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Cédulas de crédito e a impenhorabilidade

Cédulas de crédito e a impenhorabilidade

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Estuda-se a previsão de impenhorabilidade dos bens dados em garantia nas cédulas rurais hipotecárias. O oficial de registro de imóveis pode inscrever outra penhora em imóvel hipotecado cedularmente? Se sim, o ato é de registro ou de averbação?

Resumo: O presente trabalho tem o condão de discorrer sobre as Cédulas de Crédito Rural e estabelecer a forma pela qual a impenhorabilidade cedular deve ser aplicada no direito pátrio. Nesse sentido, o histórico da política de financiamento rural foi abordado. O Decreto-Lei nº 167/67 é o instrumento legal pelo qual todo o trabalho é orientado. Os requisitos de constituição das Cédulas foram expostos. Foi ressaltada a importância do sistema de publicidade adotado no Brasil, pela qual o registro do título é o meio hábil a proceder a aquisição de direitos reais sobre bens imóveis. A natureza jurídica das Cédulas de Crédito rural foi analisada. O enquadramento enquanto títulos de créditos e a sua exequibilidade não deixaram de ser expostos. Dois aspectos essenciais também foram abordados: a possibilidade de venda dos bens ofertados em garantia cedular e a impenhorabilidade de tais bens.

Palavras-chave: Cédula de Crédito Rural. Impenhorabilidade. Hipoteca. Penhor. Título de Crédito. Registro de Imóveis.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 HISTÓRICO. 3 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA. 3.1 CARACTERÍSTICAS DAS CÉDULAS DE CRÉDITO ENQUANTO TÍTULOS DE CRÉDITO. 3.2 A ABSTRAÇAO E A AUTONOMIA APLICÁVEIS ÀS CÉDULAS DE CRÉDITO. 3.3 EXEQUIBILIDADE DAS CÉDULAS DE CRÉDITO. 3.4 SISTEMA DE PUBLICIDADE E EFICÁCIA DAS CÉDULAS DE CRÉDITO. 3.5 REQUISITOS. 4A VENDA DOS BENS APENHADOS E HIPOTECADOS CEDULARMENTE. 5IMPENHORABILIDADE E AS CÉDULAS RURAIS. 6. CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar as Cédulas de Crédito, especialmente a Cédula de Crédito Rural, abordando o conceito, natureza jurídica e demais peculiaridades de tal instituto.

A questão central do trabalho, no entanto, é a de estudar a previsão de impenhorabilidade dos bens dados em garantia nas Cédulas Rurais Hipotecárias.

O Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967, em seu artigo 69, prevê que os imóveis sujeitos à hipoteca cedular não podem ser objeto de penhora. Tal disposição tem gerado inúmeras dúvidas na doutrina e na jurisprudência, no sentido de vislumbrar a possibilidade de inscrição, na matrícula do imóvel, de penhoras fiscais ou trabalhistas.

O que está em jogo é a de definir se a norma instituída no Decreto de 1969 prevalece frente a outras disposições legais, especialmente a Lei de Falências e a Consolidação das Leis do Trabalho.

As mudanças introduzidas pela Lei nº 11.101/2005 e pela Lei Complementar nº 118/2005 também merecem ser abordadas. As mencionadas leis alteraram a sistemática de privilégios concorrenciais aos créditos habilitáveis em processo falimentar.

Ainda, será abordada a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 11.382/2006, que alterou o § 4º do art. 659 do Código de Processo Civil. A sistemática que previa a penhora como ato de registro foi alterada. Conforme a lei processual, a penhora é sujeita a ato de averbação. A problemática reside na possível contradição e enfrentamento com o previsto no art. 167, I, 5, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que prevê a penhora como ato de registro.

O presente trabalho visa, sobretudo, o enfoque da questão registral. O Oficial de Registro de Imóveis pode inscrever outra penhora em imóvel hipotecado cedularmente? Ainda, considerando que tal circunstancia seja possível, o ato é de registro ou de averbação?

A jurisprudência parece ainda ser controversa sobre o tema. A problemática parece ter sido voltada a definir o privilegio entre os créditos fiscal, trabalhista e de natureza real. No entanto, pouco tem se estudado quanto às mudanças legislativas acima elencadas. A solução registral do tema ainda tem sido renegada, especialmente no âmbito doutrinário.

A atuação positiva do Registrador, ao ser instado a proceder a inscrição (registro ou averbação), pode ensejar a responsabilização administrativa e civil, caso a autoridade competente entenda ser indevida a inscrição (registro ou averbação) da penhora em imóvel impenhorável.

Neste trabalho, pretendo, portanto, esclarecer a cerca da possibilidade ou não do acesso na matrícula de mandado de penhora nesses imóveis dados em hipoteca cedular.


2.histórico

As Cédulas de Crédito nasceram com o intuito de estimular determinados nichos de mercado. Sustentar o desenvolvimento de certas culturas e setores da economia.

A Cédula de Crédito Rural foi a primeira das Cédulas. Mas a sua formatação atual é fruto do desenvolvimento do instituto no decorrer da história legislativa de estímulos à produção rural nacional.

O contrato de penhor foi o primeiro instrumento voltado ao crédito rural, em termos de Direito pátrio. A Lei nº 3.272, de 5/10/1985 regulamentou o contrato de penhor da seguinte forma:

“Art. 10. Os Bancos e sociedades de credito real, e qualquer capitalista, poderão tambem fazer emprestimos aos agricultores, a curto prazo, sob o penhor de colheitas pendentes, productosagricolas, de animaes, machinas, instrumentos e quaesquer outros accessorios não comprehendidos nas escripturas de hypotheca, e quando o estejam, precedendo consentimento do credor hypothecario”.

Em 1890, o Decreto 370 regulamentou de forma mais pormenorizada a concessão de créditos pignoratícios. Tratou ainda das hipotecas e dos Bilhetes de Mercadorias.  O art. 364 do mencionado Decreto expõe a natureza particular do instrumento de constituição de penhor, e a sua possibilidade de circulação mediante “transferência ou traspassos”. Vejamos:

Art. 364. O penhor agricola poderá estipular-se a prazo de um a tresannos, mediante escripto particular, com declaração de sua data e assignatura do mutuario, reconhecida por officialpublico; pena de nullidade.Poderá tambem ser feito por 10 a 15 annos sobre arbitramento da média da producçãoannual, recebendo o mutuario antecipadamente a importancia do emprestimo correspondente a uma anno, e perdendo este direito quanto falte ao pagamento do anno vencido.

§ 1.º É da substancia do contracto de penhor a declaração da importancia da divida.

§ 2.º As cessões e subrogações de dividapignoraticia poderão consumar-se por simples transferencia ou traspassos, no respectivo titulo, sem que dahi resulte a responsabilidade solidaria do cedente.

§ 3.º O Cessionario ou subrogado exercerá contra o devedor os mesmos direitos, que competem ao cedente ou subrogante, depois de competentemente averbada a cessão, ousubrogação.

Da análise da cabeça do mencionado artigo, com o seu parágrafo 3º, é possível entender que já havia a previsão de inscrição do título particular que deu origem ao penhor. O acesso ao Registro de Imóveis era para garantir eficácia contra terceiros, conforme prevê o art. 369 do Decreto nº 370/1890:

“Art. 369. O penhor agricola, por quantia superior a 5000$, para produzir os seus effeitos contra terceiros, depende essencialmente de sua transcripção no registro geral, observando-se tudo quanto se acha estabelecido para a transcripção dos onusreaes”.

A eficácia perante terceiros do registro perante o Cartório de Registro de Imóveis também é repetida pelo art. 30 do Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967.

O contrato de penhor sofreu, como dito, inúmeras alterações. A estrutura bancário era insuficiente a ponto de deixar de dar andamento aos projetos. Ainda, havia uma cultura do homem do campo de não comprometer a sua fonte de renda.

É o que assevera Rubia Carneiro Neves:

“Embora tivesse sido instituído e diversas vezes regulado, o penhor, com o intuito de dinamizar o crédito à agricultura e à pecuária, mediante a vinculação do penhor rural às safras pendentes ou futuras, bem como ao material agrário e aos animais de desfrute ou mesmo de serviço, não promoveu o implemento esperado ao crédito agropecuário

Os bancos não se encontravam devidamente estruturados, tanto mecânica quanto tecnicamente, para conceder crédito por meio do penhor. Ademais, o homem do campo tinha muito receio de comprometer seus instrumentos de trabalho, lavouras e animais, entregando-os em garantia de um contrato de penhor rural a um banco em troca de um empréstimo em dinheiro”. (NEVES, Rubia Carneiro. Cédula de crédito: doutrina e jurisprudência. – Belo Horizonte : Del Rey, 2002, página 3).

Em seguida, foi editada a Lei nº 454 de 1937, que instituiu a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, estrutura que tem servido de base para o financiamento do meio agrário nacional desde então.

A Lei nº 492, de 30 de novembro de 1937, enfim, criou a Cédula Rural Pignoratícia. Os artigos 14 e 15 disciplinam a constituição da Cédula Rural mencionada da seguinte forma:

Art. 14. A escritura pública ou particular, de penhor rural deve ser apresentada ao oficial do registro imobiliário da circunscrição ou comarca, em que estiver situada a propriedade agrícola em que se encontrem os bens ou animais dados em garantia, afim de ser transcrito, no livro e pela forma por que se transcreve o penhor agrícola.

Parágrafo único. Quando contraido por escritura particular, dela se tiram tantas vias quantas julgadas convenientes, de modo a ficar uma com as firmas reconhecidas, arquivada no cartório do registro imobiliário.

Art. 15. Feita a transcrição da escritura de penhor rural, em qualquer de suas modalidades, pode o oficial do registo imobiliário se o credor lhe solicitar, expedir em seu favor, averbando-o à margem da respectiva transcrição, e entregar-lhe, mediante recibo, uma cédula rural pignoratícia, destacando-a, depois de preenchida e por ambos assinada, do livro próprio.

§ 1º Haverá, em cada cartório de registro imobiliário, um livro talão de cédulas rurais pignaratícias, de folhas duplas e de igual conteúdo, de modêlo anexo, numerado e rubricado pela autoridade judiciária competente, contendo cada uma:

I - a desinência do Estado, comarca, município, distrito ou circunscrição;

II - o número e data da emissão;

III - os nomes do devedor e do credor;

IV - a importância da dívida, seus juros e data do vencimento;

V - a denominação e individualização da propriedade agrícola em que se acham os bens ou animais empenhados, indicando a data e tabelião em que se passou a escritura de aquisição ou arrendamento daquela ou o título por que se operou, número da transcrição respetiva, data, livro e página em que esta se efetuou;

VI - a identficação e a quantidade dos bens e dos animais empenhados;

VlI - a data e o número da transcrição do penhor rural;

VIII - as assinaturas, de próprio punho, nas duas folhas, do oficial e do credor;

IX - qualquer compromisso anterior nos casos dos arts. 4º, § 1º e 6º, I.

§ 2º Se o credor pignoratício não souber ou não puder assinar, será o título assinado por procurador, com poderes especiais, ficando a procuração, por instrumento público, arquivada em cartório.

O art. 15 permite concluir que o procedimento de confecção da Cédula era diferente da atual forma. A escritura pública ou particular era apresentada ao Oficial do Registro de Imóveis competente, o qual deveria proceder a transcrição do título e do penhor no Livro respectivo, qual seja, o Livro nº 4, conforme art. 186 do Decreto nº 4.857, de 09 de novembro de 1939, que dispunha sobre os serviços de registros públicos. Em seguida, o Oficial, a requerimento do credor, expedia a Cédula Rural Pignoratícia, entregando-lhe a via, mediante recibo.

Por essa prática, o Oficial do Registro de Imóveis era o autor da Cédula Rural. E a parte final do caput do art. 15 indica que a Cédula era destacada. Assim, e conjugando o mencionado com o parágrafo 1º do mesmo artigo, na Serventia havia um Livro talão, de folhas duplas, com modelo previamente autorizado pela autoridade judicial competente. Na Cédula havia apenas a assinatura do credor e a do devedor. A participação do devedor ocorria apenas em momento posterior. Conforme previa o art. 17, o Oficial era obrigado a dar ciência da emissão da Cédula ao devedor.

Interessante a forma pela qual a Cédula era emitida. A Cédula era, assim, em resumo, uma certidão da transcrição do penhor, de modo que representada o contrato de penhor inscrito no Cartório de Registro de Imóveis.

Sady Dornelles Pires comenta:

“O objetivo primeiro da emissão da cédula rural pignoratícia – que nada mais era do que uma certidão da transcrição do contrato de mútuo celebrado entre banco e ruralista e registrado no Ofício de Imóveis – foi o de colocar à disposição do financiador um título de crédito real, de criação simples, rápida e segura, que, através do endosso, pudesse ter ampla circulabilidade, desempenhando, assim, relevante função no incremento e na promoção do crédito rural” (PIRES, Sady Dornelles. Cédula de crédito rural: execução. Bens apenhados. Alienação antecipada. Permissão legal (art. 41, § 1º, Dec.-lei 167/67). Conveniência. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 606, ano 75, p. 37, abr. 1986).

Essa forma de constituição da Cédula Rural vigou até 1957, quando foi sancionada a Lei nº 3.253. A partir de então, a Cédula de Crédito passou a possuir as seguintes formas: a) Cédula Rural Pignoratícia; b) Cédula Rural Hipotecária; c) Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária; e) Nota de Crédito Rural. Ainda, o Oficial do Registro de Imóveis deixou de figurar como autor das Cédulas. A emissão cabia ao devedor, perante a instituição concedente do crédito.

Interessante lançar aqui a peculiaridade do § 1º do art. 2º da mencionada Lei, que dispensou a outorga uxória para a constituição da garantia real objeto das Cédulas.

A Lei nº 3.253/57 definiu a Cédula de Crédito Rural. E essa forma permanece praticamente inalterada até hoje.

Posteriormente, foi editada a Lei nº 4.829/65, a qual institui a Política de Desenvolvimento da produção rural no Brasil. Dentre outros, o intuito expresso no art. 1º é o de proporcionar o bem-estar do povo.

Em seguida, enfim, o marco legal das Cédulas de Crédito no Brasil foi instituído. Em 14 de fevereiro de 1967, foi editado o Decreto-Lei nº 167, que dispõe sobre os títulos de crédito rural.

Desde então, a sistemática dos títulos de crédito rural é a definida pelo Decreto-Lei nº 167/67. Conforme art. 9º, são Cédulas de Crédito a Cédula Rural Pignoratícia, a Cédula Rural Hipotecária, a Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária, e a Nota de Crédito Rural.

O legislador, reconhecendo o sucesso das Cédulas rurais, tratou de aplicar o regime das Cédulas a outros ramos da economia.

Foi assim, então, que 1969 foi editado o Decreto-Lei nº 265, que instituiu a Cédula de Crédito Industrial. A finalidade é de instrumentalizar as operações de financiamento concedidas a pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem à atividade industrial.

Anos mais tarde, foi criadaa Cédula de Crédito à Exportação, por meio da Lei nº 6.313/75, com o objetivo de materializar as operações de financiamento à exportação ou à produção de bens voltados a exportação, bem como às atividades de apoio e complementares integrantes e fundamentais da exportação.

Nessa tendência, a Lei nº 6.840/80 criou a Cédula de Crédito Comercial, com vistas a representar as operações de empréstimos às pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem a atividades comerciais ou de prestação de serviços. O intuito, então, é de materializar a operação de empréstimo ao comércio em geral (hoje empresários).

No âmbito das Cédulas de Crédito Rural, foi editada a Lei nº 8.929, de 22.08.1994, a qual instituiu a Cédula de Produto Rural, representativa da promessa de entrega de mercadorias rurais, podendo conter, ou não, garantia real cedularmente constituída.

Enfim, em 2004, por meio da Lei nº 10.931, foi instituída a Cédula de Crédito Bancário, tendo sido concebida como instrumento de fomento ao crédito imobiliário, juntamente com a Cédula de Crédito Imobiliário. A finalidade das duas espécies de Cédulas é estimular o mercado imobiliário nacional, especialmente no que tange ao Sistema Financeiro Imobiliário e ao Sistema Financeiro da Habitação, no iter de cumprir a norma contida no art. 6º da Constituição Federal de 1988 (direito social da moradia).

Nesse histórico foi possível perceber a evolução das Cédulas no sistema legal pátrio. A importância de tais títulos é secular. Atualmente, grande parte dos créditos concedidos aos produtores e criadores é instrumentalizada por meio das Cédulas de Crédito. O estudo de tal instituto, portanto, é essencial.

Dessa forma, passemos então à análise do conceito e da natureza jurídica das Cédulas de Crédito.


3. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

As Cédulas foram instituídas como forma de instrumentalizar a concessão de crédito, como foi dito acima. A emissão da Cédula é a forma pela qual o devedor se compromete a uma obrigação. E essa obrigação sempre é ligada a um direito pessoal de crédito, ou seja, uma operação de entrega de numerário, ou de entrega de mercadorias.

Vale a lição de Sílvio de Salvo Venosa e Cláudia Rodrigues, em referência a Gladston Mamede:

“O crédito é vital para a exploração da atividade econômica. Muitos empresários dele se valem junto a Instituições Financeiras  para poderem movimentar sua empresa. As operações de financiamento, constituídas com base em empréstimos concedidos pelos bancos, ou entidades equiparadas, a pessoa natural ou jurídica, são representadas por títulos denominados cédulas e notas de crédito (MAMEDE, 2003, p. 343)”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil; direito empresarial / Sílvio de Salvo Venosa, Cláudia Rodrigues. – 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010, página 292).

A obrigação pode ser de pagar ou entregar mercadoria. Nesta última categoria, elencamos a Cédula de Produto Rural – CPR – a qual é destinada à promessa de entrega de determinado produto, conforme Lei nº 8.929/94.

É um documento particular, emitido pelo devedor, em favor do credor. Conforme art. 1º do Decreto-lei nº 167/67, o credor pode ser órgão integrante do SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural, e cooperativas rurais.

As Cédulas de Crédito podem ser garantidas por vínculo de direito pessoal e/ou de direito real. O art. 60 do Decreto-Lei nº 167/67 faz menção ao aval nas Cédulas de Crédito Rural.

Podemos dizer que as Cédulas de Crédito são títulos de crédito, que se submetem às regras do direito cambiário. Equiparam-se aos demais títulos de crédito circuláveis, possuindo os requisitos para tal intento.

3.1. Características das Cédulas de Crédito enquanto Títulos de Crédito

As características essenciais dos títulos de crédito são a literalidade, a autonomia, a abstração e a cartularidade. O art. 887 do Código Civil conceitua título de crédito como sendo o “documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”.

Arnaldo Rizzardo discorre sobre as características dos títulos de crédito:

“Quem melhor sintetizou as características fundamentais do título de crédito cambiário foi Vivante, na conhecida definição, considerando-o o documento necessário para o exercício odo direito literal e autônomo nele inserido. Essa definição restou adotada no presente Código Civil, art. 887. Segundo já se observou, contém o documento um direito reconhecido e certo, formado pelas partes, que a lei o reveste de certas qualidades. As principais características que surgem revelam-se na literalidade, na autonomia, na abstração e na cartularidade. Tão importantes essas qualidades que mais se constituem em princípios, reconhecidos universalmente”. (RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. – Rio de Janeiro: Forense, 2009, página 13).

A Cédula de Crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele inserido. Não há a necessidade de outro documento ou prova para a obtenção da prestação nela inscrita.

A qualificação das Cédulas de Crédito como sendo títulos de crédito importa em certas consequências. O escrito na cédula (cártula) é o que será exigido do devedor. O negócio que deu causa à emissão da Cédula não será levada a efeito, nem será oponível a terceiros (abstração). A autonomia na Cédula de Crédito é aplicada de forma mais restrita, conforme será estudado a seguir, quando da análise da classificação quanto ao grau de abstração.

No que tange à natureza do conteúdo do crédito, classificam-se dentre os títulos de crédito propriamente ditos, ou próprios, porquanto são constituídos para o cumprimento de uma prestação de entregar quantia em dinheiro ou outra coisa fungível.

Enquadram-se entre os títulos cambiariformes, quanto ao grau de abstração.

É o que ensina Arnaldo Rizzardo:

“Há, de outro lado, os títulos cambiariformes, classificados de títulos de crédito impróprios, isto é, aqueles que têm a foram de cambiários, pelo menos na exigibilidade do crédito, apresentando todos os requisitos de certeza e liquidez dos títulos cambiários, sendo nota primordial de sua caracterização a origem causal, e permitindo a discussão do fundamento que lhes deu origem, porquanto existem em função de um negócio que determinou a sua emissão. Exemplo típico está na duplicata, cuja emissão depende da prévia venda de mercadorias ou da prestação de serviços. Citam-se outros exemplos: o conhecimento de transporte ou de frete, o conhecimento de depósito, os bilhetes de passagem, as notas de entrada para assistir espetáculos públicos. Neste ramo de títulos, encontram-se as cédulas (pignoratícia ou hipotecária) de crédito, firmadas com instituições financeiras, como as de crédito rural, industrial, comercial, habitacional, e a cédula de crédito bancário, utilizada para o simples empréstimo e para o contrato de abertura de crédito. Incluem-se, ainda, a nota promissória rural, a nota de crédito rural, industrial ou comercial, e a duplicata rural”. (RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. – Rio de Janeiro: Forense, 2009, página 13)

As Cédulas de Crédito, portanto, existem em função de um negócio jurídico anterior, estando com ele vinculado. A finalidade do crédito concedido, por exemplo, é uma finalidade que deve ser respeitada. É o que reza o art. 2º do Decreto-lei nº 167/6:“O emitente da cédula fica obrigado a aplicar o financiamento nos fins ajustados, devendo comprovar essa aplicação no prazo e na forma exigidos pela instituição financiadora”. A aplicação do crédito rural em atividades estranhas a esse meio caracteriza infringência ao ato legislativo mencionado, podendo acarretar a inexequibilidade do título.

É o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

“Em sedo a cédula de crédito industrial um título causal, pode o obrigado invocar como defesa, além das exceções estritamente cambiais, as fundadas em direito pessoal seu contra a outra parte, para demonstrar que a obrigação carece de causa ou que esta é viciosa. Não é exequível a cédula industrial, cujo financiamento é aplicado em finalidade diversa daquela prevista na lei de regência”. (REsp nº 162.032/RS, da 3ª Turma, de 26.10.1999, DJ de 17.04.2000).

A autonomia possui aplicação restrita nas Cédulas de Crédito. Vejamos.

3.2. A abstração e a autonomia aplicáveis às Cédulas de Crédito

Os obrigados pelo título (emitente, endossante e avalista) possuem obrigados que não são dependentes entre si. Entretanto, não pode ser dito que existem direitos abstratos. Aliás, nem todos os títulos de créditos possuem direitos abstratos. A causalidade gera a vinculação dos títulos com as circunstâncias anteriores. Regime semelhante se aplica às Duplicatas.

Neste sentido, Luiz Guilherme Loureiro ensina:

“Nem todos os títulos de crédito são abstratos. Alguns deles, como é o caso da duplicata, não se desligam da causa que lhes deu origem, ou seja, são títulos causais”. (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Curso completo de direito civil. – 3ª ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2010, página 604).

Parece, no entanto, haver uma situação que torna quase inviável a circulação de tais cártulas. O portador do título seria penalizado por uma situação que não participou, ou que não deu causa. A irregularidade anterior não deve ser oponível ao portador da Cédula.

Novamente, valho-me da lição de Luiz Guilherme Loureiro para defender o dito:

“Por força da abstração, o título adquire eficácia cambiária independentemente da causa debendi. Embora o título tenha por fundamento ou causa o negócio jurídico, uma vez emitido ele se desvincula desta causa e passa a ter existência independente.

Em suma, a invalidade do negócio jurídico não implica, portanto, a nulidade do título de crédito, mas a parte devedora poderá opor exceção pessoal contra o credor baseada na ineficácia do negócio. Tal exceção, no entanto, não pode ser oposta contra o portador do título que não foi parte no negócio jurídico, justamente em face do princípio da abstração, uma vez que o título vale por si só, independentemente da causa que lhe deu nascimento”. (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Curso completo de direito civil. – 3ª ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2010, página 604).

O disposto no parágrafo único do art. 891 do Código Civil confirma o levantado.

A previsão contida nos artigos 10 e 36 do Decreto-Lei nº 167/67 permite concluir que a circulabilidade das Cédulas de Crédito se dá por meio do endosso. Instituto de direito cambial, que transfere o título e tudo o que nele estiver inscrito a favor do endossatário. É o princípio da literalidade.

Assim, o endossante não pode levantar exceções de direito pessoal em desfavor do endossatário de boa-fé. O contrário ocorreria se a transferência do título fosse operada mediante cessão de crédito.

A jurisprudência tendência nesse sentido. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso, em decisão objeto de Agravo de Instrumento no Superior Tribunal de Justiça, decidiu:

RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - CÉDULA RURAL PIGNORATÍCIA - PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA - AFASTADA - NULIDADE DO ADITIVO DE RETIFICAÇÃO E RATIFICAÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO - ARREDADA - PRESCRIÇÃO - INOCORRÊNCIA - DESVIO DE FINALIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - RECHAÇADA  - UTILIZAÇÃO DA TJLP - POSSIBILIDADE - COMISSÃO DE PERMANÊNCIA  -CUMULADA COM JUROS MORATÓRIOS E MULTA  - INADMISSIBILIDADE  -RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1.  O  julgamento  antecipado,  nos  termos  do  art.  330,  I,  do  CPC,  não  importa em cerceamento de defesa. Preliminar arredada.

2.  A  emissão  de  aditivo  de  retificação  e  ratificação  de  cédula  de  crédito rural pignoratícia  pelo  endossante  não  enseja  a  nulidade  do  mencionado  título  de  crédito, caracterizando  mera  irregularidade,  uma  simulação  inocente,  que  não  acarreta  qualquer prejuízo e é afastada com a aquiescência do endossatário.

3. A prescrição da cédula de crédito rural ocorre em 03 (três) anos, devendo, contudo, ser afastada quando inocorrente no caso.

4.  Não  é  nula  a  cédula  de  crédito  rural,  por  desvio  de finalidade,  quando  aquela se destina a renovar crédito com a mesma natureza e foi posta em circulação, encontrando-se em posse de terceiro de boa-fé, não havendo, por conseguinte, que se discutir sobre o negócio que deu origem  ao referido título de  crédito. Aplicação dos  princípios da  autonomia  e  abstração cambiária.

5. Desde que pactuada, a taxa de juros de longo prazo (TJLP) pode ser utilizada como indexador de correção monetária nos contratos bancários, conforme inteligência da Súmula nº 288 do STJ.

6. A comissão de permanência é inadmissível quando cumulada com juros moratórios, juros remuneratórios, correção monetária e/ou multa contratual.

7. Recurso conhecido e parcialmente provido". (AI nº 921.566, Rel. Min. João Otávio de Noronha, ST, DJ publicado em 07/02/2008).

O art. 60 do Decreto-Lei nº 167/67 expõe ser aplicável às Cédulas de Crédito Rural as disposições referentes ao direito cambial. Implica dizer que, naquilo que for compatível, as características dos títulos cambiários são aplicáveis às Cédulas de Crédito. E o endosso, nessa hipótese, mantém a formatação cambial, de abstração e autonomia do título em relação ao portador de boa-fé.

O art. 10 do Decreto-Lei nº 167/67 parece ter cometido um equívoco. A exposição disso é natural, diante do acima exposto. Não há como considerar a Cédula de Crédito Rural como sendo civil e, ao mesmo tempo, aplicar-lhe as disposições cambiárias. Tal impropriedade técnica pode levar à aplicação das normas civis de nulidade e anulabilidade dos atos jurídicos. No caso, as regras são diversas. Por exemplo, o título de crédito confeccionado com base em negócio jurídico simulado não pode ser anulado se o endossatário estiver de boa-fé. O prejuízo para o sistema de circulação das Cédulas estaria fragilizado.

3.3. Exequibilidade das Cédulas de Crédito

Merece destaque, neste norte de enquadrar a natureza jurídica das Cédulas de Crédito, que esses títulos são considerados executivos extrajudiciais. O mencionado art. 10 do Decreto-Lei nº 167/67 qualifica a Cédula de Crédito Rural como sendo expressão de um título líquido, certo e exigível pela soma dele constante ou do endosso. Já o Código de Processo Civil elenca, em seu art. 585, inciso III, como título executivo extrajudicial o contrato garantido por hipoteca e/ou penhor. O inciso VIII continua a afirmar a executividade das Cédulas de Crédito, visto que o art. 41 do Decreto-Lei nº 167/67 expressamente prevê a ação executiva como meio processual hábil a satisfação do crédito.

O art. 586 do Código de Processo Civil expõe os requisitos necessários para a viabilidade da ação executiva: obrigação certa, líquida e exigível. O já citado art. 10 do Decreto-Lei nº 167/67 literalmente natura a Cédula de Crédito Rural neste sentido.

O Superior Tribunal de Justiça é pacifico neste sentido. Vejamos:

“DIREITO BANCÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO VINCULADA A  CONTRATO DECRÉDITO  ROTATIVO.  EXEQUIBILIDADE.  LEI  N.  10.931/2004.POSSIBILIDADE  DE  QUESTIONAMENTO  ACERCA  DOPREENCHIMENTO  DOS  REQUISITOS  LEGAIS  RELATIVOS  AOSDEMONSTRATIVOS DA DÍVIDA. INCISOS I E II DO § 2º DO ART. 28DA LEI REGENTE.

1. A Lei n. 10.931/2004 estabelece que a Cédula de Crédito Bancário étítulo executivo extrajudicial, representativo de operações de crédito dequalquer  natureza,  circunstância  que  autoriza  sua  emissão  paradocumentar a abertura de crédito em conta corrente, nas modalidadesde crédito rotativo ou cheque especial.

2.  Para  tanto,  o  título  de  crédito  deve  vir  acompanhado  de  clarodemonstrativo  acerca  dos  valores  utilizados  pelo  cliente,  trazendo  odiploma legal a relação de exigências que o credor deverá cumprir, demodo  a  conferir  liquidez  e  exequibilidade  à  Cédula  (art.  28,  §  2º,incisos I e II, da Lei n. 10.931/2004).

3.  No  caso  em  julgamento,  tendo  sido  afastada  a  tese  de  que,  emabstrato, a Cédula de Crédito Bancário não possuiria força executiva,os  autos  devem  retornar  ao  Tribunal  a  quo para  a  apreciação  dasdemais questões suscitadas no recurso de apelação.

4. Recurso especial provido”. (RESp nº 1283621, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, STJ, DJ publicado em 18.06.2012).

Quanto às demais Cédulas, temos:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CÉDULA DE CRÉDITO INDUSTRIAL. EXECUTIVIDADE. RITO. PROCESSO CIVIL. EVENTUAL EXCESSO. ILIQUIDEZ. INOCORRÊNCIA. NÃO PROVIMENTO.

1. O excesso de execução não retira a liquidez do título, senão determina o decote do que sobejar ao efetivamente devido. Precedentes.

2. A execução de cédula de crédito industrial, título extrajudicial, pode ser feita pelo rito do Código de Processo Civil, haja vista sua previsão no artigo 585 daquele diploma. Precedente.

3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp 1309133/AL, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 03/05/2012)

3.4. Sistema de publicidade e eficácia das Cédulas de Crédito

O Código Civil de 2002, seguindo a tradição pátria do Código de 1916, consubstanciou a noção de essencialidade do registro como meio de aquisição de direitos reais. O art. 1.227 do CC/2002 prescreve que os “direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”.

As Cédulas de Crédito são instrumentos que, essencialmente, contêm garantias reais. O registro constitui etapa essencial para a aquisição desses direitos. Enquanto não houver o registro, o vínculo entre o credor e o emitente é de natureza obrigacional, pessoal.

O art. 30 do Decreto-Lei nº 167/67 determina:

“Art 30. As cédulas de crédito rural, para terem eficácia contra terceiros, inscrevem-se no Cartório do Registro de Imóveis:

a) a cédula rural pignoratícia, no da circunscrição em que esteja situado o imóvel de localização dos bens apenhados;

b) a cédula rural hipotecária, no da circunscrição em que esteja situado o imóvel hipotecado;

c) a cédula rural pignoratícia e hipotecária, no da circunscrição em que esteja situado o imóvel de localização dos bens apenhados e no da circunscrição em que esteja situado o imóvel hipotecado;

d) a nota de crédito rural, no da circunscrição em que esteja situado o imóvel a cuja exploração se destina o financiamento cedular”.

O Decreto-Lei nº 413/69, que dispõe sobre a Cédula de Crédito Industrial, repete a exigência de registro. O art. 29 determina:“A cédula de crédito industrial somente vale contra terceiros desde a data da inscrição. Antes da inscrição, a cédula obriga apenas seus signatários”.

A Lei nº 6.840/80, que trata das Cédulas de Crédito Comercial, no art. 5º,  remete às disposições do Decreto-Lei nº 413/69, o que submete tal instrumento ao registro como meio de eficácia erga omnes.

A garantia é a da publicidade. Além de constituir requisito formal para a sua própria constituição como direito real, o registro confere a publicidade ficta de que todos conhecem a situação jurídica do bem. A publicidade conferida pelo Registro de Imóveis é a mais eficiente, no que diz respeito ao bem imóvel especifico da hipoteca. A certeza do conhecimento da existência da hipoteca por terceiros é praticamente impossível. O Registro de Imóveis possibilita a ciência de todos aqueles que até ele se direcionem.

E o art. 4º da Lei nº 6.313/75, que dispõe as Cédulas de Crédito à Exportação, determina o registro obrigatório, segundo as regras da Cédula de Crédito Industrial.

Em relação às Cédulas de Crédito Bancário, não há previsão de registro específico desse título. O que se registra é a garantia real objeto da Cédula. A sistemática diferencia das demais Cédulas, exceto aquelas sem garantias reais (p.ex.: Nota de Produto Rural).

A Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, prevê a hipótese de registro desses direitos reais no art. 167, inciso I, 13, 14 e 15. As Cédulas são registradas no Livro nº 3 - REGISTRO AUXILIAR –, que é destinado aos atos sem repercussão direta ao algum imóvel matriculado ou transcrito. O art. 178 da mencionada Lei registral é taxativo ao permitir, no inciso II, o ingresso das Cédulas rural e industrial.

As garantias reais – hipoteca e penhor – são lançadas nas matrículas dos imóveis. O Livro nº 2 - REGISTRO GERAL – é destinado ao lançamento dos registros e averbações que digam respeito, diretamente ou indiretamente (princípio da concentração), ao imóvel matriculado, e que não estejam previstos no art. 178 como sendo de lançamento obrigatório no Livro nº 3.

3.5. Requisitos

A Cédula de Crédito, como qualquer outro título de crédito, deve seguir certos elementos, sem os quais desnaturam o título. Os requisitos das Cédulas de Crédito Rural estão expressamente previstos no Decreto-Lei nº 167/67.

O art. 14 do mencionado Decreto elenca os requisitos da Cédula de Crédito Rural Pignoratícia. Vejamos:

“Art 14. A cédula rural pignoratícia conterá os seguintes requisitos, lançados no contexto:

I - Denominação "Cédula Rural Pignoratícia".

II - Data e condições de pagamento; havendo prestações periódicas ou prorrogações de vencimento, acrescentar: "nos têrmos da cláusula Forma de Pagamento abaixo" ou "nos têrmos da cláusula Ajuste de Prorrogação abaixo".

III - Nome do credor e a cláusula à ordem.

IV - Valor do crédito deferido, lançado em algarismos e por extenso, com indicação da finalidade ruralista a que se destina o financiamento concedido e a forma de sua utilização.

V - Descrição dos bens vinculados em penhor, que se indicarão pela espécie, qualidade, quantidade, marca ou período de produção, se fôr o caso, além do local ou depósito em que os mesmos bens se encontrarem.

VI - Taxa dos juros a pagar, e da comissão de fiscalização, se houver, e o tempo de seu pagamento.

VII - Praça do pagamento.

VIII - Data e lugar da emissão.

IX - Assinatura do próprio punho do emitente ou de representante com podêres especiais”.

Como o próprio nome indica, os requisitos integram o conceito de validade do título. O art. 166, IV, do Código Civil reza que são nulos os negócios jurídicos que não revistam a forma prescrita em lei.

Assim, dentre os requisitos acima listados, a denominação Cédula Rural Pignoratícia integra o ato como requisito de validade. E isso se repete nos demais títulos de Crédito: o art. 20 do Decreto-Lei nº 167/67 dispõe sobre os requisitos da Cédula de Crédito Rural Hipotecária. Já o art. 35 dispõe sobre os elementos de validade das Cédulas de Crédito Rural Pignoratícia e Hipotecária. O art. 27 trata dos requisitos da Nota de Crédito Rural. Quanto às Cédulas de Crédito Industrial, o Decreto-Lei nº 413/63, os requisitos estão elencados no art. 14.

Importante salientar que, em todos os casos, as Cédulas de Crédito devem conter a praça de pagamento. Tal elemento é comum nos títulos de crédito. Este requisito é necessário para instrumentalizar a mora do devedor, por meio do Protesto do título.

Outro fator relevante é o disposto no art. 12 do Decreto-Lei nº 167/67:

“Art 12. A cédula de crédito rural poderá ser aditada, ratificada e retificada por meio de menções adicionais e de aditivos, datados e assinados pelo emitente e pelo credor”.

As Cédulas Rurais podem ser aditadas, ratificadas e retificadas por instrumentos diversos das próprias cártulas, dos títulos. Isso não ocorre com os demais títulos de crédito. Não é possível aditar um cheque ou uma letra de câmbio, por exemplo. A literalidade, a autonomia e a abstração não permitem tal ocorrência.

Em seguida, antes de entrar no tema principal deste trabalho, discorrerei sobre outro ponto essencial, qual seja, a possibilidade de venda dos bens apenhados ou hipotecados cedularmente.


4. VENDA DE BENS APENHADOS E HIPOTECADOS CEDULARMENTE

O art. 59 do Decreto-Lei nº 167/67 reza:

“Art 59. A venda dos bens apenhados ou hipotecados pela cédula de crédito rural depende de prévia anuência do credor, por escrito”.

A lei trouxe um requisito para a concretização da transferência de bens apenhados ou hipotecados cedularmente. A anuência do credor é essencial para que o negócio jurídico goze de todos os efeitos naturais da avença.

Ocorre que a regra acima dispõe sobre a venda dos bens. Interessa saber aqui a extensão desta previsão.

Entende-se que a anuência deve ser dada no ato de transferência inter partes, ou seja, na própria escritura pública ou no instrumento particular. E a anuência deve ser expressa, por escrito. Não basta a inércia do credor para provar a sua concordância.

A jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

“APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL GRAVADO COM HIPOTECA CEDULAR (CÉDULA DE CRÉDITO INDUSTRIAL). NECESSIDADE DE ANUÊNCIA DO CREDOR HIPOTECÁRIO. EXEGESE DO ART. 51 DO DECRETO-LEI N. 413/69. DECISUM MANTIDO. APELO DESPROVIDO. Estando o imóvel objeto da escritura pública de compra e venda gravado com hipoteca cedular (cédula de crédito industrial), faz-se necessária a aquiescência prévia e por escrito do credor para a sua alienação, a teor do disposto no art. 51 do Decreto-Lei n. 413/69”. (Apelação Cível nº 2011.045917-3, TJSC, Relator Des. João Henrique Blasi, publicado no DJ 16/11/2012).

O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. BEM GRAVADO COM HIPOTECA CEDULAR. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL. NECESSIDADE DE PRÉVIA ANUÊNCIA DO CREDOR. DL 167/67, ART. 59. LEI ESPECIAL. PREVALÊNCIA.

1. É necessária a prévia anuência do credor hipotecário, por escrito, para a venda de bens gravados por hipoteca cedular, nos termos do art. 59 do DL 167/67.

2. A regra geral do Código Civil não prevalece sobre a norma especial do art. 59 do DL 167/67, que disciplina o financiamento concedido para o implemento de atividade rural.

3. Recurso especial desprovido.

(REsp 908.752/MG, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 16/10/2012, DJe 26/10/2012)

Existem dois momentos na transferência de bens imóveis: o do consentimento, que é externado perante o Tabelião de Notas, na hipótese do art. 108 do Código Civil; e do registro, que é feito perante o Oficial do Registro de Imóveis. Conforme reza o art. 1.227 do Código Civil, os direitos reais sobre bens imóveis só se adquirem com o registro perante o Cartório de Registro de Imóveis. O consentimento deve ser levantado no primeiro momento.

A pena para o descumprimento da prévia anuência do credor é a ineficácia. Tal afirmação pode parecer confrontar com a previsão do inciso IV do art. 166 do Código Civil, o qual determina a nulidade dos atos que não revistam a forma prescrita em lei. No caso, falta a anuência do credor. Poderíamos afirmar, ainda, que o inciso VI do mencionado artigo é mais enfático ao prever a nulidade da venda sem anuência do credor, posto que o art. 59 do Decreto nº 167/67 proibiu a prática mas não cominou sanção.

No entanto, a simples ausência da anuência do credor não pode ter o condão de afastar a validade do negócio jurídico. A sanção seria irremediável. A nulidade não pode se restabelecer.

A sanção mais adequada é a ineficácia. A nulidade acarretaria a invalidade de todas as disposições do negócio jurídico, o que não parece prudente. O adquirente está ciente da existência da hipoteca, ou do penhor, visto a publicidade conferia via certidão. Não pode ele alegar desconhecimento, sob pena de, possivelmente, estar agindo de má-fé.

As outras disposições do negócio, como preço, prazos, condições, etc., merecem ser respeitadas. O credor hipotecário não será prejudicado com a alteração na titularidade do imóvel. O vencimento antecipado da dívida é um dos benefícios do credor, que pode utilizá-lo ou não, a seu critério. O que mais interessa ao credor é o adimplemento da obrigação. E o adquirente não poderá se eximir disso. Na praxe, corriqueiramente o que se vê é que o adquirente, normalmente, goza de melhores condições financeiras para honrar o compromisso.

Ainda, o credor hipotecário pode concordar com a venda, ratificando-a em todos os seus termos. Qualquer disposição que lhe prejudique, de outro modo, será considerada ineficaz, por descumprimento da previsão do art. 59.

Na hipótese de se considerar nulo o negócio jurídico, o credor não gozaria do benefício de ratificar o negócio, mesmo se lhe fosse favorável.

O que acontece é a demora das instituições financeiras em conferir a anuência à transação. Na interpretação pela nulidade, as partes não poderiam celebrar o negócio, mesmo que em benefício do credor. Há situações em que o negócio é celebrado justamente no intuito de evitar o inadimplemento por parte do devedor originário.

Ademais, nenhum prejuízo sofrerá o credor com a ineficácia. Todos os poderes inerentes à hipoteca ou ao penhor serão conservados.

A despeito disso, mostra-se recomendável, quando da lavratura do instrumento público de alienação, o estabelecimento de condição, de que o negócio somente terá acesso ao fólio real com a anuência do credor. Trata-se, assim, de uma condição suspensiva. O registro, com a aquisição dos direitos reais, somente ocorrerá com a anuência do credor, mesmo que em documento separado. O intuito é o de garantir o perfazimento do negócio jurídico, e o de cumprir o art. 59 do Decreto nº 167/67.

A finalidade dos serviços de notas é o de conferir segurança, eficácia, publicidade e autenticidade aos atos jurídicos. Esses princípios não podem ser utilizados como escusa para a negativa desarrazoada do exercício da atividade notarial e de registro. Por certo, temos que não é possível a confecção de atos nulos. Já a ineficácia reside também no núcleo da autonomia privada, com as suas consequências. Evitar prejuízos a terceiros constitui um dos pilares da atuação preventiva do Notário. No caso, a venda de bens hipotecados não será eficaz em relação ao credor.

Desta feita, chegamos ao tema principal deste trabalho, que passo a expor.


5. IMPENHORABILIDADE E AS CÉDULAS RURAIS

As Cédulas Rurais são títulos de crédito instituídos com o fito de estimular a produção rural, como já foi dito. As condições financeiras do negócio normalmente são mais atrativas para o ruralista. As instituições financeiras concedem crédito aos produtores com respaldo na emissão das Cédulas rurais, por diversos motivos, dentre eles, a proibição de venda de imóveis hipotecados sem a anuência do credor (art. 59 do Decreto nº 167/67), título de crédito circulável e negociável, título executivo extrajudicial, e a impossibilidade de penhora dos bens ofertados em garantia.

É o estatui o art. 69 do Decreto nº 167/67:

“Art 69. Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de crédito rural não serão penhorados, arrestados ou seqüestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão”.

A vedação é expressa no sentido de proibir a penhora, arresto e sequestro dos bens sujeitos à penhor ou hipoteca cedular. É uma previsão legal de impenhorabilidade do imóvel dado em garantia em Cédula Rural. Existem outras impenhorabilidades: a do imóvel residencial destinado à única habitação familiar, do imóvel doado com cláusula de impenhorabilidade, os bens descritos no art. 649 e art. 650 do Código de Processo Civil, da poupança (limitada a quarenta salários-mínimos), dentre outras.

A impenhorabilidade é uma garantia do titular do imóvel. O imóvel não poderá mais ser objeto de penhora. Significa dizer que as dívidas assumidas pelo proprietário não poderão recair, em qualquer momento, em regra, sobre o imóvel ofertado em garantia.

Não é possível confundir a impenhorabilidade com a inalienabilidade. A inalienabilidade é a impossibilidade de alienar, voluntariamente, um bem. Os imóveis dados em garantia cedular podem ser alienados, mas dependem da anuência do credor hipotecário. Não se fala em inalienabilidade, portanto. Existe o requisito da anuência. Como dito acima, entendemos que não é caso de nulidade, mas sim de ineficácia frente ao credor.

A impenhorabilidade, de outro lado, não diz respeito ao poder de dispor. Afeta o poder geral conferido aos magistrados. É uma limitação legal às medidas judiciais postas à disposição do magistrado e aos credores do proprietário, ou do emitente.

A discussão que existe é a seguinte: a vedação de penhora recai sobre todas as espécies de dívidas? a impenhorabilidade é absoluta? Passaremos à elucidação das questões.

Inicialmente, temos que considerar que o Decreto nº 167 foi editado em 1967. A restrição imposta à penhorabilidade do imóvel foi estabelecida como garantia ao desenvolvimento da política agrícola. Obviamente, o Decreto continua em vigência. A questão é a de reconhecer que a realidade era outra. Mas isso não é suficiente para afastar a irrestrita impenhorabilidade do imóvel dado em garantia em Cédula Rural.

Entendo que a impenhorabilidade cedular não é irrestrita. Cede em algumas situações, em virtude de disposições legais e da interpretação do art. 69 do Decreto nº 167/67. Esse é o entendimento consolidado na jurisprudência e na doutrina.

A meu ver, a impenhorabilidade cedular deve ser, em regra, respeitada, de modo a favorecer o sistema de estímulos ao setor bancário, que concede créditos com juros mais favoráveis ao ruralista. O credor cedular deve ser privilegiado frente a outros credores.

O sistema de benefícios financeiros ao meio rural é instituído com o intuito de estabelecer forma de desenvolver sem prejudicar ou onerar demais o ruralista. O prazo de carência, a forma de pagamento, a taxa de juros, e outras situações que favorecem o ruralista.

Ocorre que a impenhorabilidade cedular não prevalece a duas especificas categorias de credores: trabalhistas e falimentares. Parte da jurisprudência entende ainda haver a queda da impenhorabilidade frente aos créditos tributários.

Vejamos o julgamento de Apelação Cível por parte do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO FISCAL ESTADUAL. PENHORA. CÉDULA DE CRÉDITO INDUSTRIAL. PREVALÊNCIA DO CRÉDITO FISCAL. PRECEDENTES DO STJ. ARREMATAÇÃO DO MESMO BEM EM OUTRO PROCESSO, OBJETO DE RECURSO JUNTO AO EXTINTO E. TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS. AUSÊNCIA DE CARTA DE ARREMATAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

1. O crédito tributário prevalece sobre a impenhorabilidade estabelecida no Decreto-Lei nº 413/69. Precedentes do STJ.413

2. Embora alegue haver arrematado o imóvel objeto da controvérsia nos autos de outro processo, não foi expedida a competente carta de arrematação, em face de recurso interposto e recebido em ambos os efeitos, enviado ao extinto E. Tribunal Federal de Recursos, não se revelando, assim, até o momento, a legítima posse ou propriedade da embargante, a afastar a penhora realizada no executivo fiscal.

3. Recurso improvido.(70888 SP 94.03.070888-3, Relator: JUIZ CONVOCADO JAIRO PINTO, Data de Julgamento: 10/02/2010, TURMA SUPLEMENTAR DA PRIMEIRA SEÇÃO)

O que a jurisprudência entende em relação ao crédito trabalhista é que a impenhorabilidade cedular não é absoluta. O rol previsto no art. 649 no Código de Processo Civil não elenca o crédito cedular como absolutamente impenhorável. Desta feita, existem outros créditos com privilégios maiores.

A regra da impenhorabilidade deve distinguir, portanto, os bens absolutamente impenhoráveis e os relativamente impenhoráveis. O mencionado art. 649 do CPC expõe a solução. No caso, a impenhorabilidade cedular não consta do mencionado rol.

O art. 449, § 1º da Consolidação das Leis do Trabalho impõe o privilégio crédito trabalhista em situação de falência:

“Art. 449 - Os direitos oriundos da existência do contrato de trabalho subsistirão em caso de falência, concordata ou dissolução da empresa.

§ 1º - Na falência constituirão créditos privilegiados a totalidade dos salários devidos ao empregado e a totalidade das indenizações a que tiver direito”. (Redação dada pela Lei nº 6.449, de 14.10.1977)

A solução do problema reside em considerar o fator da falência ou da insolvência do devedor. Nessas hipóteses, o crédito trabalhista não segue apenas essa regra, mas também a contida no art. 83 da Lei nº 11.101/2005, que reza o seguinte:

“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;

II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;

III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias;

IV – créditos com privilégio especial, a saber:

a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia;

V – créditos com privilégio geral, a saber:

a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;

c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

VI – créditos quirografários, a saber:

a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;

b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;

c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;

VIII – créditos subordinados, a saber:

a) os assim previstos em lei ou em contrato;

b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.

§ 1o Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.

§ 2o Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.

§ 3o As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência.

§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários”.

A ordem dos créditos na falência obedece está ordem. O crédito trabalhista, com a limitação contida no inciso I (150 salários-mínimos), possui privilégio concursal.

Entendo, assim, que o privilégio do crédito trabalhista não existe na hipótese de solvência do devedor. Isso porque não há regra que estabelece prioridade ou privilégio ao crédito trabalhista nesta circunstância. Além disso, presume-se que com a solvabilidade do devedor, todos os credores serão honrados e os débitos satisfeitos. Não há porque impor que o bem hipotecado ou empenhadocedularmente responda, de pronto, pela dívida trabalhista. Deve-se buscar o patrimônio do devedor, e caso não existam outros bens ou créditos penhoráveis, aí sim pode haver a penhora do bem hipotecado ou empenhado cedularmente.

Evidentemente que temos duas posições neste trabalho: a defendida por parte da jurisprudência, pela derrubada da impenhorabilidade cedular, em certas situações; e a tese da irrestrita impenhorabilidade cedular.

Entendo que a impenhorabilidade cedular não pode ser afastada em nenhuma hipótese, desde que presentes dois requisitos: a) solvência do devedor; b) inexistência de vícios na constituição do gravame cedular. Digo isso porque a impenhorabilidade cedular deve ser afastada quando constituída apenas com o intuído de prejudica terceiros, seja sob o manto da simulação, seja sob qualquer outra circunstância nesse sentido.

É esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, fixado no julgamento do Recurso Especial nº 122.316/MG, com decisão publicada no Diário do dia 16 de agosto de 2001, de Relatoria do Min Cesar Asfor Rocha, conforme segue:

"Decisão. Execução. Impossibilidade da penhora sobre bens gravados com hipoteca cedular. Art. 69 do DL n° 167/67. Precedentes. Recurso especial a que se nega seguimento.

1. O Eg. Tribunal de origem decidiu pela procedência dos embargos à execução, entendendo serem impenhoráveis os imóveis rurais hipotecados através de cédula de crédito rural, por aresto, na parte que aqui interessa, assim ementado:

Execução. Bens gravados com cédula rural hipotecária. Impenhorabilidade. Nulidade da penhora. Extinção dos embargos. Sucumbência.

Bens gravados com cédula rural hipotecária são impenhoráveis por disposição expressa de lei, independentemente da data da constituição da obrigação.

Daí o recurso especial, fundamentado na alínea 'a' do permissivo constitucional, alegando que a impenhorabilidade prescrita no art. 69 do DL n° 167/67 não é absoluta, sendo viável a penhora sobre bens sujeitos à hipoteca cedular.

Sem contra-razões, o recurso foi admitido na origem.

2. O entendimento consolidado nesta Corte é o de que 'são impenhoráveis os bens dados em garantia hipotecária de cédula de crédito rural e industrial' (por decisão monocrática, o REsp 309.881/GO, Rel. Min. Ari Pargendler, no DJ de 04/05/01). E no mesmo sentido os seguintes precedentes: REsp n° 170.582/G0 - 20/11/00 - Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior; REsp n° 35.643/MG - DJ 10/11/97 - Rel. Min. Barros Monteiro; REsp n° 116.743/MG - DJ 01/12/97 - Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito; REsp n° 120.007/MG - DJ 17/11/97 - Rel. Min. Costa Leite, os dois últimos assim ementados:

'Penhora. Del 167/1967, art. 69. Precedentes da Corte e do STF.

1. Na linha dos precedentes desta Corte e do STF, não são penhoráveis os bens já onerados com penhor ou hipoteca constituídos por cédula rural.

2. Recurso especial não conhecido”.

No entanto, a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça é no sentido contrário, admitindo a penhora dos bens dados em hipoteca cedular. Vejamos:

“TÍTULOS DE CRÉDITO. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL HIPOTECÁRIA. PENHORA DO BEM DADO EM GARANTIA. ART. 69 DO DECRETO-LEI N. 167/67.IMPENHORABILIDADE RELATIVA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

1. A jurisprudência desta Corte Superior tem assegurado que a impenhorabilidade prevista no art. 69 do Decreto-lei n. 167/67, não é absoluta, porquanto cede a eventuais circunstâncias, tais quais: a) em face de execução fiscal, em razão da preferência dos créditos tributários; b) após a vigência do contrato de financiamento; e c) quando houver anuência do credor.

2. O Pretório Excelso, analisando a questão, já se posicionou no sentido de relativizar a aplicabilidade do art. 69 do Decreto-lei n.167/67, porquanto o instituto não pode exceder as suas finalidades.

3. Inexistência de risco ao crédito cedular garantido por hipoteca.Despicienda a proteção inserta no art. 69 do Decreto-lei n. 167/67, pois a impenhorabilidade visa a garantir recursos suficientes para a satisfação do crédito agrícola, situação que, pelo contexto dos autos, não requer tal providência, uma vez que o crédito objeto da penhora, tão-somente, irá ser satisfeito, se sobejarem recursos quando do adimplemento do valor dado em garantia.

4. Recurso a que se nega provimento.

(REsp 220.179/MG, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2010, DJe 14/04/2010)”

O Decreto nº 167/67 estabeleceu a impenhorabilidade cedular justamente para que sejam impenhoráveis. A diferenciação entre absolutamente e relativamente impenhoráveis estabelecida na Lei processual deve respeitar o previsto na legislação especial. É o que fez o art. 648 da lei instrumental:

“Art. 648. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”.

O art. 69 do Decreto nº 167/67 não é lacônico. Taxativamente, os bens dados em garantia cedular são impenhoráveis. Assim, não podem estar sujeitos à penhora. Exceção feita se insolvente o devedor. Nesta situação, a regra que prevalece é a da Lei nº 11.101/2005, e desde que presentes os requisitos para a concorrência falimentar.

A jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça paulista é a mesma. No julgamento do processo nº 2008/66450, da Corregedoria Geral da Justiça, foi decidido o seguinte:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Penhora – Impossibilidade de averbação – Existência de hipoteca cedular já registrada – Cédula de crédito rural – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Inteligência do art. 69 do Dec.-lei nº 167/67.”

O Código Tributário Nacional prevê a prioridade do crédito tributário, no art. 184. Vejamos:

“Art. 184. Sem prejuízo dos privilégios especiais sobre determinados bens, que sejam previstos em lei, responde pelo pagamento do crédito tributário a totalidade dos bens e das rendas, de qualquer origem ou natureza, do sujeito passivo, seu espólio ou sua massa falida, inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis”.

Em verdade, o crédito tributário goza de privilégios concursais. No entendo, essa prioridade não pode ser oposta ao credor cedular. O próprio art. 184 é claro ao excetuar os privilégios especiais previstos em lei.

Aqueles que não aceitam tal argumento como suficiente para afastar a prioridade do crédito tributário frente ao crédito cedular, podemos afirmar que tal previsão do CTN não pode ser levantada para afastar a prioridade cedular. Isso porque o CTN foi sancionado em 25 de outubro de 1966. Antes, portanto, do Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967.

O nosso entendimento é o mesmo defendido por Rubia Carneiro Neves. Segue a lição da doutrinadora:

“Deve-se, portanto, respeitar a impenhorabilidade do bem cedular em detrimento de qualquer outro. O credor cedular é o beneficiário da garantia real instituída na cédula de crédito, bem como da cláusula de impenhorabilidade criada por lei, o que representa para ele o direito de se pagar prioritariamente com o produto da venda judicial do bem objeto da garantia. Os demais credores do devedor, emitente da cédula, devem concorrer ao eventual excesso da venda.

Não se trata de discriminação dos demais credores, já que o credor cedualr está respaldado pela existência da garantia real que reveste o crédito privilegiado.

A impenhorabilidade é a qualidade daquilo que não pode ser penhorado, e pode resultar da lei ou da vontade. Caso resulte da vontade, obviamente, deve-se estendê-la como inoperante em relação ao crédito tributário; se decorre da lei, há que ser respeitada. E a impenhorabilidade do bem cedular decorre da lei, que fala amplamente de outras dívidas, quaisquer que sejam, inclusive as dívidas trabalhista e fiscal.

O que se pretende com a prevalência do crédito tributário é justamente evitara cláusula de impenhorabilidade voluntária; ou seja, que simples atos de vontade retirem seus bens do alcance do credor tributário. Mas não se pode negar a impenhorabilidade instituída por lei, que esteve formalmente capacitada para criá-la, e o fez em relação a qualquer bem”.

(NEVES, Rubia Carneiro. Cédula de crédito: doutrina e jurisprudência. – Belo Horizonte : Del Rey, 2002, página 84 e 85).

Nesse sentido, entendo ser a impenhorabilidade cedular uma regra que deve ser respeitada sob qualquer condição, desde que presentes os requisitos de que o devedor não esteja sob processo falimentar e de que o crédito cedular tenha origem sem vícios.


6. CONCLUSÃO

O Decreto-Lei nº 167/67 estabeleceu o maior marco legal em termos de estímulos ao crédito rural. Por meio dela foi solidificada a noção de instrumento de crédito voltado ao meio rural. As instituições financeiras fazem uso de um confiável instrumento de concretização do financiamento rural. As Cédulas de Crédito Rural conferem certo grau de certeza e liquidez ao mercado financeiro, de modo a beneficiar tanto a instituição financeira quanto o ruralista. Podemos dizer que o concedente do crédito pode oferecer juros mais atrativos, prazos mais elásticos, e outras condições mais favoráveis ao ruralista, principalmente pelo fato de que tais instrumentos traduzem o sucesso da política agrícola concretizada em 1967.

As Cédulas de Crédito Rural tem a finalidade de servir de instrumento de concessão de crédito. São títulos de crédito de natureza executiva extrajudicial. Gozam de certeza e liquidez suficientes para tanto. Podem ser garantidas por penhor e hipoteca. As espécies são: Cédula Rural Pignoratícia, Cédula Rural Hipotecária, Cédula Rural Pignoratícia e Hipotecária e Nota de Crédito Rural.

Os requisitos das Cédulas de Crédito Rural estão dispostas no mencionado Decreto. A publicidade das Cédulas é conferida com o registro perante o Oficial do Registro de Imóveis da circunscrição do imóvel oferecido em hipoteca, ou do local onde estiver situado o bem oferecido em penhor. Somente há a aquisição de direito real sobre bens imóveis com o registro do contrato perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, conforme preceitua o art. 1.227 do Código Civil.

Os bens ofertados em hipoteca ou penhor cedular não podem ser vendidos sem a anuência expressa do credor cedular. É a expressa dicção legal.

A regra contida no art. 166, IV e VII do Código Civil indica a sanção de nulidade para o negócio jurídico celebrado sem a anuência do credor. Inclusive a jurisprudência confirma esse entendimento.

Apesar disso, defendo a aplicação da sanção da ineficácia do negócio jurídico celebrado sem a anuência expressa do credor cedular. A sanção da nulidade acaba por tornar o negócio irremediável, insanável. Não há prejuízo ao credor cedular na aplicação da sanção de ineficácia. Perante terceiros a avença é regular. Perante o credor, ela não produz efeitos.

Um dos fundamentos para tal entendimento é que, normalmente, os negócios jurídicos de compra e venda de bem hipotecado ou apenhorado cedularmente visam justamente a satisfação da dívida. O devedor originário não tem a capacidade financeira de honrar o compromisso, e acaba vendendo a coisa para terceiro com maior condição de pagar a dívida. Em caso de inadimplemento por parte do terceiro adquirente, o credor não será prejudicado, visto que alegará a ineficácia, desconsiderando-se a avença em benefício dele.

Ainda, as Cédulas Rurais atribuem à coisa dada em garantia a condição de impenhorável. Tal característica tem o condão de servir em benefício do credor. A coisa não poderá ser objeto de penhora sob qualquer hipótese.

No entanto, parte da doutrina e jurisprudência, inclusive a mais recente do Superior Tribunal de Justiça, entendem que a impenhorabilidade cedular cede em certas situações. Entendem que os créditos tributário, trabalhista, e às vezes condominial gozam de preferência em relação ao credor cedular.

Concluo, no entanto, defendendo a distinção de duas situações: a) a solvência do devedor; b) ausência de vícios na constituição do negocio. Quando o devedor cedular estiver solvente não há como afastar a impenhorabilidade cedular. Isso porque aplica-se a regra do art. 69 do Decreto-Lei nº 167/67, plenamente em vigência. Do contrário, havendo a insolvência ou a falência do devedor cedular, aplicam-se as disposições da Lei de Falências, especialmente o art. 83, que dispõe sobre a ordem de preferência concursal. Ainda assim, o crédito cedular prefere ao crédito tributário, mas não ao crédito trabalhista.

A ausência de vícios visa impedir especialmente a simulação. As partes pactuam a celebração de Cédula de Crédito no intuito de prejudicar terceiros credores, por meio da máscara da impenhorabilidade cedular.

A impenhorabilidade cedular é um benefício não só do credor cedular, da instituição financeira, da cooperativa de crédito, mas de todo o sistema de financiamento rural. Garante estabilidade às relações de crédito rural. Torna mais atraente a linha de crédito ao ruralista. Afastar a impenhorabilidade cedular em certas situações pode trazer um certo grau de desconfiança ao sistema. A segurança jurídica fica comprometida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis : doutrina, prática e jurisprudência. – 15 ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2010.

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Curso completo de direito civil. – 3ª ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2010.

MAMEDE, Gladston. Código Civil comentado. São Paulo, Atlas, 2003.

NEVES, Rubia Carneiro. Cédula de crédito: doutrina e jurisprudência. – Belo Horizonte : Del Rey, 2002.

PIRES, Sady Dornelles. Cédula de crédito rural: execução. Bens apenhados. Alienação antecipada. Permissão legal (art. 41, § 1º, Dec.-lei 167/67). Conveniência. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 606, ano 75, p. 37, abr. 1986.

RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. – Rio de Janeiro: Forense, 2009.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil; direito empresarial / Sílvio de Salvo Venosa, Cláudia Rodrigues. – 2ª ed. – São Paulo: Atlas, 2010.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, José Eduardo de. Cédulas de crédito e a impenhorabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3718, 5 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25225. Acesso em: 8 maio 2024.