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Decisões penais congruentes: a aplicação constitucional do emendatio libelli

Decisões penais congruentes: a aplicação constitucional do emendatio libelli

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À luz do princípio acusatório, o juiz ao decidir pela modificação da classificação jurídica no caso concreto, deve respeitar os limites constitucionais, sendo eles essencialmente o contraditório, a ampla defesa e a paridade de armas, pilares bases estes do Estado democrático de direito.

Resumo:  O presente artigo pretende analisar a congruência das decisões penais (correlação entre acusação e sentença) na aplicação do Emendatio Libelli, estabelecendo-se parâmetros, a partir de uma reformulação axiomática constitucional do instituto. Para tanto, abordar-se-ão os sistemas processuais inquisitório e acusatório, bem como a divergência acerca da existência de um sistema misto no Brasil, examinando-se criticamente a relação destes sistemas com a modificação jurídica do fato fixada pelo juiz na sentença penal.

Palavras-chave: Decisões congruentes. Emendatio Libelli. Sistema inquisitório e acusatório. Reformulação axiomática constitucional.


1.Introdução

Na aplicação do Emendatio Libelli, o julgador de forma simplista, amparado pelos axiomas Narra Mihi Factum, Dabo Tibi Ius e Iura novit Curia, altera a classificação jurídica do fato.

Todavia, visível é a complexidade que envolve a matéria em estudo, pela manifesta violação a princípios constitucionais na alteração da classificação jurídica dada à peça acusatória.

Nesse contexto, faz-se mister um estudo aprofundado da matéria, a partir do princípio da congruência, bem como os sistemas inquisitivo e acusatório, objetivando conhecer sua relação com a classificação estabelecida na acusação com a decisão proferida pelo julgador, através de uma reformulação axiomática do Emendatio Libelli, à luz da Constituição.

 


2. Complexidade (invisível) na aplicação do Emendatio Libelli.

O Emendatio Libelli tem previsão legal no artigo 383 do Código de Processo Penal Brasileiro, conforme dispõe:

Art. 383.  O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1o  Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2o  Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Inicialmente, faz-se uma distinção entre o presente instituto e o Mutatio Libelli, previsto no artigo 384 do Código de Processo Penal. Para sua aplicação, não há necessidade de que um novo fato venha a ser configurado na sentença [1]. O magistrado, ao prolatar sua decisão, identifica que os fatos narrados na exordial acusatória, com relação à descrição jurídica do fato pelo parquet ou querelante, são incompatíveis com as características da conduta. Não há adequação do fato à norma, ou seja, tipicidade [2] com relação à classificação jurídica dada, pois parte-se do pressuposto que o representante do parquet ou do querelante equivocou-se no momento de classificar o tipo penal, ou mesmo desprezou algumas condutas típicas.

Nessa nova classificação, a correta adequação do fato ao tipo penal nada traria de prejuízo ao réu no procedimento instrutório, utilizando-se do mesmo processo para o exercício do jus puniendi.

Nesse diapasão, a maior parte da doutrina entende que o julgador é responsável pela descrição correta da conduta ao fato típico no momento de proferir sua decisão, e que o singelo equívoco ou deszelo pelo representante do Ministério Público ou do querelante não tem o condão, por si só, de obrigar o juiz a decidir, sendo adstrito à peça acusatória. O juiz é conhecedor da lei (Ius novit Curia), bastando que conheça os fatos para que aplique o direito no caso concreto (Narra Mihi Factum, Dabo Tibi Ius). Consonantemente entende a jurisprudência [3].

Todavia, tais postulados devem ser rompidos, tratando-se de um insuportável reducionismo [4], conforme assevera LOPES JR:

Infelizmente, o senso comum teórico segue afirmando que o réu se defende dos fatos, de modo que a emendatio libelli seria uma mera correção na tipificação, que o juiz poderia fazer nos termos do art. 383 sem qualquer outra preocupação. Em parte da doutrina nacional, infelizmente, é comum encontrarmos afirmações assim: “no processo penal, o réu se defende de fatos, sendo irrelevante a classificação jurídica constante na denúncia ou queixa. (...) Trata-se de aplicação pura do brocardo jura novit cúria, pois, se o juiz conhece o direito, basta narrar-lhe os fatos (narra mihi factum dabo tibi ius)”. Tal postura, peca por reducionismo da complexidade, ainda atrelada a uma concepção simplista do processo penal, incompatível com seu nível de evolução e dos cânones constitucionais contemporâneos [5].

Antes de adentrar especificamente ao tema, é imprescindível que se faça uma análise dos sistemas processuais acusatório e inquisitório, bem como questionamentos acerca da existência de um sistema misto no Brasil, a fim de relacioná-los com o objeto ora estudado.


3. Sistemas Processuais Acusatório e Inquisitório. Processo penal brasileiro: um sistema misto?

Analisando de forma sintética o presente instituto, o sistema inquisitório possui como característica principal a ausência de garantias. As funções de julgar, defender e acusar pertencem exclusivamente ao juiz-inquisidor, que busca a verdade real. Tal verdade aqui tratada, é uma utopia, conforme sustenta FERRAJOLI: “Si una justicia penal completamente «con verdad» constituye una utopía, una justicia penal completamente «sin verdad» equivale a un sistema de arbitrariedad.” [6]

 Já o sistema acusatório, as tarefas de defender, julgar e acusar são repartidas, tendo o magistrado mera função de espectador. LEONE, citado por PRADO, afirma que este sistema possui como característica o poder de decisão da causa entregue a um órgão estatal, distinto daquele que dispõe do poder exclusivo de iniciativa do processo. Ainda sustenta que:

(...) deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a persecução penal, que esse desenvolverá conforme os princípios do contraditório, com paridade de armas, oralidade e publicidade. [7]

Luigi Ferrajoli, com clareza distingue os sistemas processuais inquisitório e acusatório, em sua essência:

(...) Pues, en efecto, mientras al sistema acusatorio le corresponde un juez espectador dedicado sobre todo a la objetiva e imparcial valoración de los hechos y, por ello, más sabio que experto, el rito inquisitivo exige sin embargo un juez actor, representante del interés punitivo y, por ello, leguleyo, versado en el procedimiento y dotado de capacidad de investigación. [8]

Conforme o autor, no procedimento inquisitório o juiz é ator, participa do procedimento e investigação, enquanto que no acusatório, o juiz é mero espectador.

3.1 Processo Penal no Brasil: um sistema misto?

Partindo das breves considerações tecidas, emerge notável problemática acerca da possível identificação sistêmica do processo penal no Brasil. Alguns ainda afirmam a adoção de um sistema acusatório no Código de Processo penal, a partir de uma construção hermenêutica constitucional, que toma por base a separação entre as atividades de investigação (polícia civil), acusação (Ministério Público), julgamento (juiz) e defesa (advogado ou defensor público), principalmente após modificações inseridas pela promulgação da Constituição Federal de 1988, onde foram introduzidas inúmeras garantias, como a da tutela jurisdicional, do devido processo legal, acesso à justiça, juiz natural, tratamento paritário das partes, ampla defesa, publicidade dos atos processuais, motivação dos atos decisórios, e presunção de inocência [9].

Todavia, embora parte (minoritária) [10] da doutrina ainda sustente que o código de processo penal vigente tenha adotado o sistema acusatório, outra parte (maioria) o considera um sistema misto.

Misto, para essa corrente, seria o sistema que combinaria elementos dos modelos acusatório e inquisitório. Para tanto, haveria uma fase preliminar de acusação em que essencialmente a ampla defesa e o contraditório seriam restringidos. Posteriormente, passar-se-ia à fase de acusação, em que essas garantias seriam respeitadas. Nesse contexto, leciona PRADO:

 (...) Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade no processo, pelo menos como regra para as infrações penais de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer, ao sistema acusatório. Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica que entrelaça todos estes sujeitos, de acordo com as posições predominantes nos tribunais (principalmente, mas não com exclusividade o Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo admitir, lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência acusatória. Muitos dos princípios opostos ao acusatório verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, o que melhor implica em considera-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal em um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade. [11]

Contudo, no processo penal brasileiro é inconcebível tal classificação que sustente a existência de um sistema misto. Com um inquérito policial inquisitivo por excelência e um procedimento instrutório que o julgador participa ativamente da gestão probatória, impõe medidas acautelatórias a todo instante e participa da fase pré-processual, o sistema misto nada mais é do que uma falácia. [12]

Sobre o tema, COUTINHO leciona que, no Brasil, o sistema acusatório somente é tomado enquanto discurso,

(...) porque não há, por definição, um sistema com tal natureza, de modo a dizer misto, aqui, é o reconhecer como um sistema inquisitório que foi recheado com elementos da estrutura do sistema acusatório (por ex: exigência de processo devido, de contraditório, de parte, etc.), o que lhe não retira o cariz inquisitório. [13]

Aury Lopes Jr classifica o sistema adotado pelo Código de Processo Penal vigente como (neo) inquisitório. [14]

Incompreensível é a subsistência de um sistema ainda amparado pelos princípios inquisitoriais. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, pautada por um Estado democrático de direito, em que as garantias da ampla defesa e do contraditório fazem parte de seu alicerce primário, o modelo processual que de melhor forma os consagra é o acusatório. [15]

Para o modelo garantista, FERRAJOLI assegura que o sistema acusatório é o que proporciona maior efetivação de seus ideais. [16]


4. Princípio da Congruência: acusação e sentença no processo penal. Aplicação do Emendatio Libelli à luz da Constituição Federal.

Tomando por base os apontamentos tecidos sobre o modelo acusatório, passa-se a analisar tal relação com o Princípio da Congruência, com o objetivo central de reavaliar os limites do julgador no momento de proferir uma decisão, quanto à modificação do tipo penal descrito previamente na peça acusatória, inserido em um contexto de Estado democrático de direito, pautado essencialmente pelos princípios do contraditório e da ampla defesa.

4.1 Princípio da Congruência.

Entende-se por princípio da congruência (ou correlação) o vínculo que deve ser estabelecido entre a denúncia e a decisão proferida pelo julgador. O juiz está ligado diretamente aos fatos narrados na exordial acusatória, no momento de aplicar o direito ao caso concreto.

No contexto histórico-literário, identificamos o princípio da congruência no livro de William Shakespeare, intitulado O mercador de Veneza. Escrito em meados do século XVI, a narrativa conta a história do personagem Antônio, que dá como garantia, a titulo de um empréstimo, uma libra de carne do seu próprio corpo à Shylock. Não pagando a dívida, é submetido a julgamento. No desenrolar da história, o autor passa a questionar ideais de justiça na aplicação da sentença. [17]

Partindo de uma análise hermenêutica, percebe-se que a preocupação de Shakespeare com a execução de uma sentença em desconformidade com ideais de justiça. Tais lições encaixam-se perfeitamente ao princípio da congruência. No processo penal, a decisão proferida pelo magistrado deve ter consonância com os fatos narrados na denúncia, não podendo em hipótese alguma ocorrer um desvirtuamento, sob penal de violação ao princípio da paridade de armas.

Diante dessas premissas, pelos postulados já expostos sobre os sistemas acusatório e inquisitório, infere-se que só haverá uma correlação entre a acusação e sentença no momento em que, no processo penal, forem respeitados os princípios do sistema acusatório, fundamentalmente a repartição entre sujeitos distintos, as tarefas de acusar, defender e julgar [18].

Justamente por estes argumentos, há real necessidade de se fazer uma releitura constitucional dos postulados Narra Mihi Factum, Dabo Tibi Ius e Ius novit Curia, pelo caráter simplista que os tribunais e a doutrina clássica o consideram, com relação à aplicação do Emendatio Libelli. Em um Estado democrático de direito, a defesa plena e o contraditório fazem parte do pilar essencial para que se alcance a justiça ao caso concreto. A paridade das armas deve estar presente, não havendo diferenciação entre a acusação e a defesa. [19]

GIACOMOLLI [20] destaca que “dizer que o réu se defende só do fato descrito é soterrar o princípio da ampla defesa”, e que “a obediência desse princípio constitucional ultrapassa o contraditório fático; envolve necessariamente, o contraditório jurídico”.

Indispensável é então distinguir o fato penal do fato processual. De acordo com BADARÓ, [21] o fato processual penal “é um acontecimento histórico concreto, um fato naturalístico, ou seja, é o fato imputado”. Já o fato para o direito penal é “uma entidade extraída de uma situação hipotética, de um tipo penal, e não um fato concreto que foi realizado pelo autor e que foi introduzido no processo através da imputação”.

A partir dessa distinção, estabelecem-se limites a uma nova definição jurídica do fato. O juiz, na análise do caso, identificando a dissonância da definição dada, deve inicialmente analisar o fato penal, oportunizando as partes a manifestação quanto à definição dada por ele. Não havendo isso (o que acontece na realidade), há um total desrespeito ao contraditório, ratificando o sistema processual inquisitório vigente.

A permissão dada ao juiz para mudar a qualificação jurídica do fato não significa que possa fazê-lo, diretamente, sem qualquer comunicação às partes. Os princípios iura novit cúria e narra mihi factum, dabo tibi ius apenas asseguram que o juiz pode alterar a capitulação dos fatos constantes da denúncia. Porém, outro princípio, o do contraditório, impõe-lhe a comunicação prévia às partes, antes de tomar uma decisão, ainda que se trate daquelas que podem ser tomadas de ofício. [22]

É nesse sentido que também caminha a Ley de Enjuiciamento Criminal na Espanha, em seu artigo 733. [23] Denomina-se esse procedimento planteamiento de la tesis, como bem explica LOPES JR [24], em que as partes são convidadas a se manifestar sobre a nova definição jurídica.

A ausência de manifestação acerta da modificação jurídica, além de violar o contraditório, viola a obrigatoriedade de correlação entre a acusação e a sentença, como salienta SOTO NIETO:

Se incurre en incongruencia por exceso al penarse un delito más grave que aquél que fue objeto de penal acusación dandose lugar a una <ultra petita> o <falo largo>, con el que padecen las condiciones de igualdad de las partes en el proceso y los principios de regación y contradicción, pues el imprevisible devío calificador perjudicial ignora le audiatur et altera pars y inexcusable derecho de defesa (…) Padece el principio acusatorio, inspirador de nuestro sistema y la garantía de contradicción, con la consiguiente indefensión, si no se acude al planteamiento de las tesis (…) [25].

Possibilitando a manifestação das partes, o julgador assegura os princípios previstos na Magna Carta, e deste modo se afasta de uma decisão incongruente.

Entretanto, muitas vezes a breve manifestação do representante da defesa e da acusação não é suficiente, pela existência de prejuízo suportado por uma das partes (que é normalmente a defesa). Com isso, não pode ser descartada eventual nulidade processual em face da apuração de nova definição jurídica do fato. E justifica-se esse entendimento pela indisponibilidade de ampla defesa ao processo penal, quando posteriormente apurada a ausência de paridade de armas entre acusação e defesa, em que é evidente este prejuízo. Sobrevém este entendimento justamente pela definição de fato processual.

Pelas inúmeras decisões que manifestamente desrespeitam a paridade de armas e que é manifesto o prejuízo processual suportado por uma parte (que sempre é o réu), torna-se incompreensível a aplicação do Emendatio Libelli fundada nos incoerentes axiomas reducionistas [26]. A título de ilustração, traz-se à baila a decisão que modifica a classificação jurídica de calúnia, crime previsto no art. 138 do código penal pelo crime de difamação, previsto no art. 139 do mesmo estatuto. O fato narrado na denúncia fora classificado erroneamente na exordial acusatória, e mostra evidente prejuízo na decisão que aplica o Emendatio Libelli, por ser oferecida defesa essencialmente tomando-se por base a exceção de verdade, prevista no art. 138, § 3º do código penal. Enfatiza-se que por ser modificada a classificação jurídica para difamação, tal crime não admite a exceção de verdade. Transcreve-se a ementa:

DELITOS CONTRA A HONRA. crime de calúnia desclassificado para difamação. emendatio libelli. teses de nulidade afastadas. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. TIPICIDADE DA CONDUTA. CONDENAÇÃO MANTIDA. 1. Afastada a alegação de ocorrência da mutatio libelli sem observância ao disposto no art. 384 do CPP, bem como de nulidade por cerceamento de defesa e violação de princípios constitucionais. 2. Devidamente comprovada a existência e autoria do delito de difamação, consistente em atribuir ao querelante a prática contravencional de perturbação da tranquilidade, impositiva a manutenção do decreto condenatório. A prova testemunhal não demonstrou a efetiva ocorrência do fato imputado ao querelante, de molde a configurar o exercício regular de direito invocado pela ré. NEGARAM PROVIMENTO. Recurso crime n. 71002497105, Turma Recursal Criminal, DR.ª ÂNGELA MARIA SILVEIRA. Comarca de Caxias do Sul – RS.

Mesmo que o julgador proponha nova definição jurídica respeitando o contraditório, quando for evidente o prejuízo processual experimentando pela defesa ou pela acusação, a sentença não respeitará o princípio acusatório, desprezando-se os postulados a ele concernentes (conforme abordados) e desvirtuando o processo penal pautado pelo extremo respeito à Constituição.

Essa decisão não terá relação plena com a acusação, e portanto será incongruente.  Ao respeitar tais premissas, na aplicação do Emendatio Libelli alcançamos o mais próximo da verdade, não a verdade real, mas a verdade provável e compatível com a equidade [27]. Como bem ensina FERRAJOLI, a verdade deve ser concebida como “el resultado de una controversia entre partes contrapuestas en cuanto respectivamente portadoras del interés en el castigo del culpable y del de la tutela del acusado presunto inocente hasta prueba en contrario”  [28]. Nessa reflexão, é possível aplicar o Emendatio Libelli.


5. Considerações Finais

Diante da complexidade que envolve o Emendatio Libelli, apura-se que os axiomas Narra Mihi Factum, Dabo Tibi Ius e Ius novit Curia possuem abrangência reducionista, no que tange à aplicação do referido instituto, conforme doutrina predominante.

Entretanto, à luz do principio acusatório, o juiz ao decidir pela modificação da classificação jurídica no caso concreto, deve respeitar os limites constitucionais, sendo eles essencialmente o contraditório, a ampla defesa e a paridade de armas, pilares bases estes do Estado democrático de direito.

Para isso, é imprescindível o julgador oportunizar a manifestação das partes acerca de eventual reclassificação típica. Mas à vista de nova classificação, nada impede que, apurando-se latente prejuízo, declare-se eventual nulidade, em busca da verdade, não esta real, mas concebida como o resultado de uma controvérsia entre partes contrapostas enquanto respectivamente portadoras do interesse do castigo do culpado e da tutela do acusado presumido inocente até prova em contrário. De tal sorte, a decisão que modifica a classificação jurídica do fato é congruente.


6. Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2008.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. Coleção de Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 3. São Paulo: RT, 2000.

CAPELA, Fábio. Correlação entre acusação e sentença. Curitiba: Juruá, 2008

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, 4. ed., São Paulo: RT, 2005.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17 ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Fundamentos à Inconstitucionalidade da Delação Premiada. Boletim IBCCRIM ano 13 nº 159 fev/2006. p. 02.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 1989.

GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal Considerações e Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2012.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed., Rio de. Janeiro: Lumen Juris, 2005.

SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2008.

SOTO NIETO, Francisco. Correlación entre acusación y sentencia. La tesis del articulo 73e3 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Madri: Montecorvo, 1979.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.


Notas

[1] Art. 384.  Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). § 1o  Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). § 2o  Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). § 3o  Aplicam-se as disposições dos §§ 1o e 2o do art. 383 ao caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). § 4o  Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 5o  Não recebido o aditamento, o processo prosseguirá. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

[2] “A tipicidade é característica que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal”. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 388.

[3] PROCESSUAL PENAL. NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA DOS FATOS. EXTORSAO. PODE O JUIZ DAR NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA DOS FATOS CONSTANTES DA DENUNCIA. NARRA MIHI FACTUM DADO TIBI JUS. SE PARA OBTER VANTAGEM ECONÔMICA, ALGUEM CONSTRANGE OUTREM A FAZER, TOLERAR OU DEIXAR DE FAZER ALGUMA COISA, CONFIGURA-SE A EXTORSAO, E NÃO O ROUBO. (63411 AP , Relator: CARLOS MADEIRA, Data de Julgamento: 07/10/1985, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 31-10-1985 PP-19493 EMENT VOL-01398-01 PP-00137)

[4] LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2012; p. 1089-1090. Expressões do autor.

[5] FERNANDO, Capes. Curso de Direito Penal. 13. ed., São Paulo, Saraiva, p. 424; apud  LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal...p. 1090.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 1989; p. 45.

[7] LEONE, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale, Napoli: Jovene, 1983, p. 08, apud PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3. ed., Rio de. Janeiro: Lumen Juris, 2005. Geraldo Prado, parafraseando Giovanni leone p. 102.

[8]  FERRAJOLI, LUIGI. Derecho y Razón… p. 575.

[9] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17 ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 83.

[10] Afirma-se parte minoritária, pela inconcebível concepção de que o sistema processual vigente seria o acusatório, tanto pela ausência de imparcialidade do julgador e evidente contaminação na produção probatória. Hodiernamente, o juiz, além de nem mesmo se aproximar da imparcialidade, participa da gestão probatória (inclusive de ofício) e sem o requerimento do Ministério Público, decreta a prisão cautelar. O Código de Processo Penal vigente mais se assemelha a um sistema processual misto, segundo essa doutrina, embora também haja divergência quanto à classificação do presente instituto.

[11] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório... p. 195.

[12] LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal... p. 130. Expressão do autor.

[13] COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. Fundamentos à Inconstitucionalidade da Delação Premiada. Boletim IBCCRIM ano 13 nº 159 fev/2006. p. 02.

[14] LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal... p. 128.

[15] Antonio Scarance Fernandes, parafraseando Rogério Láuria Tucci, sustenta especificamente com relação ao contraditório, que no processo penal necessariamente deve haver uma “contraditoriedade efetiva e real em todo o desenrolar da persecução penal, na investigação inclusive, para maior garantia da liberdade e melhor atuação da defesa. P. 67.

[16] FERRAJOLI, LUIGI. Derecho y Razón… p. 566.

[17] “Prepara-te, pois, para cortar a carne; não derrames sangue e não cortes nem mais, nem menos, do que uma libra de carne; se tiras mais, ou menos, do que uma libra exata, mesmo que não sejas mais do que a quantidade suficiente para aumentar ou diminuir o peso da vigésima parte de um simples escrópulo, ou, então, se a balança se desequilibrar com o peso de um cabelo, tu morrerás e todos os teus bens serão confiscados”. SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2008; p. 97.

[18] CAPELA, Fábio. Correlação entre acusação e sentença. Curitiba: Juruá, 2008, p. 39.

[19] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, 4. ed., São Paulo: RT, 2005, p. 52.

[20] GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal Considerações e Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 107.

[21] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre acusação e sentença. Coleção de Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 3. São Paulo: RT, 2000, p. 113.

[22] Ibidem,  p. 162.

[23] Artículo 733. Si juzgando por el resultado de las pruebas entendiere el Tribunal que el hecho justiciable ha sido calificado con manifiesto error, podrá el Presidente emplear la siguiente fórmula: Sin que sea visto prejuzgar el fallo definitivo sobre las conclusiones de la acusación y la defensa, el Tribunal desea que el Fiscal y los defensores del procesado (o los defensores de las partes cuando fuesen varias) le ilustren acerca de si el hecho justiciable constituye el delito de ... o si existe la circunstancia eximente de responsabilidad a que se refiere el número ... del artículo ... del Código Penal.. Esta facultad excepcional, de que el Tribunal usará con moderación, no se extiende a las causas por delitos que sólo pueden perseguirse a instancia de parte, ni tampoco es aplicable a los errores que hayan podido cometerse en los escritos de calificación, así respecto a la apreciación de las circunstancias atenuantes y agravantes, como en cuanto a la participación de cada uno de los procesados en la ejecución del delito público, que sea materia de juicio. Si el Fiscal o cualquiera de los defensores de las partes indicaren que no están suficientemente preparados para discutir la cuestión propuesta por el Presidente, se suspenderá la sesión hasta el siguiente día. Ley de Enjuiciamento Criminal na Espanha.

[24] LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal... p. 1094.

[25] SOTO NIETO, Francisco. Correlación entre acusación y sentencia. La tesis del articulo 73e3 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Madri: Montecorvo, 1979, p. 44-45.

[26] LOPES JR, Aury.  Direito Processual Penal... p. 1089-1090.

[27] Como afirma Aristóteles, “o justo é equitativo”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2008; p. 108.

[28] FERRAJOLI, LUIGI. Derecho y Razón … p. 604.


ABSTRACT: The present article intends to analyze the congruency of the penal (correlation between accusation and sentence) decisions in Emendatio Libelli's application, settling down parameters, starting from a constitutional axiomatic reformulation of the institute. For so much, the systems procedural inquisitorial will be approached and accusatory, as well as the divergence concerning the existence of a mixed system in Brazil, being examined the relationship of these systems critically with the juridical modification of the fact fastened by the judge in the penal sentence.

Keywords: Congruent decisions. Emendatio Libelli. Inquisitorial system and accusatory system. Constitutional axiomatic reformulation.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDI, Lenon Davi. Decisões penais congruentes: a aplicação constitucional do emendatio libelli. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3343, 26 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22477. Acesso em: 4 maio 2024.