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Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin - tradução

Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin - tradução

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Este trabalho consiste na tradução de parte da principal obra de John Austin, “Delimitação do objeto da Ciência do Direito”, na qual foram lançadas as bases do positivismo jurídico moderno.

Palavras-chave: John Austin. Positivismo Jurídico. Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito.

Sumário: 1. Apresentação. 2. Delimitação do objeto da Ciência do Direito, de John Austin – Palestra I – Parte Inicial. Referências.


APRESENTAÇÃO

O inglês John Austin (1790 - 1859), segundo Norberto Bobbio, é “considerado o fundador do positivismo jurídico propriamente dito”,[1] a mais forte ou uma das mais fortes correntes da Teoria Geral do Direito. Herbert Lionel Adolphus Hart, em 1955, reconheceu Austin como o mais influente jurista de todos os tempos em seu país.[2]

A obra principal obra de Austin, The province of jurisprudence determined, cujo título aqui foi traduzido como “Delimitação do Objeto da Ciência do Direito”, se divide em seis palestras, destinadas originalmente às faculdades de direito.

A parte inicial da primeira delas, nunca antes vertida para o português, contém um resumo notavelmente claro da doutrina de Austin, constituindo texto básico, de grande proveito para profissionais e estudantes da área jurídica.


2  DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA CIÊNCIA DO DIREITO, DE JOHN AUSTIN – PALESTRA I – PARTE INICIAL

O propósito da tentativa que se segue de delimitar o objeto da Ciência do Direito, indicado ou proposto.

O assunto da Ciência do Direito[3] é o direito[4] positivo: direito, simples e estritamente assim chamado: ou o direito posto por superiores políticos para inferiores políticos. Mas o direito positivo (ou direito, simples e estritamente assim chamado) é muitas vezes confundido com objetos aos quais ele está relacionado por semelhança, e com objetos aos quais ele está relacionado pela via da analogia: com objetos os quais também são também representados, propriamente e impropriamente, pela ampla e vaga expressão direito. Para afastar as dificuldades nascidas dessa confusão, eu começo meu planejado Curso[5] delimitando o objeto da Ciência do Direito, ou distinguindo o assunto da Ciência do Direito daqueles vários objetos correlatos: tentando definir o tema do qual eu pretendo tratar, antes que me empenhe em analisar suas numerosas e complicadas partes.

Tomando-a no mais amplo de seus significados que não são meramente metafóricos, o termo lei[6] abrange os seguintes objetos: leis impostas por Deus para suas criaturas humanas, e leis impostas pelo homem para o homem.

O todo ou uma parte das leis impostas por Deus para os homens, é frequentemente denominado a lei da natureza, ou lei natural: sendo, na verdade, a única lei natural da qual é possível falar sem uma metáfora, ou sem uma mistura de objetos que devem ser amplamente distinguidos. Mas, rejeitando a ambígua expressão direito natural, eu nomeio aquelas leis ou regras, consideradas coletivamente ou em massa, a lei Divina, ou a lei de Deus.

As leis ou regras postas pelos homens para os homens são de duas classes dominantes ou principais: classes essas que são muitas vezes misturadas, embora elas difiram extremamente; e que, por essa razão, devem ser separadas com precisão, e opostas clara e conspicuamente.

Das leis ou regras postas pelos homens para os homens, algumas são estabelecidas por superiores políticos, soberanos e subordinados: por pessoas que exercem o governo supremo e subordinado, em nações independentes ou sociedades políticas independentes. O agregado das regras assim estabelecidas, ou algum agregado formando uma porção desse agregado, é o assunto próprio da Ciência do Direito, geral ou particular. Ao agregado de regras assim estabelecido, ou a algum agregado formando uma porção desse agregado, o termo direito, usado simples e estritamente, é aplicado unicamente. Mas, como contradistinto do direito natural, ou da lei da natureza (significando, por essas expressões, a lei de Deus), o agregado de regras, estabelecidas por superiores políticos, é frequentemente denominado direito positivo, ou direito existente por posição[7]. Como contradistinto das regras que eu denomino moralidade positiva, as quais imediatamente abordarei, o conjunto de regras, estabelecidas por superiores políticos, pode ser convenientemente designado com o nome de direito positivo. Para o fim, então, de se obter um nome ao mesmo tempo breve e distintivo, e conformemente ao uso frequente, eu denomino esse agregado de regras, ou qualquer porção desse agregado direito positivo: embora regras, que não são estabelecidas por superiores políticos, sejam também positivas, ou existam por posição, se é que elas são regras ou leis, no sentido próprio do termo.

Embora algumas das leis ou regras, que são postas pelos homens para os homens, sejam estabelecidas por superiores políticos, outras não são estabelecidas por superiores políticos, ou não são estabelecidas por superiores políticos, nessa qualidade ou papel.

Das leis humanas que pertencem a esta segunda classe, algumas são leis, propriamente assim chamadas. Mas outras são denominadas leis por uma aplicação imprópria do termo, embora essa aplicação imprópria se baseie em uma estreita analogia.

Para aquelas das leis humanas que pertencem a esta segunda classe, como sendo leis, propriamente chamadas, a linguagem corrente ou estabelecida não tem um nome coletivo.

Mas o agregado das leis humanas, que são impropriamente chamadas leis, não é infrequentemente denotado por uma das seguintes expressões: “regras morais”, a “lei moral”, “a lei posta ou prescrita pela opinião pública ou geral”. Certas parcelas do agregado denotado por essas expressões, são geralmente denominados “a lei ou as regras de honra”, e “a lei posta pela moda”.

Em oposição às leis que são estabelecidas por Deus aos homens, e às leis que são estabelecidas por superiores políticos, o agregado das leis humanas, que são impropriamente denominadas leis, pode ser convenientemente nomeado moralidade positiva. O nome moralidade as separa do direito positivo: enquanto o epíteto positiva as aparta da lei de Deus. E, para o fim de evitar confusão, é necessário ou conveniente que elas devam ser separadas desta última por esse epíteto distintivo. Porque o nome moralidade (ou moral), quando utilizado sem qualificações ou desacompanhado, denota indiferentemente qualquer dos seguintes objetos: a saber, a moralidade positiva como ela é, ou sem levar em conta seus méritos; e moralidade positiva como ela deveria ser, se estivesse conforme à lei de Deus, e fosse, portanto, merecedora de aprovação.

Leis postas por Deus para os homens, leis estabelecidas por superiores políticos e leis postas pelos homens para os homens (embora não por superiores políticos), distinguem-se por numerosas e importantes diferenças, mas concordam no seguinte: que todas elas são postas por seres inteligentes e racionais para seres inteligentes e racionais. Toda lei de qualquer desses tipos, ou é uma lei (propriamente dita), ou está relacionada a uma lei (propriamente dita) por uma estreita e próxima analogia.

Mas em numerosos casos em que é aplicada impropriamente, as aplicações do termo lei se baseiam em uma fraca analogia, e são meramente metafóricas ou figurativas. Tal é o caso quando falamos de leis observadas pelos animais inferiores; das leis que regulam o crescimento ou a deterioração dos vegetais; de leis que determinam os movimentos dos corpos ou massas inanimadas. Porque onde não há inteligência, ou onde ela é muito limitada para levar o nome da razão, e, portanto, é muito limitada para compreender a intenção de uma lei, aí não há vontade na qual a lei possa operar, ou a qual o dever possa incitar ou conter. Justamente por meio desses maus empregos de um nome, flagrantemente como a metáfora é, tem o campo da Ciência do Direito e da moral sido inundado por especulação enturvada.

Eu tenho agora proposto o objetivo da minha tentativa de determinar a província da Ciência do Direito: distinguir o direito positivo, o assunto apropriado da Ciência do Direito, dos vários objetos com os quais ele se relaciona por semelhança, e com os quais está associado, próxima ou remotamente, por uma forte ou fraca analogia.


O método da tentativa que se segue de delimitar o objeto da Ciência do Direito.

Tentando determinar a província de Ciência do Direito, seguirei o seguinte método: indicarei a essência de uma lei ou regra (tomada na mais ampla significação que pode ser dada ao termo propriamente).

Tendo indicado a essência de uma lei ou regra, distinguirei as leis estabelecidas por superiores políticos, de leis estabelecidas pelos homens para os homens (mas não por superiores políticos), e daquela lei Divina, que é a provação última do ser humano.

Tendo distinguido leis estabelecidas por superiores políticos, das leis (propriamente assim chamadas), às quais elas estão relacionadas por semelhança, e das leis (impropriamente assim chamadas), às quais elas são proximamente relacionadas por uma forte analogia, eu advertirei sobre as aplicações impróprias do termo lei, que são meramente metafóricas ou figurativas.


Leis ou regras, propriamente assim chamadas, são uma espécie de comandos.

Toda lei ou norma (tomada na mais ampla significação que pode ser dada propriamente ao termo) é um comando. Ou, melhor dizendo, as leis ou regras, propriamente assim chamadas, são uma espécie de comandos.

Uma vez que o termo comando compreende o termo lei, o primeiro é o mais simples, assim como o mais amplo dos dois. Mas, simples como é, admite explicação. E, considerando que ele é a chave para as ciências do direito e da moral, o seu significado deve ser analisado com precisão.

Assim, devo me empenhar, em primeiro lugar, em analisar o significado de “comando”: uma análise, que, temo, forçará a paciência dos meus ouvintes, mas que eles suportarão alegremente, ou, ao menos, com resignação, se considerarem a dificuldade de realizá-la. Os elementos de uma ciência são precisamente as partes dela que são explicadas menos facilmente. Termos que são os mais amplos, e, portanto, os mais simples de uma série, não têm expressões equivalentes nas quais possamos decompô-los concisamente. E quando nós nos empenhamos em defini-los ou traduzi-los em termos que supomos que são mais bem compreendidos, somos forçados a desajeitados e tediosos circunlóquios.


O significado do termo comando.

Se você expressa ou me intima de uma vontade, de que eu deveria praticar ou me abster de algum ato, e se você vai me punir com um mal no caso de eu não cumprir a sua vontade, a expressão ou a intimação de sua vontade é um comando. Um comando é distinto de outras significações do desejo, não pelo nome no qual o desejo é anunciado, mas pelo poder e pela intenção da parte que comanda de infligir um mal ou dor no caso de a vontade ser desconsiderada. Se você não pode ou não vai me prejudicar no caso de eu não cumprir a sua vontade, a expressão de sua vontade não é um comando, embora você pronuncie sua vontade em uma frase imperativa. Se você é capaz de, e disposto a, me prejudicar no caso de eu não cumprir a sua vontade, a expressão de sua vontade equivale a um comando, mesmo que você seja levado, por um espírito de cortesia, a proferi-la na forma de um pedido.

“Preces erant, sed quibus contra dici non posset”.[8] Tal é a linguagem de Tácito, quando falando de uma petição feita pela tropa a um filho e tenente[9] de Vespasiano.

Um comando, então, é um anúncio do desejo. Mas um comando se distingue de outros anúncios do desejo por essa peculiaridade: a de que a parte a quem ele se dirige é sujeita ao mal advinda da outra, no caso de não cumprir o desejo.


O significado do termo dever.

Estando sujeito ao mal vindo de você, se eu não cumprir uma vontade que você anuncia, sou compelido ou obrigado por seu comando, ou estou sob o dever de obedecê-lo. Se, apesar desse mal em perspectiva, eu não cumprir a vontade que você anuncia, se diz que desobedeço a seu comando, ou violo o dever que ele impõe.


Os termos comando e dever são correlativos.

Comando e dever, são, portanto, termos correlativos: o significado indicado por cada um estando implicado ou suposto no outro. Ou (mudando a expressão), sempre que há um dever, um comando foi anunciado; e sempre que um comando é anunciado, um dever é imposto.

Concisamente expresso, o significado das expressões correlativas é este. Aquele que vai infligir um mal no caso de seu desejo ser desconsiderado, profere um comando, expressando, ou intimando de, seu desejo: Aquele que é sujeito ao mal no caso de desconsiderar o desejo, é compelido ou obrigado pelo comando.


O significado do termo sanção.

O mal que provavelmente incidirá no caso de um comando ser desobedecido, ou (para usar uma expressão equivalente) no caso de um dever ser inobservado, é frequentemente chamado de uma sanção, ou um reforço impositivo de obediência[10]. Ou (variando a frase) se diz que o comando ou o dever é sancionado ou imposto pela possibilidade de incorrer o mal.

Considerado assim, abstraído a partir do comando e do dever que ele impõe, o mal que incorre pela desobediência é frequentemente denominado uma punição. Mas como punições, estritamente assim chamadas, são apenas uma classe de sanções, o termo é demasiado estrito para expressar o significado de forma adequada.


Para a existência de um comando, um dever e uma sanção, um motivo violento para o cumprimento não é necessário.

Observo que o Dr. Paley, em sua análise do termo obrigação, dá excessiva ênfase à violência do motivo para o cumprimento.[11] Tanto quanto posso extrair um significado de sua vaga e inconsistente afirmação, seu significado parece ser este: que, a menos que o motivo para o seu cumprimento seja violento ou intenso, a expressão ou a intimação de uma vontade não é um comando, nem a parte a quem é dirigida tem o dever de considerá-la.

Se ele quer dizer, por um motivo violento, um motivo que funcione com certeza, sua proposição é manifestamente falsa. Quanto maior o mal a incorrer no caso de a vontade ser ignorada, e quanto maior a chance de que incorra por conta desse mesmo evento, maior, sem dúvida, é a chance que o desejo não será desconsiderado. Mas nenhum motivo concebível irá certamente determinar o cumprimento, ou nenhum motivo concebível irá produzir obediência inevitável. Se a proposição de Paley é verdadeira, no sentido que agora lhe atribuí, comandos e deveres são simplesmente impossíveis. Ou, reduzindo sua proposição ao absurdo por uma consequência manifestamente falsa, os comandos e deveres são possíveis, mas nunca são inobservados ou desobedecidos.

Se ele quer dizer, por um motivo violento, um mal que inspira medo, seu significado é simplesmente este: que a parte compelida por um comando é compelida pela perspectiva de um mal. Porque o que não é temido não é apreendido como um mal, ou (mudando a forma da expressão) não é um mal em perspectiva.

A verdade é que a magnitude do mal eventual, e a magnitude da possibilidade de que ele incorra, são estranhas ao assunto em questão. Quanto maior o mal eventual, e maior a possibilidade de que ele incorra, maior é a eficácia do comando, e maior é a força da obrigação. Ou (substituindo expressões exatamente equivalentes), maior é a chance de que o comando seja obedecido, e que o dever não será inobservado. Mas onde há a menor das chances de que incorra o menor dos males, a expressão de uma vontade equivale a um comando, e, portanto, impõe um dever. A sanção, se se quiser, é fraca ou insuficiente; mas ainda assim existe uma sanção, e, portanto, um dever e um comando.


Recompensas não são sanções.

Por alguns célebres autores (por Locke, Bentham, e, penso eu, Paley), o termo sanção, ou reforço impositivo de obediência, é aplicado ao bem condicional, assim como ao mal condicional: à recompensa, assim como à punição. Mas, com toda a minha habitual veneração aos nomes de Locke e Bentham, eu acho que essa dilatação do termo está repleta de confusão e perplexidade.

Recompensas são indiscutivelmente motivos para cumprir os desejos dos outros. Mas falar de comandos e deveres como sancionados ou impostos por recompensas, ou falar de recompensas no sentido de obrigar ou constranger à obediência, é certamente um largo desvio do significado estabelecido dos termos.

Se você expressou o desejo de que eu deveria prestar um serviço, e se ofereceu uma recompensa como motivação ou incentivo para prestá-lo, dificilmente se poderia dizer que você comandou o serviço, nem estaria eu, em linguagem comum, obrigado a prestá-lo. Em linguagem comum, você iria me prometer uma recompensa, o condicionando à minha prestação do serviço, enquanto eu poderia ser incitado ou persuadido a prestá-lo pela esperança de obter a recompensa.

Novamente: se uma lei oferece uma recompensa como um incentivo para praticar algum ato, um eventual direito é conferido, e não uma obrigação imposta, àquele que deve agir em conformidade: a parte imperativa da lei é endereçada ou direcionada à parte a quem ela requer que dê a recompensa.

Em suma, estou determinado ou inclinado a cumprir a vontade de outrem, pelo medo de desvantagem ou mal. Também estou determinado ou inclinado a cumprir a vontade do outro, pela esperança de vantagem ou bem. Mas é somente pela possibilidade de incorrer mal, que eu sou compelido ou obrigado ao cumprimento. É só pelo mal condicional, que os deveres são sancionados ou impostos. É o poder e o propósito de infligir mal eventual, e não o poder e o propósito de transmitir bem eventual, o que dá à expressão de um desejo o nome de um comando.

Se colocamos recompensa dentro do sentido do termo sanção, devemos nos engajar em uma cansativa luta contra a corrente da fala comum; e muitas vezes deslizaremos inconscientemente, apesar de nossos esforços em contrário, para o sentido estrito e costumeiro.


O significado do termo comando, brevemente reformulado.

Parece, então, do que foi postulado, que as idéias ou noções compreendidas pelo termo comando são as seguintes: 1) uma vontade ou desejo concebido por um ser racional, de que um outro ser racional deve fazer algo ou se abster de algo; 2) um mal a decorrer do primeiro, e a incorrer sobre o segundo, no caso de este não cumprir a vontade; 3) uma expressão ou intimação do desejo por palavras ou outros sinais.


A inseparável conexão dos três termos, comando, dever e sanção.

Também parece, do que foi postulado, que, comando, dever e sanção são termos inseparavelmente ligados: que cada um adota as mesmas idéias que os outros, embora cada um denote essas idéias em uma peculiar ordem ou série.

 “Uma vontade concebida por um, e expressa ou intimada a outro, com um mal a ser infligido e incorrido no caso de a vontade ser desconsiderada”, é anunciada, direta e indiretamente por cada uma das três expressões. Cada uma nomeia a mesma noção complexa.


A forma dessa conexão.

Mas quando eu estou falando diretamente da expressão ou intimação da vontade, eu emprego o termo comando: a expressão ou intimação da vontade é apresentada com destaque para o meu ouvinte; enquanto o mal a incorrer, bem como a possibilidade de que incorra, são mantidos (se assim posso me exprimir) no plano de fundo de minha tela.

Quando eu estou falando diretamente da possibilidade de incorrer o mal, ou (mudando a expressão) da sujeição ou submissão ao mal, eu emprego o termo dever ou o termo obrigação: a sujeição ou submissão ao mal é colocada em primeiro lugar, e o resto da noção complexa é comunicado implicitamente.

Quando estou falando imediatamente do mal em si, eu emprego o termo sanção, ou um termo com sentido equivalente: o mal a incorrer é anunciado diretamente, enquanto a submissão a esse mal, bem como a expressão ou intimação da vontade, são indicados indiretamente ou obliquamente.

Para aqueles que estão familiarizados com a linguagem dos lógicos (linguagem incomparável pela concisão, distinção e precisão), eu posso expressar o meu significado precisamente, em um sopro: cada um dos três termos significa a mesma noção, mas cada um denota uma parte diferente dessa noção e conota o resíduo.


Distinção entre leis ou regras e comandos que são ocasionais ou particulares.

Os comandos são de duas espécies. Alguns são leis ou regras. Os outros não adquiriram um nome apropriado, nem a língua proporciona uma expressão que possa designá-los brevemente e com precisão. Devo, portanto, denotá-los, tanto como posso, pelo ambíguo e inexpressivo nome “comandos ocasionais[12] ou particulares.”

Como o termo leis ou regras é frequentemente aplicado a comandos ocasionais ou particulares, torna-se dificilmente possível traçar uma linha de separação que corresponderá, em todos os aspectos, às formas estabelecidas da linguagem. Mas a distinção entre leis e comandos específicos, pode, penso eu, ser indicada da maneira que se segue.

Por todo comando, a parte a quem ele é dirigido é obrigada a fazer algo ou a se abster de algo.

Quando obriga genericamente a atos ou abstenções de uma classe, um comando é uma lei ou regra. Mas quando obriga a um ato ou uma abstenção específica, ou a atos ou abstenções que ele determina especificamente ou individualmente, um comando é ocasional ou particular. Em outras palavras, uma classe ou um tipo de atos é estabelecido por uma lei ou regra, e atos dessa classe ou tipo são prescritos ou proibidos genericamente. Mas quando um comando é ocasional ou particular, o ato ou atos, que o comando impõe ou proíbe, são fixados ou determinados por sua natureza específica ou individual, bem como pela classe ou tipo ao qual pertencem.

A afirmação que tenho agora dada em expressões abstratas, me empenharei a ilustrar com exemplos apropriados.

Se você ordena seu criado a cumprir uma dada missão, ou a não sair de sua casa em uma dada noite, ou a levantar a uma certa hora em uma manhã, ou a levantar a essa hora durante a próxima semana ou mês, o comando é ocasional ou particular. Porque o ato ou atos impostos ou proibidos, são especificamente determinados ou fixados.

Mas se você comandá-lo simplesmente levantar àquela hora, ou levantar àquela hora sempre, ou levantar àquela até novas ordens, pode-se dizer, com propriedade, que você estabeleceu uma regra para a orientação da conduta de seu criado. Porque nenhum ato específico é fixado pelo comando, mas o comando o obriga genericamente a praticar atos de uma determinada classe.

Se um regimento é ordenado a atacar ou defender um lugar, ou a reprimir um motim, ou a marchar de seus atuais quartéis para outro ponto, o comando é ocasional ou particular. Mas uma ordem para exercitar-se diariamente até que novas ordens sejam dadas, seria chamada de uma ordem genérica, e poderia ser chamada de uma regra.

Se o Parlamento proibiu simplesmente a exportação de milho, seja por um dado período ou indefinidamente, isso estabeleceria uma lei ou regra: uma espécie ou tipo de atos são delimitados pelo comando, e atos dessa espécie ou tipo são genericamente proibidos. Mas uma ordem emitida pelo Parlamento para fazer frente a uma escassez iminente, e embargando a exportação do milho então embarcado e em porto, não seria uma lei ou regra, embora emitida pela legislatura soberana. A ordem relativa exclusivamente a uma quantidade especificada de milho, os atos negativos ou abstenções, impostos pelo comando, seriam especificamente ou individualmente determinados pela natureza determinada de seu objeto.

Devido a ser emitida por uma legislatura soberana, e devido a usar a forma de uma lei, a ordem que agora imaginei provavelmente seria chamada de lei. E daí a dificuldade de se traçar uma fronteira nítida entre leis e comandos ocasionais.

Novamente: um ato que não é um delito, de acordo com a legislação em vigor, leva o soberano ao desagrado e, embora os autores do ato sejam legalmente inocentes ou não delituosos, o soberano determina que eles devem ser punidos. Por impor uma punição específica, nesse caso específico, e por não impor genericamente atos ou abstenções de uma classe, a ordem proferida pelo soberano não é uma lei ou regra.

Se tal ordem seria chamada de lei, parece depender de circunstâncias que são puramente irrelevantes: irrelevantes, quero dizer, no que diz respeito ao presente propósito, embora relevantes no que diz respeito a outros. Se for feita por uma assembléia soberana, deliberadamente, e com as formas de legislação, ela provavelmente seria chamada de lei. Se proferida por um monarca absoluto, sem deliberação ou cerimônia, ela dificilmente seria confundida com atos de legislação, e seria qualificada como um comando de arbítrio. No entanto, em nenhum dessas hipóteses, a sua natureza seria a mesma. Ela não seria uma lei ou regra, mas um comando ocasional ou particular do Soberano ou do Grupo Soberano.[13]

Para concluir com um exemplo que melhor ilustra a distinção, e que mostra a importância da distinção mais conspicuamente, as ordens judiciais são comumente ocasionais ou especiais, embora os comandos, os quais elas tencionam impor, sejam comumente leis ou regras.

Por exemplo, o legislador comanda que os ladrões devem ser enforcados. Sendo dados um roubo específico e um ladrão especificado, o juiz ordena que o ladrão deve ser enforcado, de acordo com o comando do legislador.

Ocorre que o legislador determina uma classe ou tipo de atos; proíbe atos dessa classe, genérica e indefinidamente; e comanda, com semelhante generalidade, que a punição deve se seguir à transgressão. O comando do legislador é, portanto, uma lei ou regra. Mas a ordem do juiz é ocasional ou particular. Porque ele ordena uma punição específica, como consequência de um delito específico.

De acordo com a linha de separação que tentei traçar, uma lei e um comando particular são distintos desse modo: atos ou abstenções de uma classe, são impostos genericamente pela primeira; atos determinados especificamente, são impostos ou proibidos pelo segundo.

Uma diferente linha de separação foi desenhada por Blackstone e outros. Segundo eles, uma lei e um comando especial são distinguidos da seguinte maneira: a lei obriga genericamente os membros da determinada comunidade, ou uma lei obriga genericamente os indivíduos de uma determinada classe, enquanto um comando especial obriga a uma única pessoa, ou pessoas a quem ele determinar individualmente.

Um momento de reflexão basta para mostrar que leis e comandos particulares não devem ser distinguidos assim.

Primeiro, comandos que obrigam geralmente os membros de dada comunidade, ou comandos que obrigam geralmente pessoas de determinadas classes, nem sempre são leis ou regras.

Por exemplo, uma ordem de luto geral, ou uma ordem de jejum geral, é proferida por um soberano, ou por uma assembleia soberana, na ocasião de uma calamidade pública. Embora dirigida à comunidade em geral, a ordem dificilmente poderia ser uma regra, na acepção comum do termo. Pois, embora obrigue genericamente os membros de toda a comunidade, obriga a atos que  determina especificamente, ao invés de obrigar genericamente a atos ou abstenções de uma classe. Se o soberano ordena que a roupa de seus súditos deve ser preta, seu comando equivale a uma lei. Mas se ele lhes ordena que usem roupa preta em uma ocasião específica, o seu comando é meramente particular.

E, segundo, um comando que obriga exclusivamente pessoas individualmente determinadas, pode equivaler, não obstante, a uma lei ou regra. Por exemplo, um pai pode definir uma regra para o seu filho ou filhos; um tutor, para o seu tutelado: um senhor, para seu escravo ou servo. E algumas das leis de Deus eram obrigatórias para o primeiro homem, como são obrigatórias atualmente para os milhões por ele gerados.

A maioria, na verdade, das leis que são estabelecidas por superiores políticos, ou a maioria das leis que são simples e estritamente assim chamadas, obrigam genericamente os membros da comunidade política, ou obrigam genericamente as pessoas de uma classe. Criar um sistema de direitos para cada indivíduo da comunidade seria simplesmente impossível, e, se fosse possível, seria inteiramente inútil. A maioria das leis estabelecidas por superiores políticos, são, portanto, dotadas de generalidade de duas maneiras: ao impor ou proibir genericamente atos de determinada espécies ou tipo; e ao obrigar toda a comunidade, ou, pelo menos, classes inteiras de seus membros.

Mas se supusermos que o Parlamento crie e conceda um mandato, obrigando o mandatário a prestar serviços especificamente discriminados, imaginaremos uma lei estabelecida por superiores políticos, mas obrigando exclusivamente uma pessoa específica ou determinada.

Leis estabelecidas por superiores políticos, e obrigando exclusivamente pessoas específicas ou determinadas, são denominadas, na linguagem dos juristas romanos, privilegia. Esse é, na verdade, um nome que dificilmente as designaria com clareza, porque, como a maioria dos principais termos nos atuais sistemas jurídicos, não é o nome de uma determinada classe de objetos, mas de um amontoado de objetos heterogêneos.[14]


A definição de uma lei ou regra, propriamente dita.

Depreende-se das premissas anteriores que uma lei, propriamente dita, pode ser definida da seguinte que se segue.

Uma lei é um comando que obriga uma pessoa ou pessoas.

Mas, contraposta ou em oposição a um comando determinado ou ocasional, a lei é um comando que obriga pessoa ou pessoas, e obriga com generalidade a atos ou abstenções de uma dada classe.

Em linguagem mais popular, mas menos distinta e precisa, a lei é um comando que obriga uma pessoa ou pessoas a um determinado curso de conduta.


REFERÊNCIAS

AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. 2. ed.  Londres: John Murray, 1906. Disponível em: <http://www.archive.org/stream/austinianthe oryo00austuoft#page/n5/mode/2u>. Acesso em: 30 jan. 2013.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1995.

HART, Herbert L. A. Introdução a The province of jurisprudence determined, de John Austin. 1. ed. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud ENCICLOPÉDIA Stanford de filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010, tradução nossa. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>. Acesso em: 29 jan. 2013.

PALEY, William. The Works of William Paley. 1. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1828.

TACITUS, C. Cornelius. History. 1. ed. Hartford: O. D. Cook & Co., 1826.


Notas

[1] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1995, p. 47.

[2] HART, Herbert L. A. Introdução a The province of jurisprudence determined, de John Austin. 1. ed. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1954, p. VII-XXI, apud ENCICLOPÉDIA Stanford de filosofia. Palo Alto: Universidade de Stanford, 2010, tradução nossa. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/austin-john/>. Acesso em: 29 jan. 2013.

[3] No original, Jurisprudence (N. do T.).

[4] Originalmente, law, termo que significa, ao mesmo tempo, “direito” e “lei” (N. do T.).

[5] Intitulado “Palestras de Ciência do Direito”, ou “Filosofia do Direito Positivo”, do qual “Delimitação do Objeto da Ciência do Direito” (The Province of Jurisprudence Determined) constitui a primeira parte (N. do T.).

[6] Na fonte, law (N. do T.).

[7] Daí a expressão “direito positivo”, alheia ao positivismo de Comte (N. do T.).

[8] “Pedidos eram, mas tais que contradizê-los não era possível”. O trecho está em Histórias, Livro IV, XLVI (N. do T.).

[9] Domiciano (N. do T.).

[10] Originalmente, “enforcement of obedience” (N. do T.).

[11] William Paley (1743-1805), célebre filósofo e teólogo britânico, acreditava que “Para uma obrigação ser perfeita ou imperfeita, o que determina é apenas se a violência pode ou não pode ser empregada para impô-la, e nada mais o determina” (Filosofia Moral e Política, Livro II, Capítulo X, N. do T.).

[12] Ou seja, que dizem respeito a uma ocasião específica (N. do T.).

[13] No original, “sovereign One or Number” (N. do T.).

[14] Quando um privilegium meramente impõe um dever, exclusivamente obriga uma determinada pessoa ou pessoas. Mas quando um privilegium confere um direito, e o direito conferido vale contra todos, a lei é um privilegium vista de um certo aspecto, mas também é uma lei geral, vista de outro aspecto. Em relação ao direito conferido, a lei exclusivamente considera uma pessoa determinada e, portanto, é privilegium. Em relação ao dever imposto, correspondente ao direito conferido, a lei considera genericamente os membros de toda a comunidade. Isto explicarei particularmente, num ponto subsequente do meu Curso, ao abordar a natureza peculiar do assim chamado privilegia, ou das assim chamadas leis privadas.


Abstract: This work consists of the translation of a part of the main work of John Austin, “The Province of Jurisprudence Determined” in which were laid the foundations of modern legal positivism.

Keywords: John Austin. Legal Positivism. General Theory of Law. Philosophy of Law.


Autor

  • Carlos Romeu Salles Corrêa

    Carlos Romeu Salles Corrêa

    Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2008), tendo iniciado o curso na Universidade Federal de Alagoas e passado também pela Universidade Federal da Bahia, por meio do Programa de Mobilidade Acadêmica. Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Mestrando em Direito do Trabalho na Universidade Federal da Bahia. Atua na assessoria de Gabinete de Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Tem experiência na área de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho.

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CORRÊA, Carlos Romeu Salles. Delimitação do objeto da ciência do direito, de John Austin - tradução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3692, 10 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23953. Acesso em: 5 maio 2024.