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A teoria do adimplemento substancial

cuidados para que ela não seja banalizada

A teoria do adimplemento substancial: cuidados para que ela não seja banalizada

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O objetivo é identificar os critérios utilizados para aplicação desta teoria, a fim de se conhecer o que se entende como “substancial” adimplemento do contrato para manter a permanência do mesmo, e não a sua extinção judicial em caso de inadimplemento.

RESUMO: O objeto do presente trabalho é realizar uma breve análise da Teoria do Adimplemento Substancial e sua aplicação nas discussões judiciais envolvendo contratos bilaterais. O objetivo geral é identificar o significado da Teoria do Adimplemento Substancial e o objetivo específico é identificar critérios utilizados para aplicação da referida teoria pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, a fim de se conhecer o que se entende como “substancial” adimplemento do contrato para manter a permanência do mesmo, e não a sua extinção judicial em caso de inadimplemento (como alternativa que é dada para a vítima do inadimplemento, em conformidade como art. 475, do Código Civil). O trabalho é classificado, em sua linha de pesquisa, na investigação principiológica e/ou aplicação da Ciência Jurídica. Utilizar-se-á da técnica da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial para instrumentalizar o presente artigo científico, utilizando-se da base lógica indutiva (“pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter percepção ou conclusão geral”[2]) para relatar os resultados do trabalho.

Palavras-chave:Teoria do Adimplemento Substancial – Segurança Contratual - Inadimplemento


INTRODUÇÃO

O trabalho pretende retratar, em breves linhas, a Teoria do Adimplemento Substancial, os critérios para a sua configuração e a sua aplicabilidade nos Tribunais, especialmente no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

O fenômeno massivo dos contratos, na atualidade, tem gerado diversas situações jurídicas anômalas que, num passado não muito distante, sequer se imaginavam. Tal fenômeno, inclusive, fez com que fossem revistos princípios tradicionais do direito contratual como, por exemplo, o princípio da obrigatoriedade dos contratos (ou pacta sunt servanda), segundo o qual, a fim de se manter a segurança daquilo que foi contratado, o acordo das partes deveria ser cumprido integralmente, na forma como foi estabelecido.

A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, mais especialmente, da entrada em vigor da Lei n. 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), a interferência do Estado nas relações contratuais passou a ter uma atuação mais direta na vontade das partes contratantes, decorrente do fenômeno da Constitucionalização do direito privado.

As relações civis que, em princípio, não eram atingidas diretamente pelas determinações estatais, passaram a sê-lo. Aliás, categorias que eram predominantes no direito privado (família, propriedade e contrato), passaram a ter uma intervenção estatal muito forte, especialmente diante de princípios constitucionais positivados como a função social, solidariedade, igualdade, dignidade da pessoa humana etc..

Diante dessa intervenção, houve o enfraquecimento de certos princípios contratuais clássicos, como o princípio da obrigatoriedade dos contratos. Por tal princípio, uma vez aceito o contrato pelas partes, deverá ser cumprido na exata forma escolhida por elas, a fim de dar a segurança jurídica que ambas as partes esperam nos termos do instrumento que firmaram.

Diante de certos abusos contratuais, o princípio da obrigatoriedade dos contratos passou a ser suplantado por outros princípios, como o princípio da revisão dos contratos, o da supremacia da ordem pública, o da função social do contrato, o da boa-fé objetiva. Assim, aquele contrato inicialmente realizado pelas partes, caso esteja afrontando tais princípios, ou esteja inquinado de algum ilícito, ou abuso de direito (que também é ato ilícito, conforme art. 187, do Código Civil), poderá ser resolvido ou revisto, judicialmente, pela parte vitimada.

No entanto, o Poder Judiciário deve atentar para o fato de que, a exemplo da já propalada “indústria do dano moral”, deve-se cuidar para que não ocorra a “indústria da revisional”. Essa “indústria” pode ocorrer de forma pior do que o próprio dano moral, decorrente de uma ação revisional de contrato, ou por meio de resposta do réu ou em sede reconvencional, especialmente com o intuito de, meramente, protelar as discussões judiciais no âmbito do Poder Judiciário com discussões que não atingem o contrato de forma tão grave.

Por vezes, tais atitudes do devedor podem ser direcionadas, especialmente, com o intuito de o mesmo se utilizar tanto da morosidade do sistema judiciário brasileiro, quanto da possibilidade de conciliação “forçada” ao credor, o qual, pelo tempo decorrido sem o pagamento de seu crédito “obriga-se” a aceitar um acordo, sob os auspícios do velho brocardo: “mais vale um bom acordo, que uma péssima demanda”.

O princípio da segurança jurídica deve prevalecer. As partes, e aqui, especialmente, o devedor da prestação, também deve ser responsável na mensuração das consequências do contrato, no sentido de que, antes de aceitar as condições contratuais, deve identificar quais serão os efeitos do mesmo. No entanto, por “omissão” (ou, por vezes, por desconhecimento), deixa para identificar eventuais abusos somente após a assinatura do acordo, muitas vezes procurando se valer de situações sem tanta importância para pretender discutir, após, o contrato, mas certa de que a demora do processo irá lhe trazer benefícios, afrontando, gravemente, a segurança das relações contratuais.

Certas teorias do direito contratual foram criadas com o intuito de estabelecer o equilíbrio contratual. Exemplo disso é a Teoria do Adimplemento Substancial, cuja intenção tem um cunho de eficácia no reestabelecimento da justiça contratual. No entanto, não pode ser banalizado, ao ponto de se considerar qualquer adimplemento realizado como substancial, a fim de interferir, inclusive, na intenção de resolução contratual por parte da vítima do negócio jurídico inadimplido.

Assim, o presente artigo objetiva trazer à lume o significado da Teoria do Adimplemento Substancial na teoria dos contratos, bem como identificar o que a doutrina e a jurisprudência entendem como “substancial”, a fim de não determinar a resolução do contrato e, sim, a simples execução da prestação inadimplida.

A linha de pesquisa do trabalho é a investigação principiológica e?ou aplicação da Ciência Jurídica, será utilizada a técnica da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial para auxiliar na busca dos resultados e o método investigativo é o indutivo.                       


1. A SEGURANÇA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

A segurança jurídica é um princípio constitucional assegurado no art. 5º, caput, da CRFB?88[3] e um direito social assegurado no art. 6º, da CRFB?88[4]. Não se refere somente à segurança pessoal, mas também se direciona à proteção patrimonial, a qual, muitas vezes, está assegurada por meio de um contrato.

Por mais lógica que seja a afirmação, qualquer pessoa que realiza um contrato almeja estar segura das condições que levaram as partes a concluir a negociação. Esta segurança se baseia na boa-fé, na confiança, na honestidade que as partes exigem uma da outra nesta relação.

Se uma das partes (ou ambas), ao aceitar um contrato, já tiver “segundas intenções”, seja no sentido de concluir o contrato e já antever que não terá condições de cumpri-lo, seja no sentido de concluir o contrato, mas sabendo que não irá cumprí-lo, total ou parcialmente, pode-se identificar má-fé naquele contraente que assim imagina a situação contratual. Aquele que pensa desta forma está fazendo uma “reserva mental”, ou seja, no seu íntimo, sabe que não poderá cumprir o contrato, ou mesmo não deseja cumprí-lo, mas esconde tal situação da outra parte que, se soubesse de tal situação, certamente não concluiria a negociação.

A reserva mental é vedada pelo Código Civil, em seu art. 110, o qual determina que “A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.

Portanto, o que se quer é segurança no contrato, de forma que as partes cumpram aquilo que concluíram na negociação. Caso não haja o cumprimento, a legislação civil permite que o responsável pelo inadimplemento seja punido pela parte inocente, exigindo-se a resolução, ou a execução?cobrança da avença, com a cláusula penal estipulada no contrato (e nos patamares juridicamente aceitos), bem como indenização suplementar, caso o valor da cláusula penal não seja suficiente para cobrir os prejuízos do dano causado pelo inadimplente.


2. EFEITOS DO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL

No direito das obrigações, “adimplemento” tem o significado de cumprimento dos compromissos assumidos. Aquele que descumpre o que se comprometeu é considerado “inadimplente”.

De forma geral, o Código Civil determina, no art. 475, que “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.

Veja-se que o art. 475 outorga duas situações, cuja preferência é dada àquele que foi vitimado com o descumprimento contratual:

a) pedir a resolução?desfazimento do contrato, de forma que as partes voltarão ao status quo ante, ou seja, à situação anterior do contrato, como se o mesmo não tivesse sido realizado, exigindo-se os consectários legais daquele que foi inadimplente, como a cláusula penal e eventuais danos decorrentes de indenização suplementar         (perdas e danos);

b) exigir o cumprimento do contrato, bem como a indenização por perdas e danos.

   Para Silvio Rodrigues:

“Dado o inadimplemento unilateral do contrato, pode o contratante pontual, em vez da atitude passiva de defesa, adotar um comportamento ativo na preservação de seus direitos. De fato, se o inadimplemento resulta de culpa de um dos contratantes, a lei concede ao outro uma alternativa. Com efeito, pode ele: a) exigir do outro contratante o cumprimento da avença; b) pedir judicialmente a resolução do contrato.

A opção, pelo menos no campo teórico, constitui prerrogativa do contratante pontual, e a lei (art. 475), determinando que a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato com perdas e danos, concede uma faculdade que o beneficiário usará se quiser (...)”[5].

Importante ressaltar também que os efeitos do inadimplemento contratual dependerão de seu objeto, pois nem todas as obrigações são iguais. Assim, existem obrigações positivas (dar, fazer restituir) e negativas (não fazer), as quais poderão não permitir que seja realizado o cumprimento de uma obrigação. Imagine-se, assim, o descumprimento de uma cláusula de confidencialidade no contrato. Uma vez disseminado o segredo, como se pedir a exigência de seu cumprimento? Assim, restará à parte a resolução contratual e o pleito indenizatório pela ofensa à cláusula de sigilo.


3. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

Pela Teoria do Adimplemento Substancial, se grande parte do contrato foi cumprida pelo inadimplente, não se permite o desfazimento do contrato, impedindo o retorno das partes ao status quo ante. Poderá a vítima pedir perdas e danos ao inadimplente, além daquela parte que faltar para o cumprimento da avença, mas não resolver, judicialmente, o contrato.

Ao se pesquisar acerca do assunto, observou-se que a doutrina fundamenta o Adimplemento Substancial como um adimplemento muito próximo do resultado final, excluindo-se o direito de resolução, pois a resolução contratual viria a ferir, neste caso, o princípio da boa-fé-objetiva[6], na sua função de controle do equilíbrio jurídico. Tem por fundamento, ainda, o artigo 187, do Código Civil[7], a boa-fé, a função social do contrato e na disposição de que a cobrança deverá ser realizada de modo menos gravoso ao devedor, a exemplo do que determina o art. 620, do Código de Processo Civil[8].

No entanto, aquele que pretende a resolução de um contrato, por inadimplemento da outra parte, não abusa de seu direito, pois pratica o ato no exercício regular de um direito reconhecido (art. 475, do CC), não constituindo, portanto, ato ilícito (art. 188, I, do CC). Pelo contrário: aquele que descumpre a obrigação contratual por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, comete ato ilícito, pois, com o inadimplemento, viola direito e causa dano ao outro (art. 186, do CC).

O Enunciado 361, do Centro de Estudos Judiciários do CJF, orienta o seguinte, ao se interpretar o art. 475, do Código Civil[9]:

361 – Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.

Ao justificar este enunciado, Eduardo Luiz Bussatta ensina o seguinte[10]:

“Justificativa. (...) a teoria do adimplemento substancial veda à parte lesada pelo inadimplemento a busca da resolução do contrato quando o adimplemento for substancial, ou seja, quando o inadimplemento for de escassa importância. Segundo a doutrina pátria, tal teoria deve ser adotada no Direito brasileiro, seja em razão da boa-fé objetiva, na sua função de controle (limitação ao exercício das posições jurídicas ou direitos subjetivos), visto importar em exercício desequilibrado do direito à resolução ante a pequenez do inadimplemento (pequena lesão que acarreta grande sanção), seja em razão da função social do contrato, já que visa à conservação do negócio. Sem sombra de dúvida, não se pode permitir que a resolução do contrato se dê nas situações em que o adimplemento parcial se aproxima da conduta devida, porquanto há necessidade de observar a justiça contratual, isto é, a proporcionalidade.

   O grande impasse na Teoria do Adimplemento Substancial é compreender o real significado do termo “substancial”. Como visto, o adimplemento substancial deve ser aquele que se aproxima do resultado final da obrigação contratual. Mas, como se saber o quanto é substancial? Quanto é o “muito próximo” do resultado final? Sabe-se que não basta que seja “próximo”: deve ser “muito” próximo.

Aliás, a proporcionalidade não é razoável em certas situações. Dizer-se, desta forma, que faltar 20% (vinte por cento) do contrato para ser concluído, dependerá muito do que está em jogo. Se o contrato determinar uma obrigação total de R$10.000,00 (dez mil reais), por exemplo, e faltar 20% para ser concluído, estará se dizendo que, do contrato, foram pagos R$8.000,00 (oito mil reais) e que restam R$2.000,00 (dois mil reais). Mas se disser que, num contrato de R$10.000.000,00 (dez milhões de reais) restar 20% para ser concluído, estará se falando em R$2.000.000,00 (dois milhões de reais). Então, esta proporção de 20% nunca será a mesma para todos os contratos, pois os valores que envolvem serão variáveis e poderá a decisão judicial traduzir uma iniquidade, se interpretada da mesma forma a porcentagem para a conclusão do contrato.

Da mesma forma, o objeto contratado pode indicar a diversidade da aplicação da referida teoria. Imagine-se, por exemplo, numa mesma época terem sido adquiridos um veículo avaliado em R$200.000,00 e um apartamento, também avaliado em R$200.000,00, em que ambos os bens (móvel e imóvel) tenham sido adquiridos em 100 (cem) parcelas de R$2.000,00[11]. Passados 70 meses (ou seja, 5 anos e 10 meses) do início do contrato, imagine-se que as 30 parcelas restantes, tanto do apartamento, quanto do veículo, não tenham sido quitadas. Pela Teoria do Adimplemento Substancial (e pelos percentuais aplicados pelos Tribunais, como abaixo se verificará), 70% do contrato já poderia dar ensejo à aplicação da Teoria. No entanto, o imóvel que há 5 anos e 10 meses custava R$200.000,00, normalmente, após esse prazo, tem uma valorização maior no mercado, o que viria a beneficiar o inadimplente, caso aplicada a Teoria, pois o mesmo, ainda que inadimplente, permaneceria com o imóvel, agora mais valorizado, restando ao credor executar as parcelas restantes, calculadas pelos valores contratados que levaram em consideração o preço do imóvel há mais de 5 anos. Por outro lado, o veículo, que há 5 anos e 10 meses custou o mesmo preço (R$200.000,00), terá, após este prazo, uma séria desvalorização, de forma que o inadimplemento das prestações restantes não levará em consideração a desvalorização da coisa, mas o valor das parcelas no início do contrato e, caso aplicada a Teoria do Adimplemento Substancial, restaria ao credor a execução das 30 parcelas restantes ao mesmo preço do início do contrato, o que trará maiores vantagens ao vendedor do veículo, credor das prestações (exceto, é claro, se o devedor não tiver patrimônio para responder pelo inadimplemento). Tal aspecto econômico, portanto, deverá ser levado em consideração na aplicação da referida teoria, lembrando-se, no entanto, que ao se pretender aplica-la, deve o julgador levar em consideração a proteção maior, no contrato, daquele que não foi o responsável pelo inadimplemento, a fim de “moralizar” o adimplemento contratual em sua completude.

É sabido que, pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor (art. 391, do CC). Mas, se, por exemplo, restar 20% do débito a ser pago no contrato, e se o devedor não tiver patrimônio para saldar o restante da dívida, não poderá o contratante vitimado com o inadimplemento buscar a resolução do contrato, porque, pela teoria do “adimplemento substancial”, determina que o mesmo deverá cobrar?executar o saldo da dívida? O que, no caso, é mais injusto? Não pagar o saldo e deixar o devedor com a coisa, ou deixar o devedor com a coisa, e não conseguir se resgatar o saldo?

Certas teorias jurídicas muitas vezes servem como subterfúgios para inadimplentes contumazes, causando mais insegurança do que segurança nas relações contratuais. Neste sentido, veja-se que, quando se estabeleceu a possibilidade de prisão civil do depositário infiel na alienação fiduciária em garantia de bens móveis (Decreto 911?69), certamente havia menos inadimplemento contratual do que atualmente, em que a prisão civil do devedor não é possível na alienação fiduciária em garantia, ou mesmo em qualquer espécie de depósito (voluntário, necessário ou judicial).

Assim, a coerção legal (e não a coação) podiam servir como formas de fazer com que o inadimplente pensasse melhor antes de desfazer a relação contratual. Se não pudesse pagar o débito, certamente faria um esforço muito maior para satisfazê-lo, a fim de que não lhe fosse aplicada pena mais severa (prisão civil por depositário infiel). Abrandar-se o caminho do devedor na relação contratual, que não consegue identificar causas excludentes de responsabilidade civil, é atentar à própria segurança conferida constitucionalmente às partes nela envolvidas.

Em decisão proferida no REsp 1215289/SP[12] (julgado em 05?02?2013, Terceira Turma), o Rel. Ministro Sidnei Beneti levantou dois critérios para se identificar o inadimplemento substancial:

“No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as conseqüências que, da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das conseqüências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida.”

Então, para se aplicar a Teoria do Adimplemento Substancial, o julgador deverá atentar para a situação específica do contrato, especialmente o quanto falta para o resultado próximo do final do contrato. Mas, será que as decisões judiciais proferidas têm observado este dado específico? Será que os percentuais faltantes para o cumprimento do contrato se aproximam, efetivamente, do término contratual para ser considerado “substancial”?


4. EXEMPLOS DE CASOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA

Não há critério objetivo, absoluto, para determinar-se o percentual necessário à quantificação do adimplemento substancial. A título de exemplo da quantificação utilizada em caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, entendeu-se, numa avença que em 1996 importava R$268.261,00, identificou-se que, no ano de 2007 (ou seja, mais de 10 anos depois), o saldo devido totalizava R$26.640,09, permitindo a aplicação da teoria do adimplemento substancial (AgRg no AREsp 155.885/MS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/08/2012, DJe 24/08/2012)[13].

Outro caso que muito se aproximou do final da relação contratual foi o caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em que, de um total de R$230.000,00 foram pagos R$227.000,00, ou seja, 98,7% (noventa e oito vírgula sete por cento) do total do contrato, entendendo o julgador ser :

“(...) viável se valer da teoria do substancial adimplemento do contrato, mencionada na sentença, para, em consequência, ‘impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato’ (STJ, REsp n. 1051270?RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 05.09.2011)” (TJSC, Apelação Cível n. 2013.015561-1, da Capital, rel. Des. Henry Petry Junior, j. 12-12-2013)[14].

Nos dois casos anteriores, pode-se observar que o término contratual estava muito próximo, ao ponto de autorizar a resolução contratual. No entanto, a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial tem sido também utilizada para percentuais maiores inadimplidos nos contratos. Como se disse, não há um critério objetivo para a aplicação da teoria, mas o importante é que, para sua aplicação, esteja “próximo ao final do contrato”. Assim, ficará ao alvitre do julgador entender o que é este “próximo ao final do contrato”, dando-lhe margem a aplicações variadas, mas que devem ser tomadas com extrema cautela, a fim de não tornar banalizada a teoria.

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em caso envolvendo ação de resolução contratual c/c com reintegração de posse e pedido de indenização, ao identificar que mais de 80% do contrato foi efetivamente quitado, aplicou a teoria do adimplemento substancial e não permitindo a resolução do contrato (TJSC, Apelação Cível n. 2009.003173-4, da Capital, rel. Des. Henry Petry Junior, j. 16-01-2014)[15].

                        Da mesma forma, entendeu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em outro julgado, que o adimplemento de quase 80% da dívida não daria ensejo à resolução do contrato:

“Colhe-se do contrato firmado (fl. 31) que o saldo devedor seria pago em 72 parcelas mensais e sucessivas. Antes do ajuizamento da ação, como foi informado pela própria Ré em contestação (fl. 60), haviam sido quitadas 31 prestações, além da entrada na importância de R$1.100,00 – fato incontroverso nos autos.

Além disso, após a concessão do pedido de antecipação de tutela, o Autor depositou judicialmente mais 20 parcelas (fls. 326-334), no valor de R$250,00, embora de forma impontual.

Assim, das 72 prestações referentes ao saldo devedor, foram pagas e?ou depositadas judicialmente 51 parcelas, o que configura o adimplemento substancial do contrato, pois, considerando-se a quantia que foi dada como entrada (R$1.100,00), revela-se quitado quase 80% do preço pactuado entre as partes” (TJSC, Apelação Cível n. 2010.025332-7, de Itajaí, rel. Des. Joel Figueira Júnior, j. 12-12-2013)[16].

Neste caso, em especial, reserva-se uma crítica particular, pois, na decisão, autorizou-se aos Autores o depósito judicial das parcelas, de forma que 20 (vinte) delas foram depositadas em juízo, de forma impontual. No entanto, crê-se que o critério do momento de verificação do adimplemento substancial, especialmente nos casos em que se ingressa com a ação de resolução contratual em virtude do inadimplemento, deva ser apreciado no instante em que ocorre o ingresso da ação, e não no momento da sentença, respeitando-se, também, o direito daquele que buscou o Poder Judiciário para satisfazer seu interesse no instante do ingresso da ação, sob pena de causar ao mesmo uma grande insegurança jurídica. Isto porque, se a vítima buscou o Poder Judiciário para desfazer o contrato em virtude do inadimplemento, como exercício regular de um direito (art. 475, do CC), poderá ser afetado com a improcedência do pedido resolutório, dando-lhe margem ao pagamento de honorários sucumbenciais, custas e demais despesas processuais, favorecendo o inadimplente.

Já se entendeu, no entanto, pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que o inadimplemento correspondente a 33% (trinta e três por cento) do contrato não outorga a possibilidade de utilização da Teoria do Adimplemento Substancial (TJSC, Apelação Cível n. 2012.078096-1, de Joinville, rel. Des. Luiz Fernando Boller, j. 23-05-2013)[17].

Não se autorizou a Teoria do Adimplemento Substancial, ainda, quando houve a comprovação de 60% (sessenta por cento) do débito (Apelação Cível n. 2006.017380-6, de Chapecó, rel. Des. Monteiro Rocha). Também não se autorizou a utilização da referida Teoria quando houve o pagamento de, aproximadamente, 70% (setenta por cento) da dívida (Apelação Cível n. 2009.075689-8, de Blumenau, Rel. Des Marcus Tulio Sartorato, j. 25/08/2010).

No entanto, o mesmo Tribunal de Justiça já autorizou a utilização da Teoria do Adimplemento Substancial quando já cumprido 70% (setenta por cento) do contrato, entendendo o “(...) saldo remanescente ínfimo em comparação ao valor do bem imóvel e ao montante das benfeitorias edificadas” (Apelação Cível n. 2009.048147-2, de Joinville, rel. Des. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer).

Da análise dos casos acima, observa-se que, normalmente, tem-se entendido que o cumprimento de 70% (setenta por cento), ou mais, do contrato já se pode entender como sendo um “adimplemento substancial” pela jurisprudência catarinense. No entanto, como dito alhures, não parece ser estes 30% (trinta por cento) faltantes (ou até mesmo, 20% faltantes, no caso de adimplemento de 80%), “muito próximo” do resultado final. Não basta que seja “próximo”. Ele deve ser “muito” próximo.

Além disso, as circunstâncias que envolvem as condições econômicas, os valores contratuais e, até mesmo, o próprio objeto contratado, devem ser levados em consideração na aplicação da referida teoria, que deve ser uma exceção ao cumprimento exato do contrato entabulado pelas partes, sob pena de gerar a insegurança contratual.

Ao se aplicar a referida Teoria deve-se ter em conta, especialmente, a finalidade de evitar que pessoas mal intencionadas pretendam realizar contratos contando com a reserva mental, ou seja, a de imaginar que irá realizar o pagamento de apenas uma parte do contrato (70% ou 80%) e, depois, que a outra parte vitimada pretenda o restante (os outros 30% ou 20%) através da execução contratual, quando o devedor não tenha qualquer patrimônio para assegurar o pagamento restante.                       


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente artigo foi identificar o significado da Teoria do Adimplemento Substancial na teoria dos contratos, especialmente o que a doutrina e a jurisprudência entendem como “substancial” para não se determinar a resolução do contrato, mas a simples execução das parcelas restantes e seus consectários (cláusula penal e eventual indenização suplementar).

Constatou-se que a doutrina entende que o adimplemento substancial consiste naquele adimplemento muito próximo do final do contrato. Constatou-se, ainda, que este “muito” próximo do resultado final do contrato é relativizado pela jurisprudência que, em termos percentuais, parece entender que 70% (setenta por cento), ou mais, do contrato, já daria ensejo à aplicação da Teoria.

No entanto, reside a crítica à referida Teoria à análise de certos critérios que também poderão ser variáveis caso a caso:

a) caso o devedor não consiga identificar qualquer circunstância decorrente de abuso, ou excludente de responsabilidade civil contratual, deve-se dar prevalência ao interesse do credor, e não do inadimplente, a fim de dar segurança jurídica aos contratos, respeitando-se a escolha que o art. 475, do Código Civil outorgar ao credor utilizar;

b) o adimplemento contratual deve ser identificado no instante do seu inadimplemento (com notificação extrajudicial, ou ingresso da ação judicial pelo credor), e não no momento da sentença, pois isto poderá importar ao credor na escolha das opções determinadas pelo art. 475, do Código Civil;

c) o adimplemento contratual deve considerar o resultado “muito” próximo do resultado final. Não basta que seja próximo do resultado final, mas muito próximo do mesmo, a fim de se manter aquilo que as partes já trataram no início do contrato, sempre se considerando que a Teoria do Adimplemento Substancial se trata de uma exceção do contrato, e não de uma regra, sob pena de causar insegurança jurídica e da utilização de uma tese que possa beneficiar o mau pagador. Como visto, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina parece entender que o cumprimento de 70% (setenta por cento) das prestações do contrato já autoriza a aplicação da referida Teoria, no entanto, 30% (trinta por cento) parece estar distante de um resultado final do contrato, não sendo, portanto “muito próximo” do seu final;

d) ao se aplicar a Teoria do Adimplemento Substancial, deve-se ter em conta as condições econômicas do bem da vida que foi objeto do contrato (móvel ou imóvel), a fim de não causar desproporcionalidade econômica que venha a desfavorecer, principalmente, a vítima do inadimplemento.

Com tais considerações espera-se trazer algumas contribuições à comunidade acadêmica, a fim de, pelo menos, trazer a lume discussões acerca da Teoria do Adimplemento Substancial e a sua aplicabilidade nas decisões judiciais.


REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS                       

http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEL8CAAV&categoria=acordao

http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEKSkAAR&categoria=acordao

http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEKz4AAL&categoria=acordao

http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAACH/zAAF&categoria=acordao

http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=69

http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=%22adimplemento+substancial%22&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC5

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=23807451&sReg=201200503665&sData=20120824&sTipo=91&formato=PDF

IMHOF, Cristiano. Código Civil Interpretado. 5. Ed. Florianóipolis: Publicações Online, 2013.

PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 6. ed. Florianópolis: OAB, 2002.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3. Pp. 88-89.

SILVA, Clóvis de Couto e. Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português: o princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.


Notas

[2] PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 6. ed. Florianópolis: OAB, 2002. p. 85.

[3] “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (grifado).

[4] “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição.”

[5] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3. Pp. 88-89.

[6] SILVA, Clóvis de Couto e. Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português: o princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 56.

[7] “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

[8] “Art. 620. Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.”

[9] Disponível em http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=69

[10] Apud IMHOF, Cristiano. Código Civil Interpretado. 5. Ed. Florianóipolis: Publicações Online, 2013. p. 640.

[11] Não se cogita, aqui, a situação de financiamento bancário, que envolveria situações mais complexas, como a alienação fiduciária em garantia, por exemplo, mas de parcelamento dos bens diretamente com o seu proprietário.

[12] Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=%22adimplemento+substancial%22&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC5

[13] Disponível em https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=23807451&sReg=201200503665&sData=20120824&sTipo=91&formato=PDF

[14]Disponível em http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEL8CAAV&categoria=acordao

[15] Disponível em http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEKSkAAR&categoria=acordao.

[16] Disponível em http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAAEKz4AAL&categoria=acordao

[17] Disponível em http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=%22adimplemento%20substancial%22&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAACH/zAAF&categoria=acordao


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RONCONI, Diego Richard. A teoria do adimplemento substancial: cuidados para que ela não seja banalizada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4243, 12 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31386. Acesso em: 1 maio 2024.