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Crimes a bordo de embarcações

Crimes a bordo de embarcações

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A aplicação da lei penal brasileira aos crimes cometidos a bordo de embarcações nacionais ou estrangeiras que estejam em alto-mar ou em mar territorial do Brasil ou de outro país.

RESUMO

A crescente inserção do Brasil no contexto de país atuante no tráfico internacional de mercadorias e transporte de pessoas através do mar faz com que também aumentem os conflitos no âmbito criminal que interessam a este país enquanto nação soberana. Ademais, tais querelas têm trazido à baila questões atinentes à aplicação da lei penal brasileira quando da ocorrência de um crime a bordo de embarcações envolvendo o interesse a dois ou mais Estados. Desta forma, pretende-se analisar a legislação pátria atinente a esta questão, com o intuito de esclarecer eventuais dúvidas existentes quanto à aplicação do direito penal brasileiro aos delitos cometidos dentro do espaço marítimo.

PALAVRAS-CHAVE: crimes a bordo, jurisdição penal, competência.


INTRODUÇÃO

O presente estudo analisa a aplicação da lei penal brasileira aos crimes cometidos a bordo de embarcações nacionais ou estrangeiras que estejam em alto-mar ou em mar territorial do Brasil ou de outro país.

É notório que a jurisdição em matéria penal deriva do poder de soberania que os Estados possuem sobre seu próprio território. Entretanto, com a globalização, o Brasil encontra-se cada vez mais inserido no comércio internacional de mercadorias e transporte de pessoas pelo mar, havendo a existência de casos em que um crime cometido a bordo de uma embarcação interessa a dois ou mais países. É o fenômeno que alguns doutrinadores classificam como internacionalização do delito.

Isto faz com que questões há muito debatidas ganhem fôlego e voltem a fazer parte do dia-a-dia de tribunais e doutrinadores, como é o caso da querela acerca da aplicabilidade da lei no espaço, decorrente da competência jurisdicional em matéria penal que o Brasil exerce sobre o mar.

Essas normas, que para alguns fazem parte do Direito Penal Internacional, são, na realidade, de Direito Penal interno, já que não estabelecem preceitos ou sanções destinadas a outros Estados. (MIRABETE, 2001, p. 72)


1.Conceito de Território

Território pode ser definido como o limite espacial dentro do qual o Estado exerce efetiva e exclusivamente o poder de império sobre pessoas e bens. Ou seja, é o espaço dentro do qual o Estado exerce sua soberania.

Em sentido estrito, território compreende a superfície terrestre (solo e subsolo), as águas interiores, o mar territorial, a plataforma continental e o espaço aéreo correspondente.

1.1.Mar Territorial

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM III) dividiu o espaço marítimo em mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva, plataforma continental e alto-mar.

O Brasil, país signatário da referida Convenção, ratificou-a em 22 de dezembro de 1988, adaptando sua legislação interna aos novos limites dos mares e oceanos com a sanção da Lei n.º 8.617, de 4 de janeiro de 1993.

Conforme explicita o art. 2º da referida lei, a soberania do Brasil "estende-se ao mar territorial, ao espaço aéreo sobrejacente, bem como a seu leito e subsolo".

Desta forma, definido está que o mar territorial brasileiro compreende a faixa de mar que se estende a até 12 milhas náuticas contadas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro, tal como as cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente pelo Brasil, indicam.

1.2.Alto-Mar

De acordo com o disposto na Constituição do Mar, alto-mar é toda parte do mar não incluída na zona econômica exclusiva, no mar territorial ou nas águas interiores de um Estado, nem as águas arquipelágicas de um Estado arquipélago.

O alto-mar está aberto a todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral, sendo que a liberdade do mar compreende, principalmente, a liberdade de navegação, de sobrevoo, de pesca, e de colocação de cabos e oleodutos submarinos.

Frise-se que, em alto-mar, os navios devem se submeter exclusivamente à jurisdição do Estado do pavilhão. Isto significa que estão subordinados civil, penal e administrativamente ao Poder Jurisdicional do Estado sob cuja bandeira naveguem.

Entretanto, tal poder não é absoluto, em virtude de que as infrações cometidas a bordo de navios mercantes podem ser submetidas, excepcionalmente, às leis penais de outro Estado, uma vez que a Jurisdição Penal de um Estado pode ser exercida sobre fatos cometidos no território de outro Estado, como é o caso da legislação penal brasileira.

Ademais, para efeitos de aplicação da lei penal, considera-se alto-mar toda a faixa de mar compreendida além das 12 milhas marítimas que compreendem o mar territorial brasileiro e que não seja mar territorial de outro Estado.

Desta forma, na área que compreende a zona contígua, zona econômica exclusiva e plataforma continental, aplicam-se as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal referentes ao alto-mar.

1.3.Território por Extensão ou Ficção

Nos termos do art. 5º, § 1º, do CP, o território por extensão inclui, para efeitos penais, pela lei da bandeira ou do pavilhão, "as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar".

Ainda sobre a possibilidade de um crime ser praticado em um barco salva-vidas ou destroços do navio naufragado, Mirabete (2001, p. 76) afirma que, por serem considerados "remanescentes da nave, aplica-se também a lei da bandeira".


2.Distinção entre Soberania, Jurisdição e Competência

Antes de se prosseguir, é mister realizar-se, neste momento, a diferenciação entre soberania, jurisdição e competência.

Por Soberania, entende-se o poder político supremo e independente de um Estado em relação aos demais países, e supremo dentro do próprio Estado.

Entretanto, tal poder soberano de um Estado relativamente ao seu mar territorial não é absoluto, em virtude do direito de passagem inocente que os outros estados possuem nesta zona de mar.

Já a Jurisdição pode ser definida como o poder/dever conferido ao Estado para solucionar, de forma quase monopolizada (o direito brasileiro admite a autotutela ou a autodefesa em alguns casos excepcionais), os conflitos de interesses surgidos em seu território.

Por sua vez, Competência é o fracionamento da jurisdição, com divisão de trabalhos delegados a cada órgão do poder estatal encarregado da solução do conflito de interesses.

Desta forma, pode-se dizer, por conseguinte, que Competência é uma parcela da Jurisdição que, por sua vez, é parcela do Poder Soberano.


3.Jurisdição Penal

No direito penal brasileiro, a incidência da jurisdição encontra-se prevista nos arts. 1º, 5º, 6º e 7º do Código Penal, bem como nos arts. 1º, I, 70, 88 e 89 do Código de Processo Penal.

3.1.Princípio da Territorialidade

A doutrina adota cinco princípios a respeito da aplicação da lei penal no espaço. São eles: princípio da territorialidade, da nacionalidade, da proteção, da competência universal e da representação.

Como regra, o Código Penal pátrio adota o princípio da territorialidade, segundo o qual estão sujeitos à lei brasileira os crimes praticados dentro do território nacional, independentemente da nacionalidade do autor e da vítima.

Sobre este princípio que rege a aplicação do poder punitivo estatal, ensina Luis Regis Prado (2002, p.165) que: "é justificado pela tese da soberania territorial, segundo a qual a lei penal é territorial porque se aplica no espaço em que se exercita a soberania do Estado."

Entretanto, existem exceções à aplicação do princípio da territorialidade, como os casos das ressalvas elencadas no art. 5º do CP (convenções, tratados e regras do direito internacional), e dos casos de extraterritorialidade penal (art. 7º, CP).

Por conta de tais peculiaridades do direito brasileiro, diz-se que o Código Penal adota o princípio da territorialidade temperada.

3.2.Lugar do Crime

Em virtude do princípio da territorialidade, a lei penal brasileira incide sobre todas as infrações penais cometidas dentro do território nacional.

Todavia, para que se aplique a regra da territorialidade, é necessário que se esclareça qual é o lugar do crime. Neste sentido, o Brasil adota a teoria da ubiquidade, para a qual o lugar do delito pode tanto ser o local da conduta criminosa quanto o local do resultado, conforme declara o art. 6º do CP, in verbis: "Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado."

Com essa teoria adotada pelo legislador brasileiro evita-se um possível conflito negativo de jurisdição e dá-se uma solução aos crimes cuja ocorrência se inicia em um local e consuma-se em outro.

Além disso, a regra non bis in idem, que evita a possibilidade de duplicidade de julgamento, encontra-se prevista no art. 8º do Código Penal, que determina: "A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas."


4.Delitos criminais cometidos em embarcação de bandeira brasileira

Apesar de incipiente a frota naval do Brasil, é preciso analisar-se a possibilidade da ocorrência de um fato criminoso em navio de bandeira brasileira. Desta forma, três são as hipóteses cabíveis de ocorrência de um crime, relativamente ao local do delito, quais sejam: crime praticado em embarcação brasileira localizada em águas territoriais brasileiras; crime praticado em embarcação brasileira localizada em águas territoriais de outro Estado; e crime praticado em embarcação brasileira localizada em alto-mar.

4.1.Embarcação brasileira localizada em águas territoriais brasileiras

Em se tratando de embarcação brasileira localizada em águas territoriais do Brasil, não há o que se discutir: aplica-se a lei brasileira, independentemente de ser o autor, ou a vítima do delito, brasileiro ou estrangeiro.

4.2.Embarcação brasileira localizada em águas territoriais de outro Estado

De acordo com esta segunda hipótese, o art. 7º, II, c, do CP, dispõe que se aplica a lei brasileira ao crime cometido a bordo de embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. Além desses requisitos, é necessário o concurso das seguintes condições, elencadas no art. 7º, §2º, do CP: "a) entrar o agente em território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável."

Além disso, ainda de acordo com a hipótese em tela, caso o autor do crime seja estrangeiro e a vítima brasileira, é necessário que, além das condições acima dispostas, sejam preenchidos outros requisitos, como a ausência de pedido ou negativa da extradição e a existência de requisição do Ministro da Justiça (art. 7º, § 3º, CP).

4.3.Embarcação brasileira localizada em águas territoriais brasileiras ou em alto-mar

Conforme se depreende da leitura do CP, art. 5º, § 1º, para efeitos penais, considera-se como extensão do território nacional (e, portanto, sujeitas à legislação brasileira) as embarcações de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem em alto-mar.

Quando se fala em alto-mar, tal expressão deve ser entendida como as faixas de mar que não são águas interiores nem mar territorial estrangeiro.

Desta forma, uma vez em águas internacionais, a embarcação mercante ou de propriedade privada passa a ser extensão do território nacional, respondendo o agente de um ato ilícito de acordo com os ditames da legislação brasileira, prevalecendo, portanto, a lei do pavilhão.


5.Delitos criminais cometidos em embarcação de bandeira estrangeira

Com relação aos países latino-americanos, existem dois tratados internacionais que regulam, de maneira incongruente entre si, os crimes cometidos em navios, sendo um deles o Código de Bustamante (que está em conformidade com a CNUDM III) e, o outro, o Tratado de Direito Penal Internacional firmado na cidade de Montevidéu em 1940.

O primeiro preconiza, em seu art. 301, que as leis penais do Estado costeiro somente se aplicam aos delitos cometidos a bordo de navios estrangeiros se tais delitos tiverem alguma relação com o país e seus habitantes ou perturbar-lhe a tranquilidade.

Por sua vez, o Tratado de Direito Penal Internacional dispõe, em seu art. 10, que os delitos cometidos a bordo de navios estrangeiros (excetuam-se os navios de guerra) serão julgados conforme a legislação do Estado em cujas águas territoriais a embarcação se encontrar quando da ocorrência do fato delituoso.

Conforme ensina Octaviano Martins (2008, p. 109): "O Brasil adota a solução preconizada no Código de Bustamante e na CNUDM III". Entretanto, isso não impede o Poder Judiciário brasileiro de afastar a aplicação do art. 301 do Código de Bustamante e aplicar a lei penal do Brasil a um crime ocorrido em embarcação estrangeira dentro do território nacional, desde que o fato delituoso tenha causado perturbação da paz do país, e ainda mais quando os países de nacionalidade de autor e vítima e da bandeira do navio não sejam signatários da Convenção de Havana de 1928.

Ademais, impende destacar que, levando-se em conta a nacionalidade do autor, da vítima e da bandeira do navio em que ocorre um crime, diversas são as hipóteses de aplicação da lei brasileira. Desta forma, analisar-se-á cada uma delas detalhadamente, como forma de se abranger o problema em sua completude.

5.1.Delito criminal praticado em navio estrangeiro por infrator estrangeiro contra cidadão brasileiro

Conforme dita o art. 5º, § 2º do CP, aplica-se a lei penal brasileira aos crimes cometidos nas embarcações estrangeiras de propriedade privada que se encontrem em porto ou mar territorial do Brasil. De acordo com esta regra, acaba-se aplicando a lei brasileira em detrimento da regra contida no art. 301 do Código Bustamante, por importar a prática de tal delito em perturbação da tranquilidade do Brasil.

Outrossim, caso o delito criminal praticado contra brasileiro tenha ocorrido no estrangeiro, aplica-se a lei brasileira, em decorrência do princípio da extraterritorialidade da lei penal pátria.

O CP, em seu art. 7º, §§ 2º e 3º, estatui a competência jurisdicional brasileira ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, desde que estejam reunidas as seguintes condições: a) o agente tenha entrado em território nacional; b) o fato seja punível também no país em que foi praticado (o que é irrelevante, caso o crime tenha ocorrido em local que não está sob jurisdição de qualquer país); c) esteja o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não tenha sido o agente absolvido no estrangeiro ou não tenha aí cumprido a pena; e) não tenha sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não esteja extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável; f) não tenha sido pedida ou tenha sido negada a extradição; g) tenha havido requisição do Ministro da Justiça.

Frise-se que, para que o Brasil exerça sua jurisdição sobre o fato delituoso, é necessário haver o concurso de todas as condições acima elencadas, sob pena de não-aplicação da lei penal pátria.

5.2.Delito criminal praticado em navio estrangeiro por infrator estrangeiro contra estrangeiro

Na hipótese de ocorrência de um crime a bordo de navio estrangeiro que se encontre em águas territoriais brasileiras, o art. 5º, §2º do CP c/c o art. 89 do CPP estatui que tal infrator deverá ser julgado de acordo com a lei brasileira.

Na prática, o Brasil age da seguinte forma: a Polícia Federal (art. 144, § 1º, I e III, CF) recebe, retira do navio e detém o acusado, desde que este se encontre em território nacional e na forma da lei, ou seja, em caso de flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade competente (art. 282, CPP).

Caso seja condenado à pena de prisão ou detenção, o infrator cumprirá sua pena no Brasil, salvo se o Estado do qual é nacional possuir um tratado de extradição com o Brasil.

Ao estatuir sobre a jurisdição penal do Estado costeiro a bordo de navio estrangeiro que esteja em passagem inocente por seu mar territorial, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar diz que ela só será exercida nos casos de: a) a infração criminal ter consequências para o Estado costeiro; b) a infração criminal ser de tal natureza que possa perturbar a paz do país ou a ordem no mar territorial; c) a assistência das autoridades locais tenha sido solicitada pelo capitão do navio ou pelo representante diplomático ou funcionário consular do Estado de bandeira; c) essas medidas serem necessárias para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas.

Neste sentido, relativamente a embarcação privada estrangeira em que tenha ocorrido um crime, e que esteja apenas em passagem pelo mar territorial brasileiro, mesmo que a competência seja da Justiça brasileira, existem entendimentos em conformidade com o Código de Bustamante e a Convenção de Montego Bay de que o Poder Judiciário brasileiro só intervirá quando o crime tiver consequências no território brasileiro, prevalecendo o direito de passagem inocente, decorrente do princípio da liberdade da navegação.

5.3.Delito criminal praticado em navio estrangeiro por infrator brasileiro

Independentemente da nacionalidade da vítima, na ocorrência de crime cometido por brasileiro a bordo de navio de bandeira estrangeira, a competência jurisdicional, qualquer que seja o local do crime (alto-mar ou águas territoriais brasileiras), é do Brasil, conforme ditam os arts. 5º e 7º, II, b, do Código Penal.

Porém, na hipótese de o crime ocorrer em águas territoriais de outro Estado, só se aplicará a legislação brasileira ao referido fato caso ocorra o concurso das seguintes condições: a) não tenha sido pedida ou tenha sido negada a extradição do acusado; b) tenha havido requisição do Ministro da Justiça, nos termos do art. 7º, §2º, CP.


6.Atribuições da Polícia Federal brasileira

A Constituição Federal atribui, entre outros órgãos, à Polícia Federal o exercício da segurança pública para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (CF, art. 144, I).

Ainda de acordo com a Lei Maior, o seu art. 144, § 1º, I, diz que a Polícia Federal destina-se a: "apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei."

Além disso, é atribuição da PF o exercício das funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (art. 144, § 1º, III, CF).

Em virtude disso, caso haja a prática de um crime a bordo de embarcação estrangeira, o comandante pode solicitar a retirada do infrator do navio, competindo à Polícia Federal receber o suposto infrator e assumir o encargo de apurar o suposto ilícito, condicionado ao fornecimento de provas incontestes da materialidade e da autoria do fato por parte do responsável pela embarcação.


7.Competência Penal

Conforme leciona Tourinho Filho (2001, p. 78), competência pode ser conceituada como: "o âmbito, legislativamente delimitado, dentro do qual o órgão exerce o seu Poder Jurisdicional."

Assim, esse fracionamento do Poder Jurisdicional é feito de várias formas, levando-se em conta a natureza da lide (ratione materiae), o território (ratione loci) e as funções que os órgãos podem exercer dentro dos processos.

As disposições acerca da competência encontram previsão legal nos arts. 70, 88 e 89 do Código de Processo Penal. Além disso, a Constituição Federal trata da matéria relativamente à competência jurisdicional nos casos de crimes cometidos a bordo de navios em seu art. 109, IX.

7.1.Competência da Justiça Federal brasileira

A Constituição Federal diz que a Justiça Federal possui competência para processar e julgar os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar.

Em virtude da leitura do art. 109, IX, da CF, depreende-se que tal dispositivo legal refere-se expressamente a "navios" em vez de "embarcações", como ocorre nas regras do Código Penal, o que leva a doutrina a crer que a Justiça Federal é competente apenas para processar e julgar os crimes que ocorrerem a bordo de navios, excetuando-se os crimes cometidos a bordo de outros tipos de embarcações, para os quais a competência é da Justiça Estadual.

Esta querela é atinente à diferenciação de navio e embarcação, sendo que a maioria dos doutrinadores entende navio como uma embarcação de grande porte. Neste sentido, embarcação é gênero, do qual navio é espécie.

Apesar de estar prevista legalmente a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes cometidos a bordo, existem entendimentos que defendem a tese de que tal competência dos juízes federais somente seria possível na hipótese de crimes cometidos a bordo de navios em alto-mar, sendo que, em casos de crimes ocorridos no mar territorial brasileiro, a competência seria da Justiça Estadual.

Em se tratando de crime doloso contra a vida cometido a bordo de navio, a competência é do Júri federal, disciplinado no Decreto-lei n.º 253/67.

7.2.Competência da Justiça Militar brasileira

O art. 5º, § 1º do Código Penal diz que a lei brasileira se aplica ao crime cometido no território nacional, devendo ser consideradas como extensão do território brasileiro as embarcações de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem (mar territorial brasileiro, alto-mar ou águas estrangeiras).

As embarcações (navios, barcos, lanchas etc.) de natureza pública abrangem os navios de guerra, e as que estão a serviço do governo incluem aquelas que se prestam ao transporte de diplomatas e chefes de Estado.

Assim, qualquer crime que ocorra a bordo de navio público ou a serviço do governo brasileiro, será processado e julgado pela Justiça Militar, que se compõe, nos termos da Constituição Federal, do Superior Tribunal Militar; dos Tribunais e dos Juízes Militares instituídos por lei, que a organizará, competindo-lhe processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Convém ressaltar que, nos casos de crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, a competência será da Justiça comum (art. 9º, parágrafo único, do COM e art. 82, § 2º do CPPM, com redação determinada pela Lei 9.299/96).


8.Fixação da Competência Penal

O CPP consagra, em seus arts. 88 e 89, regras atinentes à fixação da competência para as hipóteses de crimes cometidos fora do território nacional, no seu mar territorial e no alto-mar.

8.1 Crimes cometidos fora do território nacional

Quanto aos crimes cometidos em território estrangeiro, o art. 88 do CPP diz que: "No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da Capital do Estado onde houver por último residido o acusado. Se este nunca tiver residido no Brasil, será competente o juízo da Capital da República."

Como dito alhures, existem casos em que, mesmo o crime tendo sido praticado fora do território nacional, ficará sujeito à lei brasileira. "Nestes casos, como fixar-se a competência? Há dois foros: um comum e outro subordinado. Na ausência daquele, lança-se mão do outro." (TOURINHO FILHO, 2001, p.155)

Nos crimes cometidos fora do território nacional, em primeiro lugar deve-se investigar quem é competente para processar e julgar o infrator: se a Justiça Federal ou a Militar.

Se se tratar de crime da alçada da Justiça Federal, deve-se fixar, de acordo com as regras do art. 88 do CPP, o foro competente e, em seguida, o órgão que deverá tratar da matéria.

Em se tratando de crime da alçada da Justiça Militar, o processo e o julgamento são de competência da 1ª Auditoria da Capital da República em qualquer das hipóteses do art. 88, em face do estatuído pelo art. 91 do CPPM.

8.2 Crimes cometidos no território marítimo ou em alto-mar

O Código de Processo Penal dispõe sobre os crimes praticados a bordo de embarcações em mar territorial brasileiro e em embarcações brasileiras em alto-mar da seguinte forma: "Os crimes cometidos em qualquer embarcação nas águas territoriais da República, ou nos rios e lagos fronteiriços, bem como a bordo de embarcações nacionais, em alto-mar, serão processados e julgados pela justiça do primeiro porto brasileiro em que tocar a embarcação, após o crime, ou quando se afastar do País, pela do último em que houver tocado."

De acordo com a primeira hipótese, não importa se a embarcação é nacional ou estrangeira (excetuam-se os navios de guerra estrangeiros, sujeitos à jurisdição do país cuja bandeira arvoram), o que importa é que o crime tenha ocorrido em território brasileiro, devendo, portanto, aplicar-se a lei brasileira, designando-se a competência para processar e julgar o crime de acordo com a regra ínsita no dispositivo legal em tela.

Quando se tratar de crime cometido a bordo de embarcação brasileira em alto-mar, a competência será sempre da Justiça brasileira, devendo a competência do foro ser fixada também de acordo com o disposto na parte final do art. 89 do CPP, ou seja, competente será o juízo do primeiro porto brasileiro em que tocar a embarcação após o crime ou o do último em que houver tocado quando se afastar do país.

Como exemplo, imagine-se a realização de um crime dentro de um navio que acaba de sair do Porto do Itaqui, localizado no Estado do Maranhão. Neste caso, se o navio fizesse nova escala no Brasil após o crime (no Porto de Santos, por exemplo), competente seria o Juiz Federal da comarca de Santos, uma vez que esta é sede de Vara Federal. Caso em Santos não houvesse Juiz Federal, competente seria o foro da Capital do Estado de São Paulo. Imagine-se agora que este mesmo navio não tocasse mais nenhum porto no Brasil após sua saída do Porto do Itaqui, o que aconteceria? Competente seria o Juiz Federal da Comarca de São Luís, uma vez que ela é a Capital do Estado do Maranhão, sede de Vara Federal, e o porto localiza-se nela.


CONCLUSÃO

Como se vê, é crescente a importância do estudo acerca da aplicação da lei penal no espaço, em virtude da internacionalização cada vez maior do comércio de mercadorias e transporte de pessoas realizado através do mar, ocasionado pelo fenômeno da globalização econômica, no qual o Brasil, desde que abriu sua economia para o mercado, encontra-se mais e mais inserido.

Assim como há um constante aumento no volume de negócios realizados através do mar, tem tido movimento crescente, também, um fenômeno que alguns doutrinadores apelidaram de "internacionalização do delito".

Desta forma, necessário se faz, como medida de obtenção de um grau maior de segurança jurídica, que se busque conhecer as regras de aplicação da legislação penal pátria atinente aos crimes praticados a bordo de embarcações quer estas estejam em águas brasileiras, águas estrangeiras ou em águas internacionais.

Além disso, em virtude do próprio caráter internacional da atividade marítima, deve-se buscar conhecer os tratados e convenções internacionais do qual o Brasil é signatário, como forma de se saber, no caso concreto, qual dispositivo legal deve ser aplicado quando da ocorrência de um crime a bordo.

Neste sentido, o presente trabalho teve a intenção de estudar a questão referente à aplicação da lei penal brasileira aos delitos cometidos a bordo de embarcações, não com o intuito de esgotar a matéria (posto que o Direito é impetrificável), mas com o singelo objetivo de contribuir para fomentar o debate acerca destas questões.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Pedro Ivo Augusto Salgado Mendes da. Crimes a bordo de embarcações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3031, 19 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20264. Acesso em: 7 maio 2024.