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O pensamento político de John Locke

O pensamento político de John Locke

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1.Introdução:

O objetivo do trabalho é o de proceder a um exame acerca das razões que levaram a concepção política de Estado de John Locke a ser adotada pela burguesia britânica do século XVII, prevalecendo sobre a concepção política de Estado de Thomas Hobbes, rejeitada pela referida burguesia. Tal fato ocorreu quando da encampação do pensamento político lockiano pela classe burguesa inglesa, em 1.688, ano da ocorrência da Revolução Gloriosa, mediante a qual a burguesia britânica assumiu o poder de estado na Inglaterra. Para tal, será feita uma análise comparativa entre os principais aspectos do pensamento político dos dois teóricos ingleses.

Primeiramente, tentar-se-á caracterizar o pensamento político de Hobbes, abordando-se o contexto histórico no qual o referido pensamento foi formulado, o conceito hobbesiano de estado de natureza, de contrato social, de direito de propriedade, além de uma análise sobre a questão da sociedade civil e do Estado absoluto em Hobbes.

Posteriormente, analisar-se-á a situação histórica da Inglaterra quando da formulação do pensamento político de John Locke, seu conceito de estado de natureza, de direito de propriedade, a motivação e natureza do contrato social em Locke, e, finalmente, um exme sobre suas concepções de sociedade civil e Estado.

Após isso, será feito o cotejamento entre os aspectos acima referidos das visões de Hobbes e Locke, apontando-se os motivos pelos quais a segunda prevaleceu sobre a primeira, por intermédio da análise das características políticas e econômicas do período histórico em questão na Inglaterra, marcado, sobretudo, pela vitória das forças parlamentares sobre o absolutismo monárquico na guerra civil ocorrida entre 1.640 – 1.649, que culminou com a implantação da República na Inglaterra, do Protetorado de Oliver Cromwell (1.649 – 1.658), no plano político, e pela emergência do capitalismo, no plano econômico.

Finalmente, na conclusão, será feito um sumário das razões pelas quais a concepção política de Locke prevaleceu sobre a de Hobbes, à luz das motivações político – econômicas da época.


2.Aspectos do pensamento político de Thomas Hobbes:

O estudo acerca dos aspectos do pensamento político de Hobbes será dividido em cinco itens, quais sejam: análise do contexto histórico, do conceito de estado de natureza, de direito de propriedade, da noção de contrato social, da questão da sociedade civil e do Estado absoluto em Hobbes.

2.1.O contexto histórico:

Thomas Hobbes escreveu sua principal obra, " Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil", em 1.651, época em que o Lorde – Protetor Oliver Cromwell se encontrava no poder na Inglaterra. Esse período caracterizou-se pelo confronto entre a Coroa Britânica , representada pela Dinastia Stuart, e o Parlamento, no qual tinham assento representantes da incipiente e ascendente burguesia inglesa da época, partidária do liberalismo. Segundo Weffort (1.991:82), "esse conflito assumiu também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre católicos anglicanos, presbiterianos e puritanos. Finalmente a crise político – religiosa foi agravada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos privilégios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os setores que advogavam a liberdade de comércio e produção". Com isso, concluímos que a conjuntura histórica na qual Hobbes escreveu o Leviatã tinha elementos de natureza política (disputa entre o Rei e o Parlamento pelo exercício do poder político de fato), de natureza religiosa, e de natureza econômica (antagonismo entre beneficiários do protecionismo estatal e defensores do livre – comércio). Em suma, o período no qual Hobbes escreveu o "Leviatã" caracterizou-se por extrema instabilidade política na Inglaterra.

A fase acima referida foi marcada pelo confronto entre o Rei Carlos I e o Parlamento, que fez com que a Inglaterra atravessasse uma guerra civil no período entre 1.640 e 1.649, quando as forças do Parlamento venceram. Foi a chamada Revolução Puritana, que culminou com a decapitação do Rei e com a implantação da República na Inglaterra, segundo nos informa Weffort (1.991:81). De acordo, ainda, com o mesmo autor, foi após a instituição da ditadura (Protetorado) de Cromwell, que Hobbes, exilado na França, publicou, em 1.651, o "Leviatã", no qual o pensador político inglês faz " uma apologia do Estado todo – poderoso que, monopolizando a força concentrada da comunidade, torna – se o fiador da vida, da paz e da segurança dos súditos" (Weffort, 1.991:82).

2.2.O conceito de estado de natureza:

Para Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra generalizada. Segundo Magalhães (2.001:57), trata-se de " uma condição histórica em que não há poder comum para controlar os indivíduos, nem lei nem a coação da lei."

Com o objetivo de caracterizar o significado, para Hobbes, o estado de natureza, transcreverei trechos do " Leviatã ", de modo a justificar a assertiva inicial, segundo a qual o referido estado é marcado pela guerra generalizada, gerando a necessidade da existência de um Estado forte e coercitivo, para controlar e frear os instintos humanos.

Uma caracterização precisa do que é o estado de natureza para Hobbes , está contida nos trechos a seguir, que fazem parte do capítulo XIII do "Leviatã" : "A natureza fez os homens tão iguais , quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.

(...) . Da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa , ao mesmo tempo ao mesmo tempo que ela é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e apenas seu deleite) esforçam – se por se destruir ou subjulgar um ao outro. (...) . E disto segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto do seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.

E contra esta desconfiança de uns com relação aos outros , nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é , pela força ou pela astúcia, subjulgar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficiente grande para ameaçá-lo " (Hobbes, 1.974:78,79).

Analisando este trecho, Weffort (1.991:55), nos informa que, para Hobbes, os homens são, naturalmente, iguais o bastante uns aos outros de tal forma que muito dificilmente algum poderá triunfar de maneira total sobre o outro. Dado que nenhum homem consegue saber o que o outro deseja ou vai fazer , a atitude mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo ou simplesmente para evitar um provável ataque. Dessa forma , a guerra se generaliza entre os homens. Segundo o mesmo autor, é por isso que existe a necessidade de um Estado forte controlando e reprimindo os homens, o "Leviatã".

Um trecho do "Leviatã " que corrobora a argumentação acima exposta é o aseguir transcrito: " Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e numa guerra que é de todos os homens contra todos os homens" (Hobbes, 1.974, 79).

Segundo Magalhães (2.001:57) "há uma tensão entre preservar a liberdade vantajosa no estado de natureza e o medo da violência e da guerra, que, logicamente esse estado de liberdade absoluta e completa igualdade produz. Ocorre, portanto, que o estado de natureza é um estado de guerra efetiva, constante, em que cada homem é lobo do próprio homem, e onde todos estão em guerra contra todos".

Para finalizar a caracterização do estado de natureza em Hobbes, transcreverei mais um trecho do "Leviatã": " Desta guerras de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser imposto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há um poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fossem, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu: Só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza" (Hobbes,1.974:81).

Além disso, outro trecho importante para explicar o conceito de estado de natureza em Hobbes é aquele em que ele nos informa de que no referido estado o homem tem direito a tudo, é o seguinte: " O direito de natureza, a que os autores chamam geralmente jus naturale , é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser , para preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim" (Hobbes, 1.974:82).

2.3– O conceito de direito de propriedade:

O direito de propriedade, para Hobbes, deve ser algo totalmente controlado por parte do Estado, do soberano, que deveria distribuí-lo ao seu arbítrio. Weffort nos informa que " Hobbes reconhece o fim das velhas limitações feudais ao direito de propriedade – e nisso ele está de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com o direito das classes populares à terra comunal ou privada – mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens estão controlados pelo soberano" (Weffort, 1.991: 72,73).

Para confirmar o acima exposto, serão transcritos alguns trechos do capítulo XXIV do "Leviatã", "Da nutrição e procriação de um Estado": " A distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu, do teu, e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade. Porque onde não há estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas incerteza. (...). Visto portanto que a introdução da propriedade é um efeito do Estado, que nada pode fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o poder soberano. (...). Nesta distribuição, a primeira lei diz respeito à distribuição da própria terra, da qual o soberano atribui a todos os homens uma porção conforme o que ele, e não conforme o qualquer súdito, ou qualquer súdito, ou qualquer número deles, considerar compatível com a eqüidade e o bem comum. (...). De onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas terras consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso de suas terras, mas não de excluir o soberano, quer este seja uma assembléia ou um monarca" (Hobbes, 1.974:154,155).

Em suma, para Hobbes, segundo Weffort, " a propriedade inexiste no estado de natureza , e foi instituída pelo Estado – Leviatã após a formação da sociedade civil. Assim como a criou, o Estado também pode suprimir a propriedade dos súditos" (Weffort, 1.991:85).

2.4 – O conceito de contrato social:

A questão do estabelecimento do contrato social em Hobbesestá estritamente ligada à resolução da guerra generalizada, fruto da desconfiança, característica do estado de natureza. Como proporcionar a pacificação da convivência humana? Hobbes, no capítulo XIV do "Leviatã", nos informa acerca do fundamento jurídico do pacto social : " Que um homem concorde , quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito sobre todas as coisas, contentando – se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, todos os homens se encontrarão numa condição de guerra generalizada" (Hobbes, 1.974: 83).

Por intermédio dessa abdicação, por parte do homem, ao direito a todas as coisas, e com a anuência , por parte desse mesmo homem, em possuir, em relação a seus semelhantes, a mesma liberdade os mesmos direitos que estes têm em relação ao primeiro, ocorre uma equalização de liberdades e direitosde todos os indivíduos da sociedade , processo esse consensual e espontâneo. Tal fato viabiliza a convivência pacífica entre os homens. Interessante é que Hobbes fundamenta em termos religiosos a sua concepção de contrato social: " é esta a Lei do Evangelho: Faz aos outros o que querem que façam a ti" (Ibidem:83).

Entretanto, segundo Weffort (1.991:61) , " não basta o fundamento jurídico. É preciso que haja um Estado dotado de espaad, armado , para forçar os homens ao respeito". Ou seja, em outras palavras, se não houver um Estado todo – poderoso, coercitivo, que inspire temor aos homens, a base jurídica do contrato social hobbesiano, qual seja, a abdicação, por parte dos homens, de seu direito a todas as coisas, característico do estado de natureza, por um direito e liberdade limitados , equivalente ao de cada um de seus semelhantes, não será concretizada, o pacto social não será efetivado, e a humanidade continuará a viver sob um estado de guerra permanente. Entretanto, a análise do Estado hobbesiano será feita posteriormente.

Retornando à questão do contrato em Hobbes, serão transcritos alguns trechos do "Leviatã", julgados relevantes: " Quando alguém transfere seu direito, ou a ele renuncia, fá – lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera . Pois é ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos. (...). A transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato. (...). Por outro lado, um dos contratantes pode entregar a coisa contratada por seu lado, permitindo que o outro cumpra a sua parte num momento posterior determinado, confiando nele até lá. Nesse caso, da sua parte o contrato se chama pacto ou convenção" (Ibidem:84). Estas são considerações acerca do que Hobbes considera que seja a definição de contrato latu – sensu, em sentido abrangente.

Relativamente à necessidade de existência de um Estado forte, poderoso, coercitivo, com poder absoluto, para assegurar o cumprimento do pacto, assim se pronuncia Hobbes no capítulo XIV do "Leviatã" : " Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte, e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo este pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões do homem , se não houver o medo de algum poder coercitivo,..., um Estado civil" (Ibidem:86).

Para finalizar esta seção sobre o contrato social hobbesiano, convém salientar que, para a montagem do Estado coercitivo e com poderes absolutos acima referido, "Hobbes concebe um contrato diferente, sui generis. Observamos que o soberano não assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos e isento de qualquer obrigação" (Weffort,1.991:63). Isto significa que, pelo fato de o soberano não estar constituído quando da celebração do contrato social, ele não é uma das partes contratantes, e com isso, passa a ter a neutralidade e a impessoalidade necessárias a atender à principal finalidade do contrato, que é fazer a transição do Estado de natureza para o civil, fazendo cessar a guerra generalizada de todos contra todos, característica do primeiro.

2.5 – A noção de sociedade civil e a necessidade de um Estado com poder absoluto:

Estes dois tópicos foram agrupados em um mesmo item porque, segundo Weffort (1.991,62), Hobbes " monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado". Isto significa que a sociedade civil passa a existir após a celebração do contrato social, simultaneamente à constituição do Estado coercitivo por ele gerado, e representa a evolução de uma comunidade humana que se encontrava em estado de natureza, em conflito permanente e generalizado, para um agrupamento humano no qual o conflito é mediado e controlado mediante a tutela do Estado.

Quanto ao Estado hobbesiano propriamente dito, sua viabilização somente será possível, segundo Hobbes nos informa no capítulo XVIII do "Leviatã", " Das causas, geração e definição de um Estado", caso se resolva" conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir as suas diversas vontades , por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que representa sua pessoa praticar. Em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande "Leviatã" , ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Mortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o temor assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.

Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos" (Hobbes, 1.974:109,110). Desta forma, Hobbes concebe o Estado todo – poderoso que vai regular e tutelar a convivência humana.

A respeito do assunto, é interessante salientar a novidade introduzida por Hobbes na modalidade de contrato social de cuja celebração é proveniente o Estado acima descrito. Segundo Weffort (1.991:62,63) "Na tradição contratualista, às vezes se distingue o contrato de associação (pelo qual se forma a sociedade) do contrato de submissão (que institui um poder político, um governo, e é firmado entre a "sociedade" e o príncipe). A inovação de Hobbes está em fundir os dois num só. Não existe primeiro a sociedade e depois o poder (" o Estado"). Porque , se há governo, é justamente para que os homens possam viver em paz: sem governo, já vimos, nós nos matamos uns aos outros. Por issoo poder do governante tem que serv ilimitado. (...). Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos numa condição de guerra, entre poderes que se enfrentam".


3) O pensamento político de John Locke:

A análise referente a Locke também será dividida em cinco seções, quais sejam: contexto histórico, estado de natureza, contrato social, sociedade civl e Estado liberal.

3.1.Contexto histórico:

Enquanto Hobbes escreveu o "Leviatã" em 1.651, em seu exílio na França , Locke escreveu seus dois tratados sobre o Governo civil por volta de 1.680, durante seu exílio na Holanda.

Conforme já foi abordado, o século XVII na Inglaterra foi marcado por um confronto entre os defensores do absolutismo monárquico, encastelados na Coroa Britânica, e a burguesia, representada por seus parlamentares na Câmara dos Comuns. Segundo Magalhães (2.001:58) " no século XVIII, a burguesia ascendente já estava suficientemente fortalecida e poderia prescindir de governos fortes para solidificar seu domínio sobre a nação. Os monarcas ingleses da Dinastia Stuart pretendiam fundamentar a autoridade real no poder divino, ficando o século XVII marcado pelos constantes conflitos entre a autoridade real, supostamente inata porquanto oriunda da vontade divina, e a autoridade do Parlamento baseada no princípio racionalista de representação dos interesses dos proprietários burgueses".

Este processo de convulsão interna na Inglaterra teve seu desfecho com a vitória das forças sociais que defendiam o Parlamento, o liberalismo político, contra as que pugnavam pelo absolutismo monárquico, materializada na Revolução Gloriosa.

Segundo Weffort, a referida Revolução e "a aprovação do Bill of Rights em 1.689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a releza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada" (Weffort, 1.991:82).

Antes, porém, de iniciar a abordagem do item referente ao Estado de natureza, convém fazer uma breve exposição sobre as principais obras políticas de Locke, que são os dois tratados sobre o Governo civil que, conforme já foi inscrito, foram elaborados por volta de 1.680, segundo Weffort (Ibidem:83).

Segundo o mesmo autor , o Primeiro Tratado é uma contestação á obra "O Patriarca", de Robert Filmer, na qual há a defesa do direito divino dos reis com base no princípio de autoridade paterna de Adão, considerado o primeiro monarca, a quem Deus agraciara com o poder real que legará a seus descendentes a referida autoridade. Ainda de acordo com Weffort, Locke, em seu Segundo Tratado, advoga que não é a tradição nem a força que contituem a fonte legítima do poder político, e sim , de modo exclusivo, o consentimento pleno dos governados. A concepção de Estado de Locke é, segundo Bobbio, " a primeira e mais completa formulação do Estado liberal" (Weffort, 1991 :83).

3.2.O estado de natureza:

Para Locke, o estado de natureza é uma situação em que " todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas tal como acharem conveniente, nos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem" (Locke, 1.973:41). Neste trecho fica nítida a diferença existente entre Locke e Aristóteles, aspecto ressaltado por Weffort: " Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam em estágio pré – social e pré – político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza" (Weffort: 1.991:84)

Prosseguindo sua caracterização do estado de natureza , Locke ressalta o caráter de eqüidade que existe nessa situação: "Um Estado também de igualdade, onde é recíproco qualquer poder e jurisdição, nenhum tendo mais do que o outro; nada havendo de mais evidente do que criaturas da mesma espécie e ordem, nascidas promiscuamente para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, que terão sempre de ser iguais às outras, sem subordinação ou sujeição... " (Locke, 1.973:41).

O estado de natureza, para Locke, é uma situação de convivência pacífica entre os homens, segundo o trecho a seguir: "O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo, que a todos obriga; e a razão , que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultamque, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses" (Locke, 1.973: 42). Segundo Weffort, " esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia" (Weffort, 1.991:84).

Para finalizar, é importante destacar o fato de Locke considerar a monarquia absoluta pior do que o estado de natureza: "Aquiesço finalmente em que o governo civil é o remédio acertado para os inconvenientes do estado de natureza , os quais devem, com toda a certeza, ser grandes se os homens têm de ser juízes em causa própria, (...). (...), os monarcas absolutos são apenas homens, e se o governo deve ser o remédio para aqueles males que se seguem necessariamente ao fato de serem os homens juízes em causa própria, não sendo por isso suportável o estado de natureza, desejo saber que espécie de governo é esse , e em que medida é melhor do que o estado de natureza, onde um homem governando uma multidão tem a liberdade de ser juiz em causa própria , podendo fazer aos seus súditos tudo quanto lhe aprouver, sem o menor questionamento ou controle por parte daqueles que lhe executam as vontades, devendo ele se submeter , seja lá o que for que ele faça , levado pela razão, pelo erro ou pela paixão? Muito melhor será no estado de natureza, no qual os homens estão obrigados a vontade injusta de outrém; e se aquele que julga julgar erroneamente no seu próprio caso ou no de terceiros, é responsável pelo julgamento perante o restante dos homens" (Locke, 1973: 44).

3.3.A teoria da propriedade:

Segundo nos informa Weffort (1991:85), Locke aborda a questão do direito de propriedade conceituando-o segundo duas significações diferentes . A primeira designando-a como algo que representaria , simultaneamente , a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano . A segunda acepção significa, rigorosamente, a posse de bens móveis e imóveis . Ainda segundo o mesmo autor , ao contrário de Hobbes, conforme já foi abordado , para Locke " a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado" (Weffort, 1.991:85).

Com referência ao direito de propriedade propriamente dito, Locke considera que " O direito à propriedade seria natural e anterior à sociedade civil, mas não inato. Sua origem residiria na relação concreta entre os homem e as coisas, através do processo de trabalho. Se, graças a este, o homem transforma as coisas – pensa Locke – o homem adquire o direito de propriedade, na medida em que "todo homem possui uma propriedade em sua própria pessoa , de tal forma que a fadiga de seu corpo e o trabalho de suas mãos são seus". Assim, em lugar de opor o trabalho à propriedade , Locke sustenta a tese de que o trabalho é a origem e o fundamento da propriedade. As coisas em seu trabalho teriam pouco valor, e mediante o trabalho, elas deixariam o estado em que se encontravam na natureza , tornando – se propriedade" (Magalhães, 2.001:60).Ou seja, caso o homem, mediante o desempenho do seu trabalho, e utilizando como insumo qualquer fator de produção presente na natureza, fator esse em estado bruto, original, , o beneficiasse, o transforma-se, o produto desta transformação seria propriedade privada desse homem. Então, dessa forma, segundo Weffort " o trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da propriedade" (Weffort, 1.991: 85).

Assim, Locke descreve , no "Segundo Tratado", o surgimento do dinheiro, e a legitimidade de seu uso como forma de adquirir propriedades, da seguinte forma: " A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem são, em geral, de curta duração e, tal como a necessidade de subsistência, obrigou os primeiros membros das comunidades a procurar por elas ,..., se não forem consumidas pelo uso, , estragar-se-ão e perecerão por si mesmas: o ouro, a prata e os diamantes são artigos que a imaginação ou o acordo atribui valor , mais do que pelo uso real e sustento necessário da vida. (...)

E assim originou-se o uso do dinheiro – algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem se estragar e que , por consentimento mútuo, recebessem em troca sustentáculos de vida , verdadeiramente úteis mas perecíveis. (...)

Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida humana em comparação com o alimento, vestuário e transporte, tendo valor somente pelo consenso dos homens, enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é evidente que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcionada da terra, tendo descoberto, mediante consentimento tácito e voluntário , a maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata, que podem guardar sem causar danos a terceiros, uma vez que esses metais não se deterioram nem se estragam nas mãos de quem os possui" (Locke, 1.973:59). Desta maneira, o pensador político britânico justifica que, além do trabalho, o uso do dinheiro é uma forma legítima de se exercer o direito à propriedade.

3.4 - O contrato social em Locke:

Segundo Magalhães (2.001:60), a vida no estado de natureza , para Locke, caracterizaria - se pela perfeita igualdade e liberdade. Entretanto, , haveria alguns inconvenientes, tais como uma possível tendência de os indivíduos se autofavorecerem , assim como a seus parentes e amigos, na inexistência de uma autoridade superior isenta, que tivesse poder suficiente para solucionar conflitos entre os interesses dos indivíduos. Desta maneira, o direito à propriedade e a manutenção da liberdade e da igualdade estaria ameaçada.

De acordo com o mesmo autor, "Justamente para evitar a concretização dessas ameaças , o homem teria abandonado o estado de natureza e criado a sociedade civil, politicamente organizada, através de um contrato não entre governantes e governados, mas entre homens igualmente livres. O pacto social não criaria nenhum direito que viesse a ser acrescentado aos direitos naturais, que não implicam a renúncia por parte dos homens de seus direitos em favor do poder dos governantes. O pacto seria apenas o acordo entre esses próprios indivíduos, reunidos para empregar sua força coletiva na execução das leis naturais, renunciando a executá-las pelas mãos de cada um. Seu objetivo seria a preservação da vida, da liberdade e da propriedade, bem como reprimir as violações desses direitos naturais" (Magalhães,2.001:60).

A respeito do assunto, Weffort (1.991:86) também nos informa acerca dos problemas existentes no estado de natureza, tais como o desrespeito ao direito de propriedade, entendida como vida, liberdade e bens, a inexistência de juiz isento, imparcial, fato que conduziria à inclinação do homem para ser juiz em causa própria, e, também, a ausência de uma força coercitiva para impor a execução das sentenças. Esses elementos, segundo Weffort, causariam a guerra entre os indivíduos.

Ainda de acordo com o mesmo autor, " é a necessidade de superar esses inconvenientes que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade. Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras" (Weffort, 1.991:86).

Posteriormente, Weffort prossegue sua caracterização do contrato social lockiano " o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos inalienáveis di ser humano à vida, à liberdade e aos bens estarão melhor protegidos ao amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário" (Weffort, 1.991: 86). Ou seja, a principal diferença entre o pacto de submissão de Hobbes e o pacto de consentimento de Locke é a de que, no primeiro, os direitos naturais do ser humano são subtraídos pelo soberano, que passa a concentrar uma soma muito grande de poder e direitos, enquanto que aos súditos só resta o direito de preservação da própria vida, enquanto no segundo os direitos naturais dos indivíduos são mantidos , e o contrato é celebrado com a finalidade de proporcionar maior proteção aos referidos direito, principalmente ao de propriedade. Outra diferença importante é que, para Hobbes, o soberano, a autoridade constituída, não pode ser destituída em hipótese alguma, enquanto Locke admite o direito de resistência, que seria a prerrogativa detida pelo povo no sentido de depor governantes tiranos, opressores e que não governassem visando ao bem comum.

Os seguintes trechos do "Segundo Tratado sobre o Governo Civil" serão transcritos para atestar o que foi escrito acima: " (...) ninguém pode ser (...) submetido ao poder político de outrém sem dar consentimento . A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem em segurança, conforto e paz umas com as outras , gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela. Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir resolver por todos" (Locke, 1.973:77). Nesta passagem, Locke enfatiza que a submissão de qualquer indivíduo ao poder político se dá por intermédio da concordância, do assentimento de cada indivíduo com referência a essa sujeição.

Outro trecho no qual Locke tece comentários relativos ao seu entendimento sobre o que seja o contrato social é o a seguir reproduzido, que está contido no capítulo VII do " Segundo Tratado sobre o Governo Civil", intitulado " Do começo das sociedades políticas" : Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada indivíduo , constituir uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa comunidade um corpo, com o poder de agir como um corpo, o que se dá tão só pela vontade e resolução da maioria. Pois o que leva qualquer comunidade a agir (...) é o consentimento da maioria, (...); dessa sorte, todos ficam obrigados pelo acordo estabelecido pela maioria. E, portanto, vemos que, nas assembléias que têm poderes para agir mediante leis positivas, o ato da maioria considera-se como sendo o ato de todos(...) (Locke, 1.973: 77). Aqui, Locke salienta a necessidade de aprovação da maioria para que os atos do corpo político representativo da comunidade tenham legitimidade.

Para finalizar este item relativo ao contrato social, tem-se uma passagem na qual Locke disserta sobre a essência do contrato social, qual seja, o compromisso de cada contratante de que respeitará as decisões do corpo político representativo da sociedade, respaldadas pelo beneplácito da maioria, mesmo que tal decisão vá de encontro ao interesse particular, individual, e, também , acerca das implicações do referido pacto social : " E assim todo homem, concordando com todos os outros em formar um corpo político sob um governo, assume a obrigação para com todos os membros dessa sociedade de submeter-se à resolução da maioria conforme a assentar ; se assim não fosse, esse pacto inicial, pelo qual ele juntamente com outros se incorpore à sociedade, nada significaria, deixando de ser pacto, se aquele indivíduo ficasse livre e sob nenhum outro vínculo senão aquele em que se achava no estado de natureza" (Locke, 1.973: 77).

3.5 – A sociedade civil, o Governo liberal e a questão do direito de resistência:

A respeito da noção de sociedade civil em Locke, Magalhães (2.001:60) nos informa que ele é constituída pelo contrato social; já as leis são aprovadas mediante a anuência recíproca dos contratantes e aplicadas por magistrados isentos. A concordância recíproca antes referida tornaria os indivíduos organizados na sociedade civil aptos a optarem pela modalidade de governo que melhor os aprouvesse.

Com referência a esse assunto, Weffort nos informa que "a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil ( Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil" (Weffort, 1.991: 86).

Relativamente a este tema, Locke nos informa que para que os homens se encontrem em sociedade civil uns com os outros é necessário que sejam partes integrantes do contrato social, caracterizado pelo fato de cada indivíduo se sujeitar à decisão da maioria, mesmo que tal decisão seja antagônica a seus interesses individuais, e que também estejam unidos em um corpo, tendo lei instituída que valha para todos e magistratura. Sobre isso nos informa Locke no capítulo Viii do "Segundo Tratado", intitulado " Da sociedade civil e política" : " (...) haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural , passando – às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de recorrer à lei por ela estabelecida .(...) Os que estão se unindo em um corpo , tendo lei comum estabelecida e judicatura – para a qual apelar – com autoridade para decidir controvérsias e punir ofensores, estão em sociedade civil uns com os outros ; mas os que não têm essa apelação em comum, ..., se encontram em estado de natureza sendo cada um, onde não há outro, juiz para si e executor, o que constitui, ..., o estado perfeito de natureza" (Locke, 1.973: 73).

Em relação ao Governo liberal , Locke salienta a importância do consentimento dos governados como base, fundamento, para a legitimidade do Governo , conforme fica nítido no seguinte trecho do "Segundo Tratado sobre o Governo Civil": "Assim sendo, o que dá início e constitui realmente qualquer sociedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer número de homens livres capazes de maioria para se unirem e incorporarem a tal sociedade. E isto, e somente isto, deu ou podia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo" (Locke, 1.973:78).

Locke também ressalta os motivos pelos quais o homem decide renunciar à liberdade e aos direitos que possui no estado de natureza para, mediante a celebração do contrato social, , formar a sociedade política, o estado civil, e estabelecer um governo representativo : "... embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo é muito incerta porque, sendo todos tão reis quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco observadores da eqüidade e da justiça , a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntyar-se em sociedade com outros que já unidos, ou pretendem unir-se, para a m´tua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de "propriedade" " (Locke, 1.973: 88).

A respeito do estabelecimento do estado civil e da ausência de determinados requisitos para a defesa da propriedade no estado de natureza, Locke nos diz o seguinte: " O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade. Para alcançar esse objetivo muitas condições faltam no estado de natureza:

Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante consentimento comum, como padrão do justo e do injusto e medida comum para resolver quisquer controvérsias entre os homens;...

Em segundo lugar falta um juiz conhecido e indiferente para resolver quaisquer dissenssões, de acordo com a lei estabelecida; nesse estado , juiz e executor da lei de natureza, sendo os homens parciais para consigo, a paixão e a vingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligência e a indiferença os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros.

Em terceiro lugar , no estado de natureza falta muitas vezes poder que apóie e sustente a sentença quando justa, dando – lhe a devida execução" (Locke, 1.973:88,89).

A respeito dos inconvenientes do estado de natureza e os motivos pelos quais os homens constituem o estado civil, por intermédio da celebração do contrato social, Locke nos informa que : " Assim os homens, apesar de todos os privilégios do estado de natureza, mantendo – se em más condições enquanto nele permenecem, são rapidamente levados à sociedade. (...). Os inconvenientes a que estão expostos pelo exercício irregular e incerto do poder que que todo homem tem de castigar as transgressões dos outros obrigam – nos a se refugiarem sob as leis estabelecidas e nele procurarem a preservação da propriedade. É isso que os leva a abandonarem de boa vontade o poder isolado que têm de castigar, para que seja exercido por um só indivíduo, escolhido para isso entre eles; e mediante as regras que a comunidade ou os que forem por ela autorizados concordem em estabelecer. E nisso se contém o poder original dos poderes executivo e legislativo, bem como dos governos e das sociedades.

Com referência ao direito de resistência, Weffort nos informa que " No que diz respeito às relações entre governo e sociedade, Locke afirma que quando o executivo e o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que foi destinado, tornando - se ilegal e degenerando em tirania (...) conferindo ao povo o legítimo direito à opressão e à tirania" (Weffort, 1.991:88).

Sobre o tema, Magalhães nos explica que " o poder dos governantes seria outorgado pelos signatários (participantes) do contrato social e, portanto, revogável. Com base nessa premissa, Locke sustenta o direito de resistência e insurreição sempre que se fizer presente o abuso de poder por parte das autoridades. Quando o governante torna-se tirano, coloca-se em situação de guerra contra o povo. Este, se não encontrar qualquer reparação pode revoltar-se, e esse direito é uma extensão do direito natural que cada um teria de punir seu agressor. Se, para o homem, a razão de sua participação no contratosocial é evitar o estado de guerra, e a tirania é um estado de guerra do governante contra seus súditos, então trata-se de uma quebra do contrato" (Magalhães, 2.001: ).

É como se o governante, ao exercer a tirania, ou seja, desempenhar seu mandato político visando a seu bem particular em detrimento do bem comum, extrapolando suas prerrogativas consignadas no contrato social, fizesse com que a sociedade retrocedesse a uma situação de estado de natureza, fazendo do referido contrato letra morta. Diante desse quadro, seria legítimo que o povo, por intermédio da destituição do governante tirano, tentasse restabelecer o estado civil, mediante a repactuação do contrato social.

Além disso, Locke afirma, no "Segundo Tratado" que " em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio contra a força sem autoridade é opor – lhe a força. O emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz uso num estado de guerra, como agressor, e sujeita – o a ser tratado da mesma forma" (Locke, 1.973: ).

Para concluir, é importante consignar que, segundo Weffort (1.991:88), o exercício tirânico do poder por parte da autoridade coloca "o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania.

O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza , onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser resolvido pela força." (Weffort, 1.991: 88).

Para respaldar o que foi escrito sobre o direito de resistência, citarei alguns trechos do "Segundo Tratado" : " E quem quer que em autoridade exceda o poder que lhe foi dado pela lei, e faça uso da força que tem sob suas ordens para levar a cabo sobre o súdito o que a lei não permite, deixa de ser magistrado e, agindo sem autoridade, pode sofrer oposiçãocomo qualquer pessoa que invada pela força o direito de outrem. (...)

(...) se a parte prejudicada encontrar remédio e os seus danos reparados mediante apelação à lei, não haverá qualquer necessidade de recorrer à força, que somente se deverá usar quando alguém se vir impedido de recorrer à lei; porque só deve se considerar força hostil a que não possibilita o recurso a semelhante apelação, e é tão só essa força que põe em estado de guerra aquela que faz dela uso, e torna legítimo resistir – lhe" (Locke, 1.973: ).


4.Semelhanças e diferenças entre o pensamento político de Hobbes e Locke:

1º) Tanto Hobbes quanto Locke são adeptos do jusnaturalismo, ou seja, da teoria dos direitos naturais. Weffort respalda essa afirmação quando nos informa que " Juntamente com Hobbes e Rousseau, Locke é um dos principais representantes do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. O modelo jusnaturalista de Locke é, em linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: Ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil;

2º) Para Hobbes, o estado de natureza caracteriza-se pela desconfiança e pela violência na convivência entre os homens, sendo uma guerra generalizada de todos contra todos, enquanto, para Locke, tal estado é de relativa concórdia e harmonia entre os homens, apesar da existência, segundo ele, de alguns inconvenientes característicos do estado de natureza, tais como o fato de os homens serem juízes em causa própria;

3º) Ambos consideram que, na situação de estado de natureza, o usufruto do direito de propriedade é prejudicado pelo fato de todo o homem ter direito a todas as coisas, havendo necessidade da pactuação do contrato social para estabelecer regras de convivência que viabilizem a vida em sociedade e uma proteção mais efetiva da propriedade;

4º) Entretanto, são diferentes as visões dos dois quanto a garantir o cumprimento do que ficou estabelecido no contrato social . Hobbes preconiza a existência de um Estado Todo – Poderoso, o "Leviatã" , um soberano absoluto com poder coercitivo instituído para obrigar os homens ao estrito cumprimento do contrato. Já Locke advoga que a obediência a qualquer poder político deve ser fundada, unicamente, no consentimento dos cidadãos que, em sua visão, é a única fonte de legitimidade do exercício do referido poder, não o sendo nem a tradição nem a força;

5º) Outra divergência entre os dois é atinente à questão do direito de propriedade. Para Hobbes, a possibilidade de usufruto do referido direito depende do beneplácito do soberano, do Leviatã, enquanto que, para Locke, tal direito é natural e sagrado, sendo o indivíduo portador de tal prerrogativa desde seu nascimento;

6º) Sobre direito de resistência e dissolução do governo, também há diferenças. Para Hobbes, o pacto social mediante o qual era estabelecido o Leviatã, só poderia ser desfeito, dissolvido, em uma única situação: quando o soberano não cumprisse, em relação ao indivíduo, sua função de assegurar-lhe a sobrevivência. Nessa situação, poderia o homem sentir – se desobrigado à obediência à tutela do Leviatã, e envidar esforços para tentar garantir a própria vida.

Já Locke tem visão distinta. Ao povo é conferida a prerrogativa e de reistir e, se preciso, destituir o governante tirano, ou seja, aquele que exerce o poder para além do direito, visando ao interesse próprio, e não ao bem da sociedade do qual é representante,


5.Conclusão: a razão pela qual a burguesia britânica do século XVII aceitou Locke e rejeitou Hobbes:

A principal razão para que Hobbes fosse rejeitado pela burguesia inglesa do século XVI e se tornasse um pensador político "maldito" reside, principalmente, no fato de ele negar " um direito natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade. No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da burguesia de controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e , como isso vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1.688/1.689), o pensamento hobbesiano não terá aplicação em seu país nem em nenhum outro" (Weffort, 1.991: 75,76). Ou seja, a incompatibilidade entre o postulado hobbesiano de que a concessão do usufruto do direito de propriedade aos súditos é prerrogativa do Soberano ou governante, e a aspiração burguesa de que o referido direito se constitui em direito natural do indivíduo, foi a causa principal da rejeição do pensamento de Hobbes pela classe social anteriormente citada.

Como causas adicionais dessa rejeição, porém secundárias, podemos citar a apresentação, por Hobbes, do Estado como algo monstruoso, e do homem como belicoso, em contraposição à visão aristotélica do bom governo e do bom homem; e a subordinação da religião ao poder político, segundo Weffort (1.991, 75,76).


Bibliografia:

.HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Editora Abril Cultural, São Paulo, 1.974.

.LOCKE, John. "Segundo Tratado sobre o Governo Civil". Editora Abril Cultural, São Paulo, 1.974.

.MAGALHãES, José Antônio Fernandes. Ciência Política. Editora Vestcon, Brasília, 2.001.

.WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. Editora Ática, São Paulo, 1.991.


Autor

  • Carlos Frederico Rubino Polari de Alverga

    Economista graduado na UFRJ. Especialista em "Direito do Trabalho e Crise Econômica" pela Universidade Castilla La Mancha, Toledo, Espanha. Especialista em Administração Pública (CIPAD) pela FGV. Mestre em Ciência Política pela UnB. Analista de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda. Atua na área de empresas estatais.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVERGA, Carlos Frederico Rubino Polari de. O pensamento político de John Locke. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2852, 23 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18963. Acesso em: 26 abr. 2024.