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A revolução biotecnológica do século XXI.

Reflexões éticas e jurídicas

A revolução biotecnológica do século XXI. Reflexões éticas e jurídicas

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Resumo: O avanço da biotecnologia e a real possibilidade da intervenção científica na matéria viva têm aguçado os debates políticos, econômicos, filosóficos e jurídicos que florescem a partir de questões polêmicas decorrentes destas novas tecnologias. Lidar com avanços biotecnológicos implica enfrentar situações problemáticas e controversas que se originam de realidades que, embora em princípio não passem de meras pretensões científicas, tornam-se efetivas no cotidiano, clamando por um amplo e público debate da matéria, uma vez que possuem reflexos diretos na própria existência da vida humana, nos seus valores éticos e morais e, por conseguinte, no tratamento jurídico que se pretende dar a tais transformações. O fato é que o acelerado desenvolvimento da biotecnologia trouxe para o direito questões até então desconhecidas e que merecem ser melhor estudadas e debatidas pela comunidade jurídica e pela sociedade, fazendo-se necessário refletir sobre os aspectos éticos e jurídicos que permeiam o tema, devendo-se tomar sempre como premissa o princípio da dignidade da pessoa humana, como um novo paradigma bioético humanista.

Palavras-chave: Biotecnologia – Biodireito – Bioética.

Sumário: 1. Contextualização da problemática – 2. O século da biotecnologia: 2.1. Avanços científicos; 2.2. Retrocesso ético – 3. A dignidade da pessoa humana como balizador da liberdade científica – 4. Reflexões éticas e jurídicas – 5. O futuro da bioética e do biodireito: o desafio do século XXI – 6. Considerações finais – 7. Referências bibliográficas.


1. Contextualização da problemática

Em "Admirável Mundo Novo" (Brave New World), livro publicado em 1932, Aldous Huxley narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas.

Hoje, quase oitenta anos depois, esse "admirável mundo novo", antevisto por Huxley, saiu do papel, da utopia ou da ficção, passando a tornar-se uma realidade para a sociedade atual, que passa a conviver com os riscos e benefícios dessas transformações.

Os constantes avanços na área da biotecnologia e a real possibilidade de intervenção científica na matéria viva têm aguçado os debates políticos, econômicos, filosóficos e jurídicos que florescem a partir de questões polêmicas decorrentes destas novas tecnologias.

Segundo Maria Helena Diniz [01], os avanços tecnológicos na seara da medicina e da saúde, o anúncio de resultados fantásticos da biologia molecular e da engenharia genética, inclusive no meio ambiente, e as novas práticas biomédicas resultantes do descobrimento do DNA recombinante podem colocar em risco o futuro da humanidade, uma vez que trazem, em si mesmos, tanto os poderes de criação, como de destruição da vida e da natureza.

Apesar do risco que podem acarretar, é certo que não se podem afastar por completo os benefícios que a biotecnologia traz ao ser humano, a quem é inerente o desejo e o direito de melhoria da qualidade de vida.

Lidar com avanços biotecnológicos implica enfrentar situações problemáticas e controversas que se originam de realidades que, embora em princípio não passem de meras pretensões científicas, tornam-se efetivas no cotidiano, clamando por um amplo e público debate da matéria, uma vez que possuem reflexos diretos na própria existência da vida humana, nos seus valores éticos e morais e, por conseguinte, no tratamento jurídico que se pretende dar a tais transformações.

O fato é que o acelerado desenvolvimento da biotecnologia trouxe para o direito questões até então desconhecidas, falando-se já nos direitos de quarta geração.

Neste contexto, o Direito chegou ao século XXI e colocou o jurista frente ao desafio de enfrentar e harmonizar conflitos ou perplexidades decorrentes do avanço biotecnológico, de modo a impor limites entre o que é cientificamente possível fazer e o que é moralmente desejável realizar.

As questões debatidas no presente estudo não pretendem formular proposições contrárias aos avanços da biotecnologia, mas apenas convidar o leitor a aprofundar o tema em seu íntimo e levá-lo a refletir acerca da repercussão ética, filosófica e jurídica do impacto do século biotecnológico sobre a humanidade.


2. O século da biotecnologia

O final do século XX e início do século XXI foram marcados por profundas transformações científicas e tecnológicas.

Hoje já se encontra ao alcance do homem tecnologias voltadas ao desenvolvimento de espécies transgênicas, quimeras animais e clones, fabricação de órgãos humanos, novas tecnologias conceptivas, mapeamento seqüencial do genoma humano, intervenções genéticas, experimentos com células-tronco embrionárias, experiências farmacológicas e clínicas com seres humanos, e muitos outros.

Mas será que o ser humano está realmente preparado para tão significativa e aparente irrefreável revolução biotecnológica?

Jeremy Rifkin [02], em sua obra O Século da Biotecnologia, já havia expressado sua preocupação com o rápido avanço da biotecnologia, afirmando que o mapeamento de doenças genéticas poderia ensejar discussões sobre a discriminação genética praticada por empregadores, companhias de seguros e escolas, além disso, outra questão preocupante no século biotecnológico seria a crescente comercialização do banco de genes nas mãos de empresas do setor farmacêutico, químico e biotécnico, bem como os impactos, a longo prazo, dos organismos geneticamente planejados em contato com o meio ambiente.

Compartilha de semelhante preocupação a jurista Maria Helena Diniz, que alerta para o fato de que tais avanços tecnológicos, embora surjam em prol do homem:

"(...) dão ensejo à exploração econômica, ante o irresistível fascínio de desvendar os mistérios que desafiam a argúcia da ciência, e à imposição de uma perigosa e injustificada autoridade científica, que podem gerar resultados esteticamente desastrosos e problemas ético-jurídicos voltados à vida, à morte, ao paciente terminal, à sexualidade, à reprodução humana, às tecnologias conceptivas, à paternidade, à maternidade, à filiação, ao patrimônio genético, à correção de defeitos físicos e hereditários, ao uso de material embrionário em pesquisas, à eugenia, às experiências farmacológicas e clínicas com seres humanos, ao equilíbrio do meio ambiente, à criação de seres transgênicos, à clonagem, ao transplante de órgãos e tecidos humanos, à transfusão de sangue, ao mapeamento seqüencial do genoma humano, ao patenteamento da vida, à mudança de sexo, etc" [03].

Segundo Jeremy Rifkin, as mudanças econômicas da história ocorreram quando várias forças sociais e tecnológicas se juntaram para criar uma nova "matriz operacional". Para ele, o século biotecnológico estaria estruturado em sete importantes fatores, que seriam a base da nova economia. Seriam eles:

1.A "capacidade de se isolar, identificar e recombinar genes", ou seja, os genes são os recursos primários para a futura atividade econômica porque as técnicas de recombinação de DNA e outras biotecnologias permitiriam a exploração de recursos genéticos para fins econômicos específicos;

2."Concessão de patentes de genes, linhas de células, tecido geneticamente desenvolvido, órgãos e organismos, bem como os processos usados para alterá-los", que fomentam e incentivam a exploração comercial desses recursos;

3."Globalização do comércio", que permite o aparecimento da "Gênesi de laboratório", onde a ciência cria uma natureza bioindustrial capaz de afetar áreas que vão da agricultura à medicina, e que estão sendo consolidadas por "gigantescas empresas da vida";

4."O mapeamento de aproximadamente 100 mil genes que compõe o genoma humano, novas descobertas sobre a seleção genética, incluindo os chips de DNA, terapia somática de genes e a iminente perspectiva da engenharia genética em ovos humanos, esperma e células embrionárias", que levará necessariamente à redefinição da espécie humana e ao nascimento de uma civilização comercialmente eugênica;

5."A grande quantidade de estudos científicos sobre a base genética do comportamento humano e a nova sociobiologia que favorece a natureza em relação à alimentação estão promovendo um contexto favorável a uma ampla aceitação de novas biotecnologias";

6.Utilização do computador como instrumento de comunicação e organização para a administração da informação genética, que compõe a economia biotecnológica;

7."Uma nova narrativa cosmológica sobre a evolução", que se justifica pela agregação das novas tecnologias à estrutura de uma nova ordem econômica global.

Essa nova matriz operacional veio, de fato, para transformar o século biotecnológico, assim como o próprio mercado global, ressemeando o planeta com o que Rifkin chamou de "segunda Gênese artificial". Segundo ele: "juntos, genes, biotecnologias, patentes da vida, a indústria global da ciência da vida, a seleção do gene humano e cirurgia, as novas correntes culturais, computadores e as revisadas teorias da evolução estão começando a refazer o nosso mundo" [04].

2.1. Avanços científicos

Jeremy Rifkin já prenunciava: "as revoluções na genética e na informática estão chegando juntas na forma de uma verdadeira falange científica, tecnológica e comercial, uma poderosa nova realidade que terá profundo impacto em nossas vidas nas próximas décadas".

E ele estava certo. As descobertas feitas nas últimas décadas pela engenharia genética impressionaram e maravilharam muitos de nós e aproximou os cientistas de respostas para a cura de muitas enfermidades, trazendo-nos, acima de tudo, esperanças de uma melhor qualidade de vida no futuro.

Marcando sobremaneira os avanços na biogenética, em 1978, foi noticiado o nascimento de Louise Brown, primeira criança gerada em um tubo de ensaio (fertilização in vitro), notícia esta que chocou a opinião pública e sinalizou o início de uma nova era na reprodução humana.

Hoje já são várias as técnicas científicas para reprodução humana assistida e incontáveis os bebês que foram gerados a partir desses procedimentos. Crianças engenheiradas dentro de laboratórios tornou-se comum na sociedade atual.

Há cinqüenta anos a identidade química do material genético era totalmente desconhecida. Desde então, a biologia molecular progrediu revelando os segredos do DNA, desvelando o código genético, transferindo e manipulando genes.

Em 1983, Ralph Brinster, da Faculdade de Veterinária da Universidade da Pensilvânia, inseriu genes humanos de hormônio do crescimento em embriões de ratos. Estes, por sua vez, manifestaram os genes humanos e cresceram duas vezes mais rápido e quase duas vezes mais o tamanho de qualquer outro rato. Esses "super-ratos" transmitiram o gene humano do hormônio do crescimento para suas crias.

No começo de 1984, os cientistas lograram êxito numa experiência que consistia em fundir células embrionárias de uma cabra e de uma ovelha e colocaram o embrião num animal substituto que gerou uma quimera cabra-ovelha. O primeiro exemplo de "mistura" de duas espécies animais distintas na história humana.

A biotecnologia está sendo vista também como uma das grandes aliadas no combate à poluição, trazendo novas técnicas que contribuem para a limpeza do meio ambiente. A biorremediação, por exemplo, é uma dessas técnicas, que consiste no uso de organismos vivos para remover ou transformar poluentes perigosos e lixo contaminado em inofensivo. Uma nova geração de microorganismos geneticamente modificados está sendo desenvolvida para converter materiais tóxicos em substâncias benignas.

O setor da silvicultura também está lançando mão dos recursos genéticos para melhorar o seu desempenho florestal, estudando novos genes que possam ser inseridos em mudas de árvores para fazê-las crescer mais rapidamente, mais resistentes a doenças e mais toleráveis ao calor, frio e seca e com maior rendimento energético.

Na agricultura, os avanços biotecnológicos se mostram mais latentes, com o desenvolvimento de alimentos geneticamente modificados.

Em 1990, foi lançado o audacioso Projeto Genoma Humano, um dos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais fascinantes estudos que poderia ser realizado nessa nova era científica. Inicialmente liderado por James Watson, na época chefe do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), tinha o projeto como meta o conhecimento de todo o código genético humano e de suas alterações, que são as causas de mais de quatro mil doenças hereditárias. O resultado desse estudo foi divulgado em 2003, anunciando o sucesso do projeto.

De acordo com Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma pode ser considerado o superstar da big science "em virtude do seu potencial para alterar, com profundidade, as bases da biologia, por ser uma revolucionária tecnologia de seqüenciamento genético baseada em marcadores de ADN, que permitem a localização fácil e rápida dos genes". E continua a jurista:

"Com isso, o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade (art. 1° da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos), passará a ser base de toda pesquisa genética humana nos próximos anos. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores" [05].

Em 1997, outro marco na emergente era biotecnológica foi anunciado ao mundo científico: o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado da história. A notícia causou enorme impacto e frisson na comunidade científica e empolgou o mundo.

A divulgação pela imprensa de determinadas experiências de clonagem, principalmente da sofrida por Dolly, suscitou o debate sobre a possibilidade de sua aplicação dentro das técnicas de reprodução assistida, a seres humanos e as conseqüências que dela poderiam derivar, despertando a reação de cientistas, teólogos, juristas, de diferentes entidades e organismos internacionais, em busca de respostas viáveis e de uma tomada de posição contrária à clonagem humana.

Segundo Rifkin, as descobertas acerca da habilidade de identificar, estocar e manipular as estruturas químicas dos organismos vivos tornou-nos engenheiros da própria vida: "começamos a reprogramar os códigos genéticos de coisas vivas para adaptá-las às nossas necessidades e desejos econômicos e culturais. Assumimos a tarefa de criar uma segunda Gênese, dessa vez uma sintética, voltada para os requisitos de eficiência e produtividade".

É certo que essas grandes transformações biotecnológicas estão sendo acompanhadas por uma transformação filosófica igualmente relevante: "a humanidade está começando a remodelar sua visão da existência humana para coincidir com sua nova relação organizacional com a Terra" [06].

2.2. Retrocesso ético

No seio das intensas transformações contemporâneas, avanços biotecnológicos e retrocessos éticos marcaram profundamente o século XX e, certamente, o século XXI dará continuidade às discussões.

Apesar da empolgação e esperança proporcionada pelo progresso científico na área da biotecnologia, especialmente no âmbito da engenharia genética, todo esse avanço levou-nos a refletir ainda mais sobre o caminho sem volta que estaríamos trilhando para as futuras gerações.

Maria Helena Diniz chega a alertar que, no século biotecnológico, estaríamos diante de uma receita infalível para a coisificação do ser humano e de um "terrível processo para liquidação da humanidade a longo prazo".

De fato, os procedimentos laboratoriais de manipulação de células germinais humanas, principalmente a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível, confundem sujeito com objeto, afetando uma das mais importantes distinções jurídicas de todos os tempos: o ser humano enquanto sujeito de direito não pode estar, ao mesmo tempo, considerado como objeto.

Revelam também tentativa de coisificação do ser humano as pretensões de criação, por meio de técnicas de engenharia genética, de seres humanos com características específicas, voltadas para determinadas funções na sociedade, a chamada eugenia positiva, como a criação de seres humanos com compleição física específica para determinados trabalhos, ou a criação de seres humanos com alto potencial de desenvolvimento intelectual, etc.

Esse entrecruzamento da ética com as ciências da vida e com o progresso biotecnológico provocou uma radical mudança nas formas tradicionais de agir dos profissionais da saúde e na forma da pensar da sociedade em geral.

No prefácio de sua obra O Estado Atual do Biodireito, Maria Helena Diniz discorre que:

"Com essa nova faceta criada pela biotecnologia, que interfere na ordem natural das coisas para "brincar de Deus", surgiu uma vigorosa reação da ética e do direito, que, aqui, procuramos ressaltar, fazendo com que o respeito à dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as situações, apontando até onde a manipulação da vida pode chegar sem agredir" [07].

Em que pese vislumbrarmos, no século biotecnológico, a perspectiva de grandes avanços num futuro repleto de esperanças, é certo que a manipulação da vida do homem pelo próprio homem traz riscos incomensuráveis à humanidade. A criação da vida pelo homem dá-lhe poderes nunca antes experimentados.

Os riscos, sem dúvida, são sedutores diante das maravilhas que o mundo científico pode nos proporcionar, mas qual o preço que estaríamos dispostos a pagar por tais riscos? Quais os impactos que as nossas decisões de agora trarão para as futuras gerações?

Ernest-Wolfgang refletindo sobre os problemas trazidos pelo progresso da biomedicina e da biotecnologia dá alguns exemplos merecedores de maior reflexão:

"A fecundação e o desenvolvimento de embrião prematuro pelo homem, hoje, podem se realizar fora do corpo humano; intervenções cirúrgicas tecnológicas, por razões genéticas, podem ser efetuadas junto aos núcleos das células embrionárias. Não é mais utopia a idéia de seleção da prole. Existe a possibilidade real de se fazer uma seleção negativa, que é orientada pelos defeitos genéticos, bem como de efetuar uma seleção positiva, que se baseia nas características desejadas para o descendente. (...) O que Adous Huxley formulou com evidência em seu admirável mundo novo como utopia negativa, apontando a produção de homens, cujas respectivas características foram estabelecidas de antemão; que forma fabricados, sim, em sentido real, apresenta-se hoje como opção possível, e não mais como utopia irreal" [08].

Mas é isso realmente que a sociedade almeja para as próximas décadas? Fabricação de pessoas com características predefinidas, para fins específicos? Nesse contexto, não poderiam os bebês "personalizados" ser a base para o surgimento de uma civilização eugênica no século XXI?

Para Rifkin, esse novo movimento eugênico diferiria do reinado de horror que resultou do holocausto, na medida em que a antiga eugenia (que buscava a pureza racial), capitaneada por Adolf Hitler, se calcava em uma ideologia política e era motivada pelo medo e pelo ódio. Ao contrário, a nova eugenia seria impulsionada pelas forças de mercado e pelos desejos do consumidor.

Mas será que esses movimentos eugênicos seriam mesmo tão diferentes assim? A longo prazo, será que não haveria uma predileção natural por seres humanos engenheirados, altamente eficientes e tecnicamente infalíveis, ao invés de seres humanos "normais"? Quem pode garantir que não haverá marginalização e perseguição dos homens "comuns"? Será que não serão vistos como "raça inferior" à luz do antevisto por Huxley em "Admirável Mundo Novo"?

Diante de toda essa revolução, onde fica o direito fundamental à identidade genética? À dignidade da pessoa humana? Teríamos que reformular e redefinir esses preceitos? Ou todos esses questionamentos não passariam de mero alarmismo? Ficam no ar as reflexões.

Na opinião de Jeremy Rifkin, apesar de todos os esforços e progressos biotecnológicos, a tentativa dos cientistas de se igualarem a Deus é inútil e sempre fracassará diante de uma natureza implacável e imprevisível, onde a vida sempre encontra uma forma de se superar. E complementa: "a natureza é vigorosa, complexa e variável demais para ser previsivelmente modelada pelos cientistas. No final, podemos acabar perdidos e à deriva nesse novo mundo artificial que estamos criando para nós mesmos no século biotecnológico".

É essa nova maneira de pensar sobre a natureza da vida que certamente determinará o rumo da próxima grande era da história.


3. A dignidade da pessoa humana como balizador da liberdade científica

As complexas questões ético-jurídicas trazidas pelo rápido e intenso avanço das descobertas biotecnológicas impõem uma reação imediata e igualmente ágil do Direito, diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de pesquisa, assegurada pelo art. 5°, inciso IX da Carta Constitucional.

Mas a questão é: como, no século biotecnológico, traçar os contornos à liberdade de ação de um cientista? Quais os limites que, em pleno século XXI, poderiam ser impostos à ciência?

É certo que as intensas transformações no modo de vida da humanidade através das inovações científico-tecnológicas produzem novas situações e relações não previstas diretamente no ordenamento jurídico, reclamando, portanto, do aplicador do Direito que ele busque a adequação normativa fundada em regras e princípios que promovam a dignidade humana.

Segundo Maria Helena Diniz, a liberdade da atividade científica, em que pese se apresentar como um direito fundamental assegurado constitucionalmente, não pode ser considerado absoluto. Seu entendimento é o de que, havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal. Para ela, "nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade" [09].

Para Ernest-Wolfgang o conteúdo da dignidade da pessoa humana teria um núcleo reconhecido por todos, que poderia ser descrito com base na fórmula kantiana "fim em si mesmo". Para ele, esse núcleo da dignidade da pessoa humana abrange a posição e o "reconhecimento do homem como sujeito individualizado; a proibição da instrumentalização do homem, como se fosse uma coisa meramente disponível e desfrutável e, formulado de forma positiva, o direito a ter direitos, que devem ser considerados e protegidos" [10].

Ainda, segundo Ernest-Wolfgang, a dignidade que qualifica um ser pronto, não pode ser cindida ou destacada da própria história deste ser, mas, ao contrário, deve abrangê-la:

"Ao se procurar uma fase determinada do processo da vida, em que o respeito e a consideração são devidos ao homem em razão de sua dignidade, para se excluir ou se graduar processualmente tal consideração ou respeito (seja porque, por exemplo, haja apenas um embrião de dezesseis ou dezoito células, ou porque tenha ocorrido uma nidação incerta), abre-se uma lacuna no desenvolvimento do homem concreto e individualizado. Se o respeito à dignidade deve valer para todos os homens como tais, então ela deve ser concedida ao homem desde o início, no primeiro instante de sua vida e alcançar esse momento, e não apenas ser atribuída ao homem somente se este sobrevier ileso por determinado período de tempo, após, portanto, ter estado desprotegido contra uma coisificação e a dispossibilização arbitrária. Aqui se tornam relevantes conhecimentos e fatos científicos, não especificamente como fonte ou fundamento, mas como substrato para argumentações e valorações jurídico-normativas". [11]

Dessa forma, considerando os enormes avanços da biotecnologia já alcançados e os que ainda se encontram por serem desvendados, faz-se imprescindível a imposição de limites à atividade científica, instituindo parâmetros normativos balizadores de sua conduta. Para tanto, o respeito ao ser humano, em todas as suas fases evolutivas, se mostra em primeiro lugar; e esse respeito só é alcançado quando o trabalho desenvolvido é pautado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o respeito a esse princípio, Norberto Bobbio, citado por Maria Helena Diniz, escreve:

"Mais que um renascimento do jusnaturalismo, se deveria falar do retorno daqueles valores que tornam a vida humana digna de ser vivida e que os filósofos proclamam, com o fim de justificar segundo os tempos e as condições históricas, com argumentos tomados da concepção geral do mundo prevalecente na cultura de uma época" [12].

A única certeza, portanto, é que o respeito à vida humana digna, paradigma bioético, deve estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades.

As novas biotecnologias representam, inegavelmente, um desafio para o direito, tendo este por tarefa primordial não somente assegurar o direito à vida e à dignidade humana, mas também a de garantir a integridade das gerações futuras.


4. Reflexões éticas e jurídicas

O ritmo acelerado das inovações tecnológicas, notadamente na seara da medicina, trouxe um grande poder de intervenção do homem sobre a vida e a morte. Um poder, pode-se dizer, assustador, especialmente quando se sabe que, muitas vezes, esse progresso científico é impulsionado por interesses econômicos, reclamando, por tal razão, da sociedade, um debate amplo e público dessas transformações, por meio de uma reflexão bioética do comportamento humano na área das ciências da vida.

Na percepção de Teresa Rodrigues Vieira:

"a ciência está caminhando mais rápido do que a reflexão ética por parte da sociedade. A humanidade ainda não encontrou respostas para diversas questões éticas. Muitos requerem a discussão e a elaboração de leis sobre a bioética para legitimar a sua prática ou para proibir experiências julgadas abusivas. No entanto com o progresso veloz das pesquisas biológicas, corre-se o risco de já estarem defasadas no momento da sua promulgação" [13].

De fato, o avanço biotecnológico despontou de tal forma que as ciências do "dever ser", em especial, a ética e o direito, não puderam se desenvolver na mesma velocidade.

É certo que ao direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas intransponíveis, mas sim disciplinar fatos que inevitavelmente venham a surgir em decorrência da evolução humana.

Mas como disciplinar fatos que estão constantemente em mudança e que repercutem tão fortemente na própria existência da pessoa humana e, por conseguinte, no ordenamento jurídico vigente?

A biotecnologia e o ressurgimento da perspectiva do ser humano como espécie vêm colocar importantes questionamentos para o cientista e para o jurista.

As possibilidades quase ilimitadas que se abrem com os conhecimentos da biomedicina, biotecnologia e biogenética levantam urgentemente a questão sobre os pontos de referência e orientações que levem em conta o modo e os limites de como nós homens queremos nos relacionar uns com os outros, de como queremos que seja o convívio entre os indivíduos.

Questões como a clonagem, eugenia e a manipulação genética criam um conflito ético-jurídico entre as perspectivas do ser humano como indivíduo, espécie e sociedade.

Segundo Rifkin, os defensores da engenharia genética humana defendem que seria cruel e irresponsável, por exemplo, deixar de utilizar essa nova tecnologia para eliminar sérios "distúrbios genéticos". O problema com esse argumento afirma o The New York Times em editorial intitulado "Whether to make perfects humans" (Construir ou não ser humanos perfeitos), é que "não existe uma linha divisória clara entre corrigir defeitos genéticos que podem ser herdados e aprimorar a espécie" [14].

E aqui se levanta mais uma polêmica: a de se definir o que seria considerado "defeito" genético. Daniel Callahan, citado por Jeremy Rifkin, atinge o cerne do problema quando observa: "por trás do horror que o defeito genético inspira esconde-se (...) uma imagem do ser humano perfeito. Os próprios termos ‘defeito’ ‘anormalidade’, ‘doença’ e ‘risco’ pressupõem uma imagem, um certo protótipo de perfeição".

A indagação que se faz, por fim, é se devemos ou não iniciar o processo de construir futuras gerações de seres humanos em laboratório e seguindo um projeto tecnológico. Quais as conseqüências potenciais de se tomar um caminho cujo objetivo final é a "perfeição" da espécie humana?

Frente a tantos avanços científicos, carência de regulamentação legal e incertezas da sociedade, a autora italiana Laura Palazzani, citada em artigo de Ricardo Stanziola Vieira [15], menciona a emergência de novos direitos visando reconhecer "a justa expectativa objetiva do homem em função da coexistência humana". Estes novos direitos, em seu entender, consistiriam no direito à integridade física e à não manipulação do patrimônio genético, o direito a não ser geneticamente predeterminado; o direito à própria identidade e também à diferença (isto é, à biodiversidade); o direito de ser concebido heterossexualmente em uma família com duas figuras genitoras.

Seriam esses os direitos de quarta geração, que são justamente aqueles decorrentes das repercussões biotecnológicas na vida das pessoas.

Como já mencionado, estes ideários ético-jurídicos vêm se conflitando com o paradigma científico e a noção de ser humano enquanto espécie, por isso Rifkin enfatiza sempre que a "autonomia científica deverá terminar quando estiver em jogo o direito de outrem, pois há prioridade da pessoa humana sobre qualquer interesse da ciência, que somente terá sentido se estiver a serviço do homem" [16].


5. O futuro da bioética e do biodireito: o desafio do século xxi

Para a bioética e o biodireito, a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim de vida com dignidade.

Nesse cenário, a bioética tem a função de problematizar as questões suscitadas pela biomedicina, cabendo ao biodireito regulamentar como essas soluções deverão ser encontradas.

Segundo Maria Helena Diniz, a "bioética e o biodireito caminham ‘pari passu’ na difícil tarefa de separar o joio do trigo, na colheita de frutos plantados pela engenharia genética, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as ciências da vida poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana" [17].

Reconhece-se, portanto, o importante papel do biodireito e da bioética como controladores do desenvolvimento das ciências da vida, como verdadeiros paradigmas para a construção do século biotecnológico, pois somente ações balizadas nesses pilares poderão assegurar o surgimento de uma sociedade calcada no respeito à dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um biodireito que corrijam os exageros provocados pelos experimentos e pesquisas científicas, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, verdadeiro paradigma bioético humanista [18].


6. Considerações finais

O desenvolver do século biotecnológico deixa ainda muitas incógnitas, por isso mesmo, ao final dessa breve exposição, muitas perguntas permanecem sem respostas. Não são questões simples de serem tratadas, envolvem aspectos econômicos, filosóficos, jurídicos, religiosos, éticos e morais que devem ser melhor debatidos pela sociedade.

Quanto mais discussão houver sobre o assunto, melhor absorvida e compreendida será a matéria pela sociedade. Não se pode mais conceber que os debates acerca dos avanços da biomedicina fiquem restritos às academias e aos laboratórios, afastando das discussões o cidadão comum. Não. As mudanças biotecnológicas estão transformando o cotidiano das pessoas, influenciando em sua relação umas com as outras, razão pela qual toda a sociedade deve estar integrada e engajada nesse debate, não podendo mais ele ser adiado.

Contudo, alerta-se para que as reflexões éticas e jurídicas que permeiam o tema sejam sempre realizadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado verdadeiro paradigma bioético humanista, de forma que seja esse princípio a orientar a evolução do novo século biotecnológico.


7. Referências bibliográficas

BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana como principio normativo: os direitos fundamentais no debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia. Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite. São Paulo: Método, 2008.

BORGES, Roxana. Direito e patrimônio genético humano. Disponível em: <http://www.facs.br/revistajuridica/edicao_junho2003/docente/capa.doc>. Acesso em: 15/10/2009.  

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

PENIDO, Henrique. Células-tronco: Limitações éticas e jurídicas à pesquisa e manipulação. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/972.pdf>. Acesso em: 30/09/2009.

RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e revisão técnica Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999.

SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, bioética e patrimônio genético brasileiro. São Paulo: Editora Pillares, 2008.

VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela biotecnologia ao debate do direito moderno – uma breve reflexão ética e jurídica. Disponível em: <http://anppas.org.br/encontro_anual/encontro1/gt/sustentabilidade_risco/Ricardo%20Stanziola%20Vieira.pdf>. Acesso em: 13/10/2009.

VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.


Notas

  1. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6ª. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
  2. RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia. Tradução e revisão técnica Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999.
  3. Op. Cit.
  4. Op. cit.
  5. Op. cit.
  6. RIFKIN, Jeremy. op. Cit.
  7. Op. cit.
  8. BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang.Dignidade humana como principio normativo: os direitos fundamentais no debate bioético. Direitos fundamentais e biotecnologia. Organização Ingo Wolfgang Scarlet, George Salomão Leite. São Paulo: Método, 2008.
  9. Op. cit.
  10. Op. cit.
  11. Op. cit.
  12. Op. cit.
  13. VIEIRA, Teresa Rodrigues. Bioética e Direito. São Paulo: Editora jurídica brasileira, 1999.
  14. Op. cit.
  15. VIEIRA, Ricardo Stanziola. Polêmicas colocadas pela biotecnologia ao debate do direito moderno – uma breve reflexão ética e jurídica.
  16. Op. cit.
  17. Op.cit.
  18. Op. cit.

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VICENTE, Laura Lícia de Mendonça. A revolução biotecnológica do século XXI. Reflexões éticas e jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2855, 26 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18976. Acesso em: 24 abr. 2024.