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A garantia do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e o momento processual da aplicação da inversão do ônus da prova no CDC

A garantia do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e o momento processual da aplicação da inversão do ônus da prova no CDC

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A distribuição dinâmica do ônus da prova consta no Anteprojeto do Código de Processo Civil em dispositivo específico, que a admite desde que haja espaço para o contraditório, o que reforça a tese de regra de procedimento no caso do CDC.

Resumo: O presente artigo tem como ponto principal a análise das garantias do processo legal, da ampla defesa e do contraditório nos casos de inversão do ônus da prova em processos que envolvem o direito do consumidor. Em processos que tratam da citada matéria se discutiu durante longo tempo o momento processual para que houvesse a inversão do ônus da prova, observado que há um objetivo para tanto no dispositivo que permite a inversão a critério do julgador, porém sem esclarecer quando deve ser feita. Ademais, caberá analisar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça em que trata, exatamente, do momento adequado para a inversão, no Recurso Especial nº 802832/MG, que, ao que parece, soluciona a divergência.

Palavras chave: Princípios Constitucionais do processo. Devido processo legal. Ônus da prova. Princípio da cooperação. Novo Código de Processo Civil.

 Sumário: 1. Introdução. 2. O ônus da prova. 3. O ônus da prova no CDC. 3.1. A inversão do ônus da prova ope legis. 3.2. A inversão do ônus da prova ope judicis. 4. As garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. 5. O princípio da cooperação processual. 6. O momento da aplicação da inversão do ônus da prova ope judicis. 7. A jurisprudência e a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 802832/MG. 8. O projeto do Novo Código de Processo Civil e a inversão dinâmica do ônus da prova. 9. Conclusão


1. INTRODUÇÃO

O ônus da prova cabe ao autor, assim dispõe a regra do artigo 333 do Código de Processo Civil (CPC), no mais, ainda dispõe este artigo que nos casos quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor cabe ao réu provar, servindo este dispositivo como regra no direito processual brasileiro.

Neste artigo científico será ponderada, não a regra do CPC quanto ao ônus da prova, mas sim, a exceção. Discutir-se-ão os casos presentes no Código de Defesa do Consumidor, no que tange a inteligência das regras dos artigos 12, §3º, II, 14, §3º, I, e, especialmente, do artigo 6º, VIII do CDC, em que há a possibilidade de inversão do ônus da prova.

Em relação a esta possibilidade, fica clara a intenção do legislador em proteger o consumidor, conforme se depreende do mesmo artigo, proteger o consumidor além de ser um dos princípios basilares do citado códex, é princípio expresso na Constituição Federal. No entanto, como não se analisou esta exceção como uma regra procedimental, mas apenas de juízo, visto que, no caso do artigo 6º do CDC, a inversão fica a critério do julgador, surgiu uma dúvida na jurisprudência.

A dúvida citada se traduz diante de inúmeras decisões apontando para caminhos bem diferentes no que tange o momento processual adequado para que houvesse a inversão do ônus da prova.

Por uma parte da doutrina entender que se tratava apenas de regra de juízo, deixava à escolha do Juízo o momento, podendo ele ser até mesmo no momento da decisão. Outra parte, no entanto, defende se tratar de regras de procedimento, visto que determinariam um comportamento processual aos litigantes.

Decisões em ambos os sentidos se espalharam pelo país, no entanto pouco se adentrava nas questões do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, princípios processuais constitucionais. Somente se atentava para o consumidor, esquecendo que os citados princípios estão diretamente ligados à própria democracia e à ideia de um processo justo e equitativo, e que a decisão em relação à inversão não poderia se limitar à liberalidade do julgador para aplicar a regra (caso fosse regra de julgamento).

O que deve ser observado é como o simples fato do momento da inversão do ônus da prova pode prejudicar a parte incumbida de provar o alegado, ou desconstituí-lo, caso esta não saiba se terá, de fato, que provar algo.

Neste sentido cabe analisar estes princípios tendo em mente que o momento da inversão implicará no comportamento da parte no processo, é norma de conduta, trazendo uma ingerência direta no decorrer do processo, principalmente em sua instrução e em seus pedidos iniciais.

Igualmente, cabe pincelar considerações acerca do dispositivo do Projeto de Código de Processo Civil que tramita no Congresso Nacional como paradigma de evolução do processo, trata-se do artigo 262, §1º daquele projeto.

O citado artigo, que vem como um avanço no Código em relação à inversão do ônus da prova, foi utilizado pelo STJ em sua decisão acerca do tema como demonstrativo da incoerência processual da inversão do ônus na sentença ou acórdão, como regra de julgamento. Merece apreciação também o princípio da cooperação processual, como um paradigma cada vez mais real e presente no modelo constitucional do direito processual civil.


2. O ônus da prova

A palavra ônus vem do latim, e tem seu significado como fardo, peso, gravame. A própria etimologia da palavra traz sua carga, demonstrando que aquele que tiver o ônus terá, também, uma teórica desvantagem processual, visto que necessita provar, e para isso terá que saber como, além de ter os meios necessários. Em regra no CPC, e como máxima da sociedade, cabe provar a quem alega a existência de um fato, quem afirma, não quem o nega: este seria o ônus da prova.

Deve-se frisar, inclusive, que o ônus é conduta prevista pela norma no interesse do próprio onerado, seu não exercício prejudica o mesmo. A ideia é que não há que se falar em uma punição para o onerado, apenas se este não exercer o seu direito poderá sofrer consequências desfavoráveis, o julgador pode não encontrar subsídios para formar sua convicção, no caso, as provas.

Explica-se. Por vários autores é dito que é um imperativo do próprio interesse, sendo assim, caso não cumpra com esse ônus, o sujeito a quem lhe cabe estará em situação de desvantagem, não processualmente, mas frente ao direito.

Em relação ao ônus da prova, DINAMARCO:

“... ônus da prova é o encargo atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo” (p. 71)

No processo, não se atrela as provas às partes, a partir do momento em que foram elas produzidas, as mesmas integram o processo. O que se torna relevante para o ônus é a questão de que na falta delas, total ou parcialmente, ao final da instrução, deve se verificar quem era responsável pela sua produção, e consequentemente pela incompletude delas.

O ônus da prova, para Cássio Scarpinella Bueno, interfere diretamente na fase instrutória do processo, ainda mais quando analisado sob a ótica do modelo constitucional do direito processual civil, ainda mais ao extrair deste o direito à prova. Nas palavras do ilustre doutrinador:

“O que é relevante é entender que o ônus da prova deve ser compreendido em contexto mais amplo, que tem aptidão de interferir decisivamente no procedimento e, pois, em toda a dinâmica da fase instrutória e que, por definição, antecede o julgamento.” (p. 248)

Há o que se falar também nos aspectos objetivo e subjetivo das regras quanto ao ônus da prova. No que perpassa esta classificação são as palavras de BARBOSA MOREIRA as que melhor explicam tais características, quanto ao subjetivo:

“O desejo de obter a vitória cria para a litigante a necessidade, antes de mais nada, de pesar os meios que se poderá valer no trabalho de persuasão, e de esforçar-se, depois, para que tais meios sejam efetivamente utilizados na instrução da causa. Fala-se, ao propósito, de ônus da prova, num primeiro sentido (ônus subjetivo)”.

E quanto ao objetivo:

“A circunstância de que, ainda assim, o litígio deva ser decidido torna imperioso que alguma das partes suporte o risco inerente ao mau êxito da prova. Cuida então a lei, em geral, de proceder a uma distribuição de riscos: traça critérios destinados a indicar, conforme o caso, qual dos litigantes terá de suportá-los, arcando com as consequências desfavoráveis de não se haver provado o fato que lhe aproveitava. (...) (ônus objetivo)”.

O ônus da prova, então, irá influir diretamente na participação das partes na fase de instrução do processo, como afirma BUENO - supra –, e como perfeitamente demonstrado por BARBOSA MOREIRA, neste aspecto estará rendido o ônus ao seu aspecto subjetivo, tentando a parte que lhe cabe tentar ao máximo se desincumbir deste, ou seja, provar o que alega. Por outro lado, existe o aspecto objetivo, a que interessa ao juiz, que irá verificar se foi produzida a prova corretamente, se as partes se desincumbiram do ônus, pois, caso contrário, irá aplicar as regras em que se não foi provado por quem alega se reputa como não ocorrido.

Como se extrai, a regra de distribuição do ônus da prova é regra de julgamento, as partes já estão condicionadas àquele modelo de produção, a expectativa que elas têm é o do artigo 333 do CPC, portanto trata-se de regra de juízo.


3. A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA SEGUNDO O CDC

A regra geral atende muito bem quando se trata de partes iguais, faz com que se valha do princípio da isonomia, cada qual vai provar aquilo que lhe interessa. No direito do consumidor, por sua vez, envolvendo, até mesmo, o âmbito processual, é necessário o tratamento desigual das partes.

O consumidor é sujeito hipossuficiente, muitas vezes ele não possui os meios, nem econômicos nem técnicos, para que promova a defesa de seus direitos, usualmente é vulnerável e leigo. Com isso, o CDC prevê em seu texto formas para dirimir esta fragilidade, no caso, a facilitação da defesa de seus direitos, entre elas a inversão do ônus da prova, transferindo aquele fardo para a parte mais capaz.

Como aborda o tema CAVALIERI FILHO:

“É no campo da prova que o consumidor encontra as maiores dificuldades para fazer valer os seus direitos em juízo. A inversão do ônus da prova em favor do consumidor, expressamente prevista no art. 6º, inciso VIII, do CDC, é a mais importante técnica que possibilita vencer essas dificuldades no caso concreto, de modo a permitir a igualdade substancial também no plano processual.” (p. 289)

A inversão do ônus da prova, conforme apresentado, veio através da lei para fazer valer o princípio da isonomia processual, e consequentemente do devido processo legal, já que vai consistir num processo justo ao se tratar as partes desiguais de forma desigual.

Sob as égides do risco profissional do fornecedor há a possibilidade de se inverter o ônus da prova em algumas hipóteses no CDC, sendo assim, a parte que terá que se desincumbir da prova será não quem alegou, mas sim aquele que tem maior condição de provar, se este for o caso conforme alguns critérios.

A inversão do ônus da prova, no referido Código, pode ocorrer ope legis, ou seja, da lei, como nos casos de responsabilidade por fato do produto ou do serviço, ou mesmo propaganda enganosa; ou ope judicis, por determinação processual. Neste último, fica a critério do juiz conforme texto da lei, em seu artigo 6º, VIII:

 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

 VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Ou seja, deixa a critério do juiz não só se vai ser utilizado naquele caso a inversão, como também não trata de regras procedimentais para tanto. O que leva ao pensamento que pode ser feito a qualquer tempo, assim muitos operadores do direito pensam, já que, como visto, o ônus da prova é regra de julgamento. Entretanto, como será exposto nem em todos os casos.

3.1. A inversão do ônus da prova ope legis

Este caso é aquele em que a parte alega e está dispensada de provar pela própria lei, cabendo à outra parte, se for o caso, provar o contrário. Trata-se de presunção legal relativa.

Nada mais é que uma norma específica determinando casos em que não vai se aplicar a regra geral. São os casos dos artigos 12, §3º, II, 14, §3º, I, e 38 do CDC, em que a expectativa das partes não se alterará no decorrer do processo, este se inicia com claras regras de quem arcará com o ônus processual.

A inversão, se houver o que se falar nela, ocorre antes do início da demanda, a distribuição do encargo probatório já é predisposta. Neste sentido, DIDIER JR.:

“Visível é que não há aí qualquer inversão, mas tão-somente uma exceção normativa à regra genérica do ônus da prova. É, pois, igualmente, uma norma que trata do ônus da prova, porquanto o regule absolutamente, excepcionando a regra contida no art. 333 do CPC. Por conta disso, é também uma regra de julgamento: ao fim do litígio, o juiz observará se as partes se desincumbiram dos seus respectivos ônus processuais, só que, em vez de aplicar o art. 333 do CPC, aplicará o dispositivo legal específico.” (p. 83 v.2)

De acordo com o que já fora demonstrado, é uma regra de juízo, bem como o artigo 333 do CPC, em que visivelmente é técnica processual que respeita o contraditório e a ampla defesa, além da boa-fé processual, ora que antes da propositura da demanda já existe uma distribuição diferente daquela do Código de Processo Civil. Note-se que é exatamente o que DIDIER JR. expõe ao escrever que não há qualquer inversão, é ainda a posição de Marcelo Abelha Rodrigues ao tratar da inversão do ônus da prova, em que afirma “que a regra da distribuição é esta que o legislador determinou. Inversão há quando se inicia com um encargo e se o altera no curso do processo.”.

Ou seja, há uma diferença nítida entre aquelas normas de distribuição do ônus via de lei, como a regra do artigo 333, do CPC, bem como as do CDC, tratadas nesse subtópico, e a do artigo 6º, VIII do CDC, nesta última a cargo do juiz, chamada ope judicis.

3.2 A inversão do ônus da prova ope judicis

Conforme já exposto, o CDC tem como prerrogativa a defesa do consumidor, e é sob essa perspectiva que confere ao juiz a capacidade de inverter o onus probandi a seu critério, desde que preenchidos requisitos mínimos. São estes os presentes no artigo 6º, VIII do CDC já transcrito neste trabalho.

Como é possível extrair do dispositivo, o legislador proporciona ao juiz, a partir de: a) verossimilhança das alegações; ou b) hipossuficiência do consumidor, que ele inverta o ônus da prova.

Em ambos os casos a distribuição do ônus da prova será verificada no caso concreto pelo juiz, ou seja, até então a expectativa das partes era pela regra geral, no entanto, no decorrer do processo ela pode ser alterada ou não. Esse ponto é o que gera controvérsia entre doutrinadores e julgadores, em ambos os grupos há os que defendem pela regra de juízo e pela de procedimento.

Para Kazuo Watanabe, não é caso ao menos de inversão do ônus da prova:

“O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado, com a ajuda das máximas da experiência e das regras de vida, considera produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as condições de fato com base nas máximas da experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a consequência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente a menos que a outra parte demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão do ônus da prova.”

Apesar do exposto, não se pode negar que a parte contrária assumiria outra postura se tivesse que provar o contrário do que alegou o consumidor. É questão de comportamento processual ao saber que o ônus àquela parte incumbe. Como se observa, mesmo WATANABE não estabelecendo uma relação do caso do CDC com a inversão do ônus da prova, admite que o que vai ser gerado é um gravame à parte oposta, como fora visto, processualmente vai se tratar, sim, do ônus de provar sendo transferido para o outro polo da relação no meio da relação processual.

É uma autorização ao juiz para desviar a rota processual, através de conceitos jurídicos indeterminados, caberá sempre ao juiz ao analisar o caso concreto estabelecer a inversão, verificando se há a verossimilhança ou se no caso o consumidor é hipossuficiente. Em caso de desvio da rota processual torna-se difícil entender a inversão como regra de juízo, vez que, sem saber a direção que o processo toma, dificulta-se às partes sua relação com a defesa e formação do processo.

Seguindo a regra geral, ou ainda os casos dos artigos 12, §3º, II, 14, §3º, I, do CDC, aqueles ope legis, teremos a seguinte visão: ambas as partes saberão de antemão a quem incumbe o ônus de provar o que fora alegado, por estar previsto em lei, e vão saber como se comportar ao requerer as provas necessárias, ou mesmo como se comportar no momento da instrução.

No caso acima, vão ter totais condições de formular pedidos, requerer provas sem ser surpreendida a parte contrária com uma sentença ou acórdão em que seria ela que deveria ter feito isto. Já nos casos em que é ope judicis, pelo Código não se sabe o momento correto da aplicação da inversão, o que gera dúvidas na jurisprudência quanto ao momento de sua aplicação.


4. GARANTIAS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO

Os princípios do contraditório e da ampla defesa advêm do princípio do devido processo legal e a necessidade de defesa neste, além de completar e dar sentido àquela garantia. Estão previstos no artigo 5º, LIV e LV, da Constituição Federal, e acompanhados atingem sua forma plena.

Segundo Dirley da Cunha Júnior, tratando da ampla defesa e do contraditório:

“O contraditório, numa acepção mais singela, é a garantia que assegura à pessoa sobre a qual pesa uma acusação o direito de ser ouvida antes de qualquer decisão a respeito.

A ampla defesa, a seu turno, é a garantia que proporciona a pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de se defender e provar o contrário.” (p. 722)

Já acerca do devido processo legal, Fredie Didier Jr.:

“É preciso observar o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e dar tratamento paritário às partes do processo (5º, I, CPC); proíbem-se as provas ilícitas (5º, LVI, CF); o processo há de ser público (5º, LX, CF); garante-se o juiz natural (5º, XXXVII e LIII CF); as decisões hão de ser motivadas (art. 93, IX, CF); o processo deve ter uma duração razoável (art. 5º, LXXVIII, CF); o acesso à justiça é garantido (art. 5º, XXXV, CF) etc. Todas essas normas, princípios e regras, são concretizações do devido processo legal, e compõem seu conteúdo mínimo.” (p. 47)

O devido processo legal, em sua origem o due processo of law, determina que deve o processo estar de acordo com o direito como um todo, não apenas com a lei, dando a ideia de unicidade do ordenamento jurídico. Houve outras traduções da língua inglesa como processo justo, equitativo, enfim. Além dos exemplos tratados por DIDIER JR., existem outros atributos de um modelo constitucional de processo que perpassam por este, e que são, igualmente, princípios. São exemplos a boa-fé e a proporcionalidade.

Nada mais é que a obrigação do Estado em agir no decorrer do processo garantindo sua conformação com o modelo constitucional. É a forma específica do Estado atuar, garantindo ao processo sua legitimidade, outros princípios constitucionais, já citados, vão, inclusive, moldar os parâmetros mínimos do devido processo legal. O Estado deve estar afinado com tais princípios, de forma a estar afinado com o modelo constitucional de processo civil.

A ampla defesa e o contraditório, que fazem parte dos princípios que dão forma ao devido processo legal, como já demonstrado, garantem que além de serem ouvidas as partes, será garantida a elas meios para que se defendam e provem o contrário do que a outra alegou, meio para exercer o contraditório.

Estes princípios aliados ao devido processo legal garantem o exercício democrático no processo, a participação das partes para sua formação, além da capacidade influência em seu resultado, características importantes em um Estado Democrático de Direito.

Eles fazem parte do rol de princípios constitucionais que devem ser postos em prática por serem a base da sociedade, direcionando todo o sistema jurídico pátrio, para BONAVIDES estes são caracterizados desta forma:

“(...) fazem eles [os princípios constitucionais] a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de Norma das normas, de Fonte das fontes. São qualitativamente a viga mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.”

Desta forma, através de um sistema jurídico legítimo, o qual garante um devido processo legal, deverá haver condições para que as partes tenham meios que influenciem na decisão que futuramente as afetará diretamente. Isto faz com que haja formas das partes exercerem adequadamente sua defesa, devendo influenciar no convencimento do juízo. Tudo isto respeitando o sistema jurídico e estando em congruência com ele, conforme citação.

Destes princípios que vêm as máximas de que nenhum homem será condenado sem ser ouvido, bem como sem um processo justo e legítimo. E como princípio constitucional tem força normativa superior, irradiando para todo o sistema, sendo regra basilar do direito nacional, devendo ser respeitado em todas as esferas.

Em relação ao princípio do devido processo legal e a harmonização com o direito constitucional, há que se destacar a diferenciação entre devido processo legal formal, que seria o dever da atuação do Estado como visto até aqui, em agir da forma mais adequada; e o devido processo legal substancial, de igual importância, principalmente no que tange a interpretação do ordenamento jurídico como um todo, que se mostra extremamente necessário para a utilização correta da norma jurídica frente aos desdobramentos de aplicação do direito no caso concreto. Ambos já tratados aqui.

No tocante ao contraditório, importante frisar, para dar sequência ao tema no próximo capítulo, que ele se baseia em um binômio, que a doutrina tradicional trata como núcleo do princípio, é ele: ”ciência e resistência”, ou de outro modo “informação e reação”. É o que dá maior feição de participação a este princípio fundamental, e não somente deve ser visto como defensivo, ou negativo.

A ampla defesa, por sua vez, retém os meios para que o contraditório seja exercido, ou seja, como exemplo, dando ensejo ao tema abordado, o direito fundamental à prova seria meio de exercício ao contraditório, e nada mais que a garantia da ampla defesa no processo, visto que é forma de exercer amplamente a defesa na fase instrutória.


5. O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL

Ainda nos moldes do modelo constitucional do direito processual civil se encontra o princípio da cooperação processual, que surge através do princípio dos princípios abordados no capítulo anterior juntamente ao da boa-fé processual.

Este princípio traz consigo uma visão diferente da que o processo se habituou, ele redimensiona o tratamento às partes vez que faz com que o órgão jurisdicional se relacione de forma diferente com elas, não mais como um espectador frente a um duelo.

Ele reascende o contraditório e a ampla defesa, em que pese, preza ainda mais pela participação das partes no decorrer do processo, aumentando sua influência na decisão final, como foi visto no capítulo anterior como essência destes princípios.

Como seu próprio nome sugere, se baseia na condução do processo através de uma nova dinâmica, em que intermedia um diálogo entre as partes, de forma equilibrada, de forma que o processo evolua e proporcione até melhores condições para que o juiz venha decidir. Parece muito mais adequado à realidade democrática do processo atual.

Apesar de não estar expresso, e de sua discussão ser relativamente recente, por derivar de outros princípios constitucionais, pode-se ver claramente suas feições no ordenamento jurídico.

São exemplos disto os artigos 295, I, parágrafo único; 17; 14, II; 879-881; 475-O, I; e 574, todos do Código de Processo Civil, em que todos são deveres de esclarecimento, lealdade e proteção, onde se baseia a cooperação. Contudo, não se restringe as partes o dever de cooperar, o juízo deve colaborar de forma igual para o andamento do processo de forma cooperativa.

O dever de consulta que deriva do princípio ora tratado é parte disto, eis que caso surja alguma dúvida, ou nova informação, enfim, todos os aspectos que possam influenciar na decisão devem as partes se pronunciar e o juiz informar as partes da mesma forma, a ideia é transformar processo em uma comunidade de trabalho.

Em torno do objeto deste artigo cabe salientar trecho em que DIDIER JR., trata do assunto:

“O dever de esclarecimento não se restringe ao dever de o órgão jurisdicional esclarecer-se junto das partes, mas também o dever de esclarecer os seus próprios pronunciamentos para as partes.” (p. 86 v.1)

O próprio órgão jurisdicional vai exercer o contraditório, participando ele da preparação para o julgamento da lide. Esta atuação do órgão julgador faz com que os sujeitos processuais melhor se desincumbam de seus ônus, deveres e obrigações no decorrer do procedimento.

O princípio da cooperação atinge o âmago do compromisso do juiz com a sociedade, e com sua efetividade, que busca a verdade, como ocorre no seio do processo penal, pode-se falar até de uma maior segurança jurídica, vez que as partes participam no decorrer do procedimento da construção da decisão.

Assim, a cooperação traz ao processo uma robustez maior frente aos princípios constitucionais, fortalecendo-o e fazendo com que façam valer estes, na medida em que dá às partes maior capacidade de influenciar na decisão e ao juiz deveres de fazer com que isso ocorra. Busca, na verdade, a realização da democracia no processo e uma atualização no modelo constitucional de direito processual civil, tratando o direito ainda mais como um todo – efetivação do devido processo legal substancial.


6. O MOMENTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA OPE JUDICIS

Como já tratado anteriormente, por conta da isonomia processual o legislador resolveu, nos casos em que envolve direito do consumidor inverter estabelecer a possibilidade de inversão do ônus da prova. Tratar os desiguais desigualmente. Ocorre que, ao redigir o dispositivo que trata de tal inversão por parte do juízo não especificou o momento adequado para que ela ocorresse.

Esta discussão perpassa a questão trazida no capítulo que trata do próprio ônus da prova, quando se abordou o ônus da prova como regra de julgamento. As partes já iniciam o processo sabendo a quem caberá provar as alegações contidas no processo, ou seja, o procedimento se inicia e de antemão já há consciência de como se comportar diante dele. Por conta disto não há o que se discutir quanto ao tipo de regra que se trata.

Porém, essa certeza quanto à regra de julgamento se esvai a medida que o legislador confere ao julgador a possibilidade desse inverter o ônus conforme o artigo 6º, VIII do CDC.

Admitindo-se tratar de regra de julgamento poderia incorrer no caso de passar toda a instrução sem as partes saberem a quem cabe provar o que, o réu a pensar que está se enquadrando no caso da regra geral, e o autor, que é consumidor, achar que estaria respaldado pela inversão do ônus probatório. O que, conforme os princípios fundamentais aqui expostos, fugiria completamente ao modelo de processo civil disposto na Constituição Federal.

Não se pode admitir surpresas em um processo, afinal o procedimento foi feito para garantir as partes a segurança jurídica, de forma que o processo corresse regularmente sem atingir o direito de nenhuma delas. Optando pelo entendimento que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento seria ratificar a possibilidade de uma decisão surpresa. Quanto a isso André Bonelli Rebouças tece os seguintes comentários:

“A ausência de uma ou algumas dessas garantias que, em verdade, enfeixam o due process of law, implica a nulidade do feito ou pelo menos dos atos que lhe são imediatamente correlatos, o que significa dizer que o processo, sem essas prévias e públicas garantias é instrumento imprestável para a obtenção do bem jurídico pretendido. Com justa razão. Como conceber que possam os litigantes ter as regras do jogo reveladas a cada instante? E como ter-se a garantia de que estas regras não venham, dirigidamente, com o propósito de causar prejuízos ou favorecimentos? Como saber, ao certo, depois de proposta ou contestada a ação, a quem incumbe o ônus de carrear as provas dos fatos articulados?” (p. 79)

Para que haja a inversão do ônus da prova ope judicis é necessário que se observe alguns parâmetros constitucionais do processo, não se pode fazer de qualquer forma sob pena de atingir princípios basilares do processo, conforme exposto.

Neste sentido, o julgador deve prezar para que o processo corra de forma paritária às partes, observando, claro, suas desigualdades, porém sem desrespeitar o contraditório e a ampla defesa, e consequentemente o devido processo legal e o princípio da cooperação. No caso em tela, o princípio do contraditório seria violado no momento em que durante a instrução processual não se saberia a quem está cabido a produção de provas, já que ainda não teria sido decidido se haveria inversão, ou não. No caso, não haveria forma de participar de forma devida da formação da decisão, o valor do contraditório e da ampla defesa seria esvaziado.

Neste sentido BUENO:

“A melhor interpretação para o dispositivo é que a inversão nele admitida – e a orientação vale para quaisquer outras hipóteses de inversão legal do ônus da prova – deve ser sempre previamente comunicada às partes para que elas possam, adequadamente, desincumbir-se de seu ônus em atenção ao dispositivo legal. Embora o tema renda ensejo a acesa polêmica em sede de doutrina e de jurisprudência, o entendimento aqui sustentado parece se afinar melhor ao “modelo constitucional do processo civil”, em especial no que diz respeito ao “princípio do contraditório” que, em última análise, impõe a criação de amplas oportunidades de participação das partes ao longo do processo.”. (p. 247-248 v.2 TomoI)

Ademais, não se pode suprimir estes princípios em prol do consumidor, ainda que esse tenha seus direitos garantidos por princípio constitucional (art. 5º, XXXII, CF). Os princípios aqui tratados garantem o Estado Democrático de Direito. Não se fala em suprimir a hipossuficiência do consumidor e a garantia da isonomia processual, mas sim uma adequação destes para que o processo permaneça garantindo a isonomia entre as partes, e que ainda assim consiga promover o contraditório e o devido processo legal.

Esta fórmula parece ser a ideal para indicar qual o momento correto para que se inverta o ônus da prova. Ao se tratar de momento “correto” tem-se aqui a ideia do momento que traga a segurança às partes, garantindo, portanto, o devido processo legal e seus princípios correlatos.

Para tanto, é necessário se compreender que ao inverter o ônus da prova no decorrer do processo se vislumbra um desvio de rota, como bem pondera DIDIER JR., uma vez que ocorre em meio ao procedimento, diferentemente da inversão ope legis.

Partindo desse pressuposto, entende-se que a inversão do ônus da prova ope judicis se adequa melhor como regra de procedimento, e não de julgamento. Admitindo-se o contrário se estaria diante de uma situação, um tanto quanto, bizarra, estaria se atribuindo um encargo ao réu sem que houvesse o momento processual para que este se desincumbisse deste ônus, ou seja, estaria negando o contraditório e rompendo com o devido processo legal.

Persistindo nesta análise caso seja o contraditório suprimido, estaria incorrendo numa ofensa direta à Constituição no que tange o procedimento, visto que atingiria a ampla defesa, o devido processo legal, a boa-fé processual.

Diante do exposto, cabe então nos casos de inversão do ônus da prova ope judicis dar um maior valor ao ônus da prova subjetivo, e entender que diante desta situação a regra será dirigida as partes, portanto, acaba por condicionar a atuação das partes ao longo do processo. Deve-se lembrar também que o ônus objetivo interessa ao juiz no momento do julgamento para aplicá-lo negativamente a quem não fez uso de sua faculdade, porém cabe o ônus subjetivo, a aplicação positiva pelas partes no exercício de sua faculdade para que elas a exerçam.

Se valendo além de toda a carga de princípios já exposta e ainda da análise do procedimento frente a eles fica claro que a inversão deve ocorrer durante o procedimento, e não ao seu final. Fortalece, ainda mais, este entendimento ao fazer uso do princípio da cooperação, em que se deve informar as partes e fazer com que elas participem melhor do processo, bem como impõe o dever de prevenção a elas, de forma que colaborem na busca de elementos probatórios da melhor forma, devendo o juízo prezar por tais atos, visando um maior aproveitamento do contraditório e do devido processo legal.

A manifestação do juiz antes do julgamento acerca da inversão do ônus da prova não se trata de prejulgamento, trata-se de uma redistribuição do ônus da prova (no caso o invertendo), de forma a estabelecer melhores condições para instruir o processo, claramente se vê o contorno do princípio da cooperação, no que as partes colaborarão para que o processo se desenvolva melhor, através da orientação do juízo.

Em relação ao momento processual real para que ocorra a inversão é necessário analisar o processo e a produção de provas. Ao que parece, o melhor momento seria o do saneamento, em que se encontra antes da produção de provas, garantindo, portanto, que elas ajam de forma adequada àquela estabelecida pelo juiz conforme ao ônus de sua produção, há uma análise dos pontos controvertidos, e então poderiam as partes ter garantido o princípio do contraditório, do devido processo legal, e ainda atenderia o da cooperação. Não se comprometeria a fase instrutória além de que estaria de acordo com o próprio CPC no que tange a determinação das provas em seu artigo 331, §2º.

Cabe salientar que em se tratando deste ponto específico é esta a solução que parece mais viável e interessante ao processo e ao modelo constitucional do processo civil, porém, como se fará um breve comentário adiante acerca do ônus da prova dinâmico cabe salientar que nestes outros casos não se vale deste momento, devendo ser respeitado, da mesma forma, os mesmos princípios.


7. A jurisprudência e a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 802832/MG.

Como já observado no capítulo introdutório, a jurisprudência pátria se direcionou em todos os sentidos ao tratar do tema aqui exposto: o momento para a aplicação da inversão do ônus da prova no CDC. A maioria se diferenciava apenas no aspecto regra de julgamento, uns com o entendimento de que era essa a regra e outros de que se tratava de regra de procedimento.

O próprio STJ encontrava divergência entre a Terceira e Quarta Turma, nos mesmos termos. Todavia, a Segunda Seção veio a dirimir o dissídio jurisprudencial existente ali proferindo decisão no seguinte sentido:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE POR VÍCIO NO PRODUTO (ART. 18 DO CDC). ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO 'OPE JUDICIS' (ART. 6º, VIII, DO CDC). MOMENTO DA INVERSÃO. PREFERENCIALMENTE NA FASE DE SANEAMENTO DO PROCESSO.

I. A inversão do ônus da prova pode decorrer da lei ('ope legis'), como na responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 e 14 do CDC), ou por determinação judicial ('ope judicis'), como no caso dos autos, versando acerca da responsabilidade por vício no produto (art. 18 do CDC). II. Inteligência das regras dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, e. 6º, VIII, do CDC. III. A distribuição do ônus da prova, além de constituir regra de julgamento dirigida ao juiz (aspecto objetivo), apresenta-se também como norma de conduta para as partes, pautando, conforme o ônus atribuído a cada uma delas, o seu comportamento processual (aspecto subjetivo). Doutrina. IV. Se o modo como distribuído o ônus da prova influi no comportamento processual das partes (aspecto subjetivo), não pode a a inversão 'ope judicis' ocorrer quando do julgamento da causa pelo juiz (sentença) ou pelo tribunal (acórdão). V. Previsão nesse sentido do art. 262, §1º, do Projeto de Código de Processo Civil. VI. A inversão 'ope judicis' do ônus probatório deve ocorrer preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade para apresentação de provas. VII. Divergência jurisprudencial entre a Terceira e a Quarta Turmas desta Corte. VIII. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ – S2 – Resp 802832/MG – Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – Dje 21/09/2011)

Como se extrai da ementa, utilizaram eles dos mesmos princípios constitucionais e aspectos do ônus da prova aqui tratados, ademais ainda utilizaram como parâmetro o Anteprojeto do Código de Processo Civil que será analisado em seguida no que trata do ônus da prova.

A divergência jurisprudencial pode ser observada nos casos apresentados no próprio voto do Ministro Relator:

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - 2º GRAU DE JURISDIÇÃO - POSSIBILIDADE - CRITÉRIO DE JULGAMENTO. Sendo a inversão do ônus da prova uma regra de julgamento, plenamente possível seja decretada em 2º grau de jurisdição, não implicando esse momento da inversão em cerceamento de defesa para nenhuma das partes, ainda mais ao se atentar para as peculiaridades do caso concreto, em que se faz necessária a inversão do ônus da prova diante da patente hipossuficiência técnica da consumidora que não possui nem mesmo a documentação referente ao contrato de seguro. Agravo regimental improvido.(AgRg nos EDcl no Ag 977.795⁄PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23⁄09⁄2008, DJe 13⁄10⁄2008)

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. REGRA DE JULGAMENTO.- A inversão do ônus da prova, prevista no Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é regra de julgamento. Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução não se compatibiliza com o devido processo legal. (REsp 949000⁄ES, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 27⁄03⁄2008, DJe 23⁄06⁄2008)

Tal tema é de tamanha diferença de entendimentos que em um dos julgados o Relator ressalva a não consubstanciação da inversão do ônus da prova como regra de julgamento com o devido processo legal, apesar do julgamento ter sido pelo primeiro argumento.

Ademais cabe frisar alguns trechos do acórdão aqui da Segunda Seção para sustentar a posição deste artigo frente ao tema:

“Do contrário, permitida a distribuição, ou a inversão, do ônus probatório na sentença e inexistindo, com isto, a necessária certeza processual, haverá o risco do julgamento ser proferido sob uma deficiente e desinteressada instrução probatória, na qual ambas as partes tenham atuado com base na confiança de que sobre elas não recairá o encargo da prova de determinado fato.

De outro lado, o argumento de que a simples previsão legal da inversão ope judicis já seria suficiente para alertar as partes acerca da possibilidade da sua utilização pelo juiz quando da prolação da sentença desconsidera a distinção inicialmente referida, entre inversão ope judicis ope legis.”

Da mesma forma:

E é preocupado com o direito material que entendo não ser cabível a inversão do ônus da prova em sede de sentença. Isso é evidente: se temos um Código que estabelece, de forma expressa, a distribuição do ônus da prova, a parte necessita ser advertida de que, naquele caso, será o referido ônus invertido. Para procedermos de forma diversa, primeiramente, temos que mudar a regra. Só seria permitida essa surpresa, se não existisse regra expressa, distributiva do ônus da prova.

Outras partes são de igual relevância, mas não cabe a total transcrição dos votos aqui, importante é trazer os pontos principais que os Excelentíssimos Ministros abordaram, os quais já foram expostos aqui, em sua maioria, e assim prosseguem com a questão do Anteprojeto do Código de Processo Civil.


8. O projeto do Novo Código de Processo Civil e a inversão dinâmica do ônus da prova.

O projeto de Novo Código de Processo Civil, citado na decisão do STJ, traz novidades no tema ônus da prova. Além da regra geral prevista no Código atual traz um artigo que trata da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. neste diapasão cabe transcrever os dispositivos do projeto que tratam do tema:

“Art. 261. O ônus da prova, ressalvados os poderes do juiz, incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Art. 262. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observado o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la.

§1º. Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no art. 261, deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que lhe foi atribuído.

§2º. A inversão do ônus da prova, determinada expressamente por decisão judicial, não implica alteração das regras referentes aos encargos da respectiva produção.”

Importante grifar para salientar que além de poder distribuir de modo diverso da regra geral, se for necessário, o juiz terá que dar espaço para que haja o contraditório, para que haja o desempenho adequado do ônus incumbido àquela parte.

Este posicionamento do projeto só ressalta ainda mais os moldes que não estavam sendo respeitados em certas decisões no que se refere ao modelo constitucional de processo civil, sejam estes o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal, e acentua a presença do princípio da cooperação no processo, vez que ao decidir abre espaço para o contraditório e oportunidade para exercer adequadamente o encargo anteriormente não previsto.

Este recurso previsto no projeto é extremamente útil ao processo, visto que na regra geral pouco importa ao legislador se não é possível a uma das partes produzir determinada prova, enquanto se utilizada a teoria do ônus dinâmico os processos se tornarão mais justos no que tange a busca da verdade.

Não se trata da quebra com a teoria clássica, mas apenas a adição de um caso de exceção, que se usará em casos pontuais para que de forma colaborativa as partes ajudem na construção do processo. Vale ressaltar que a dinâmica é casuística, por isso cabe o juiz estabelecer em que pontos o ônus não obedecerá a regra geral, e somente irá importar quem tem condições de provar o alegado.

Em relação à teoria no ordenamento atual Fredie Didier Jr. tem o seguinte pensamento:

“O nosso legislador positivou, como já examinado a técnica da inversão do ônus da prova, no artigo 6º, VIII, CDC, em favor do consumidor. Trata-se de nítida aplicação desta teoria – embora restrita às causas de consumo -, afinal confere-se ao juiz o poder de redistribuição do ônus probatório (sua inversão), em vista do preenchimento de pressupostos de aferição circunstancial e casuística (verossimilhança e hipossuficiência). Em síntese, impõe-se ao juiz a decisão pela inversão do onus probandi, sempre que o fornecedor tenha melhores condições que o consumidor de arcar com este encargo.” (p. 97-98 v2)

Humberto Theodoro Júnior tem a ideia ainda de no bojo do atual modelo de processo haver a possibilidade de distribuição do ônus da prova de forma dinâmica ao se utilizar o juiz do artigo 331, §2º do CPC, acreditando numa evolução do processo, conforme segue:

“Fala-se em distribuição dinâmica do ônus probatório, por meio da qual seria, no caso concreto, conforme a evolução do processo, atribuído pelo juiz o encargo de prova à parte que detivesse conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos discutidos na causa, ou, simplesmente, tivesse maior facilidade na sua demonstração. Com isso, a parte encarregada de esclarecer os fatos controvertidos poderia não ser aquela que, em regra, teria de fazê-lo. É necessário, todavia, que os elementos já disponíveis no processo tornem verossímil a versão afirmada por um dos contendores e que o juiz, na fase de saneamento, ao determinar as provas necessárias (art. 331, §2º), defina também a nova responsabilidade pela perspectiva produção.” (p. 488)

Não parece aplicável a teoria de THEODORO JÚNIOR por conta da regra geral do CPC e até mesmo por ser um desvio no processo, todavia indica o caminho que o processo vem tomando em direção à dinâmica do ônus da prova, e que para que este seja realmente estabelecido deve haver a possibilidade de contraditório, como bem demonstra ele ao se referir ao saneamento como o momento adequado para a sua aplicação.

O posicionamento de DIDIER JR., bem como o artigo presente no projeto do novo CPC dão ainda mais força à ideia que deve haver momento hábil para o contraditório quando da decisão pela inversão do ônus da prova, sempre se valendo da ideia que a dinâmica deve ser feita antes do final da fase instrutória para que a parte onerada se desincumba do encargo, dando, desta forma, maior segurança jurídica e direito a prova àquela parte. Ou seja, trata a inversão do ônus da prova no CDC, assim como o ônus dinâmico da prova, como regra de atividade, de procedimento, e não de julgamento, é a questão da cooperação e o novo paradigma do contraditório com a maior participação das partes no processo.


9. CONCLUSÃO

Após a exposição dos temas que englobam a matéria geral, dos pontos em divergência, bem como a análise jurisprudencial do STJ e outros Tribunais em que mostram pontos bastante controversos cabe a última revisão sobre o assunto.

Os princípios constitucionais que moldam o processo devem ser respeitados por todo o ordenamento jurídico, eles irradiam para todas as áreas do direito e assim devem ter força normativa. Conforme demonstrado ao tratar da inversão do ônus da prova se observa que em muitas decisões, em diversos Tribunais, e para muitos doutrinadores não há qualquer desrespeito ao contraditório e ao devido processo legal ao conceber a inversão do ônus como regra de julgamento. Por outro lado, esta visão é estremecida quando se analisa o núcleo destes princípios, assim como a relação que eles têm com outros princípios como o da boa-fé processual e o da cooperação.

No que importe o ordenamento jurídico como um todo não se pode olvidar destes princípios, neste caso não há como afastá-los do processo civil ainda que se entenda que é regra de julgamento, fazer isso torna o processo demais oneroso para uma das partes, que terá sua produção probatória comprometida.

Tenta ser feita a analogia com os demais casos previstos no CDC para inversão da prova, somente se esquece que naqueles a inversão deriva de lei, não criando uma expectativa diversa nas partes, elas já iniciam o processo sabendo de sua condição no aspecto probatório.

Desta forma, cabe ponderar que entender que no caso do artigo 6º, VIII do CDC se aplica a regra de procedimento, e não de julgamento faz com que o ordenamento volte a se afinar. Observe, são respeitados os princípios constitucionais, o contraditório, a ampla defesa, a boa-fé processual, e a cooperação, além de que se preserva o aspecto subjetivo do ônus da prova.

Outro ponto importante é perceber que a decisão do STJ, no caso exposto do REsp 802832/MG vem afirmar os pontos expostos, confirmando o entendimento daquela corte sobre o assunto.

O tema se desenvolve de forma simples até ultrapassadas as questões de definição dos princípios constitucionais. Não se pode onerar demasiadamente qualquer das partes, e seria o caso se no processo se estabelecesse uma nova realidade a cada momento, ainda mais ao final do processo quando não mais tivesse condições de se desincumbir do ônus probatório nem mais teria momento oportuno para influenciar na decisão da mesma forma.

Não se pode encarar o processo como uma caixa de surpresas, em que ao final se modifica a sua rota sem comunicar as partes. O processo deve seguir linearmente. Para conseguir sua linearidade com esse desvio, que é a inversão do ônus da prova ope judicis, as partes devem estar cientes que é desta forma que ele caminhará. O caso em exame, portanto, deve ser decidido pelo juiz e informado as partes antes do início da fase instrutória, como melhor momento, segundo exposto, o saneamento do processo, até pela redação do artigo 331, § 2º CPC, em que se estabelece o momento em que se determinam as provas.

Ademais, na medida em que o direito evolui vê-se que há ainda a distribuição dinâmica do ônus da prova que consta no Anteprojeto do Código de Processo Civil um dispositivo específico para que ele exista no ordenamento pátrio. Este dispositivo admite a inversão desde que haja espaço para o contraditório, o que reforça a tese de regra de procedimento no caso do CDC.

Ao que parece através da uniformização da jurisprudência do STJ os demais Tribunais seguirão no mesmo sentido, o que fará com que surjam mais questões sobre a dinâmica do ônus da prova, vez que aparentemente está perto de ser superada a questão da inversão do ônus da prova segundo o CDC, o que gerará uma série de dúvidas igualmente. No entanto, caso o Novo CPC venha realmente a confirmar os moldes do anteprojeto a resposta para as divergências estará na lei.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SACHINI, Marcel Sampaio. A garantia do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e o momento processual da aplicação da inversão do ônus da prova no CDC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3198, 3 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21419. Acesso em: 17 maio 2024.