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Coisa julgada e a imutabilidade das decisões judiciais cíveis

Coisa julgada e a imutabilidade das decisões judiciais cíveis

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Sumário: 1 - Introdução. 2 - O CPC e a ação rescisória. 3 - Conteúdo constitucional da coisa julgada. 4 – O dever do Estado de prestar a jurisdição. 5 – A injustiça da prestação jurisdicional. 6 – A Revisão dos julgados. 7 – A justiça penal. 8 – Conclusão.


1. Introdução

O jurista Vicente Ráo[1], ao se reportar ao tempo como elemento definidor de direito, valeu-se da lição de Portalis, expressa com as seguintes palavras: "o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem da natureza só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade, querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças".

No sentido da segurança dos fatos jurídicos ocorridos no passado, a Constituição Federal estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

É indiscutível que a finalidade maior do direito é a aplicação da justiça. O direito não é afinal senão a realidade que tem o sentido de se achar ao serviço da idéia de justiça[2].

Entre o fazer justiça e a inviolabilidade das decisões já exaradas, mesmo que estas, não tenham atingido aquele ideário de justiça buscado pelo direito, deve prevalecer as decisões que mesmo injustas o tempo, agindo conforme o pensamento de Portalis, tenha sarado as feridas que as mesmas causaram, ou, a coisa julgada que não tenha realizado justiça deve ceder seu lugar à justiça, sendo então aplicado o juízo rescindente e também o juízo rescisório.

Despertar a importância do tema na nossa atualidade jurisdicional do processo civil, consiste a finalidade deste nosso texto, e ressaltamos de imediato que, no processo penal, a matéria recebe tratamento diferenciado conforme demonstraremos.


2. O CPC e a ação rescisória

O art. 485 do Código de Processo Civil estabelece:

- A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

Vl - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

Vll - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

§ 1.º - Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

§ 2.º - É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

Ainda o Código de Processo Civil, no seu artigo 495, estabelece o prazo decadencial de 2(dois) anos para a propositura da ação rescisória prevista quando ocorrer qualquer das situações elencadas no artigo 485 já relacionado.

Ocorrendo decisão judicial protegida pela coisa julgada, mesmo que não atingido o desideratu de fazer justiça, não se enquandrando tal fato em nenhuma das hipóteses elencadas no artigo 485 acima transcrito ou, fluído in albis o biênio decadencial, necessariamente a sociedade terá que conviver com a injustiça da decisão? Na órbita atual de nosso direito positivo, é possível modificação na seção II do capítulo VIII, do título VIII, do livro I, do vigente Código de Processo Civil? O texto constitucional permite que o Poder Judiciário descubra o manto protetor da inviolabilidade das decisões transitadas em julgado? Busquemos adiante as respectivas respostas.


3. Conteúdo constitucional da coisa julgada

Qualquer pretensão inovadora da ordem jurídica de um Estado deve necessariamente ocorrer conforme a sua Constituição. Portanto, passemos a analisar o verdadeiro sentido do inciso XXXVI do artigo 5.º da Constituição Federal. Ao determinar que a lei não prejudicará a coisa julgada, o texto constitucional está determinando que as decisões transitadas em julgadas são imutáveis? Respondendo-se afirmativamente esta indagação, na mesma linha de raciocínio teremos que admitir que os artigos das leis que disciplinam as conhecidas "ação popular" e "ação civil pública" e que tratam da eficácia da coisa julgada resultante das sentenças exaradas naquelas ações, são inconstitucionais pois, permitem que no futuro os conteúdos das referidas sentenças sejam modificados por ação a novo. Fenômeno processual idêntico foi inserido no nosso ordenamento jurídico através do artigo 103 da lei n.º 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. Vejamos os dispositivos legais retromencionados:

LEI N.º 4.717, DE 29 DE JUNHO DE 1965.

Regula a ação popular

Art. 18. A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

LEI N.º 7.347, DE 24 DE JULHO DE 1985.

Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências.

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

LEI N.º 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990.

Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:

I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;

II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;

III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

§ 1.º Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.

§ 2.º Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.

§ 3.º Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.

§ 4.º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.

Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

Em razão da leitura dos diplomas legais supratranscritos, percebe-se que coexistem a coisa julgada e a posterior mudança do comando sentencial, e não se vislumbra nenhuma inconstitucionalidade. Referimos à coisa julgada nos exatos termos do artigo 467 do Código de Processo Civil. Assim, aquelas sentenças referidas nos artigos 18, 16, 103 e 104 das leis que tratam respectivamente da ação popular e ação civil pública, no caso dos dois primeiros artigos mencionados, e da lei instituidora do Código de Defesa do Consumidor, para os dois últimos artigos mencionados, perfazem coisa julgada por não mais estarem suscetíveis de algum recurso, no entanto, suas eficácias, em dadas situações previstas na legislação, não ficam imunes à mutabilidade. Os retromencionados artigos 18, 16, e 103, das leis n.º s 4.717/65, 7.347/85 e 8.078/90, respectivamente, reguladores das ações tutelares de direitos metaindividuais, cujas sentenças possuem efeito "erga omnes" porém, quando os respectivos pedidos forem improcedentes por insuficiência de provas, novas ações com idênticos fundamentos, causae petendi iguais, poderão ser ajuizadas individualmente deste que instruídas com novas provas. Lembremos que estes autores individuais, em caso de procedência do pedido formulado na ação coletiva, a coisa julgada lhes beneficiaria, no entanto, a improcedência do pedido naquela ação coletiva, não lhes afasta a possibilidade de renovarem o mesmo pedido tido anteriormente como improcedente, utilizando a via individual para o ajuizamento da nova ação com o mesmo fundamento e o mesmo pedido. Na comum das situações, uma ação que tenha pluralidade de autores, mesmo que o pedido formulado seja julgado improcedente por não terem os autores produzido provas capazes de convencer o órgão julgador da existência do direito que perseguem, não haverá oportunidade para renovarem a ação individualmente mesmo que munidos de novas provas, e esta situação não se confunde com aquela do artigo 485, VII, do Código de Processo Civil. Neste caso, abre-se o caminho da ação rescisória somente no caso da descoberta futura de documento novo, e não de qualquer outro nova prova, e mais, a ação rescisória não é o mesmo que individualmente, aqueles autores da ação ajuizada conjuntamente, ajuizarem novas ações com o mesmo fundamento e o mesmo pedido que fora julgado improcedente naqueloutra ação que ajuizaram em conjunto.

Para compreendermos corretamente o porquê das situações processuais elencadas no parágrafo anterior, basta buscar o exato valor hermenêutico da expressão "a lei não prejudicará a coisa julgada" consignada na vigente Constituição Federal. Destaque-se que a Constituição Federal não assegura a inviolabilidade das decisões judiciais. Ao garantir que "a lei não prejudicará a coisa julgada", a Constituição com este comando está afirmando que o legislador infraconstitucional, não poderá editar leis, lato sensu, cujo conteúdo atinja as decisões do Poder Judiciário que foram exaradas sob a égide da lei vigorante na época das suas respectivas prolatações. Sabemos que a decisão judicial sentença, constitui-se na aplicação da lei existente no ordenamento jurídico ao caso concreto objeto da demanda. O juiz aplica ao caso concreto que julga, a lei que o regula e que já existe no direito positivo por obra do Poder Legislativo, tratando-se evidentemente de um Estado Democrático de Direito. Assim, a proteção à coisa julgada nos moldes assentados no vigente texto constitucional, impede que o Legislativo, no seu constante trabalho de editar novas leis, através destas, agrida a decisão judicial legítima, por ter sido exarada em consonância com a legislação vigente à época da elaboração da referida decisão judicial, e que por isso, tornou-se coisa julgada, protegida contra o futuro produto do trabalho legislativo. Repita-se portanto que, a expressão coisa julgada não se confunde com imutabilidade das decisões judiciais.

Oportuna é a lição do professor Paulo Roberto de Oliveira Lima[3] sobre o tema em comento. Verbis:

Proteção constitucional da coisa julgada

Repetindo os textos anteriores, a atual Carta Magna, em seu art. 5.º, inciso XXXVI, estabelece: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A inserção da regra, dentro do art. 5.º, da Constituição, atinente aos direitos e garantias individuais, de certa forma explica a desmedida extensão que alguns refletida e irrefletidamente teimam em emprestar ao instituto.

Consoante se observa da leitura do dispositivo, a regra nele insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois, de sobredireito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador ou seja, ao legislar é interdito ao Poder Legiferante "prejudicar" a coisa julgada. É essa a única regra sobre "coisa julgada" que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária.

Baseados então, no exato significado da norma constitucional atinente à coisa julgada, percebe-se com facilidade que realmente, coisa julgada não é igual a imutabilidade das decisões judiciais.


4. O dever do Estado de prestar a jurisdição

O Estado brasileiro, por imposição constitucional, atraiu para si o dever de prestar a jurisdição. Este é o mandamento insculpido no artigo 5.º, inciso XXXV. Mas, qual o exato dever jurisdicional que a Constituição obriga o Estado brasileiro a prestar aos seus jurisdicionados? Para respondermos a essa questão, são necessários alguns esclarecimentos.

Quem sofre lesão ou ameaça a direito, apoiado naquele mandamento do artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição Federal, tem o direito de reclamar do Estado a proteção jurídica que lhe assegura o ordenamento legislativo. Evidentemente, esta proteção jurídica somente é pleiteada ao Estado quando o interessado não obtém de maneira espontânea, voluntária, o bem jurídico que o direito positivo lhe reserva. Desamparado então, pede ao Estado a proteção que merece, passando então o Estado a agir na sua função jurisdicional, cuja finalidade é resguardar a ordem jurídica, o império da lei e, como conseqüência, proteger aquele dos interesses em conflito que é tutelado pela lei, ou seja, amparar o direito objetivo[4]. Por razões óbvias, a solução que o Estado ofertar ao interessado no bem jurídico que não foi alcançado de forma espontânea e voluntária, terá que ser justa. E aí, a justa solução poderá ser representada pela igualdade assim representada: se for justa a prestação jurisdicional ofertada pelo Estado, esta solução, necessariamente, terá que ser igual à solução que o interessado obteria caso alcançasse de maneira espontânea e voluntária, ou seja, sem oposição de terceiros, o mesmo bem jurídico que pretendeu alcançar através da tutela jurisdicional do Estado. Nessa linha de pensamento está o prof. José Roberto dos Santos Bedaque[5], reproduzindo a lição de Proto Pisani nos termos seguintes:

Na medida em que a atividade jurisdicional representa a resposta dada pelo Estado à proibição da autodefesa, é necessário proporcionar ao titular de um interesse juridicamente protegido exatamente aquilo que o direito substancial lhe concede, mas que, por alguma razão, não foi possível efetivar-se naturalmente.


5. A injustiça da prestação jurisdicional

No Brasil, a conhecida ação rescisória é o remédio ofertado pelo Estado para livrar o jurisdicionado das falhas ocorridas na prestação jurisdicional. Com firmeza asseveram os professores Arnaldo Esteves Lima e Poul Eik Dyrlund[6] que "a ação rescisória, dentre outros aspectos, tem por escopo a obtenção de justiça, (...)". Porém, a realidade da ação rescisória no direito brasileiro, não atinge seu desideratu principal porque, as hipóteses de cabimento da referida actio rescisória, conforme acima elencado, não permite a correção do julgado eivado de injustiça. A jurisprudência nesse sentido é vasta. Vejamos:

Art. 485: 43. Se o juiz, "errando na apreciação da prova, disse que decidia como decidiu porque o fato ocorrera (apesar de provada nos autos a não ocorrência), ou porque o fato não ocorrera (apesar de provada a ocorrência), não se configura o caso do inciso IX. A sentença, conquanto injusta, não será rescindível" (Bol. AASP 1.600/197, citando Barbosa Moreira).(Apud de THEOTONIO NEGRÃO, com a colaboração de José Roberto Ferreira Gouvêa. CPC legislação processual civil em vigor. 31.ª ed. atual. até 5 de janeiro de 2000. São Paulo: Saraiva, p. 490, 2000.).

Injustiça da sentença e reexame da prova. A ação rescisória não se presta para a correção de injustiça da sentença nem para reexame da prova(RT 541/236). É medida excepcional que só pode fundar-se nas hipóteses taxativamente enumeradas na lei. No mesmo Sentido: CPC 39 800.(Apud de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 4.ª ed., R. dos Tribunais, p. 943, 1999.).


6. A revisão dos julgados

Nos itens precedentes vimos que é perfeitamente possível a coexistência da coisa julgada com a possibilidade de serem revistas as decisões judiciais. Nesse sentido, como é o caso das ações ditas protetoras de interesses metaindividuais, o próprio ordenamento jurídico expressamente estabelece a possibilidade de novo julgamento a questões já decididas anteriormente. Vimos também que, a proteção à coisa julgada estabelecida no vigente texto constitucional, não inviabiliza a revisão de decisões judiciais, muito pelo contrário, prever a Constituição expressamente a ação rescisória, vide artigos 102, inciso I, j; 105, inciso I, e; e 108, inciso I, b. Acolhida então a revisão das decisões judiciais, qual o porquê de não admitir-se revisões de julgados cíveis nos casos em que estes não atingirem sua finalidade precípua, que é a aplicação da justiça?

Evidentemente que aqui não estamos a defender a eterna possibilidade das revisões dos julgamentos do Poder Judiciário. Eis que, fazer justiça é também proporcionar estabilidade às decisões judiciais que dirimem os conflitos de interesses, qualificados pela resistência às pretensões e denominados de lide por Carnelutti.

Autores de nomeada defendem a tese da imutabilidade das decisões judiciais como sendo o mais benéfico para a sociedade. O professor Lopes da Costa[7] afirmou que seria impossível de ocorrer a estabilização da ordem jurídica se os conflitos entre os cidadãos se pudessem eternizar. O eminente José Carlos Barbosa Moreira[8] ressalta que a segurança das relações sociais exige que a autoridade da coisa julgada, uma vez estabelecida, não fique demoradamente sujeita à possibilidade de remoção. Ainda quanto às sentenças eivadas de vícios muito graves, a subsistência indefinida da impugnabilidade, incompatível com a necessidade da certeza jurídica, não constituiria solução aceitável no plano da política legislativa, por mais que em seu favor se pretendesse argumentar com o mal que decerto representa a eventualidade de um prevalecimento definitivo de erro. O legislador dos tempos modernos, aqui e alhures, tem visto nesse o mal menor.

No que pese o respeito que merecem os doutrinadores antes citados, ao nosso sentir, no atual estágio de desenvolvimento da civilização humana, inexiste espaço de conformação com o erro. Decisão injusta é decisão errada. E existe fundamentação científica que justifique o homem atual tornar-se comparsa do erro? Temos o pensamento de que o homem cresce cientificamente quando busca a verdade, e erro não é verdade, portanto, não há alicerce científico que justifique ser a convivência com o erro um mal menor para a sociedade.

Felizmente, pudemos constatar que a doutrina já manifesta preocupação com o problema do erro da prestação jurisdicional tornar-se eterno, caso não ocorra qualquer das situações previstas no artigo 485 do Código de Processo Civil ou, ocorrendo qualquer delas, o prazo decadencial do artigo 495 do Código de Processo Civil seja inaproveitado. O professor Paulo Roberto de Oliveira Lima[9] oferece oportuna contribuição para a correção das erronias advindas da prestação jurisdicional do Estado.


7. A justiça penal

Diferentemente da solução ofertada no juízo cível, o nosso ordenamento jurídico penal de há muito já absorveu a idéia de que é rebarbativo manter os desacertos das decisões judiciais convivendo com os benefícios advindos da necessária estabilidade jurídica que tais decisões deve ofertar à sociedade. Entre manter a estabilidade e corrigir os desacertos, optou o legislador penal pela busca à perfeição da resposta jurisdicional que impreterivelmente o Estado atrai para si a responsabilidade de proporcionar.

Permite então a legislação penal vigente, que a qualquer momento, detectado o desregramento da decisão judicial penal, cabível será a revisão objetivando corrigi-la.

É oportuno destacar que, ao contrário do que ocorre em matéria cível, na jurisdição penal a doutrina se mostra amplamente favorável às revisões dos julgados quando a finalidade for a busca pela justiça real. Neste sentido o professor Julio Fabbrini Mirabete[10] leciona: é a intangibilidade da sentença transitada em julgado (res judicata) fundada na justiça e segurança jurídica, para que o imperativo jurídico contido na sentença tenha força de lei entre as partes. Em tese, a sentença pode ser justa ou injusta mas, se contra ela não cabe mais recurso, deve ser respeitada como depositária da verdade ("res judicata pro veritate habetur"). Mas, no processo penal em especial, a coisa julgada deve ceder ante os imperativos da Justiça substancial e à verdade formal há que se impor à verdade real (...). Assim temos que, a justiça penal pátria de há muito não se conforma com o erro provocador da injustiça através das decisões judiciais. Pelo menos teoricamente, a nossa justiça penal busca atingir sempre a finalidade maior do direito que é a aplicação da justiça, conforme já expusemos.


8. Conclusão

Conforme destacamos no item 3 retro, o nosso ordenamento jurídico atual, no âmbito da tutela jurisdicional de natureza cível, já enseja possibilidade da revisão dos julgados, além do que ocorre nas hipóteses elencadas no artigo 485 e além do prazo extintivo do artigo 495, ambos do vigente Código de Processo Civil.

A revisão do julgado objetivando alcançar a justiça da decisão, por sua vez, não significa a implantação da instabilidade das decisões judiciais em nosso direito. Aliás, existem casos onde a legislação atual determina a revisão do julgado, casos específicos das conhecidas ação popular e ação civil pública, e nestas situações legais não se cogita que há provocação da instabilidade na prestação jurisdicional. Aí harmoniosamente convivem a coisa julgada, a revisão dos julgados e a estabilidade social advinda das decisões judiciais definitivas.

Finalizando, pensamos que o passar do tempo não pode ser argumento científico suficiente para se justificar a convivência da sociedade com o erro judiciário, e isto já está demonstrado através da revisão criminal. Temos no âmbito do direito penal, a possibilidade de revisar a qualquer momento uma decisão judicial dita definitiva, e isto, além de servir para a própria correção do erro judiciário, mostra também que não é pacífica a convivência da sociedade com os resultados das prestações jurisdicionais desregradas.


NOTAS

1.RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 3ª ed., anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. R. dos Tribunais, v. 1, p. 323, 1991.

2.RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6.ª ed., Trad. Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Arménio Amado, p. 91, 1979.

3.LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à Teoria da Coisa Julgada. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, p. 84, 1997.

4.SANTOS, Moacyr Amaral. 21.ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1.º vol., p. 69, 1999.

5.BEDAQUE, José Roberto dos Santos. 2.ª ed. rev. e amp., São Paulo: Malheiros Editores, p. 20, 2001.

6.ARNALDO, Esteves Lima, DYRLUND, Poul Erik. Ação Rescisória. Rio de Janeiro : Forense Universitária, p. 1, 2001.

7.COSTA, Lopes da. Manual Elementar de Direito Processual Civil. 3.ª ed., rev. atual. por Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, p. 218, 1982.

8.MOREIRA, José Carlos Barbosa. In: Comentários ao Código de Processo Civil. 7.ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, v. V, p. 214, 1998.

9.Ob. Cit. p. 111 e seguintes.

10.MIRABETE, Julio Fabbrini Mirabete. Processo Penal. 8.ª ed. São Paulo: Atlas, p. 672, 1998.


BIBLIOGRAFIA

ARRUDA, Alvim, PINTO, Teresa Arruda Alvim. Repertório de Jurisprudência e doutrina sobre Nulidades Processuais. 2.ª série. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira. 1.ª ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1994.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição – fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

BASTOS, Celso Ribeiro. In: Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2.º v., 1989.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela antecipada: tutelas Sumárias e de Urgência (Tentativa de sistematização). 2.ª ed. rev. e amp., São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

LIMA, Arnaldo Esteves, DYRLUND, Poul Erik. Ação Rescisória. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à Teoria da Coisa Julgada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. In: Comentários ao Código de Processo Civil. 7.ª ed. rev. e amp., Rio de Janeiro: Ed. Forense, v. V, 1998.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6.ª ed. rev. e acrescida, trad. e prefácio do Prof. L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado – Editor, Sucessor, 1979.

RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 3.ª ed., anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. 1 e 2, 1991.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. 23ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1993.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 21.ª ed. rev. e atual. por Aricê Moacyr Amaral Santos, São Paulo: Saraiva, 1.º v., 1999.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, João Ricardo da. Coisa julgada e a imutabilidade das decisões judiciais cíveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2779. Acesso em: 16 abr. 2024.