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O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri

O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri

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Aqueles sorteados a compor o conselho de sentença, apesar de nossos pares, naquele dado momento representam o Estado, são agentes públicos por designação, e, como qualquer outro agente público, não podem tomar sua decisão tendo por base seus preceitos religiosas.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo expor as formas pelas quais um Estado pode relacionar-se com segmentos religiosos, classificando-as em modelo da Confusão, da União e modelo Separatista, apresentando, ainda, as diferenças entre um Estado Laico (ou Separatista) e um Estado ateu. Ainda, traz as primeiras manifestações Laicas em nosso ordenamento pátrio, e sua atual concepção em nossa Constituição. Também trata do Tribunal do júri, com a composição do seu conselho de sentença, da condição de agente público por designação de seus jurados. Após tal explanação, apresenta o Espiritismo como uma religião, e as cartas psicografadas como verdadeiras manifestações deste segmento religioso, bem como as formas mediúnicas que tais cartas poderão ser escritas. Por fim, questiona a possibilidade de os jurados que compõem o conselho de sentença, em um Tribunal do Júri, se utilizarem de manifestações religiosas para construírem sua convicção, ou seja, para decidirem o futuro de um homem, senão o de uma comunidade, se tal ponto afrontaria o caráter laico do Estado brasileiro. Para tanto, foram utilizados livros nas mais diversas áreas do direito, artigos disponíveis em sites na internet, além de revistas jurídicas.

Palavras-chave: Laicidade. Liberdade religiosa. Tribunal do Júri. Cartas Psicografadas.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 RELAÇÕES ENTRE ESTADO E IGREJA . 2.1 A liberdade de religião como consequência do modelo Laico . 2.2 A cláusula de separação no direito brasileiro . 3 O TRIBUNAL DO JÚRI NO DIREITO BRASILEIRO . 3.1 A Formação do Conselho de Sentença . 3.2 Conselho de Sentença: Agentes Públicos por designação . 3.3 O juramento do Conselho de Sentença. 4 O ESPIRITISMO. 4.1 Cartas Psicografadas. 4.2 As Cartas Psicografadas nos Tribunais do Júri brasileiros. 5 A UTILIZAÇÃO DAS CARTAS PSICOGRAFADAS E A SUA AFRONTA . AO CARÁTER LAICO DA REPÚBLICA BRASILEIRA. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


 1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho não tem o condão de analisar as provas processuais, e, a partir disto, visualizar a possibilidade (ou não) da utilização das cartas psicografadas pela defesa ou acusação no Tribunal do Júri brasileiro, como se vê na grande parte dos trabalhos com tema semelhante, mas sim considerar a utilização de tais sob o prisma da Laicidade do Estado brasileiro, para tanto, este fora dividido em 4 (quatro) capítulos da seguinte forma.

Inicialmente, tem-se uma breve digressão sobre as formas mais conhecidas e tratadas de um Estado relacionar-se com a religião. Assim, conceitua-se o Estado Teocrático (modelo da confusão), o Estado Confessional (modelo da união), o Estado Laico (modelo da separação) e, por fim, o Estado Ateu.

Ainda no capítulo iniciante, dá-se ênfase ao modelo que embasa o tema do trabalho em análise, explicando de forma mais detalhada as características de um Estado cuja forma de se relacionar com as Igrejas se dá pela forma separatista, ou seja, um Estado que adota o modelo Laico, neutro.

Na sequência temos as sutis diferenças entre as liberdades de crença e de culto, onde ambas englobam uma liberdade mais ampla, sendo a liberdade de religião. Ainda, como estas se posicionam diante de um Estado neutro em quesitos religiosos, ou seja, um Estado laico, que adote o modelo separatista.

Após explanar conceituações básicas sobre Estado Laico e Liberdade de religião, o presente mostra a evolução do modelo separatista no Brasil. Trazendo a situação ainda no Governo do Império, bem como o 1º decreto a instituir, no ano de 1890, a separação do Estado brasileiro de qualquer religião, inclusive aquela adotada durante todo o Governo do Império, citando, inclusive, o referido decreto em sua íntegra e escrita da época.

 Na 2ª parte do trabalho apresenta breves considerações sobre o Tribunal do Júri, mostrando seu fundamento em existir, importância, e presença no direito brasileiro. Ao tratar do Tribunal do Júri, temos a formação do conselho de sentença, o juramento feito pelos que compõem tal conselho e, de suma importância, o fato deste ser composto por uma classe de servidores públicos denominados (por alguns autores) como sendo Agentes públicos por designação, o que acarreta para tais cidadãos determinados bônus e ônus inerentes a um servidor público.

Posteriormente, aborda-se a doutrina/religião do espiritismo, trazendo conceituações e posições sobre a mesma, bem como as questões mediúnicas, apontando a questão das cartas psicografadas e as formas pelas quais estas podem ser escritas pelos chamados médiuns escreventes.

Ainda no âmbito das cartas psicografadas, relatam-se os mais conhecidos casos onde foram utilizadas as mencionadas cartas, incluindo o de recente divulgação, ocorrido no ano de 2006 e em trâmite até o presente momento.

Por último, conclui-se o trabalho tratando da afronta ao caráter laico do Estado brasileiro ao utilizar-se de cartas psicografadas no Tribunal do Júri, expondo opiniões que consubstanciam tal posicionamento, assim como posição contrária, procurando (juridicamente) rebatê-la.


2 RELAÇÕES ENTRE IGREJA E ESTADO

Ao longo do tempo, o homem se relaciona com o fenômeno denominado religião, nas mais diversas formas por esta apresentada. Manoel Jorge e Silva Neto afirma (2008, p. 8) “que a origem da religião está presa aos sentimentos humanos de busca da felicidade, temor de calamidades futuras, medo da morte, sede de vingança, a fome e outras necessidades essenciais a existência humana”. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias (2008, p.139) assegura que “o homem tem medo da solidão, do desconhecido, tem medo da morte. Por isso as religiões prometem uma vida extraterrena”. Tais citações refletem o porquê de o homem, durante toda a sua existência, ter se apegado tanto a algo imaterial, não científico, porém sensitivo.

Enquanto que na figura do homem a religião se destaca pelas emoções e sensações que pode provocar, na estrutura estatal, no decorrer dos séculos, pudemos observar 3 (três) formas de o Estado relacionar-se com a aquela. Esta análise pode partir de um modelo Teocrático, do Confessional e o da Separação, sendo este último o adotado pelo Estado brasileiro e por boa parte dos Estados ocidentais.

No modelo Teocrático, há uma confusão entre Estado e religião, onde, pode-se afirmar, aquele é regido pelos dogmas afirmados por esta. São Estados totalitários, onde sua sociedade deverá se portar em conformidade com os ensinamentos da religião por eles adotada. Atualmente, como grandes exemplos e seguidores do referido modelo, temos os Estados Islâmicos, como nos ensina Vecchiatti (2008), além do próprio Vaticano. Esse modelo estatal também é denominado como o modelo da Confusão. Recebe tal denominação, pois “a autoridade estatal se confunde com a autoridade eclesiástica (...) o Estado é o próprio segmento religioso e a religião é o Estado” (SILVA NETO, 2008, p. 36).

O segundo modelo, ainda presente em países ocidentais, como a Argentina, surge com formas mais ou menos radicais. Em suma, o Estado apresenta uma religião oficial, e, por tal motivo, concede a esta religião determinados privilégios, como o fato de receberem apoio político e financeiro (subvenção). O referido modelo também é costumeiramente denominado como o da União.

O último modelo é o que norteia o presente trabalho, sendo o da Separação, ou também chamado por Bastos e Meyer-Plufg (2002, apud GALDINO, 2006, p.70) como “regime de tolerância”, ou ainda, o modelo de Estado Laico.

Um Estado laico é oposto ao Estado Teocrático, de modo que não há confusão entre as questões estatais e a religião, permitindo-se uma ampla liberdade de culto e de crença, cabendo ao Estado atuar de forma negativa, ou seja, deixando ao livre arbítrio do homem escolher qual fé professar, assim como a escolha em não ter fé, e atuar de forma positiva, ao passo que deverá possibilitar meios para que tal liberdade seja efetivada.

Assim,

a separação entre Estado e Igreja nada mais é do que uma garantia fundamental (direito-garantia), voltada especificamente à proteção dos direitos integrantes do conceito de liberdade religiosa, pois a história das sociedades já evidenciou que a associação entre político e religioso, entre os poderes temporal e espiritual, gera o aniquilamento das liberdades e promove intolerância e perseguições.(PINHEIRO, 2008, p.349)

A partir do modelo Laico de Estado, o poder político passa a ser de responsabilidade do povo, que, por conseguinte, legitima o poder para pessoas diversas da figura do monarca, pessoas por ele escolhidas, por tal motivo, Blancarte (2008, p.20) chega a afirmar que “a democracia representativa e a laicidade estão intrinsecamente ligadas”.

Quando da inclusão de uma cláusula de separação em seu ordenamento, o Estado, ao menos na teoria, reconhece ao homem uma de suas liberdades mais almejadas, a de exteriorizar a sua fé, assim como a de internamente cultivá-la:

a separação entre o laico e o sagrado, entre religião e Estado parece servir melhor aos fins do ente político, na medida em que o Estado é para todas as pessoas, instrumento para que a nação politicamente organizada possa buscar o fim de bem-estar de todos, independentemente do credo que professem, enquanto que a religião, ontologicamente, visa o bem estar primeiro dos “da família de fé” (MOTA, ano 2007, p. 197, grifo do autor).

A laicidade de um Estado representa, ainda,

O dever do Estado de promover o bem-estar social e, dentro de uma concepção de Estado Democrático de Direito, assegurar as quatro pilastras que lhe dão sustentação, que são a legalidade, a isonomia (...), a dignidade da pessoa humana (...) e o acesso à justiça. (OLIVEIRA, 2011, p.127)

Um Estado Laico, por sua vez, não se confunde com um Estado ateu. A cláusula de separação torna o Estado neutro quanto aos assuntos religiosos, ou seja, imparcial.

Ao mesmo tempo em que é vedado ao Estado professar determinada religião (como ocorre nos Estados confessionais) ou emitir sinais aptos a serem interpretados como mensagens de preferência por específica crença, também lhe é proibido, por igual, assumir uma postura de hostilidade religiosa e, por isso mesmo, de aberta difusão de uma crença atéia, agnóstica, ou simplesmente anti-religiosa. Pois, se ao Estado impõe-se uma postura de neutralidade e de não-interferência em matéria de religião, então não se pode admitir seja ele utilizado como instrumento de pregação de qualquer postura individual em relação à fé (seja ela de aderência a uma específica religião, sela ela de rejeição a todas as crenças), sob pena de violação, por igual modo, da cláusula de separação. (PINHEIRO, 2008, p. 361)

2. 1 AS LIBERDADES DE CRENÇA E CULTO NO MODELO LAICO

Uma das consequências basilares de um Estado Laico está na ideia de se tomar a fé como algo subjetivo, pertencente ao indivíduo, não cabendo ao Estado interferir em tal questão, tampouco na exteriorização de tal crença, independentemente da forma pela qual esta se exteriorize, seja através de suas liturgias, danças, cultos, adorações, etc.

A questão da liberdade religiosa é tão antiga e há tanto tempo motivo de discussão para o homem, que se pode afirmar que “floresceu a partir das guerras religiosas e solidificou-se na transição do Estado moderno e monárquico para o Estado constitucional e republicano.” (COSTA, 2008, p. 97).

Como consequência, a liberdade passou a ter espaço, quase que obrigatório, na grande maioria dos textos constitucionais.

 Assim, em temos de liberdade religiosa, temos que esta se apresenta como uma máxima, a qual engloba outras duas liberdades. Estas duas são liberdades próximas, porém que apresentam distinções sutis, sendo as liberdades de crença e de culto.

A liberdade de crença consiste na possibilidade do indivíduo em professar a sua fé naquilo que melhor atenda às suas necessidades espirituais. Para possibilitar tal liberdade, “a norma constitucional não impõe à pessoa que espécie de objeto deva ser adorado ou considerado para fins de realização espiritual do crente” (SILVA NETO, 2008, p. 29). Desta feita, o homem tem o direito (a liberdade) de escolher em crer naquilo que mais lhe convenha, convença.

Ainda em termos de liberdade de crença, esta alcança, ainda, aqueles que em nada creem. O direito de não crer também é um exemplo da liberdade de crença do homem.

A liberdade religiosa não se esgota apenas em professar (ou não) alguma fé, havendo, também, a necessidade da prática da religião ou do culto, ou seja, da exteriorização daquela, com a sua devida proteção pelo ordenamento jurídico vigente no Estado. Temos que “o objeto central da liberdade de culto é a proteção do fenômeno do rito, o qual é um dos elementos mais característicos e chamativos do fenômeno religioso.” (HUACO, 2008, p. 75), o qual pode ocorrer de forma individual ou coletiva, através de danças, festividades, reuniões, etc.

2.2 A CLÁUSULA DE SEPARAÇÃO NO ORDENAMENTO PÁTRIO

Como colônia do Estado de Portugal, o Brasil, historicamente, sofreu diversas influências sociais, culturais e jurídicas de seu colonizador, assim notamos quando, por exemplo, da análise da 1ª (primeira) Constituição brasileira, também chamada de Constituição do Império, datada de 1824, onde nosso Estado apresentava um modelo Confessional, adotando como religião oficial do Império, a Católica Apostólica Romana.

O caráter Confessional do Estado brasileiro podia ser notado em diversas disposições ao longo de sua Constituição do Império, a começar pelo seu art. 5º, onde constava

A religião católica, apostólica, romana, continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas, com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo. (GALDINO, 2006, p. 71).

Mediante a leitura do dispositivo citado, percebe-se que a então Constituição possibilitava a liberdade de crença, onde, internamente, cada pessoa poderia professar sua fé, enquanto que a liberdade de culto estava restringida aos lares, não podendo ser expressada em ambientes públicos, tampouco em locais para isso destinados, salvo quando em consonância com a religião do Império, ou seja, a Católica Apostólica Romana.

Com pequenos avanços, como a instituição do Decreto n. 001144, de 11.9.1861, o qual permitia a extensão dos efeitos civis do casamento àqueles que professavam religião diferente da do Estado, o Governo Imperial se manteve até o ano de 1889, quando, através de um golpe de Estado, surge o Governo Provisório, tornando o Brasil uma República, a República Federativa do Brasil.

Passado mais um ano, em 1890, mediante influência de pessoas como Rui Barbosa e Demétrio Ribeiro, foi oficializada a cláusula de separação no Estado brasileiro, o tornando um Estado Laico (GALDINO, 2006), como se vê no decreto n. 119-A, de 1890

Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

 Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto.

 Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico.

 Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas.

 Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto.

 Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes.

 Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario.

Salas sessões do Governo Provisório, 7 de janeiro de 1890, 2ª da República. Manoel Deodoro da Fonseca – Aristides da Silva Lobo – Ruy Barbosa – Benjamin Constant Botelho de Magalhães – Eduardo Wandenholk – M. Ferraz de Campos Salles – Demétrio Nunes Ribeiro – Q. Bocayuva.[1]

O Caráter laico assim se manteve na 1ª Constituição da República, datada de 1891, quando, em seu art. 72, § 7º declarava que “nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência, ou aliança com o Governo da União ou dos Estados” [2]

As demais Constituições brasileiras mantiveram a separação entre o Estado e a Igreja, cada uma ao seu modo. Desta feita, apesar dos avanços e retrocessos políticos vistos ao longo do século XX, o Brasil, manteve a cláusula de Separação em seu ordenamento, como uma garantia constitucional.

Atualmente, a Constituição Federal de 1988 traz em seu contexto dispositivos que asseguram a Laicidade do Brasil, como quando, no seu rol de direitos e garantias fundamentais, no art. 5º, VI garante a inviolabilidade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias. [3]

Como afirmado, no ordenamento pátrio, a liberdade religiosa apresenta-se como um Direito Fundamental, motivo pelo qual são invioláveis, não podendo ser suprimidos da nossa Constituição. Para Agra (2006, p. 101), os direitos fundamentais

“adquiriram um conteúdo de maior relevo, gozando de supremacia e supralegalidade. Passaram a existir além da lei por força da Constituição. (..) Todo o exposto pode ser traduzido pela eficácia imediata e obrigatória dos princípios fundamentais”

Apesar de o art. 5º já evidenciar o direito assegurado constitucionalmente da liberdade de religião, a cláusula de separação, na atual Carta Maior, se exterioriza através do art. 19, inciso I, pois impõe às pessoas de direito público interno condutas negativas. Vejamos:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

[...]

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. (BRASIL, 1988).

Desta maneira,

o Estado brasileiro não pode instituir cultos ou igrejas, ministrar-lhes rendas de qualquer natureza, obstar de qualquer modo o funcionamento, ou manter com cultos, igrejas e seus representantes relação de dependência e aliança que não a de colaboração de interesse público. (MOTA, ano 2007, p. 198)

Da compreensão desse dispositivo, temos o conceito de Laicidade, ao passo que é vedado ao Brasil manter relações de dependência, o que afasta uma possível confusão entre Estado e Igreja, relações de aliança, incluindo o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas (em sentido amplo) e a subvenção de tais, ilidindo um Estado confessional.

Apesar de ser um Estado Laico, neutro, o Brasil não desconsidera uma parceria com Igrejas, mais uma vez no sentido amplo da palavra, desde que, para tanto, esteja evidenciado o interesse público, afinal o fim primordial de qualquer Estado democrático está em assegurar a supremacia do interesse público sobre o privado.


3 O TRIBUNAL DO JÚRI NO DIREITO BRASILEIRO

O também denominado Tribunal Popular tem sua origem discutida, contudo, a grande parte dos doutrinadores sobre o tema, afirma que o seu marco inicial foi a Magna Carta da Inglaterra, em 1215.

O Tribunal do Júri tem como fundamento a necessidade de que, para determinados delitos, o acusado seja julgado por pessoas populares, assim como ele. Nas palavras de Távora e Alencar (2010, p. 745):

A idéia do Tribunal popular é a de que os casos importantes sejam julgados por pessoas que formam a comunidade a qual pertence o acusado, tal como o acusado seja parte desta, vale dizer, a noção que se tem do júri popular é a de que o julgamento se dê pelos pares do réu.

 Em nosso País, inicialmente, surgiu pela primeira vez ainda no ano de 1822, no Brasil Império, tendo por fim julgar os crimes de imprensa. Para tanto, seguindo a linha de raciocínio de sua origem, era composto por 24 juízes de fato, que refletiam a imagem de cidadãos bons, honrados, patriotas e inteligentes. (GALVÃO, 2011, p. 126). Em âmbito constitucional, entretanto, apareceu pela primeira vez na chamada Constituição do Império, datada de 1824.

O Tribunal do Júri foi mantido, desta vez como garantia individual, pela Constituição da República, em 1891. Com exceção à Constituição outorgada no ano de 1937, marcada pelo início da ditadura no Brasil, todas as demais Cartas Magnas brasileiras instituíram a figura do Tribunal do Júri. (GALVÃO, 2011, p. 126).

Atualmente, a nossa Constituição Federal promulgada, de 1988, “reconhece o júri como garantia constitucional, assegurando a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII)” (MENDES;BRANCO, 2011, p. 531).

Tamanha importância dada pelo legislador constituinte ao Tribunal popular, que este foi elevado à condição de Cláusula Pétrea, não sendo possível a sua extinção por uma nova norma constitucional, podendo ter, entretanto, sua competência ampliada por lei. Trata-se de uma garantia individual.

O Tribunal popular é norteado por 4 (quatro) princípios, os quais constam do próprio texto constitucional, quando da exposição dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, em seu art. 5º, inc. XXXVIII, sendo estes: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. [4]

Dentre os princípios apresentados, questiona-se o quão abrangeria a plenitude de defesa, ou o que poderia vir a ser utilizado pela defesa, seja técnica ou mesmo a autodefesa, perante o conselho de sentença.

A defesa técnica cabe ao profissional do direito, devidamente habilitado, podendo este valer-se “não só da utilização de argumentos técnicos, mas também de natureza sentimental, social e até mesmo de política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados” (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p. 746) de sua tese.

A partir da análise das provas apresentadas durante a sessão do Júri, os jurados formarão os seus convencimentos, e votarão conforme tais. Diferentemente dos Juízes togados, os jurados não precisam motivar a razão de seus convencimentos, o que não afasta sua condição de imparcialidade, uma vez tratar-se, como se verá a seguir, de um servidor público, ainda que em colaboração com a Administração Pública.

3. 1 A FORMAÇÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA

Como afirmado anteriormente, a grande motivação do instituto do Tribunal do Júri está no fato do acusado ser julgado por seus pares, os quais compõem o conselho de sentença.

Este conselho é composto por “cidadãos maiores de 18 anos de notória idoneidade”[5]. Ou seja, com exceção daqueles que em razão do exercício de cargo, função pública, mandato eletivo ou por situações particulares justificáveis (escusa de consciência) estão isentas da prestação do serviço do júri, todos estão obrigados, desde que convocados, a prestar o serviço do júri, e, uma vez sorteados, a compor o conselho de sentença.

O conselho de sentença será formado por 7(sete) jurados, os quais serão sorteados nome por nome pelo Presidente do Tribunal do Júri, sendo este último um juiz togado, podendo haver a recusa injustificada de até 3(três) pessoas, seja pela defesa, seja pela acusação. A decisão (veredicto) se dará pela maioria dos votos.

Uma vez compondo o conselho de sentença, o cidadão estará exercendo serviço público relevante, como se verá a seguir.

Desta feita, ao ser composto por pessoas comuns, do povo, o tribunal popular trata-se “de uma instituição democrática” (ACQUAVIVA, 2006, p. 153).

3. 2 CONSELHO DE SENTENÇA: AGENTES PÚBLICOS POR DESIGNAÇÃO

O Estado atua por meio de seus servidores públicos. Através destes, seja de forma remunerada ou não, o Estado irá realizar suas atividades, de modo que os atos daqueles vincularão este, visando, sempre, a prevalência do interesse público sobre o interesse privado.

Para Di Pietro (2010, p.510, grifo da autora)

“servidor público” é a expressão empregada ora em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, ora em sentido menos amplo, que exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado.

Tais servidores poderão ter ou não vínculo com a Administração Pública, daí surgem os particulares em colaboração com o Poder Público, os quais poderão vir a receber remuneração.

 Nesta categoria, temos aqueles que atuam mediante delegação do Poder Público, os que são meros gestores de negócios, ou aqueles que agem mediante requisição, nomeação ou designação.

Estes últimos servidores são designados para o exercício de funções públicas relevantes, não possuindo vínculo empregatício, e, de um modo geral, não recebem remuneração. Cite-se como exemplo os jurados, no Tribunal do Júri. (DI PIETRO, 2010, p.518).

Enquanto investido na função de jurado, o particular será considerado servidor públicos, sendo dotado de suas prerrogativas, bem como sendo responsabilizado administrativamente, civilmente e criminalmente por seus atos, na mesma forma em que são os juízes togados.

Porquanto, o conselho de sentença, formado por servidores públicos, deverá ser guiado, dentre outros, pelos princípios que norteiam os demais servidores da Administração Pública, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

3.3 O JURAMENTO DO CONSELHO DE SENTENÇA

Quando da composição do conselho de sentença, o Juiz-presidente irá proferir a seguinte exortação: “Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.” (GALVÃO, 2011.p. 128), devendo todos os jurados, levantados, responder que assim o prometem.

Diante do juramento a ser prestado pelo conselho de sentença, surgem as indagações sobre as expressões “imparcialidade”, “vossa consciência” e os “ditames da justiça”. Afinal, quais seriam os limites para cada expressão citada?

Primeiramente, o conceito de imparcialidade extraído do dicionário Melhoramentos – minidicionário da língua portuguesa (2000, p. 270) nos diz que ser imparcial é ser “justo. Que julga sem paixão”. No mesmo sentido, para Campos (apud GALVÃO, 2011, p. 130)

Examinar com imparcialidade: isto é, de forma isenta de preconceitos, paixões, de mente aberta para as provas a serem apresentadas e para os argumentos das partes.

Percebe-se que ao julgar as provas, defesas e acusações apresentadas, o corpo de jurados deve abster-se de qualquer pré-julgamento, bem como de manifestar-se conforme sua religião, uma vez que seu posicionamento deve ser dotado de neutralidade, ou seja, imparcialidade, não podendo permitir que posições pré-definidas influenciem na absolvição ou condenação do acusado.

Já a expressão “vossa consciência” reflete “a percepção íntima do que se passa em nós” (CAMPOS apud GALVÃO, 2011, p. 130), no caso, a percepção que se passa nos jurados, enquanto que agir conforme os ditames da justiça, requer dos jurados um posicionamentos em coerência com aquele adotado pela sociedade a que pertence.

Assim os jurados deverão utilizar-se das 3 expressões acima narradas de forma harmoniosa, onde uma não poderá se sobrepor a outra, como o fato de que a “vossa consciência” dos jurados não poderá ilidir a “imparcialidade”, tampouco os “ditames da justiça”.


4 O ESPIRITISMO

As questões espirituais são motivos de indagação da sociedade muito antes do que se possa imaginar. Relatos mostram exibições mediúnicas no Antigo Egito, quando do processo de mumificação dos mortos, o qual se justificava pelo fatos de que os antigos egípcios acreditavam em vida pós a morte. (LACERDA FILHO, apud GALVÃO, 2011, p. 20).

Somente no ano de 1857, a partir da codificação de perguntas e respostas pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que ficou conhecido mundialmente pelo seu pseudônimo, Allan Kardec, a qual resultou no Livro dos Espíritos, a doutrina espírita tomou força. Devido ao sucesso do citado livro e suas posteriores edições, Allan Kardec divulgou o Espiritismo pela França e por todo o mundo.

Para o Kardec

O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário, poderia deixar de existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita. Há no homem três coisas: 1º, o corpo ou ser material, análogo aos animais e animados pelo mesmo princípio vital; 2º, a alma 74 ou ser imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3º, o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. A alma é um espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu invólucro. Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro, material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade. (1944, p. 23 e 24)

No Brasil, no ano de 1865, em pleno Governo Imperial, na cidade de Salvador, foi criado o primeiro centro espírita brasileiro. Quase duas décadas depois, “como uma forma de se proceder pela unificação do movimento espírita, até então dissidente, foi criado em 02 de janeiro de 1884 no Rio de Janeiro a FEB- Federação Espírita brasileira” (GALVÃO, 2011, p. 35).

Conforme censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no ano de 2000, o Espiritismo já era citado por grande parte da população brasileira como sendo sua religião, alcançando a terceira colocação no Censo Religioso, confirmando, ainda mais, a pluralidade religiosa no Brasil há 12 anos.[6]

Ainda tratando do Brasil, pode-se atribuir ao Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, a grande popularidade da doutrina Espírita.

O Espiritismo explica, também, os fenômenos de mediunidade, os classificando de diversas formas, o qual irá variar conforme o dom percebido pelo médium, dentre tais os “Médiuns escreventes”. Para Galvão (2011, p. 45) “este é o dom mais frequente de mediunidade, obtido por forma de psicografia (...) nesta modalidade, há a imperiosa necessidade da intervenção do médium.”

4.1 CARTAS PSICOGRAFADAS

As cartas psicografadas podem ser vistas de duas formas, seja como um fenômeno psíquico, bem como uma forma de comunicação das pessoas já falecidas, com o mundo dos vivos, por intermédio de uma pessoa viva. Apesar de ser utilizada por várias crenças, tornou-se mais popular através do espiritismo

A carta psicografada é uma prática da Religião Espírita, onde o médium, pessoa que segunda o espiritismo comunica-se com os espíritos dos mortos, recebe mensagens vinda do além, do pós-morte, de onde o espírito envia através do médium mensagens ao mundo dos viventes, familiares ou amigos escrevendo cartas e livros. (FERREIRA, 2010, p. 13)

Existem três formas de se psicografar uma carta, sendo o modelo consciente, o semi-mecânico e o mecânico.

As três formas se divergem conforme a consciência do interlocutor, ou seja, da pessoa que recebe a mensagem do morto. Deste modo, no modelo consciente, o médium tem consciência do que escreve, podendo, inclusive, influir naquilo que transmite ao papel, mesmo que atribua a autoria das cartas aos mortos; no modelo semi-mecânico, o médium tem consciência do que escreve, mas não pode modificar o conteúdo do que escreve; já a psicografia na forma mecânica é aquela em que o médium não tem qualquer controle sobre o que escreve, pois o espírito é quem comanda o braço e a mente daquele.[7]

Conforme ensina Pittelli (2010, p. 76), a caligrafia dos médiuns que escrevem mediante as formas semi-mecânica e mecânica podem variar conforme o espírito, chegando a se repetir quando o mesmo espírito se comunica mais de uma vez.

Em âmbito brasileiro, o mais popularmente conhecido médium escrevente é o Chico Xavier, o qual psicografou mais de 17 mil obras, e, teve algumas de suas cartas psicografadas utilizadas como meio de defesa nos Tribunais do Júri brasileiros[8] e inspiração para obras cinematográficas.

4. 2 AS CARTAS PSICOGRAFADAS NOS TRIBUNAIS DO JÚRI BRASILEIROS

As cartas psicografadas, na história jurídica do nosso País, foram utilizadas em diversos Tribunais desde o ano de 1944, no Tribunal do Júri, podemos citar 4 casos emblemáticos, e que geraram grande repercussão nacional.

O primeiro caso relatado se deu no ano de 1976, no Estado de Goiás, onde o réu José Divino Nunes fora absolvido pelo Tribunal do Júri, por seis votos a um.

No segundo caso, ocorrido em 1982 no Estado do Mato Grosso do Sul, o réu, o Sr. João Francisco M. de Deus, tendo sido o réu absolvido por unanimidade dos votos. (PITTELLI, 2010, p. 82)

O terceiro caso ocorreu no Estado do Paraná, no ano de 1982, desta vez, o réu Aparecido Andrade Branco foi condenado pelo Tribunal do Júri, por cinco votos a dois.

Ainda na década de 80, mais precisamente no ano de 1985, cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier foram decisivas para inocentar, perante o conselho de sentença, o réu João Francisco de Deus, acusada de matar a sua mulher. (FERREIRA, 2010, p. 16)

O caso mais recente da utilização de cartas psicografadas pelo Tribunal do Júri se deu em 2006. Em um breve relato do caso citado, na cidade de Viamão, Rio Grande do Sul, a Sra. Iara Marques Barcelos, de 63 anos, fora acusada de ser a mandante do crime de homicídio do seu amante, o “de cujus” Ercy da Silva Cardoso. Iara teria contratado Leandro Rocha Almeida, caseiro do falecido, para executar o crime. O advogado da Iara juntou em sua defesa 2 cartas psicografadas pelo médium José Santa Maria. Com a ajuda destas, conseguiu a absolvição pelo Conselho de sentença da ré por cinco votos a dois. (FERREIRA, 2010, p. 16).

O caso em tela chegou ao TJ/RS, onde, em novembro de 2011, se manteve a decisão que absolveu a Iara, por não considerar que a decisão do Conselho de sentença tenha sido contrária às provas nos autos. Nas palavras do José Antônio Hirt Preiss: “a religião fica fora dessa sala de julgamento que é realizado segundo as leis brasileiras”. [9]


5 A UTILIZAÇÃO DAS CARTAS PSICOGRAFADAS E A SUA AFRONTA AO CARÁTER LAICO DA REPÚBLICA BRASILEIRA

Como visto no decorrer do presente trabalho, as cartas psicografadas representam a exteriorização de um ato de fé, o verdadeiro resultado da comunicação do mundo dos vivos, com o mundo dos mortos. Sendo quase que impossível desvincular a figura destas, da imagem do Espiritismo.

para que se dê alguma validade a um documento psicografado, é preciso, evidentemente, aceitar que um espírito encarnou em uma pessoa e que, portanto, foi este espírito que redigiu o referido documento. Considerando a absoluta ausência de provas científicas de que se trata de um espírito o redator do documento, somente a pura fé religiosa pode atribuir validade ao documento psicografado. (VECHIATTI, 2008).

De certo é que cabe ao Estado brasileiro assegurar a liberdade de religião de todas as pessoas, seja no seu foro íntimo, seja enquanto exteriorizada, entretanto, o conselho de sentença, formado por nossos pares, no momento em que é composto, tem o condão de transformar aqueles cidadãos, ainda que temporariamente, em servidores públicos por designação, atribuindo a estes determinando bônus e ônus, dentre estes os de respeitar os princípios da Administração Pública.

Uma possível utilização pelo conselho de sentença de cartas psicografadas para seu convencimento denota uma afronta ao caráter laico do Estado brasileiro, uma vez que tal medida “implica em inequívoca relação de aliança do Estado com a fé espírita e/ou toda outra que aceite eventualmente dito documento” (VECHIATTI, 2008).

A proibição do uso de tais cartas visa proteger outros princípios que vão além do princípio da laicidade estatal, como o princípio da isonomia, como forma de se evitar a atribuição de determinado privilégio a uma crença religiosa em detrimento das demais, principalmente no caso dos Tribunais do Júri, em que o corpo de jurados não têm a obrigação de motivar os seus votos, o que permite que

Em uma determinada sessão de julgamento pelo rito do Tribunal do Júri, ao ser utilizada a prova psicografada, um jurado possa, conforme sua consciência e os ditames próprios de justiça, absolver o réu justamente pelo simples fato da carta psicografada informar que não se tratou de crime e sim de um acidente. Ou então, outro jurado pode de plano entender pela condenação, visto que não acredita em “vida após a morte”. Da mesma forma como outro jurado pode querer analisar tal psicografia com todas as outras provas constantes dos autos, incluindo, o depoimento do médium que a escreveu, por exemplo. (GALVÃO, 2011, p. 132, grifo do autor.)

A partir do momento em que o Estado, naquela situação representado pela figura do conselho de sentença, admite uma carta psicografada como um meio de inocentar ou condenar alguém, desrespeita a própria liberdade religiosa, pois esta “tem relação com o direito do indivíduo e não com a Administração Pública, devendo esta apenas, respeitar e garantir a contemplação deste direito fundamental” (FERREIRA, 2010, p. 95), “afinal, numa República (res publica) o Estado não se confunde com as pessoas físicas que exercem o poder em seu nome” (SARMENTO, 2008, p. 197).

Como tudo no Direito, posições opostas a anteriormente explicitada se mostram presentes na doutrina pátria e, inclusive, no Congresso nacional.

Ao tratar sobre o tema, quando da análise do projeto de Lei nº 1.075, o qual tem por objetivo vedar o uso de cartas psicografadas como meio de prova no âmbito do processo penal, o deputado Marcelo Itagiba afasta a afronta ao caráter laico do Brasil, ao afirmar que

O resultado da aprovação da proposta será, pois, tirar o regime jurídico posto da condição laica em que está, para, com ela, colocar o Estado brasileiro em oposição expressa a uma crença religiosa. A atitude laica, vale dizer, pelo contrário da via que visa a proposta, “impele os indivíduos a seguirem os ditames da sua consciência (quer no caso em que se acredite que seja divinamente inspirada, quer pela razão, intuição, estética ou qualquer outro processo pessoal), em vez de seguir cegamente as regras, hierarquias e autoridades morais e eclesiásticas de uma dada religião organizada (GALVÃO, 2011, p. 97, grifo ao autor).

Ao contrário do que se possa imaginar, a proibição da utilização das cartas psicografadas com fundamento na “cláusula de separação” existente no Brasil desde o ano de 1890, representaria um avanço no quesito liberdade religiosa, e não um retrocesso, uma afronta.

É com base nessa liberdade que o indivíduo não pode ser submetido a uma crença ou descrença, tampouco uma sociedade e um réu, em um processo no Tribunal do Júri, ficar submetidos a possibilidade ou não de ter o seu julgamento composto por pessoas, representantes do Estado, que professem religião que creia na veracidade de cartas psicografadas, para ter o seu futuro e de outras famílias, definidos.

A atuação do Estado deve ser imune a atuações religiosas.

Nas palavras de Greenawalt (2011, p. 21)

Qualquer que seja a exata mistura do racional, não racional e do irracional nas interpretações religiosas, nenhuma perspectiva é compartilhada por todos os cidadãos, nenhuma perspectiva se baseia em métodos de justificativa e determinação de fatos que seriam acessíveis da forma necessária. Até certo ponto, a crença religiosa depende da fé, da experiência pessoal e da tradição característica; e as perspectivas religiosas podem enriquecer nossa compreensão cultural. Mas ao menos quando os cidadãos são coagidos, o Estado age injustificadamente, exceto se ele dispuser de razões que tenham poder sobre todos os outros cidadãos. As motivações religiosas não se encaixam nessa categoria. Elas não pertencem à democracia política. (...) Ninguém tem a intenção de que as pessoas sejam totalmente não influenciadas pelas interpretações religiosas. Qualquer pretensão nesse sentido seria absurdamente ingênua. O que se afirma é que as pessoas devem discutir questões políticas em público sem se basear em premissas religiosas e devem tentar tomar decisões de acordo com isso.

Como bem lembrado por FERREIRA (2010, p 96) “a idéia de liberdade religiosa não é para o Estado influenciar ou deixar ser influenciado por crenças religiosas”, mas uma forma de permitir que seus cidadãos possam crer ou não crer em qualquer religião, bem como a possibilidade da exteriorização de tal crença, sem que, para tanto, o Estado se deixe interferir por tais, o que alcança os jurados que compõem o conselho de sentença, verdadeiros espelhos do Estado.

Deste feita,

sendo a função jurisdicional, eminentemente estatal e pública, regida pelos princípios instituidores de um estado democrático de direito, qualquer manifestação de crença religiosa que venha a influenciar nesta função deve ser repudiada.(FERREIRA, 2010, p. 96)

Repudiada e proibida, como uma forma, sim, de manutenção da democracia estatal, dos princípios da laicidade e da isonomia, uma vez que não haveria privilégios de uma religião sobre determinada outra, e, sobretudo, a proteção às liberdades de crença e culta, por tanto tempo almejadas pelo homem.

 


6 CONCLUSÃO

Quando dá leitura deste trabalho de conclusão de curso, percebe-se a importância de um País, uma nação, manter as questões estatais em um lado, e as questões religiosas no lado oposto. A própria história do homem se encarrega em evidenciar tal necessidade.

O povo brasileiro era carecedor de tal condição e sentia isso, de modo que ao tomar o governo dos nossos colonizadores, logo trataram de instituir o Decreto nº 119-A, no ano de 1890, cujo intuito era o de oficializar a separação do Estado brasileiro de qualquer instituição religiosa, possibilitando uma maior liberdade religiosa, uma vez que quando do Governo do Império a liberdade de crença se mostrava limitada àqueles que professavam a religião Católica Apostólica Romana, a religião oficial do Brasil.

Assim como a “cláusula separatista” ganhou relevância constitucional, paralelamente, nossa Constituição também trouxe o Tribunal do Júri, onde os acusados seriam julgados por seus pares.

Apesar do julgamento no Tribunal do Júri ser feito pelos pares do acusado, os quais compõem o conselho de sentença, há de se recordar que, naquele momento, enquanto jurados, são considerados agentes públicos por designação, e por tal motivo, estão sujeitos a determinados ônus inerentes ao servidor público, como o de submeter-se aos princípios que regem a Administração Pública, bem como deverão, com equilíbrio, obedecer ao juramento realizado, utilizando-se, dentre outros aspectos, da imparcialidade.

Com a popularidade de uma nova religião, o espiritismo, e suas cartas psicografadas, estas chegaram ao respeitado Tribunal do Júri, onde a votação pelo conselho de sentença se da de forma imotivada, com simples “sim” ou “não”, influenciando os jurados, ao ponto de condenar ou absolver réus.

De certo é que a utilização das cartas psicografadas no âmbito do Júri, seja pela defesa ou pela acusação, representa verdadeiro retrocesso em uma liberdade há muito deseja e há pouco mais de um século conquistada.

Ao se permitir que tais cartas, as quais, como se viu no decorrer do texto, podem ser escritas com total interferência do médium escrevente, modifiquem a vida do acusado e de uma sociedade, temos uma limitação na liberdade religiosa, pois, frise-se aqueles sorteados a compor o conselho de sentença, apesar de nossos pares, naquele dado momento representam o Estado, são agentes públicos por designação, e, como qualquer outro agente público, não podem tomar sua decisão tendo por base seus preceitos religiosas.

 Desta maneira, com base em princípios basilares, como o da isonomia, imparcialidade, do estado laico, não se pode permitir que a sociedade fique à mercê da convicção religiosa do jurado. Isso sim representaria uma afronta do princípio da laicidade estatal e da liberdade religiosa dos cidadãos.


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Notas

[1]Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[2]Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[4] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[5] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em 24 de fevereiro de 2012.

[6] Disponível em http://www.cacp.org.br/censo%20religioso.htm. Acesso em 08 de março de 2012.

[7] Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Psicografia. Acesso no dia 05 de março de 2012.

[8] Disponível em http://www.100anoschicoxavier.com.br/biografia-de-chico-xavier. Acesso no dia 06 de março de 2012.

[9] Disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17, MI97055, 11049-TJ+RS+Mantida+a+absolvicao+de+acusada+que+apresentou+carta. Acesso em 06 de março de 2012.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALADO, Maria Amélia Giovannini. O caráter laico do Estado brasileiro e as cartas psicografadas no tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3309, 23 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22273. Acesso em: 19 abr. 2024.