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O conceito de legitimidade

O conceito de legitimidade

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Resumo: Este artigo trata da legitimidade jurídica em sentido amplo, na busca da compreensão de seu sentido e alcance para a elaboração de um conceito.

Palavras-chave: Direito. Democracia. Legitimidade.


Entre os gregos, na Antiguidade, a democracia era vivenciada de forma direta, mas restrita ao homem grego e livre. Com o advento do Estado de Direito, a democracia foi reinventada, passando a ser representativa. Numa via, para os modernos, a urna. Noutra mão, para os antigos, a praça (ágora). Esta era o palco de uma assembléia de cidadãos pulsante e ativa, donde brotavam as vozes do povo para o povo, de forma direta, sem intermediações.

A ideia de democracia por representação fez da legitimidade um dos institutos jurídicos mais analisados pela Teoria do Direito, bem como pelas demais ciências sociais e humanas, uma vez que, muito embora o poder continuasse a emanar do povo ou grupo, seu exercício foi delegado a um determinado sujeito.

Essa dissociação entre a titularidade e exercício do poder provoca uma crise de legitimidade. É que o sujeito que faz uso do poder nem atua em perfeita simetria com os interesses grupo que, por sua vez, nem sempre obedece espontaneamente aos comandos de seu representante. Para saber se em casos similares a legitimidade foi ou não ferida é imprescindível compreender o real significado desse instituto.

O significado de legitimidade, que a todos tanto intriga, ainda está longe do consenso. O que se sabe sobre ela?

Ela foi tratada por Weber (2002) e Kelsen (2007), por exemplo, como a expressão da lei, imposta por coerção, sendo legítimo o que for legal, a teor do que o legislador estabelecer como direito. A coerção seria a possibilidade jurídica de aplicação de uma sanção, segundo os autores positivistas, diferenciando-se da coação, que é um vício de vontade. Não há na teoria desses pensadores, portanto, necessária correspondência (ao menos constante ou contínua) de fato entre a atuação do representante e a vontade dos representados. Escolhido aquele, é por força que estes devem se submeter às decisões decorrentes do exercício do poder.

Luhmann discorda dessa ideologia, ao argumento de que nenhum sistema político pode se apoiar apenas sobre a força física da coação, mas antes deve alcançar um consenso maior para permitir um domínio duradouro. (1980, p. 29-30). Para ele, portanto, a legitimidade é uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância. (LUHMANN, 1980, p. 30).

Guardando certa distância de Luhmann, pode-se dizer que Habermas também rejeita a coerção como elemento único da legitimidade. Propõe, entretanto, a substituição da coerção pela a aceitação, o que ocorreria pelo discurso. Assim, só vale como legítimo o direito que conseguiu a aceitação racional por parte de todos os membros, numa formação discursiva da opinião e da vontade. (HABERMAS,1997, p.172). Na teoria habermasiana, o poder emana do grupo de forma dinâmica e não através de um fato isolado, como uma reunião ou assembléia, por exemplo. O discurso exige o envolvimento contínuo do titular do poder com aquele que o exercita, criando um liame subjetivo e um nexo real entre eles. Só a participação (democrática) do grupo no discurso seria capaz de gerar o cumprimento espontâneo das decisões do sujeito representante.

De fato, desde o declínio positivista, a legitimidade passou a ser um problema de natureza eminentemente ético, relativo à justificação normativa do sistema jurídico-político. (DINIZ, 2006, p. 45). É por essa razão que a ideia de consenso está a ela sempre relacionada. A aceitação da norma e a obediência ao seu comando resultam de um acordo social a respeito da sua adequação a valores éticos e princípios de direito em permanente interação. (TORRES, 2007, p. 475).

A literatura sobre o tema, frequentemente, faz distinção entre a legitimidade e a legitimação. Enquanto a primeira busca o consenso, a segunda visa ao cumprimento do Direito. A legitimação constitui, por assim dizer, um termômetro da disposição para a obediência e a aceitação de uma ordem jurídico-política, ou, parafraseando Renan a legitimação é um plebiscito diário (DINIZ, 2006, p. 45), que justifica e consagra o domínio de uma ordem constitucional. (CANOTILHO, 2001, p. 17).

A legitimação transita, nesse ritmo, em via paralelamente oposta à da legitimidade, sem se chocar com esta. No centro, está o sujeito, que, por exemplo, pode ser uma associação, no âmbito das relações privadas, ou o Estado, na esfera pública, e que recebe a ordem jurídica através da legitimidade e a distribui pelo procedimento da legitimação.

No âmbito das ciências jurídicas, as teorias acerca da legitimidade são frequentemente desenvolvidas, ora pelos processualistas (como elo entre o Direito processual e o material), ora pelos publicistas (como conexão entre cidadão e Estado).

Entre os primeiros, a legitimidade é uma condição ideal para ser parte em uma demanda, de maneira que legítima será aquela a quem a lei autorize a defesa em juízo do alegado direito (parte ativa legítima) ou incumba o ônus de suportar os efeitos da providência pedida. (DINAMARCO, 2005, p. 117).

Para os publicistas, a legitimidade também possui natureza axiológica, isto é, ela valora a legalidade, à semelhança do que ocorre no Direito processual, onde ela qualifica a parte. Aqui, na perspectiva pública, o conceito de legitimidade está recheado pelas crenças de determinada época, que presidem à manifestação do consentimento e da obediência. (BONAVIDES, 2006, p. 121).

É este, em ligeiras linhas, o estado da arte da legitimidade na Teoria do Direito. Dos postulados analisados, é possível concluir acerca da existência de duas características.

A primeira delas é cinemática. [01]A legitimidade faz referência a um ato, ainda que omissivo, mas invariavelmente a um movimento. Não se investiga a legitimidade de um fato ou de uma entidade, mas, sim, de uma manifestação de vontade produzida por um sujeito, que poderá formalizar-se em, v. g., ato, contrato ou convênio. Essa vontade, independentemente de sua origem, visa a produzir efeitos no mundo jurídico, obrigando seus destinatários ao cumprimento de suas determinações.

A legitimidade, seja como instituto jurídico ou como um fenômeno social, não é qualidade do sujeito, porém, mais propriamente, de sua atuação. Assim é que estritamente, por exemplo, não se pode dizer da legitimidade do Estado, posto que nesse ângulo, em sendo legítimo o sujeito, tudo o que fosse feito por ele seria igualmente legítimo, dada a causalidade entre sua característica intrínseca e o ato que pratica.

Todavia, sabe-se que não é assim. O Estado não está legitimado para tudo. Sua atuação é que será ou não legítima. Assim é que se deve dizer de uma "legitimidade para alguma coisa", o que pode ser o ajuizamento de ação, a manifestação de vontade ou a simples representação.

Mas qual é a origem desse movimento de manifestação da vontade? Nesse aspecto, pode-se afirmar que a legitimidade também é dinâmica, [02] sendo esta a segunda característica da legitimidade. Esse movimento, muito embora seja praticado por um sujeito, tem origem em outro sujeito. Para que a manifestação seja legítima, será necessário, em primeiro lugar, que a lei reconheça a capacidade do sujeito (ativo ou passivo) para atuar. Assim é que o Direito positivo deve contemplar um determinado sujeito com a possibilidade de agir legitimamente.

Além de atender ao aspecto da legalidade, a manifestação do sujeito, para ser legítima, deve ser jurídica, isto é, deve traduzir um resultado consensual e ético.

O consenso é a situação de correspondência entre a manifestação do consentimento e a manifestação da obediência. (BONAVIDES, 2006, p. 121). Ele é o resultado de um procedimento de tomada de decisões, que se inicia com uma negociação, passa pela celebração de um acordo e se encerra com a aceitação das decisões do sujeito e o respeito a elas (em trânsito de se legitimar) por todos os membros de um grupo.

Um ato só será legítimo, nessa esteira, se os destinatários o acatarem, por se identificarem com os fins por ele colimados. O respeito à manifestação deve substituir o medo de descumpri-la, de molde a transformar, por si mesmos, a observância em prêmio e o descumprimento em sanção.

Assim é que, hipoteticamente, uma entidade não será verdadeiramente legítima para representar seus filiados, se estes não a virem como parte do procedimento e do conteúdo das decisões, ainda que a lei diga o contrário.

Há, na História do Brasil, um exemplo real. Durante a ditadura militar, os sindicatos estavam legalizados, mas a serviço da ideologia do regime. Não obstante, os operários organizaram greves e se reuniram para negociar, sem se fazerem representar pela respectiva entidade sindical, como aconteceu no ABC paulista, na década de setenta. É que, muito embora o sindicato da categoria fosse detentor da legitimidade, pela via legal, não a possuía na versão jurídica, porque não havia consenso em torno de suas decisões.

O aspecto jurídico da legitimidade, além do consenso, diz respeito à ética. Sobre essa questão, pede-se vênia para introduzir alguns conceitos necessários à sua exata compreensão.

Como é cediço, termo é um vocábulo ou locução que denomina conceito, prévia e rigorosamente definido. Assim é que os termos podem ser classificados segundo o sentido que emprestam ao seu objeto, sendo eles unívocos, equívocos e análogos. (TELLES JÚNIOR, 2006).

Unívocos são os termos de um só sentido. Equívocos, os que traduzem sentidos que não se relacionam uns com os outros. Análogos, por sua vez, são os termos que possuem sentidos diversos, mas conexos. Na Língua Portuguesa, v. g., unívoco seria o termo finissecular, que significa fim-de-século. Já o vocábulo manga seria equívoco, posto que pode se referir tanto à fruta quanto à peça do vestuário. Por fim, a palavra história serve de modelo para os termos análogos, porque transpõe a narrativa de fatos, ora reais, ora imaginários.

Legitimidade é um vocábulo análogo. Além do entendimento que lhe empresta a ciência jurídica, há, ainda, outros tantos, mas que não a fazem perder sua essência. Na busca desta, é importante salientar que, morfologicamente, a adjetivação de legitimidade - que é um substantivo feminino – seria legítima(o). Etimologicamente, legítimo é o que se intitula perfeito, autêntico, verdadeiro. (BUENO, 1998, 2870). Ora, para que algo assim o seja, necessária será sua adequação às leis da Física, quanto aos objetos, e às da Ética, em relação aos costumes (aos atos).

Assim, nas Ciências Sociais aplicadas e/ou humanas, o que é legítimo deve também ser ético.

Seguindo na trilha dos termos, veja-se que o vocábulo moral deriva do Latim moris, o genitivo de mos [03], que significa caráter, modo de ser, costume de agir. A Moral é dogmática, ou seja, possui um conteúdo que determina como o indivíduo deve agir. Já a Ética (do grego ethos, que significa hábito) é zetética, questionadora. Ela não afirma o que é certo ou errado, mas, sim, questiona o que é bom e o que é mau. Inscreve-se como uma parte da Filosofia, que trata de costumes, bem assim do dever ou do modo de proceder das pessoas quando em sociedade. Em outras palavras, a Ética aponta sempre para o bem.

A Ética é uma qualidade necessária da legitimidade. Pressupondo a pessoa humana como origem e fim de qualquer manifestação jurídica de vontade, somente o respeito aos direitos fundamentais (humanos por natureza) é capaz de garantir a adequação do Direito à ideia de bem e da manifestação do consentimento à ideia de obediência. A ética estabelece o bom-senso como condição para a norma e para o consenso.

Nessa perspectiva, a legitimidade deve seguir o rumo do bem, o qual, no Direito, passa pelo respeito aos direitos fundamentais. Não basta, pois, que os atos de um determinado sujeito sejam legais e consensuais, se seus fins se revelarem um atentado aos direitos humanos constitucionalmente protegidos.

Em que pese sua natureza análoga, os diversos significados do termo em estudo aqui expostos permitem sugerir, finalmente, um conceito: legitimidade é a qualidade atribuída à manifestação de vontade de um determinado sujeito, no exercício de um poder decorrente da tomada de decisões por um determinado grupo de interessados, autorizada pela norma jurídica (legalidade), determinada pelo consenso e exercida nos limites da ética (juridicidade).


Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006

BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico-prosódico da Língua Portuguesa. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1968.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 2001.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2005.

DINIZ, Antônio Carlos de Almeida. Teoria da Legitimidade do Direito e do Estado: uma abordagem moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy Editora, 2006.

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2 v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 5ª ed. São Paulo: RT, 2007.

LIMA, Leonardo Tibo Barbosa. Centrais Sindicais: legitimidade de atuação e perspectivas. São Paulo: LTr, 2010.

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição da Corte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2006.

TORRES, Ricardo Lobo. A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Legitimação dos Direitos Humanos. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.


Notas

  1. A cinemática é a parte da mecânica que investiga os movimentos por si mesmos, sem se referir às forças responsáveis por sua produção.
  2. Ramo da mecânica que estuda o movimento dos corpos, relacionando-os às forças responsáveis por sua produção.
  3. Correspondia ao que os gregos chamavam de Ética.

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LIMA, Leonardo Tibo Barbosa. O conceito de legitimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2898, 8 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19278. Acesso em: 19 abr. 2024.