaio é justamente a de aclarar o sentido e o conteúdo da segurança jurídica, relacionando-a, ainda, com o princípio da proteção confiança, delimitando, também, os contornos gerais de aplicação de ambos no âmbito do Direito Tributário.

ABSTRACT: The security is a basic precept of great significance for the legal system. Such is its usefulness and comprehensiveness in the Law that, often, it use is preceded in a uncompromised way, without much concern about the delimitation of its actual content. The imprecision brings obstacles, impending the concretization of part of the institute´s possibilities of application. In the Tax Law, whose main task involves the commitment of fundamental rights of citizens, such as property and freedom, the legal security proclaims seems to be even more intense. The proposed essay intends to clarify the meaning and content of legal security, linking it with the principle of the trust protection, delimiting the general contours of application of both on the Tax Law.


1 INTRODUÇÃO

A segurança é, inegavelmente, um valor fundante do sistema jurídico, já que uma das principais – senão a principal – funções do Direito é a de estabilizar as relações sociais, garantindo o convívio pacífico. Este preceito desdobra-se de diversas formas no âmbito do fenômeno jurídico e possui potencialidade que, nem sempre, é plenamente explorada.

Apesar de corriqueiramente referido e invocado pelos juristas, grande parte de sua potencialidade deixa de ser aproveitada porque, não raro, o seu uso é irrefletido. Não só se percebe que, muitas vezes, a segurança é invocada em situações às quais ela não se adéqua, como, também, hipóteses ocorrem em que a estabilidade e a expectativa social são frustradas, sem que sequer se note a ofensa ao valor em comento e ao princípio da proteção da confiança.

No âmbito tributário, em que o Estado faz valer a sua força, cobrando do cidadão a participação nas contas e despesas públicas, a segurança e a proteção da confiança assumem grande relevância, porquanto sirvam de instância limitadora, apta a evitar e coibir os excessos do poder. Porém, também aqui, a aplicação dos institutos é procedida, em grande parte das oportunidades, de forma descurada, sem que lhes confira a amplitude que mereceriam em um Estado de Direito.

A proposta do presente ensaio é justamente a de aclarar, ainda que de forma sumária, algumas das principais formas de repercussão da segurança jurídica e da proteção da confiança no âmbito do Direito Tributário. Para tanto, proceder-se-á, por primeiro, a uma análise específica do valor segurança, da sua dimensão jurídica e desdobramentos, relacionando-a, ainda, ao princípio da proteção da confiança, para, em um segundo momento, enfrentar especificamente a incidência destes fenômenos no âmbito da ordem tributária.


2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SEGURANÇA JURÍDICA

Antes de qualquer outra observação, há de se proceder alguns questionamentos acerca do significado da segurança jurídica. É que a sua definição está longe de consistir em tarefa fácil. Embora o termo inspire uma pré-compreensão quase que imediata na maioria das pessoas, qualquer um que pretenda delimitá-la conceitualmente se debate com sem número de dificuldades. Isto porque a expressão carrega em seu bojo grande amplitude e vagueza, típica dos valores basilares de qualquer sistema.

O grande inconveniente é que, diante disto, prolifera-se a indiscriminada utilização do conceito. Assim como é comum encontrar, seja em doutrina ou em jurisprudência, teses que defendam a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada norma com base na segurança jurídica, não menos árduo é identificar que, entre estas teses, o significado conferido ao termo é diverso e não raro incongruente.

São grandes os prejuízos que a imprecisão traz para a efetividade do conceito de segurança jurídica. Quanto mais genérica é a expressão, menor é o peso que se lhe confere quando da sua concreção, principalmente se, em determinado contexto, estiverem envolvidos outros preceitos melhor delimitados.

Essencial, portanto, aclarar o significado da acepção segurança jurídica. Para tanto, faz-se necessário remeter, primeiro, ao valor segurança. Este, porque considerado extrajurídico, é muitas vezes menosprezado pelos juristas, que, esquecidos da relevância dos anseios e expectativas sociais na concretização do Direito, tendem a descartar tudo aquilo que não esteja positivado no ordenamento.

2.1 DEFINIÇÃO PRELIMINAR DE SEGURANÇA JURÍDICA

Para entender o sentido de segurança, nada melhor do que se socorrer no léxico, já que nele é que se encontram os usos comuns dos vocábulos. De lá se extrai que segurança remete ao que é seguro; e que seguro é o que está livre de perigo, isento de risco, protegido, acautelado, garantido. Segurança é, ainda, a qualidade daquilo em que se pode confiar, é certeza, firmeza, convicção (FERREIRA, 1999, p.1827-1828).

A segurança, enquanto valor, foi, desde sempre, uma das principais aspirações do homem. Se é correta a observação de Ortega y Gasset (1973) de que uma das características mais particulares do ser humano, capaz de distingui-lo dos demais animais, reside na possibilidade de se ensimesmar, ou seja, na capacidade de abstrair a realidade concreta e traçar planos de como atuar no mundo, não menos correta será a constatação de que, para a plena utilização deste atributo, é necessário que o ser humano esteja inserido em um contexto minimamente estável e previsível.

Em decorrência desta necessidade de segurança é que, mesmo nas mais remotas e primevas formas de organização social, fizeram-se imprescindíveis regras conformadoras de conduta. Ainda que simplesmente embasadas no peso da tradição, ou em aspectos morais e religiosos jamais questionados, tais regras serviram ao propósito de superar os inconvenientes da liberdade ontológica do ser humano, permitindo, aos atores sociais, nutrirem recíprocas expectativas de comportamento.

Na modernidade, as instâncias definidoras de padrões comportamentais inquestionados foram superadas por um sistema normativo mais completo e complexo. Pelo menos no ocidente, o Direito se afirmou como principal fonte diretiva – e coercitiva – da conduta humana. De particular em relação às demais instâncias regulatórias (moral, religião, costume, etc.), o sistema jurídico tem o fato de ser estabelecido conscientemente pelo grupo, por meio do entendimento mútuo e do consentimento geral.

Com efeito, o sistema jurídico se tornou, nas complexas sociedades contemporâneas, um dos mais profícuos instrumentos para a satisfação do valor segurança. O Direito permitiu aos atores sociais nutrir a sensação de estabilidade como nenhum outro código de conduta jamais houvera feito. Se não conseguiu aniquilar com a liberdade ontológica, permitiu, ao menos, a afirmação de expectativas comportamentais. A esta segurança, veiculada a partir do sistema jurídico, é que se chama de segurança jurídica.

De todo modo, deve-se advertir que a segurança jurídica não se satisfaz em apenas um plano. Trata-se, antes, de fenômeno multifacetado, que pode ser visualizado de diferentes ângulos e perspectivas.

2.2 DIMENSÕES FORMAL e MATERIAL DA SEGURANÇA JURÍDICA

Em uma primeira e mais elementar dimensão, a segurança jurídica se realiza com a simples existência de um sistema de direito positivo, cujo cumprimento é assegurado pelo Estado. O mero fato de haver uma instância supra-individual e heterônoma autorizada a não apenas definir padrões comportamentais que devem ser seguidos por todos, mas também a resolver eventuais conflitos individuais funciona como garantia de segurança, como anuncia César García Novoa (2000, p.23), aludindo ao que ele alcunha de segurança através do Direito:

Por ello, la seguridad en el Estado no podrá ser outra cosa que la seguridad mediante la positividad del Derecho; seguridad, por una parte, previa al conflicto, entendida como la existencia de instrumentos tuteladores de intereses individuales. Y seguridad, por otra parte, en tanto componedora y armonizadora de tales intereses cuando los mismos colisionen en eventuales conflictos.

Esta segurança através do Direito representa o que José Afonso da Silva (2004, p.16-17) chama de segurança do direito, distinguindo-a da segurança jurídica, nos seguintes termos:

Cumpre, antes de mais nada, observar que a segurança no direito pode ser, num primeiro plano, compreendida num duplo sentido: segurança do direito e segurança jurídica. A segurança do direito é a que exige a positividade do direito e é, neste contexto, que a segurança se entronca com a Constituição, na medida em que esta constitui o fundamento de validade do direito positivo. [...] A segurança do direito, como visto, é um valor jurídico que exige a positividade do direito, enquanto a segurança jurídica é já uma garantia que decorre dessa positividade. Assim é que o direito constitucional positivo, traduzido na Constituição, é que define os contornos da segurança jurídica da cidadania.

Com efeito, enxergada a partir da pura existência de uma ordem positiva, a segurança jurídica – ou segurança do Direito – resolver-se-ia em aspectos meramente formais. Em última instância, o fato de existir um Estado, independente de qualquer outro atributo ou qualidade deste, seria suficiente para se afirmar atendido o preceito. A segurança se faria presente, de igual forma, em um Estado totalitário ou em um Estado democrático; em um Estado com farta e confusa legislação ou em um com poucas leis, todas simples e concisas.

É por esta razão que a segurança jurídica contempla também uma dimensão material, a exigir a satisfação de certos valores. Este é um reclame do Estado contemporâneo, que supera a mera exigência de observância da estrita legalidade, em prol da efetivação de valores atrelados à realização dos valores e princípios constitucionais.

Sem embargo, o conceito de Estado de Direito progrediu em relação à sua fórmula clássica. Incorporou a preocupação com a legitimidade democrática do poder. A partir disto, o princípio da legalidade foi revisto; deixou de significar a tão só exigência de observância da lei pelos particulares e pelo próprio Estado, para assumir o significado de efetivo compromisso com a concretização dos anseios consagrados em sede constitucional, instaurando uma ordem em que, nas palavras de Paulo Bonavides (2002, p.386):

a consciência da garantia e efetivação da liberdade provém muito menos da lei do que da Constituição. Se o velho Estado de Direito do liberalismo fazia o culto da lei, o novo Estado de Direito de nosso tempo faz o culto da Constituição. A lei às vezes degrada e avilta, corrompe e escraviza em ocasiões sociais e políticas de profunda crise e comoção, gerando a legalidade das ditaduras, ao passo que a Constituição é sempre a garantia do poder livre e da autoridade legítima exercitada em proveito da pessoa humana.

Assim é que, no contexto deste novo modelo de Estado, a segurança jurídica ganhou novo colorido. Como indica César García Novoa (2000, p.24), "no podríamos hablar de seguridad jurídica como una derivación automática de la existencia de un orden jurídico estatal, sino que la seguridad jurídica requerirá una existencia del Estado que sea ‘éticamente aceptable’."

Além de segurança através do Direito, a segurança deve ser segurança do Direito em si mesmo, o que somente se perfaz em uma ordem justa. Tornam-se essenciais, assim, tanto reclames de natureza estrutural, como a observância e a racionalidade do processo legislativo, a clareza e a publicidade das leis, quanto a necessidade de, mesmo que atendidos todos os requisitos formais, chegar a um resultado compatível com os valores da sociedade. Dito de outro modo, a segurança jurídica define a necessidade de se chegar a um resultado constitucionalmente legítimo, sob pena de se institucionalizar a "segurança da insegurança" [01].

Portanto, a segurança jurídica não se traduz apenas na previsibilidade e estabilidade da atuação jurídica estatal. Além disto, ela se desdobra na necessidade de garantir que toda a pauta estatal se oriente à concretização da ordem constitucional ideal, satisfazendo aos anseios e expectativas dos cidadãos.

Em rigor, segurança e justiça, no momento atual das coisas, são valores indissociáveis, pois, como afirma João Batista Machado (2004, p.56), "uma justiça puramente ideal, desacompanhada de segurança, seria vazia de eficácia e, por isso, não passaria de piedosa intenção. Uma segurança sem justiça representaria pura situação de força." A melhor solução para conjugar os preceitos parece ser a defendida por César García Novoa (2000, p.32-33), para quem

una defensa decidida del principio de seguridad jurídica frente a las normas de acción servirá para reclamar que los fines del ordenamiento constitucional de un Estado social, desarrolados a través de normas de interferencia en la esfera privada de los ciudadanos, se consigan sin provocar inseguridad.

Deve-se salientar, todavia, que a aproximação entre os valores da segurança e da justiça não implica em confusão entre eles; cada termo mantém o seu conteúdo e significado próprios, estabelecendo ideais a serem buscados que podem, inclusive, vir a colidir em situações concretas, como sói ocorrer com as hipóteses de prescrição e decadência, ainda que tutelem situações manifestamente injustas.Lapidar é a lição de Almiro do Couto e Silva (1987, p.46-47):

Se é antiga a observação de que justiça e segurança jurídica freqüentemente se completam, de maneira que pela justiça chega-se à segurança e vice-versa, é certo que também freqüentemente colocam-se em oposição.

[...]

Na verdade, quando se diz que em determinadas circunstâncias a segurança jurídica deve preponderar sobre a justiça, o que se está afirmando, a rigor, é que o princípio da segurança jurídica passou a exprimir, naquele caso, diante das peculiaridades da situação concreta, a justiça material. Segurança jurídica não é, aí, algo que se contraponha à justiça, é ela própria justiça. Parece-me, pois, que as antinomias e conflitos entre justiça e segurança jurídica, fora do mundo platônico das idéias puras, alheias e indiferentes ao tempo e à história, são falsas antinomias e conflitos.

Com estas breves linhas, espera-se ter conseguido demonstrar a amplitude e o espectro do valor segurança, que, projetado sobre o Direito, repercutirá em diferentes vertentes.

2.3 NATUREZA E FUNDAMENTO normativo DA SEGURANÇA JURÍDICA

Definir a natureza da segurança jurídica também não é obra fácil. Em face da grande quantidade de possibilidades e de desdobramentos do tema, proliferam-se opiniões diferentes – e, não raro, divergentes.

Uma primeira forma de se perceber a segurança jurídica é aquela que se propõe a enxergá-la como fato da vida, ou seja, como ideal cuja busca e realização transcendem os lindes clássicos – encontrados a partir de uma vertente normativista – do que é jurídico. É o que se extrai do escólio de Souto Maior Borges (2002, p.1):

A segurança jurídica pode ser visualizada como um valor transcendente ao ordenamento jurídico, no sentido de que a sua investigação não se confina ao sistema jurídico positivo. Antes inspira as normas que, no âmbito do direito positivo, lhe atribuem efetividade. Matéria a ser abordada pela Filosofia do Direito.

Em sentido semelhante, Christine Mendonça (2005, p.47), reportando-se ao que designa de segurança extra-jurídica, afirma:

Fala-se de segurança como uma expectativa das pessoas pela existência do Sistema do Direito Positivo. Espera-se que se criem normas que digam como devem se dar as conseqüências caso ocorram certos acontecimentos, em outra palavras, espera-se que se criem hipóteses e conseqüentes normativos. Essa é uma expectativa do meio, uma forma das pessoas se sentirem seguras.

Pedro Leonardo Summers Caymmi (2007, p.44-46) chama esta perspectiva com que se enxerga a segurança jurídica de "segurança jurídica-fato", e, ao que expõe o posicionamento de Ricardo García Manrique, posto no sentido de que "a segurança jurídica é apenas um fato, e não um valor com relevância jurídica a ser tutelado pelo Direito", critica-o, asseverando que "a dimensão fática da segurança, sem dúvida existente, é apenas uma das três acepções que formam o espectro pleno do objeto cultural, e sua caracterização não implica na inexistência de uma expressão da segurança jurídica enquanto valor e enquanto norma."

Com efeito, a maioria da doutrina se inclina pelo reconhecimento de que a segurança jurídica é fenômeno multifacetado, que pode ser percebido a partir de vértices distintos. Se em um primeiro plano, a segurança jurídica é vista como fato, em outras perspectivas é possível se lhe tratar tanto como valor quanto como norma. A plena compreensão do preceito – é bom advertir – somente pode ser obtida da conjugação de todos os planos; mesmo o plano fático, reputado extrajurídico, é essencial para, ao menos, evidenciar que a sua efetivação – e também seu significado – dependem de fatores que transbordam ao Direito.

No que se refere ao plano axiológico da segurança jurídica, tem-se que ela constitui um valor fundamental e básico do sistema jurídico. Eurico Marcos Diniz de Santi (2000, p.77) explica:

A segurança jurídica é um valor fundamental que o ordenamento jurídico persegue. O direito-em-si não apresenta essa segurança, se apresentasse esse cânone seria desnecessário. Muito pelo contrário, o direito convive com o risco, com a insegurança: todas as normas jurídicas infraconstitucionais e constitucionais são, com exceção das chamadas cláusulas pétreas e das normas individuais e concretas que recebem o efeito da coisa julgada, susceptíveis de alteração, seja mediante controle jurisdicional, seja mediante o exercício das competências legislativa, judicial e administrativa. Por isso, a determinação do direito só é aferível no horizonte do presente. A segurança jurídica do futuro é garantir a estabilidade jurídica ao presente, que se torna passado.

Esta dimensão valorativa da segurança jurídica vai repercutir no plano normativo, já que, em tal aspecto, a segurança jurídica concretiza-se em um princípio que busca a efetivação dos ideais de estabilidade, previsibilidade e mensurabilidade, especialmente na atuação do Poder Público. Neste sentido, Paulo de Barros Carvalho (2002, p.146) afirma a segurança jurídica como um cânone

[...] dirigido à implantação de um valor específico, qual seja o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto ao efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza. Concomitantemente, a certeza do tratamento normativo dos fatos já consumados, dos direitos adquiridos e da força da coisa julgada, lhes dá a garantia do passado. Essa bidirecionalidade passado/futuro é fundamental para que se estabeleça o clima de segurança das relações jurídicas [...].

Cabe, nesta oportunidade, salientar que a segurança jurídica, por revestir-se da forma jurídica de princípio, possui carga de eficácia compatível com a espécie. Embora sejam tormentosas e profícuas as discussões que se põem sobre o tema, pode-se dizer que, em linha geral, aceita-se o fato de que os princípios não conferem direito judicial imediatamente exigível aos destinatários da norma. Isto não significa ausência de efeitos jurídicos, porém; apenas remete a diferenças essenciais e estruturais em relação ao modelo normativo típico das regras.

Do princípio da segurança jurídica extraem-se conseqüências jurídicas de grande relevância. Em primeiro lugar, ela atua sobre o próprio Direito, funcionando como uma regra de estrutura que impõe a obediência a determinados preceitos e procedimentos. Torna-se, com isto, possível o controle da atuação estatal, permitindo não só a aferição de constitucionalidade das disposições infraconstitucionais como também dos próprios atos concretos da Administração, já que o princípio da segurança jurídica serve à delimitação da discricionariedade administrativa. Em função disto, o preceito constituirá também uma espécie de direito do cidadão – o direito à segurança jurídica –, cujo conteúdo básico "será la discusión sobre los medios más adecuados para su consecución como objetivo" (NOVOA, 2000, p.44).

Humberto Ávila (2008, p.308-309), após afirmar que o princípio da segurança jurídica "estabelece o dever de buscar um ideal de estabilidade, confiabilidade, previsibilidade e mensurabilidade na atuação do Poder Público", sistematiza os aspectos normativos do preceito da seguinte forma:

Na perspectiva da sua dimensão enquanto limitação ao poder de tributar, a segurança jurídica qualifica-se preponderantemente do seguinte modo: quanto ao nível em que se situa, caracteriza-se como uma limitação de primeiro grau, porquanto se encontra no âmbito das normas que serão objeto de aplicação, devendo enfatizar-se, ainda, que atua sobre outras normas, podendo, por isso mesmo ser qualificada como sobreprincípio; quanto ao objeto, qualifica-se como uma limitação positiva, porquanto impõe a adoção, pelo Poder Público, das condutas necessárias para a garantia dos ideais de estabilidade, confiabilidade, previsibilidade e mensurabilidade normativa; quanto à forma, revela-se como uma limitação implícita e material, na medida em que, sobre ser uma implicação do sobreprincípio do Estado de Direito (art. 1º), embora alguns o vejam expressamente na Constituição (art. 5º, caput), impõe ao Poder Público a adoção de comportamentos necessários à preservação ou busca dos ideais de estabilidade e previsibilidade normativas.

A despeito de seu potencial normativo, o princípio da segurança jurídica não possui previsão normativa expressa no ordenamento brasileiro [02]. Isto não significa – e nem poderia significar – que não tenha valia ou que não deva ser aplicado, pois, como indica César García Novoa (2000, p.37), "la seguridad es, probablemente, el principio constitucional cuya positivización resulta menos imprescindible, pues el mismo se deduce de la propia esencia de un Estado de Derecho donde prevalezcan los valores frente al legalismo".

De fato, o princípio da segurança jurídica caminha ao lado do princípio do Estado de Direito, que, nos moldes atuais, determina não apenas a submissão de todos – inclusive e principalmente do Estado – à ordem jurídica, mas também a adequação do ordenamento aos valores constitucionais. É o que aduz Leandro Paulsen (2006, p.38), ao definir o Estado de Direito como

[...] um modelo de supremacia do Direito a exigir a realização de certos valores, como o respeito aos direitos fundamentais pelos próprios indivíduos e pelo Estado e a vedação da arbitrariedade, bem como a pressupor determinadas garantias institucionais, como a separação dos Poderes e o acesso ao Judiciário [...]

Ora, em um Estado que se possa qualificar como Estado de Direito, a segurança jurídica restará implícita – e necessariamente – contemplada, já que firmada série de garantias, como, por exemplo, a proteção da liberdade e a vedação da arbitrariedade, as quais satisfarão aos proclames da segurança. Não por outra razão José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p.250) aponta que "[...] desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito."

A conclusão semelhante chega Humberto Ávila (2008, p.308), quando, ao procurar o fundamento constitucional do princípio da segurança, deduz que:

O princípio da segurança jurídica é construído de duas formas. Em primeiro lugar, pela interpretação dedutiva do princípio maior do Estado de Direito (art. 1º). Em segundo lugar, pela interpretação indutiva de outras regras constitucionais, nomeadamente as de proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (art. 5º, XXXVI) e das regras da legalidade (art. 5º, II, e art. 150, I), da irretroatividade (art. 150, III, ‘a’) e da anterioridade (art. 150, III, ‘b’).

Em todas essas normas, a Constituição dá uma nota de previsibilidade e de proteção de expectativas legitimamente constituídas e que, por isso mesmo, não podem ser frustradas pelo exercício da atividade estatal.

De fato, a segurança jurídica reverbera no ordenamento jurídico, podendo ser depurada tanto do princípio do Estado de Direito, quanto de outras disposições do ordenamento que terminam por reconduzir aos ideais por si propendidos.


3 SEGURANÇA JURÍDICA E PROTEÇÃO DA CONFIANÇA

A segurança jurídica guarda íntima relação com o princípio da proteção da confiança. Tamanha é a aproximação dos dois preceitos que não falta, em doutrina, quem os trate por sinônimos de um mesmo fenômeno. Também são encontrados posicionamentos firmados no sentido de que os conceitos são distintos e possuem conteúdos específicos. A tarefa proposta no presente tópico é a de adentrar este debate, no fito de lançar luzes sobre a celeuma e, se for o caso, delimitar e identificar os contornos dos aventados princípios.

Para cumprir o quanto proposto, começa-se com a delimitação do efetivo conteúdo da segurança jurídica. Há de se buscar definir a forma como, de fato, ela atua no sistema de Direito. E, em última análise, a questão sobre o conteúdo da segurança jurídica se resume ao problema de estabelecer o que é um direito seguro.

César García Novoa (2000, p.73) aduz que, para aferir a operatividade da segurança jurídica, há de se reportar, em primeiro lugar, à segurança do ordenamento jurídico. Esta deverá ser empreendida a partir uma análise estrutural das normas, considerando-se a precisão e clareza do antecedente (dado "a") e conseqüente (deve ser "b"), pois, em última análise, as normas é que podem ser qualificadas como seguras ou inseguras.

Neste sentido, a segurança jurídica é usualmente identificada como segurança normativa objetiva, assim explicada por Pedro Leonardo Summers Caymmi (2007, p. 55):

A segurança jurídica objetiva é a segurança do ordenamento jurídico em sentido objetivo, uma possibilidade objetiva de previsibilidade e calculabilidade, pelos destinatários da norma, de quais serão os efeitos jurídicos dos seus atos, ou seja, quais conseqüências o ordenamento jurídico impõe a seus possíveis comportamentos, de modo que possam ter noção de seus direitos e deveres.

Humberto Ávila (2008, p.310) especifica o conteúdo desta dimensão da segurança jurídica. Para tanto, a decompõe em duas perspectivas distintas: de um lado, o aspecto formal-temporal; e, do outro, a dimensão material, definindo-as da seguinte forma:

em primeiro lugar, os cidadãos devem saber de antemão quais normas são vigentes, o que é possível apenas se elas estão em vigor ‘antes’ que os fatos por ela regulamentados sejam concretizados (irretroatividade), e se os cidadãos dispuserem da possibilidade de conhecer ‘mais cedo’ o conteúdo das leis (anterioridade). A idéia diretiva obtida a partir dessas normas pode ser determinada ‘dimensão formal-temporal da segurança jurídica’, que pode ser descrita sem consideração ao conteúdo da lei. Nesse sentido, a segurança jurídica diz respeito à possibilidade do ‘cálculo prévio’ independente do conteúdo da lei. Em segundo lugar, a exigência de determinação demanda uma ‘certa medida’ de compreensibilidade, clareza, calculabilidade e controlabilidade conteudísticas para os destinatários da regulação. A idéia diretiva obtida a partir dessas determinações pode ser denominada ‘dimensão material da segurança jurídica’, que está em combinação com o conteúdo da lei, qualificado também como legalidade no sentido material.

Em tal perspectiva, portanto, a segurança jurídica atua sobre a estrutura do sistema normativo, exigindo que ele preencha requisitos objetivos de previsibilidade e calculabilidade dos efeitos oriundos dos atos praticados pelos destinatários da norma.

Estes vetores objetivos da previsibilidade e da calculabilidade, se analisados a partir das conseqüências que despertam na esfera anímica dos destinatários da norma, configurarão o que se chama de segurança subjetiva. Esta dimensão não representa outra coisa, senão o inevitável reflexo que a dimensão objetiva da segurança jurídica produzirá nos cidadãos.

Na medida em que o Estado deve obedecer a determinados proclames objetivos de conduta, oriundos da segurança jurídica, gera-se nos cidadãos expectativas legítimas em relação a determinadas pautas, que devem ser resguardadas pelo Direito. Esta dimensão subjetiva da segurança é, precisamente, o que se identifica como o princípio da proteção da confiança.

Em rigor, como salienta César García Novoa (2000, p.73-74), a divisão entre os aspectos subjetivo e objetivo da segurança é meramente formal; as expressões são auto-referenciáveis e, mais do que isto, complementam-se. Não há como pretender definir um sem se defrontar com o outro.

De todo modo, em razão das potencialidades de um e outro aspecto, não raro, prefere-se tratar a segurança jurídica e a proteção da confiança como princípios autônomos. É o que adverte Almiro do Couto Silva (2005, p.4-5):

Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em princípio da segurança jurídica quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atenta para o aspecto subjetivo. Este último princípio (a) impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, ou (b) atribui-lhe conseqüências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente supor que seriam mantidos.

Neste mesmo sentido é o posicionamento de Paulo Roberto Lyrio Pimenta (2007, p.353), ao ressaltar

que o princípio da segurança jurídica relaciona-se, porém não se confunde, com o da proteção da confiança. De fato, aquele representa uma exigência de possibilidade de previsão pelos administrados, como afirmado anteriormente, acerca dos efeitos jurídicos dos seus atos, de forma que possam ter uma expectativa a mais precisa possível acerca dos direitos, deveres, poderes, enfim, das situações jurídicas que poderão titularizar. Essa possibilidade só interessa quando se reflete no ânimo subjetivo do cidadão, surgindo daí a idéia de proteção da confiança, que a doutrina alemã denomina de Vertrauensschutz.

De todo modo, aceite-se a divisão entre segurança jurídica objetiva e subjetiva ou entre segurança jurídica e princípio da confiança, o fato é que, na dimensão que resguarda as legítimas expectativas dos cidadãos, o preceito tem fartas possibilidades de aplicação.

Em um primeiro aspecto, atua na correição estrutural do ordenamento jurídico, a exigir a construção de tipos legais claros e precisos, isentos de lacunas, ambigüidades ou contradições, para que, com isto, o cidadão possa conhecer os desdobramentos jurídicos de suas condutas. É o que se chama de segurança de orientação ou segurança de regra, que como destaca Pedro Leonardo Summers Caymmi (2007, p.59), "impõe a necessidade de segurança tanto na definição das hipóteses normativas em si mesmas, quanto na técnica de descrição legal do antecedente e do conseqüente da norma de conduta, mediante a linguagem prescritiva do Direito."

De forma mais minudente, pode-se arrolar como exigências para a satisfação da segurança de orientação: (a) a existência de norma jurídica, o que não significa a mera positivação do Direito, mas supõe atividade legislativa racional e consonante com a realidade dos fatos que se deseja regular – eventuais lacunas e excessos devem ser expurgados, para que se mantenha incólume a segurança jurídica –; (b) a adoção do princípio da prévia regulamentação como requisito de vigência e validade da norma, a significar que as leis, em regra, devem ser definidas antes dos fatos ocorrerem (irretroatividade da lei); (c) a possibilidade de conhecimento das normas jurídicas pelos destinatários, garantida por condições objetivas mínimas, como a publicidade das normas, que deve ser qualificado pela inclusão de preceitos referentes ao seu âmbito territorial e a sua entrada em vigor e derrogação; (d) a pretensão de definitividade da norma jurídica, à qual se agregam a pretensão de estabilidade – a significar a vedação à constante modificação da ordem jurídica – e de plenitude da norma – a informar o dever de se contemplar o maior espectro possível da realidade, evitando as lacunas –.

Por fim, ainda sob o pálio da segurança de orientação, tem-se, ao lado das exigências mínimas para a segurança do ordenamento jurídico, a segurança do Direito em si mesmo, a impor que a norma jurídica não seja opaca, mas que, ao contrário, se adéqüe a "una estructura racional, de tal suerte que el empleo del método lógico-jurídico permita descubrir su sentido y sus conexiones." (NOVOA, 2000, p.78)

Por óbvio, a segurança de orientação é realizada essencialmente pelo legislador; somente com o recurso a uma técnica legislativa adequada é que se poderá intensificar esta dimensão do preceito. Neste sentido, oportuna se faz a remissão ao postulado do legislador coerente, a resguardar a congruência sistemática do ordenamento, conforme explanado por Humberto Ávila (2007, p.176-179). Trata-se de exigir que o Poder Legislativo mantenha coerência com as atitudes anteriormente sinalizadas, evitando que os cidadãos sejam surpreendidos ou tenham frustradas expectativas legítimas.

"A atitude anterior do legislador vincula sua atividade posterior. O legislador, ao criar novas regras, vincula-se às suas próprias decisões fundamentais anteriores na regulação da mesma matéria" (ÁVILA, 2007, p.178). Assim, por exemplo, o legislador não poderá definir que, para fins previdenciários, o salário seja calculado com base em determinados parâmetros, porque suficientes e essenciais para resguardar o mínimo existencial, mas definir outro formato para encontrar a faixa de isenção de imposto de renda.

Deve-se ressaltar, todavia, que o postulado do legislador coerente não impõe o absoluto vínculo com as opções legiferantes anteriormente encampadas, pois isto implicaria, ao fim, na total supressão da discricionariedade legislativa. O que o preceito exige é que exista um motivo justificante para a mudança de posicionamento – do que decorre a sua íntima conexão, também, com o princípio (ou postulado, para alguns) da igualdade – e que, em todo caso, seja resguardada, ao máximo, a confiança legitimamente depositada pelo cidadão.

Porém, a segurança jurídica subjetiva, ou o princípio da confiança, se se preferir, remete-se não apenas ao Poder Legislativo, mas também aos aplicadores do Direito; nesta faceta, designa-se segurança de realização, que, nas palavras de César García Novoa (2000, p.75), expressa-se na

seguridad de que las proposiciones normativas, formuladas en clave hipotética, se van a aplicar a cada concreta situación de hecho con absoluto respeto a lo previsto en las mismas y sin variaciones de criterio a la hora de resolver supuestos similares.

Aqui se trata de correição funcional do Direito, a qual se concretiza, em parte, pelo atendimento aos preceitos do ordenamento pelos próprios destinatários, mas especialmente pelos órgãos responsáveis por sua aplicação. Como aduz Pedro Leonardo Summers Caymmi (2007, p.59), a segurança de realização

também é chamada de segurança funcional, ou seja, segurança de que as normas jurídicas, formuladas hipoteticamente em linguagem prescritiva, vão ser aplicadas na valoração jurídica de cada caso concreto com respeito integral ao sentido e alcance da formulação hipotética e sem que se altere o critério de concretização nas sucessivas aplicações a casos similares.

O processo de aplicação do Direito, que objetiva a conversão da linguagem normativa à ação prática, deve obedecer a um raciocínio lógico – e por isso previsível –, ainda que não silogístico. A principal manifestação da segurança jurídica neste âmbito é a interdição da arbitrariedade, que se dá de duas perspectivas: do ponto de vista formal, por meio do respeito e atenção à lei, e do ponto de vista material, quando se rechaçam

aquellas situaciones que, sin infringir el orden jerárquico, menoscaban el derecho del ciudadano a un conocimiento lo más rápido posible y lo más acorde con sus racionales previsiones de incidencia, que en su esfera particular pueda tener la aplicación de la norma jurídica. (NOVOA, 2000, p.82)

Uma segurança absoluta neste âmbito somente seria possível se existisse uma resposta judicial correta única e invariável, o que se acredita, porém, inconcebível. De todo modo, a segurança jurídica serve, ao menos, como parâmetro para, salvaguardando a dignidade metodológica e os métodos de interpretação admitidos, limitar a discricionariedade.


4 SEGURANÇA JURÍDICA E PRINCÍPIO DA CONFIANÇA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

O Direito Tributário é o ramo do Direito responsável por disciplinar juridicamente os tributos; regulamenta não apenas a sua criação e cobrança, como também a fiscalização, arrecadação e eventuais sanções decorrentes do descumprimento do regime por si estabelecido.

Em decorrência de sua atividade fundamental, o Direito Tributário implica a afetação de diversos direitos fundamentais do cidadão. É o que ocorre, por exemplo, com o direito de propriedade, que é turbado na medida em que os contribuintes vêem-se compelidos a destacar parte de seu patrimônio para fazer face aos custos e despesas do Poder Público e demais atividades constitucionalmente previstas. Neste sentido é o escólio de Regina Helena Costa (2001, p.80):

Efetivamente, o direito à propriedade privada é alcançado direta e imediatamente pela tributação, porque o tributo consiste em prestação pecuniária compulsória, devida por força de lei, implicando a sua satisfação, necessariamente, redução do patrimônio do sujeito passivo.

Também a liberdade termina sendo afetada pela tributação, ainda que reflexamente. Muitas vezes, a finalidade do tributo não é meramente arrecadatória; ao invés de pura e simplesmente pretender a arrecadação de montante suficiente para fazer funcionar o aparato estatal, o Poder Público pode almejar estimular ou desestimular uma conduta. Nisto consiste a noção de extrafiscalidade tributária.

A necessidade de efetivar a segurança neste âmbito é intuitiva. Não apenas porque o preceito se transfigura em fundamento de toda a ordem jurídico-constitucional – na qual o Direito Tributário está inserido –, mas, também e principalmente, em razão de, historicamente, ser crassa a tendência do Estado ao abuso do poder em tal âmbito.

Além destes preceitos fundamentais, outros direitos e garantias situam-se em uma zona de perigo em relação à atividade tributária, sempre na iminência de verem-se turbados pelo afã arrecadatório estatal. Justamente por conta desta possibilidade de afetação do conteúdo do estatuto básico do cidadão, afirma-se que, de todos os ramos do Direito, é no campo específico do Direito Tributário que a segurança ressoa com maior intensidade (XAVIER, 1978, p.44).

A segurança jurídica constitui, ao lado de outros princípios, uma limitação ao poder de tributar do Estado. É o que ressalta Pedro Leonardo Summers Caymmi (2007, p.63), ao informar que a segurança jurídica

possui especial relevância, pela própria natureza do objeto de sua disciplina jurídica, que regula uma limitação estatal ao patrimônio privado, e pelo comportamento historicamente verificado do Estado na relação de tributação, o que torna imperativo a fixação de uma delimitação precisa da esfera privada em oposição ao Poder Público.

O fundamento da segurança jurídica no âmbito do Direito Tributário reside no próprio princípio do Estado de Direito – que serve de fundamento geral para a incidência do preceito –, mas decorre, igualmente, da necessidade de se conviver também com o sistema econômico encampado, defendendo a livre iniciativa, que precisa de estabilidade, previsibilidade e proteção à propriedade privada. É o que noticia Alberto Xavier (1978, p.44):

Com efeito, a livre iniciativa exerce-se através de planos econômicos elaborados pelos empresários para um dado período e nos quais se realizou uma previsão, mais ou menos empírica, dos custos de produção, do volume dos investimentos adequados à obtenção de dado produto e da capacidade de absorção do mercado. Tal previsão não pode deixar de assentar na presunção de um mínimo de condições de estabilidade, dentro do que a normal margem de riscos e incertezas razoavelmente comporte para o horizonte de planejamento a que respeita. O planejamento empresarial, por que a iniciativa privada se concretiza, supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma segurança quanto aos elementos que a afetem.

Interessante é a posição da segurança jurídica na órbita tributária; ao mesmo tempo em que se situa como preceito derivado do princípio do Estado de Direito, funciona, ela mesma, como ponto de sustentação de uma série de outros princípios que operam em tal órbita.

A segurança jurídica, na ordem tributária, demanda que o sistema jurídico-tributário atenda aos ideais de previsibilidade, calculabilidade, mensurabilidade e confiabilidade.

O espectro de atuação da segurança jurídica termina sendo tão grande e intenso no âmbito do Direito Tributário que alguns autores identificam-na como sobreprincípio de tal ordem. É o caso de Paulo de Barros Carvalho (1994, p.89), para quem

todo princípio atua para implantar valores. Há, contudo, conjuntos de princípios que operam para realizar, além dos respectivos conteúdos axiológicos, princípios de maior hierarquia, aos quais chamaremos de "sobreprincípios". Se num determinado sistema jurídico tributário houver a consciência de diretrizes como a da legalidade, da igualdade, da irretroatividade, da universalidade da jurisdição, da anterioridade etc., dele diremos que abriga o sobreprincípio da segurança jurídica em matéria tributária.

Destoa-se desta lição apenas em relação à indicação de que os sobreprincípios se situam em um grau superior, de maior hierarquia que os demais princípios. Esta idéia implica a conclusão de que princípios se fundamentam em valores dotados de peso próprio, específico e constante, passível de avaliação abstrata. Em rigor, não existe hierarquia entre princípios; todo e qualquer – pretenso – choque ou colisão, ocorrido diante de situação concreta, deve ser resolvido mediante a técnica da ponderação de interesses, através do princípio (ou postulado) da proporcionalidade. Nestes termos, mais adequada se faz a definição encampada por Humberto Ávila (2008, p.39-40), para quem o que permite qualificar um preceito como sobreprincípio é o fato dele "impor a realização de um ideal mais amplo, que engloba outros ideais mais restritos.".

Assim, a segurança jurídica se situa, de fato, como um sobreprincípio da ordem tributária. Porém, não porque seja hierarquicamente superior a outros, mas tão somente porque inspira a realização de um estado ideal de coisas mais amplo, em relação ao qual convergem diversos outros princípios, como é o caso, por exemplo, do princípio da legalidade, como fica claro, aliás, da lição de Alberto Xavier (1978, p.43-44):

O princípio da legalidade tributária, nos quadros do Estado de Direito, é essencialmente um critério de realização da justiça; mas é, do mesmo passo, um critério da sua realização em termos seguros e certos. A idéia de segurança jurídica é, decerto, bem mais vasta do que a de legalidade; mas posta em contato com esta não pode deixar de a modelar, de lhe imprimir um conteúdo, que há de necessariamente revelar o grau de segurança ou certeza imposto, ou pelas concepções dominantes, ou pelas peculiaridades do setor a que respeita.

Em suma, o princípio da legalidade, ao atuar, termina realizando parte substancial do ideal ostentado pela segurança jurídica. Um e outro não se confundem, embora haja uma espécie de convergência que permite identificar a segurança jurídica como espécie de norte mais amplo para o qual converge a legalidade. A mesma situação ocorre com os princípios da anterioridade, da irretroatividade, dentre outros. Justamente por isto – porque imbuído da realização de um ideal mais amplo – é que se pode classificar a segurança jurídica como sobreprincípio da ordem tributária.

Por conseqüência lógica do fato de se apresentar como sobreprincípio, tem-se que a segurança jurídica opera na ordem tributária sempre que se faz notar qualquer um destes princípios cujos ideais confluam na realização dos valores comprometidos com a previsibilidade, a calculabilidade, a mensurabilidade e com a proteção da confiança.

Souto Maior Borges (2002, p.1-2) destaca a pluralidade de alternativas de realização da segurança jurídica ao questionar:

Quais os valores que a segurança busca preservar, no âmbito do sistema constitucional tributário? A irretroatividade? A legalidade? A isonomia? A efetividade da jurisdição tributária, administrativa ou judicial? Tudo isso junto e muito mais que isso.

Arriscando-se à formulação de um rol de princípios relacionados à segurança jurídica, Ricardo Lobo Torres (2005, p.14) arrola os seguintes: legalidade, no que engloba a superlegalidade, a reserva da lei e o primado da lei; tipicidade, arregimentando ao seu redor a tipicização, a determinação do fato gerador e a conformidade com o fato gerador; irretroatividade; proibição de analogia; anterioridade e anualidade; e a proteção da confiança do contribuinte, desdobrada em irrevisibilidade do lançamento, inalterabilidade do lançamento e irrevogabilidade das isenções onerosas.

De fato, todos estes pontos apontados relacionam-se com o princípio da segurança jurídica em matéria tributária. Por óbvio, o aprofundamento de todos estes desdobramentos específicos fugiria aos limites do tema de pesquisa proposto, até porque, cada um dos preceitos demandaria um trabalho específico e mais aprofundado sobre si.

Há que se ressaltar, todavia, que estas hipóteses de aplicação não esgotam – e nem poderiam – o tema da aplicação da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança em matéria tributária. Estes preceitos ostentam amplitude suficiente para afastar a possibilidade de se lhes delimitar as repercussões de modo exaustivo. Ao revés, as suas hipóteses de aplicação permanecem sempre em aberto, podendo ter seu conteúdo acrescido à medida em que novas situações concretas se apresentem.

Exemplo disto é apresentado por um desdobramento específico do princípio da proteção da confiança no Direito Tributário que não foi referenciado por Ricardo Lobo Torres. Trata-se da imposição de limites à modificação na jurisprudência constitucional-tributária.

Tal tema foi bastante visitado em momento recente; mais precisamente, em junho de 2007, por ocasião do enfrentamento de questão de ordem levantada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no RE 370.682-SC. Questionou-se, então, a possibilidade de, em nome da proteção da confiança, conceder efeitos apenas prospectivos à decisão que, modificando entendimento do Supremo Tribunal Federal, denegou o direito ao creditamento do crédito no IPI em relação aos produtos sujeitos à alíquota zero.

Em suma, o problema enfrentado foi o de decidir se aqueles contribuintes que foram beneficiados por entendimento que perdurou vigente por tempo razoavelmente longo, ao se defrontarem com a reviravolta jurisprudencial, teriam de arcar com os bustos referentes às benesses usufruídas ao longo de todo o período.

A Corte Constitucional "não reconheceu, no caso em tela, confiança a ser protegida, nem direito à segurança ou à irretroatividade da nova decisão, ao argumento de que nenhuma sentença anterior, relativa à alíquota zero, chegara a transitar em julgado." (DERZI, 2007, p. 300).

Em crítica à decisão, Ives Gandra da Silva Martins e Marilene Talarico Martins Rodrigues (2007, p.207-208) defenderam a tese de que, para salvaguardar a confiança dos contribuintes, deveria ser atribuído efeito ex nunc à decisão; ou seja, aqueles contribuintes que tinham se beneficiado da postura anterior, não deveriam ser compelidos à restituição das benesses. Aduziram, para tanto, que

o STF, assim como qualquer outro juízo ou tribunal, não está impedido de modificar sua posição sobre determinada questão, seja para readaptar a novos fatos, seja para rever sua interpretação anterior. Ao fazê-lo, porém, o STF, a exemplo dos demais Poderes Públicos, está vinculado ao princípio constitucional da segurança jurídica por força do qual a posição jurídica dos contribuintes, que procederam em conformidade com a orientação anteriormente adotada pela Suprema Corte em relação à matéria, deve ser preservada.

Em sentido similar, Paulo Roberto Lyrio Pimenta (2007, p.357) aduz que, em casos como este, o julgador deve buscar uma solução que pondere os valores e princípios envolvidos, mediante a utilização da técnica da proporcionalidade, o que lhe autorizaria a, apesar de modificar o seu entendimento jurisprudencial, resguardar a expectativa daqueles que legitimamente confiaram, o que seria possível mediante a modulação temporal dos efeitos da decisão.

O reproche à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no tópico é inevitável, já que fez pouco caso do fato de o entendimento anterior, apesar de não ter transitado em julgado, ter sido reiteradamente proferido em outros processos; fora, inclusive, acolhido liminarmente em algumas oportunidades, justamente porque considerado jurisprudência assente daquele órgão. Descurou, assim, da legítima expectativa que fora construída com esteio naquele posicionamento, que se esperava ser ratificado aquando do julgamento final. Ofendeu, por isto, ao princípio da proteção da confiança.

Porém, a despeito da correição ou não do entendimento jurisprudencial especificamente debatido, o fato é que o princípio da proteção da confiança apresenta, em tese, mais esta possibilidade. E não só ela. Trata-se de preceito ao qual, assim como ocorre com a segurança jurídica, se deve devotar particular atenção. As hipóteses de utilização deles são – e sempre serão – abertas; prontas para serem estendidas diante de novas e inusitadas situações.


5 CONCLUSÃO

À guisa de conclusão, afirma-se que, apesar de expressar um valor fundante de todo o sistema jurídico e de apresentar inúmeras potencialidades, especialmente no âmbito do Direito Tributário, tanto o princípio da segurança quanto o princípio da proteção da confiança ainda não obtiveram, na maior parte da doutrina e principalmente na jurisprudência, o reconhecimento de sua plena potencialidade.

Há que se progredir no sentido de reconhecer a receptividade dos preceitos em comento a novos usos e aplicações, acrescendo-lhes a potencial eficácia, de modo a proporcionar uma melhor efetivação do princípio do Estado de Direito, que se quer vigente.


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Notas

  1. A expressão é de Pérez Luño, conforme noticia César García Novoa (2000, p.25).
  2. Destaca-se, todavia, a existência de avalizada doutrina que vê no caput do art. 5º da Constituição Federal a expressa consagração do princípio da segurança jurídica, como é o caso de José Afonso da Silva (2000, p.437).

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BRITO, Mirella Barros Conceição. Segurança jurídico-tributária e proteção da confiança do contribuinte no Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2789, 19 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18518. Acesso em: 20 maio 2024.