Apontamentos acerca da violação ao sigilo de correspondência dos presidiários no Brasil
Apontamentos acerca da violação ao sigilo de correspondência dos presidiários no Brasil
Juliana Silva Barros de Melo Sant'Ana
Publicado em . Elaborado em .
No Brasil, a Administração penitenciária, com fundamento na preservação da ordem pública, rotineiramente devassa o conteúdo das correspondências dos detentos, partindo da premissa de que todas elas contém ilicitudes.
Ao se tratar de direitos fundamentais, o cuidado e as limitações em relação ao que dizemos acerca de suas restrições requer a máxima atenção. Premissas básicas na análise de possibilidades ou não de restrição são a preservação do núcleo essencial, o respeito à dignidade da pessoa humana e a consciência de que nenhum direito é absoluto.
O sigilo de correspondência é um direito fundamental de defesa contra ingerências de qualquer tipo na intimidade da pessoa humana. A respeito de sua possível restrição, é silente nossa Lei Maior. Porém, em razão da interpretação sistemática de nossa Constituição, somos forçados a reconhecer que nenhum direito fundamental é absoluto, por isso, admitimos que exista, implicitamente, reservas ao sigilo de correspondência. Entendemos que o artigo 5º, inciso XII, é uma norma constitucional de eficácia contida implícita, sendo possível, pois, que a lei tratasse dos casos excepcionais de violação à correspondência, sempre precedidos de autorização judicial.
No caso dos presos, a Lei de Execuções Penais preceitua ser possível a suspensão e a restrição às suas correspondências, por meio de dispositivo recepcionado pela Constituição Federal, na medida em que preserva o núcleo essencial do direito, qual seja, o segredo das cartas. Porém, o que ocorre no Brasil é que, a Administração penitenciária, com fundamento na preservação da ordem pública, rotineiramente devassa o conteúdo das correspondências dos detentos, partindo da premissa de que todas elas contém ilicitudes.
Esse comportamento, a nosso entender, afigura-se inconstitucional, pois viola o núcleo essencial do direito ao sigilo de correspondência – não atingido pela sentença penal condenatória. Se não há lei que permita a quebra, no mínimo, deveria ser esta precedida de autorização judicial que ponderasse cada caso concreto.
Sugerimos, para legitimar os casos em que a quebra do sigilo da correspondência aparente-se necessária, quer pelo comportamento do preso, quer por denúncias de práticas ilícitas na penitenciária, em não havendo permissão legal, que toda quebra seja acompanhada de uma decisão judicial devidamente fundamentada, que a justifique.
Toda interceptação não amparada por lei – no caso, pela Lei de Execução Penal - ou quebra não amparada por autorização judicial, será por nós considerada violação à Lei Maior de nosso ordenamento jurídico, o que significa dizer, inconstitucional. Se a lei que regulamenta uma restrição não existe ou não é suficiente para autorizar uma restrição grave de um direito, há de se considerar, pela máxima de que nenhum direito individual fundamental é absoluto, a possibilidade de quebra, desde que devidamente amparada por autorização judicial fundamentada, com a real finalidade de se garantir a conveniência da instrução criminal, a segurança jurídica ou a ordem pública, principalmente no caso por nós discutido, em que tratamos do preso, pessoa humana que já é privada de direitos em relação aos quais nem mesmo o melhor dos presídios seria capaz de amenizar a dor da perda. Injusto seria permitir a indiscriminada violação a direitos que não foram por ele perdidos.
Toda restrição a direito fundamental, seja pela colisão com outro direito ou com outro valor constitucional, deve pautar-se na legalidade e funcionalidade do ato. No caso de nossa análise, a LEP permite que se restrinja ou limite a correspondência do encarcerado, sempre de forma justificada. Porém, não há autorização para o devassamento de sua correspondência, o que faz que ela não se justifique sem motivos justos, a cada caso concreto, analisados pela autoridade judiciária. Há valores constitucionais em jogo. Segurança jurídica, instrução criminal e ordem pública, sem dúvida, permitem restrições na aplicação de outros direitos, mormente por se tratarem de garantir o bem maior a ser preservado que é a coletividade. Porém, uma vez sendo desnecessárias, para a garantia de tais valores, violações a direitos fundamentais, estas não deverão ocorrer.
Encontramos apoio nas palavras Fernando Facury Scaff, quando afirma que
“Qualquer ato ou norma que venha a infringir os princípios fundamentais da Constituição Federal, como os que estabelecem os objetivos fundamentais à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional erradicando a pobreza e a marginalização e reduza as desigualdades sociais e regionais, deve ser considerado inconstitucional, através de controle difuso ou concentrado, por magistrado de qualquer instância, a fim de permitir que a Constituição prevaleça, e que a vontade do povo ao instituir aquele documento não seja posta de lado.”[1]
É assim - tendo por base o que dita nossa Carta Magna, bem como a inexistência de lei que permita a violação do sigilo epistolar - que pugnamos pela aplicação da reserva de jurisdição, sempre que um diretor de estabelecimento penitenciário veja a necessidade de se violar a correspondência de um detento em nome da ordem pública. Concluímos, no presente trabalho, que o sigilo das correspondências é um direito fundamental que possui reserva restritiva implícita, face à não-absolutez dos direitos.
Sendo assim, a Lei de Execuções Penais, que regulamentou a possibilidade de restrição às correspondências dos presos, corretamente, não previu a possibilidade de quebra do sigilo.
Portanto, ao se vislumbrar administrativamente, no caso concreto, a necessidade de quebra do sigilo epistolar de um detento por fundadas suspeitas de práticas ilícitas, o diretor do estabelecimento deverá remeter ao juízo competente[2]o pedido de autorização para que tal quebra seja permitida. A jurisdição é quem fiscalizará e dirá da necessidade de se violar ou não um direito fundamental em seu núcleo essencial, determinando os casos em que o interesse público realmente seja prevalente ao particular, de forma a evitar injustiças e maiores humilhações do que aquelas às quais o cárcere naturalmente já submete o ser humano.
Notas
[1]Apud LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio – os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 125.
[2]Deixamos aqui nossa posição no sentido de que o juízo competente para determinar a quebra ou não do sigilo de correspondências dos presos é o da Vara de Execuções Penais.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
SANT'ANA, Juliana Silva Barros de Melo. Apontamentos acerca da violação ao sigilo de correspondência dos presidiários no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4122, 14 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29916. Acesso em: 18 maio 2024.