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O negro no futebol brasileiro.

O racismo sob a égide penal

O negro no futebol brasileiro. O racismo sob a égide penal

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O presente artigo visa abordar o tratamento penal concebido ao racismo existente dentro do futebol no brasileiro, considerando o contexto histórico, assim como a repercussão midiática do tema, traçando um paralelo em relação à própria escravidão.

INTRODUÇÃO

Recentemente, acompanhamos inúmeras ocorrências demonstrativas da mediocridade humana. Repercutindo em toda a imprensa mundial, em uma partida realizada entre as agremiações espanholas Barcelona e Villareal, o lateral esquerdo Daniel Alves, de nacionalidade brasileira, foi humilhado diante das câmeras, quando um funcionário do clube rival, tomado por um gesto antirracial, arremessou e sua direção, no gramado, uma banana.

O caso narrado, no entanto, não é exclusividade em território estrangeiro. Em outra situação recente, o jogador de futebol Tinga, defensor de um clube mineiro, o Cruzeiro, foi hostilizado por torcedores da agremiação rival do América Mineiro Futebol Clube. No primeiro caso, a atitude do funcionário do clube Villareal objetivou discriminar o jogador Daniel Alves por conta de sua procedência nacional. Já no segundo caso, a discriminação ocorreu por conta da pigmentação da pele (Tinga é negro).

Os casos narrados trazem à baila um assunto espinhoso: o racismo no futebol. O presente trabalho tem como alvo este delicado problema social. Inicialmente, traçaremos a origem do futebol em terras tupiniquins para tentar identificar o início da problemática. O desenvolvimento do trabalho seguirá com a análise de alguns episódios de racismo no futebol brasileiro e, sob um enfoque constitucional, o histórico das legislações aplicáveis nesses casos, tecendo, ao final, as diferenças entre a injúria racial e o crime de racismo propriamente dito na legislação atual. Por fim, se fará uma análise pontual sobre quais tipos penais devem responder os infratores desta repugnante espécie criminosa que tanto nos envergonha.


1. A ORIGEM DO RACISMO

As pesquisas encetadas sobre a origem do racismo nos revela que a demarcação de sua origem é incerta.

Na obra de Amaury Silva e Artur Carlos Silva, “Crimes de Racismo”, editora J.H. Mizuno, 2012, página 17, encontramos um artigo interessante acerca do assunto:

“Ao explicar sobre a origem do racismo no mundo, o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da FFLCH/USP e autor de "Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações", Editora Global, enfatiza que: não existe unanimidade entre os estudiosos sobre a origem do racismo. Sociólogos e antropólogos pensam que o racismo foi construído na modernidade ocidental pelos filósofos iluministas e naturalistas. A partir do século 18, esses filósofos Iniciaram a obra de classificação científica da diversidade humana em raças distintas, decretadas por eles de inferiores e superiores com base nas diferenças somáticas. Já trabalhos mais recentes, como o de Isaac Benjamm (Racism and Oxford, Princeton University Press, 2004), encontram as raízes do racismo na antigüidade clássica, entre os gregos e os romanos. Apesar da controvérsia sobre as origens do racismo, sua essência é única. É a idéia de que a diversidade humana é composta de grupos biologicamente contrastados (cor da pele, traços morfológicos e marcadores genéticos). Esses grupos são hierarquizados com bases nessas diferenças em raças superiores e inferiores, numa pirâmide encabeçado pelo grupo branco, tendo os negros na base inferior e os chamados amarelos na parte intermediária. Essa classificação é usada para justificar e legitimar a dominação de um sobre os outros.”

(In: https://claudia.abril.com.br - acesso em 14.06.2011).

Segundo os autores da obra supracitada:

“os fundamentos das teorias raciais são elaborados a partir de três vertentes: a tipologia racial, darwinísmo social e estudos protossociológicos, que mereceram a seguinte abordagem de Evandro Charles Piza Duarte: As duas primeiras, que emergiram de descobertas no reino biológico, são contemporâneas ao surgimento da Criminologia positivista, estando associadas sobretudo à noção negativa em que o termo raça foi inicialmente empregado e ao surgimento de sua forma derivada, o racismo. Ambas negaram a cisão entre corpo e alma, tão cara ao pensamento religioso, assim como apresentaram o antagonismo interracial como um fato implantado na natureza das raças. A terceira, surgida da tentativa de os investigadores americanos formularem explicações sociológicas para aquilo que acreditavam constituir problemas sociais, está associada a própria desconstrução da Ideologia da desigualdade-inferioridade presente nas teorias anteriores e aos movimentos de emancipação dos grupos sociais racialmente rotulados como inferiores.”

(In: Criminologia & Racismo. 2009, Juruá Editora, p. 86)

Apesar de pouco se saber acerca das raízes do racismo, a grande verdade é que ainda hoje, ele é uma realidade. Está enraizado em todas as sociedades, em todos os lados, em alguns lugares de maneira mais discreta, em outros, de maneira bem aflorada.


2. NEGROS NO FUTEBOL

2.1. Reflexão Preliminar

O futebol é o esporte eleito por muitos como “esporte das massas”. Como se sabe, na visão populista, o futebol não exige muitos requisitos para ser praticado.

Em que pesem as regras do futebol profissional estabelecerem que, para a pratica do esporte, necessário se faz a obediência a alguns requisitos, para o bom e velho futebol brasileiro, aquele praticado nas ruas, nos campos, nas areias das praias ou num terreno baldio, basta uma bola, a grande protagonista do espetáculo e meia dúzia de interessados.

O futebol dos últimos tempos se consagrou sim em um esporte que pode ser praticado por qualquer pessoa, seja ela com muita ou nenhuma posse. Todavia, seu atual status não o acompanha desde o início da história, do seu surgimento no solo brasileiro.

A título de curiosidade, no tópico seguinte, iniciaremos uma abordagem histórica acerca do surgimento do futebol no Brasil, descrevendo, com riqueza de detalhes, a transição do esporte elitista ao esporte do povo.

2.2. Futebol: o esporte da aristocracia

É de conhecimento comum que o pai do futebol brasileiro, Charles William Miller, de origem inglesa, trouxe a prática do desporto em comento às terras brasileiras.

Tido inicialmente como atividade privativa dos aristocratas (o esporte bretão era praticado por ricos, brancos ou, pelo menos, pessoas de boa família), ganhou destaque no Distrito Federal, na então cidade do Rio de Janeiro.

À guisa de exemplo da classe social que desfrutava da prática do desporto, vale trazer à baila passagem da obra “O Negro no futebol brasileiro”, 5ª edição, Ed. Mauad, 2013, p. 29 e 32, do jornalista Mario Filho:

“O futebol era divertimento. Como todo divertimento custava dinheiro. Mais ou menos. Menos em Bangu do que na Rua Retiro de Guanabara, onde o Fluminense fizera o seu campo. Por isso não havia o perigo de que um Francisco Carregal, apesar de mulato limpo, ou um Manuel Maia, apesar de bom preto, respeitador, entrasse no Fluminense. Para entrar no Fluminense o jogador tinha de viver a mesma vida de um Oscar Cox, de um Félix Frias, de um Horácio da Costa Santos, de um Waterman, de um Francis Walter, de um Etchegaray, todos homens feitos, chefes de firmas, empregados de categoria de grandes casas, filho de papai rico, educados da Europa, habituados a gastar. Era uma vida pesada. Quem não tivesse boa renda, boa mesada, bom ordenado, não aguentava o repuxo. (…) Para alguém entrar no Fluminense tinha de ser, sem sombra de dúvida, de boa família. Se não, ficava de fora, feito os moleques do Retiro da Guanabara, célebre reduto de malandros e desordeiros. Os moleques debruçavam se na cerca de arame para ver os treinos, se a bola ia fora podiam correr atrás dela, dar um chute. Mas nada de demora. Se demorassem não levariam as malas dos jogadores, acabado o treino, até o bonde que passava na Rua das Laranjeiras”.

A participação dos negros no esporte bretão foi se dando gradativamente, através de alguns clubes, o que foi visto com maus olhos pela sociedade. Nesse sentido, vale conferir outra passagem da obra de Mario Filho:

“Gradativamente, admitiu-se o ingresso dos negros e mulatos no plantel das equipes das fábricas. Leia-se bem o termo que ora empregamos: 'admitiu-se'. Ou seja, não foi algo pacífico. Foi algo que foi acontecendo. Um aqui, outro acolá. Todavia, essa aceitação não foi pacífica (…) o Bangu tinha seus ingleses, mais brancos do que os brasileiros do Botafogo. Tinha os seus ingleses, mas tinha também os seus operários, os seus brancos pobres, os seus mulatos, os seus pretos. O que distinguia o Bangu do Botafogo, do Fluminense, era o operário. O Bangu, clube de fábrica, botava operários no time em pé de igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense, não, nem brincando, só gente fina. Foi a primeira distinção que se fez, entre clube grande e pequeno, um, o clube dos grandes, o outro, o clube dos pequenos. O Bangu sentiu isso antes de qualquer outro clube. E não se conformou logo. Teve suas revoltas, invadindo o campo depois do jogo, jogando pedras no trem, ficando com a taça. E também querendo jogar só com clube pequeno, de operário, de subúrbio. Surgiram outros clubes suburbanos. O Esperança, o Brasil, Bangus mirins, ajudados também pela fábrica. Ao lado deles o Bangu era grande. Quase parecia o Fluminense, com os seus ingleses e seus filhos ingleses. Não se parecia inteiramente porque havia um, dois operários no meio dos mestres. Um mulato, um preto”.

Esta situação perdurou por muitos anos, até o futebol conquistar a todos: brancos e negros, ricos e pobres, todos, sem exceção.

2.3. Histórico do racismo no futebol brasileiro

A história do futebol brasileiro nos revela que a discriminação racial sempre esteve aqui impregnada.

No prefácio elaborado pelo escritor e historiador Édison Carneiro, a realidade vivida pelos negros no futebol brasileiro fica bem clara:

“Quando o futebol começou a candidatar-se à preferência popular, faltavam ao negro dinheiro e posição social. Naqueles tempos, as regatas e as corridas de cavalos eram as diversões prediletas. Esporte era para ricos, para brancos ou, pelo menos, paia pessoas de boa família. O futebol não excluiu, inicialmente, o negro, mas não lhe deu as mesmas regalias que ao branco. O negro se conformava, parecia conhecer o 'seu’ lugar, e o branco podia assumir a confortável atitude do bom senhor em relação aos escravos dóceis e obedientes. O paternalismo desse primeiro período não durou muito. O interesse do público aumentava cada dia - o futebol não dava camisa a ninguém, mas dava renome e fama - o remo e o turfe passavam a segundo plano - e houve um recrudescimento do preconceito de cor. No espírito do tempo, dos ominosos tempos em que o fascismo estava em ascensão no mundo, a Ame, uma liga local, e a CBD se lançaram a campanhas de 'arianizacão' do futebol, afastando dos times jogadores pretos e mulatos, então numerosos - conta Mario Filho - nos clubes do subúrbio, Bangu, Andaraí, América, Vasco e São Cristóvão. Tão deliberada era essa atitude dos racistas do futebol que nem mesmo se importavam com o risco da derrota em partidas internacionais. A ofensiva segregacionista fez as suas baixas nas hostes de cor - feridos, estropiados, desertores. Alguns tentaram disfarçar a cor - Friedenreich engomava o cabelo, houve um mulato que cobria o rosto com uma camada tão espessa de pó-de- arroz que acabou dando o famoso apelido ao Fluminense. Outros, mais seguros de si, como Robson, declaravam já terem sido pretos. Outros se envergonharam e se deixaram subjugar, como Manteiga, que aproveitou a primeira oportunidade para voltar à sua terra, a Bahia, ou Leônidas que vilipendiado, se refugiou em São Paulo. Outros ainda se asilaram em times estrangeiros”.

Mas a realidade é que os dirigentes dos grandes clubes, em dado momento, compreenderam que não se faziam grandes times sem a presença dos talentosos negros e mulatos.

Nesse sentido, vale destacar prefácio à 4ª edição da obra de Mario Filho, escrita pelo professor e cientista político Luis Fernandes:

“A narrativa do Mario Filho conta, igualmente, como esta estrutura elitista que dominou o futebol brasileiro nos seus primórdios veio a ser quebrada. Na Capital Federal, os marcos desta ruptura foram os triunfos do Vasco da Cama no campeonato de 1923, do São Cristóvão no de 1926, e do Bangu no de 1933. Todos eram clubes de origem popular, com sedes no que então se consideravam 'bairros periféricos' da cidade, e contavam com numerosos jogadores negros, mulatos e de origem humilde. Destes clubes, como é sabido, apenas o Vasco conseguiu se consolidar na elite do futebol brasileiro (o próprio conceito de 'elite' passando a ser referido não mais à condição social dos atletas ou associados do clube, mas ao seu desempenho esportivo em seguidas competições). Mas o destaque dado à ascensão do Vasco em 1923 na narrativa de Mario Filho deve-se ao fato de esta ter operado uma 'verdadeira revolução' no futebol brasileiro. A aguda sensibilidade social do cronista, reforçada pelos depoimentos colhidos nas entrevistas, captou o significado mais profundo e duradouro desta revolução: Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor. No futebol, assim como na vida social e na História em geral, todo processo de ruptura se depara com a reação das forças dominantes que se sentem ameaçadas. No caso da ascensão do Vasco em 1923, esta reação se deu em duas frentes. A primeira, ainda com o campeonato em andamento, se processou na própria assistência dos jogos. A escalada vitoriosa de um clube de origem popular trouxe uma afluência de novo tipo às nobres arquibancadas dos clubes tradicionais. O próprio Mario Filho relata como havia se tornado costume entre 'famílias de bem', após assistir missa na Igreja da Matriz da Glória no Largo do Machado, se dirigir, ainda trajando as suas melhores roupas de domingo, para o estádio do Fluminense nas Laranjeiras, para acompanhar a performance dos seus filhos e amigos nos jogos de futebol. Com a ascensão do Vasco, essa seleta assistência passava a ter de disputar lugar nas arquibancadas com imigrantes portugueses, suas famílias, colegas e empregados. Para a elite da época, tratava-se de inaceitável subversão da hierarquia social. Guardadas as devidas proporções históricas, era como se, nos dias de hoje, uma turma de farofeiros invadisse o desfile de gala das socialites nas bancadas do Jockey Club Brasileiro em pleno Grande Prêmio Brasil. No caso do futebol, a primeira reação elitista a essa 'invasão' tomou a forma de um curioso e deslocado anti-lusitanismo, que se espalhou rapidamente entre os adeptos dos 'clubes grandes' do então (Fluminense, Flamengo, Botafogo e America). Tratava-se de uma espécie de reedição farsesca do jacobinismo anti-lusitano do inicio da República no Brasil. Mas o alvo do anti-lusitanismo republicano era a monarquia, ao passo que a sua nova versão futebolística se voltava contra o imigrante, por parte dc uma elite formada historicamente em convívio íntimo com a corte imperial. Por isso, as diatribes lançadas contra 'o português' mal disfarçavam a sua real carga de preconceito social. A segunda reação foi de natureza institucional, e muito mais séria. Os quatro clubes tradicionais acima citados se retiraram da Liga Metropolitana que organizara o campeonato vencido pelo Vasco e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amca). Sob a presidência do patrono do Fluminense, Arnaldo Guinle - que o próprio Mario Filho caracterizou como 'uma espécie de Príncipe de Gales do esporte brasileiro, a Amca adotou controles rígidos sobre a origem social dos atletas dos clubes filiados, incluindo a investigação minuciosa dos seus meios de sobrevivência e a aplicação de questionários extensos para aferir o seu grau de escolarização. O objetivo, segundo o autor, era expurgar os atletas negros, mulatos e de origem humilde que haviam subvertido o monopólio elitizado futebol que imperara até então. O Vasco não aceitou essas condições e permaneceu na Liga Metropolitana, gerando a disputa de dois campeonatos de futebol paralelos na Capital Federal. Alguns autores críticos da obra de Mario Filho sustentam que a ausência de referências explícitas à questão racial nos documentos da Amca não permitiria caracterizar os seus desígnios como 'racistas'. A verdadeira polarização se daria entre a defesa de formatos amadores ou semi profissionais para o esporte. Ocorre, no entanto, que a polêmica em torno do amadorismo está diretamente ligada à questão da origem social dos praticantes do futebol. Já vimos como as estruturas do amadorismo privilegiavam os estudantes c candidatos a bacharel na prática do esporte (e dada a composição étnica da nossa estratificação social, este era um universo quase que exclusivamente branco nas primeiras décadas do Século XX). O ponto forte da interpretação de Mario Filho, respaldada nos depoimentos dos principais participantes no processo que resultou na cisão do futebol carioca, reside, precisamente, no destaque dado ao entrelaçamento material e simbólico dos preconceitos raciais e sociais. Só assim podemos compreender a profundidade do enigmático comentário, citado no livro, do jogador negro Robson que atuava no Fluminense no início dos anos 50: 'Eu já fui preto e sei o que é isso'. O caminho da superação das barreiras sociais e raciais para a prática do futebol aberto pela ascensão do Vasco em 1923 e seguido pelo São Cristóvão em 1926 e o Bangu em 1933 foi coroado pela implantação generalizada do profissionalismo na década de 30. Este regime abriu definitivamente as portas dos grandes clubes brasileiros para jogadores profissionais negros, mulatos e de origem humilde (embora alguns, como o Fluminense, continuassem a fazer questão dc evitar o convívio dos atletas profissionais - definidos como empregados do clube - com o seu quadro social). Na seqüência da sua adoção do profissionalismo, a contratação dos maiores ídolos negros do futebol brasileiro – Leônidas da Silva e Domingos da Guia e Fausto dos Santos - pelo Flamengo em 1936 foi decisiva para a conquista de uma grande legião de adeptos para o clube em todo o país, superando as barreiras sociais e raciais que haviam marcado a sua história inicial”.

A realidade enfrentada pelos negros, tão bem narrada no livro do jornalista Mario Filho, não é exclusividade carioca. A seguir, destacamos narrativa acerca dos desafios enfrentados pelos negros no futebol gaúcho:

“É importante perceber que quando o futebol foi criado, a comunidade escravocrata não estava inserida no contexto social. O esporte foi criado e praticado por brancos, ingleses, europeus e posteriormente, pelo povo brasileiro. Aqui no Rio Grande do Sul, o primeiro clube surgiu em 1900, o Sport Club Rio Grande; e a abolição da escravatura não tinha ainda nem completado duas décadas. Mesmo com esta transição lenta, como é comum em qualquer sociedade, o Bangú já ousava ao escalar o seu primeiro homem “de cor” em 1905. Aos poucos, o Bahia, o Vasco da Gama e o Fluminense quebravam o preconceito em relação às raças. Em 1914, um negro chamado Carlos Alberto maquiava-se com “pó de arroz” e vestia a camisa do Fluminense, tentando disfarçar sua cor. No Rio Grande do Sul, um Estado colonizado basicamente por alemães e italianos, a inclusão era ainda um processo mais lento e complicado. Mas já mostrávamos sinais de mudanças, exemplo disso seria o time do Guarany de Bagé, campeão estadual de 1920, que mantinha negros e uruguaios na sua equipe. Os negros começaram a organizar as suas ligas para poder jogar futebol. Em Porto Alegre foi criada a liga independente dos “Canelas Pretas”, após o ano de 1910. Uma década depois, em Pelotas, era formada a liga “José do Patrocínio”; já em Rio Grande formava-se a liga “Rio Branco”. Em 1928, o Americano rompeu o preconceito, com Alegrete e Barulho; posteriormente o Internacional, com Dirceu Lopes; logo após, o Cruzeiro e o São José foram incluindo os negros nos seus plantéis. Mas os negros eram tolerados e não aceitos de forma ampla. No Grêmio, a lenda do Tesourinha foi uma das maiores jogadas de marketing do futebol gaúcho. Tesourinha não foi o primeiro negro a vestir a camisa tricolor, mas ele era a pessoa certa para quebrar este paradigma. Tesourinha era negro, simplesmente o maior jogador que já havia passado por aqui, estava jogando no Vasco da Gama, em idade avançada e louco para voltar ao Rio Grande do Sul. O bom relacionamento dos dirigentes do Grêmio com os dirigentes do Vasco da Gama, a instauração de uma nova era, a transição do velho estádio da Baixada para o novo estádio Olímpico eram os pontos fundamentais para a extinção do paradigma de racismo no clube germânico. Mas antes de Tesourinha, desfilaram mais de duas dezenas de negros: Laxixa, Mário Carioca, Hélio, Prego, Jorge, Hermes Conceição. Antes do primeiro negro vestir a camisa colorada, Maldonado, Saraiva, Silva, Neco e Adão Lima já haviam suado muitas camisas tricolores e conquistado muitas vitórias. Os “filhotes do Grêmio” – hoje considerada uma espécie de categorias de base – possuíam na sua equipe da década de 20 vários jogadores negros. Mas, ironicamente, um clube considerado racista por muitos até hoje, é um clube popular e pioneiro”

(disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/hiltormombach/?p=15992).

Como visto, os negros não encontraram facilidades por aqui. Para gozar do status proporcionado pelo futebol, os altos salários, o “glamour”, muitas barreiras foram ultrapassadas. No capítulo próximo, faremos uma análise histórica da legislação brasileira aplicável às condutas discriminatórias para, finalmente, adentrando na legislação atual, estabelecidas as diferenças entre a injúria racial e o crime de racismo, ponderar sobre quais tipos penais podem responder os autores das discriminações vistas nas arenas, que tanto nos indignaram.


3. PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO: DEFINIÇÕES E ABORDAGENS

Preconceito e discriminação são termos correlatos, empregados, via de regra, como se sinônimos fossem. Todavia, há diferenças entre esses dois termos.

Uma interpretação gramatical encontrada no dicionário Aurélio, editora Nova Fronteira, 1993, página 189, revela que discriminação corresponde ao

“1. Ato ou efeito de discriminar.

2. Tratamento preconceituoso dado a certas categorias sociais, raciais, etc.”

Já o preconceito, na página 437, é tido como

“1.ideia preconcebida.

2. Suspeita, intolerância, aversão a outras raças, credos, religiões, etc.”.

Buscando uma interpretação dogmática, mais profunda, encontramos na moderna doutrina de Roger Raupp Rios, “Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas”, editora Livraria do Advogado, 2008, p. 15, que

“por preconceito, designam-se as percepções mentais negativas em face de indivíduos e de grupos socialmente inferiorizados, bem como as representações sociais conectadas a tais percepções. Já o termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos. O primeiro termo é utilizado largamente nos estudos acadêmicos, principalmente na psicologia e muitas vezes nas ciências sociais; o segundo, mais difundido no vocabulário jurídico”.

O autor aborda o assunto em duas vertentes: a psicológica e sociológica. Em síntese, esclarece que a abordagem psicológica busca uma análise interna dos indivíduos para justificar o preonceito. Divide-se, basicamente, em dois grandes grupos:

  • O primeiro deles pode ser nomeado como teoria do bode expiatório, onde, “diante da frustração, os indivíduos procuram identificar culpados e causadores da situação que lhes causa mal-estar, donde a eleição de certos indivíduos e grupos para este lugar”.

  • No segundo, conhecido como teoria projecionista, “os indivíduos, em conflito interno, tentam solucioná-lo, mediante sua projeção, parcial ou completa, em determinados indivíduos e grupos, razão pela qual lhes destinam tratamento desfavorável, chegando às raias da violência física, que pode alcançar até a pura e simples eliminação”.

Já numa perspectiva sociológica, o preconceito é definido como “forma de relação intergrupal onde, no quadro específico das relações de poder entre grupos, desenvolvem-se e expressam-se atitudes negativas e depreciativas além de comportamentos hostis e discriminatórios em relação aos membros de um grupo por pertencerem a esse grupo”.

A doutrina, dentre as abordagens sociológicas, ainda destaca duas contribuições específicas: a obra de Erving Goffman que, “ao identificar no estigma um atributo negativo, mapeado sobre os indíviduos e produtor de uma deterioração identitária, capta uma verdadeira relação de desvantagem, um processo social”; “leitura marxista tradicional, onde o preconceito e a discriminação seriam produtos e manifestações das reais condições que mantêm, refletem, criam e recriam a alienação humana; na base de tais condições, a dinâmica própria da sociedade capitalista”.

A importância desses estudos se traduzem na possibilidade de mapeamento do problema e, a partir daí, o desenvolvimento de estudos com a finalidade de identificar e desenvolver políticas (educacionais, de autoconhecimento e punitivas para infratores) para controle e combate desse cancro social.

À guisa de exemplo, temos a proibição de ingresso dos agentes racistas nos estádios. A nosso ver, tal medida se mostra ineficaz no combate da discriminação, visto que não desestimula a prática junto aos torcedores, não mobiliza os clubes a desenvolverem projetos de educação dos adeptos e tampouco educa.

Uma primeira reflexão sobre o assunto pode nos revelar que o racismo está intimamente ligado com a falta de cultura. Todavia, essa impressão é falsa, visto que identificamos sociedades bem desenvolvidas onde a prática discriminatória está bem evidenciada. A título de ilustração, cabe destaque os fatídicos episódios ocorridos durante o evento Copa do Mundo de 2014. Inúmeros torcedores espanhóis proferiram ofensas de cunho racista e discriminatório via Internet. As ofensas, basicamente, tinham o intuito de humilhar o povo brasileiro, comparando-o à primatas (ofensa preferida pelos agressores).

Mas a discriminação não para por aí. No país mencionado, a prática discriminatória é institucionalizada, vide os episódios de inúmeros casos de brasileiros que foram barrados e vítimas de maus-tratos quando do tentavam ingressar em terras espanholas .

Estabelecidas essas premissas, no próximo capítulo faremos uma digressão legislativa acerca da prática racista no país.


4. DIGRESSÃO LEGISLATIVA BRASILEIRA CONTRA O RACISMO

4.1. Principais legislações abolicionistas no Período Colonial

O histórico abolicionista do Brasil remonta à primeira tentativa de abolição da escravidão indígena, em 1611, e a sua abolição definitiva, pelo Marquês de Pombal, durante o reinado de D. José I, e aos movimentos emancipacionistas no período colonial, particularmente a Conjuração Baiana de 1798, em cujos planos encontrava-se a erradicação da escravidão.

Após a Independência do Brasil, as discussões a este respeito estenderam-se por todo o período do Império, tendo adquirido relevância a partir de 1850 (período que se proibiu o tráfico de negros nos navios), e, caráter verdadeiramente popular, a partir de 1870, culminando com a assinatura da Lei Áurea de 13 de maio de 1888 (que, segundo se sabe, ocorreu mais por conta da pressão britânica que pretendia ver crescer o comércio de seus produtos com a abolição da escravatura).

Segundo pesquisas encetadas, José Bonifácio de Andrada e Silva, em representação à Assembléia Constituinte de 1824, já chamara a atenção para a questão, referindo-se à escravatura como “cancro mortal que ameaçava os fundamentos da nação”. (texto disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil).

O mesmo sítio ainda nos revela que:

“No Período Regencial, desde 7 de novembro de 1831, a Câmara dos Deputados havia aprovado e a Regência promulgado uma lei que proibia o tráfico de escravos africanos para o país, porém esta lei não foi aplicada. Cedendo às pressões, D. Pedro 2º deu um passo importante: seu Gabinete elaborou um projeto de lei, apresentado ao Parlamento pelo Ministro da Justiça Eusébio de Queirós, que adotava medidas eficazes para a extinção do tráfico. Convertido em lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, determinava seu artigo 3: —‘São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa importação, o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga. São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no território brasileiro de que concorrerem para ocultar ao conhecimento da autoridade, ou para os subtrair à apreensão no mar, ou em ato de desembarque sendo perseguida’. Um dos seus artigos determinava o julgamento dos infratores pelo Almirantado, passando assim ao Governo imperial o poder de julgar, poder antes conferido a juízes locais. (...) No ano de 1854 era aprovada a Lei Nabuco de Araújo, Ministro da Justiça de 1853 a 1857, que previa sanções para as autoridades que encobrissem o contrabando de escravos”.

A Lei do Ventre Livre, datada de 28 de setembro de 1871, concedia liberdade aos filhos de mulher escrava. Segundo esta lei, os proprietários de escravos ficariam encarregados de criá-los até os oito anos de idade, quando poderiam entregá-los ao governo e receber uma indenização.

Em 1885, o governo cedeu mais um pouco e promulgou a Lei Saraiva-Cotegipe, que regulava a "extinção gradual do elemento servil". A Lei Saraiva-Cotegipe ficou conhecida como a Lei dos Sexagenários. Esta lei, que dava liberdade aos negros a partir dos 60 anos, em verdade acabou por eximir o senhor de sua responsabilidade para com o negro velho, excluindo-lhe a obrigação de conceder moradia, alimentação, vestimentas e cuidados que todo o idoso deveria ter.

Foi em 13 de maio de 1988, marco histórico antiescravagista, que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, responsável pela abolição da escravatura no Brasil. Referida lei, na forma em que foi publicada, “propiciou que os negros libertos ficassem em total indigência, suportando toda sorte de dificuldade e recebendo toda carga de discriminação e preconceito, vale dizer; a lei liberou os escravos, mas não lhes deu a liberdade”.

É certo que houve motivação inteiramente política quando da edição da Lei Áurea, pouco ou nada se considerando o elemento social . Também não nos olvidemos de que, ainda que passados exatos 126 (cento e vinte e seis anos) da abolição da escravatura, como experimentado no capítulo 1 do presente trabalho, ainda encontramos demonstrações de ignorância, resultado de um triste legado da colonização e do imperialismo opressor, dominador e explorador, o que motivou o desenvolvimento deste trabalho. Todavia, temos que considerar que a Lei Áurea foi um grande passo nessa busca tão almejada hodiernamente de equiparar, em igualdades de condições, o negro e o branco.

4.2. Lei Afonso Arinos

A Lei nº 1.390/51, promulgada no governo Vargas (3 de julho de 1951), teve sua redação alterada pela Lei nº 7.437, de 20 de dezembro de 1985, ficou conhecida como Lei Afonso Arinos. Segundo alguns registros, a referida lei veio a lume, de acordo com próprio congressista Afonso Arinos de Mello Franco, após o seu motorista, de tez negra, ser impedido de adentrar num estabelecimento comercial por causa da sua cor. Em síntese, a Lei Afonso Arinos foi a primeira legislação a prever tratamento igualitário entre brancos e negros.

Em seus nove artigos, contemplou como contravenções as condutas que, via de regra, recusassem o atendimento ou acesso, em decorrência de preconceito de raça ou de cor, aos mais diversos estabelcimentos. Contudo, como bem asseverou Lilia Mortz Schwarcz em seu artigo entitulado “Lei brasileira contra o racismo x realidade social”, “por causa da falta de cláusulas impositivas e de punições mais severas, a medida mostrou-se ineficaz até mesmo no combate a casos bem divulgados de discriminação no emprego, escolas e serviços públicos”. Partilhamos desse entendimento.

É certo que, como observado no capítulo 1, nenhuma legislação efetivamente elidiu a discriminação nos esportes. O racismo no futebol, por exemplo, perdurou por muitos anos, mesmo após a edição da lei. É certo, porém, que com o passar dos anos e o desenvolvimento cultural, a discriminação passou a ser mais velada, mas não desapareceu.

4.3. O racismo e o advento da Constituição Federal de 1988

Em resposta à intolerância, almejando calcar maior importância ao direito de identidade e, em homenagem ao meta-princípio universal da dignidade da pessoa humana, os congressistas inseriram nos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal o racismo como crime, punido com reclusão e tornando-o imprescindível e inafiancável.

O legislador constituinte ofereceu proteção à igualdade entre todos os seres humanos ao definir que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, inciso XLI, CF). Esse trato igualitário entre todos, base das democracias modernas, proíbe a prática de discriminações e preconceitos decorrentes de raça, cor, origem étnica, preferência religiosa e procedência nacional, o que constitui odiosa e histórica afronta ao princípio isonômico.

Mais enfática é nossa Constituição Federal, ao estabelecer em seu artigo 5º, inciso XLII, que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da Lei”.

Na lição do constitucionalista Gilmar Mendes, a determinação contida no artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal é um mandado de criminalização ou, em outras palavras, determinação do próprio legislador constituinte para que o legislador ordinário, quando da edição de lei infraconstitucional, encare a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, apenado com reclusão:

“A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de determinadas condutas. Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Em verdade, tais disposições traduzem uma outra dimensão dos direitos fundamentais, decorrente de sua feição objetiva na ordem constitucional. Tal concepção legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa — Abwehrrecht), mas também a garantia dos direitos fundamentais contra a agressão propiciada por terceiros (Schutzpflicht des Staats). A forma como esse dever será satisfeito constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais, que dispõem de alguma liberdade. (...) A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que o significado objetivo dos direitos fundamentais resulta do dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros. (...) Assim, as normas constitucionais brasileiras referidas explicitam o dever de proteção identificado pelo constituinte e traduzido em mandatos de criminalização expressos dirigidos ao legislador. Como bem anota Luciano Feldens, os mandatos constitucionais de criminalização atuam como limitações à liberdade de configuração do legislador penal e impõem a instituição de um sistema de proteção por meio de normas penais”.

Assim, das legislações abolicionistas, passando pela previsão das condutas contravencionais, chegamos à nova legislação que consagra figuras criminosas com penas de reclusão.

4.4. Lei Federal nº 7.716/1989 – A Lei Antirracismo: uma abordagem geral

A Lei nº 7.716, de 6 de janeiro de 1989, também é conhecida como Lei Caó, em homenagem a Carlos Alberto de Oliveira dos Santos, advogado, jornalista e político brasileiro, com destaque na luta contra o racismo e também responsável pela redação do artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal que, como visto anteriormente, estabelece que a prática de racismo é inafiançável e imprescritível.

Quando da sua promulgação, referida lei não trouxe condutas típicas inovadoras, reproduzindo grande parte da Lei Afonso Arinos, o que ensejou inúmeras críticas, no sentido de que as condutas a serem penalizadas eram apenas aquelas relacionadas à raça ou cor (exatamente como a legislação que a precedia), relegando ao esquecimento àquelas resultantes de preconceito por etnia, religião, procedência nacional, preferência sexual ou classe social.

Sobrevieram, então, algumas alterações decorrentes da edição das Leis nº 8.081/90, 8.882/94 e 9.459/97, sendo que esta última representou a modificação mais importante, no sentido de conceber nova redação ao artigo 1º, passando a ter como conduta criminosa não apenas os atos praticados por discriminação ou preconceito por raça ou cor, mas também aqueles advindos de discriminação ou preconceito por etnia, religião ou procedência nacional.

Portanto, este dispositivo em vigor até a presente data passou a exigir que todas as condutas criminosas provenham de preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional .

Na lição de Amaury Silva e Artur Carlos Silva, “a conduta discriminatória relevante, para configuração dos crimes de racismo, consolida-se no momento em que o agente exterioriza o seu preconceito impondo restrições ou privações a um indivíduo, impedindo-o de exercer determinado direito, em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Nesse estudo, restringimos nossa análise à raça, cor, etnia ou procedência nacional.

O conceito de raça possui caráter biológico.

Vale aqui trazer à baila o conceito e pontuações expostas na doutrina de José Geraldo da Silva, Wilson Lavorenti e Fabiano Genofre:

“está atrelado a biótipos com características próprias. Em seu aspecto antropológico, são pessoas identificadas pelas suas aparências físicas, transmissíveis por hereditariedade. A raça negra historicamente sofreu larga discriminação. É certo que não existe raça pura e o seu conceito definha, mormente no nosso país com forte miscigenação. Imperativo reconhecer, diante das novas pesquisas sobre o genoma humano, que o conceito de raça tem sido questionado pelas ciências biológicas, acreditando-se, atualmente, na existência de uma única raça humana”.

Aqui vale destar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento do Habeas Corpus (HC 82424), impetrado por Siegfried Ellwanger contra decisão que manteve sua condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime de racismo.

No julgado, cuja discussão se pautou em três pontos (o que é racismo, liberdade de expressão e manifestação do pensamento individual) entendeu, por maioria, que o conceito de raça não pode se ater simplesmente à interpretação semântica da palavra, visto que, como bem delineado na doutrina supra citada, a genética baniu de vez o conceito tradicional de raça, e a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens.

Ainda segundo a doutrina de Amaury Silva e Artur Carlos Silva, “a cor da pele, assim como a cor e o formato dos olhos e o tipo de cabelo, é um dos critérios utilizados para a distinção da raça. Assim, a pele branca demonstra ser o indivíduo de ascendência europeia; a negra, a gênese africana, incluindo também nesta as variações da cor da pele; a amarela, a raça asiática.”

Etnia, palavra derivada do grego ethnos, que significa povo, é a comunidade humana definida por afinidades linguísticas e culturais.

Aqui vale trazer à baila interessante texto explicativo acerca do conceito de etnia encontrado em sítio virtual:

“O conceito de etnia vem ganhando espaço cada vez maior nas ciências sociais a partir das crescentes criticas ao conceito de raça e, em alguns casos, ao conceito de tribo. Apesar disso, é ainda considerado por muitos uma noção pouco definida. O termo etnia surgiu no início do século XIX para designar as características culturais próprias de um grupo, como a língua e os costumes. Foi criado por Vancher de Lapouge, antropólogo que acreditava que a raça era o fator determinante na história. Para ele, a raça era entendida como as características hereditárias comuns a um grupo de indivíduos. Elaborou então o conceito de etnia para se referir às características não abarcadas pela raça, definindo etnia como um agrupamento humano baseado em laços culturais compartilhados, de modo a diferenciar esse conceito do de raça (que estava associado a características físicas). Já Max Weber, por sua vez, fez uma distinção não apenas entre raça e etnia, mas também entre etnia e Nação. Para ele, pertencer a uma raça era ter a mesma origem (biológica ou cultural), ao passo que pertencer a uma etnia era acreditar em uma origem cultural comum. A Nação também possuía tal crença, mas acrescentava uma reivindicação de poder político”.

Acerca de religião, destaca-se lição de Wilson Lavorenti, tirada do livro “Deus e Constituição”, Editora Vozes, 1998, p. 73, de Francisco Aldalberto Nóbrega:

“(...) provém do latim religare (unir, ligar) e consiste em um sistema de crença abalizado e defendido por um determinado grupo. Nesse aspecto, interessante observar que, de todas as Constituições que tivemos, apenas as de 1891 e 1937 não fizeram menção a Deus em seus preâmbulos, em razão das influências positivistas de Comte. No mesmo diapasão, todas as constituições estaduais, exceção feita à do Acre, também se referem a Deus. Isto, sem dúvidas, é reflexo de nossa base sociológica e axiológica e evidencia que o nosso Estado, por ser democrático, pode ser teísta, mas não confessional, sectário”.

Por fim, a procedência nacional se refere não só ao preconceito contra os estrangeiros em virtude de sua ascendência nacional, mas também em relação à pessoa que provém de outra região brasileira, por exemplo.

Novamente invocando as lições de Wilson Lavorenti

“procedência nacional, em seu sentido literal, indica o vínculo jurídico-político de uma pessoa com um determinado território e, por consequência, com um dado ambiente cultural, de costumes, tradições, língua, tornando-o um dos componentes do próprio Estado. (...) A igualdade perante a lei pressupõe a ausência de distinção de qualquer natureza. Ao se reprimir esta distinção, busca-se evitar a xenofobia”.

(...) “Interpretando-se uma lei que almeja a tutela do tratamento igualitário, não se compreende convinhável a exegese de limitar o entendimento da expressão procedencia nacional como sendo exclusiva indicação de uma nação a que a pessoa pertence, mas deve ser compreendido em seu sentido mais amplo para abarcar também a região do próprio país a que pertence. Assim temos o crime não só nas ofensas com relação às pessoas sem nossa nacionalidade, como também para com os nossos nacionais que provêm de outro estado, por exemplo”.

Ainda segundo o doutrinador, com relação aos apátridas ou polipátridas, uma análise teleológica nos revela que não deve haver qualquer diferença de tratamento fulcrada na origem da pessoa, encontrando-se, ambos os casos na esfera de proteção da norma.

Atualmente, a Lei 7.716/1989 é composta de 22 artigos e representou, ao nosso ver, grande evolução no combate ao racismo no Brasil.

Numa abordagem geral, cabe ressaltar que a lei em comento tutela o tratamento igualitário entre os indivíduos que compõem a sociedade.

Em regra, os crimes são comuns, podendo ter como sujeito ativo ou passivo qualquer pessoa que execute ou sofra ação preconceituosa e discriminatória, respectivamente.

A Lei Caó não descreve expressamente o modus operandi do agente infrator mas, segundo a doutrina,

“são utilizados, principalmente, as palavras orais, escritas, gestos, sinais, pois guardam maior perspectiva de objetividade com núcleos dos tipos, exteriorizados pelas respectivas ações. (...) A exceção que se anota é em relação à forma agravada do art. 20, §2º”. São crimes de ação pública incondicionada”.

O doutrinador faz essa ressalva devido ao fato de que, no artigo 20, parágrafo 2º, o legislador estabeleceu um modo de execução específico, com causa de aumento de pena, para o agente que pratica o delito previsto no caput por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.

Quanto ao elemento subjetivo, temos que os crimes previstos na referida Lei exigem a vontade livre e consciente para a sua realização, não comportando modalidade culposa, a míngua de previsão específica.

Amaury Silva e Artur Carlos, na obra Crimes de Racismo, Editora JH Mizuno, p. 50, dissertam, inclusive, sobre a possibilidade de realização do crime através de dolo eventual, ou seja, quando o agente, apesar de não desejar, assume o risco de produzir o resultado.

À guisa de conhecimento, vale destacar quais são as condutas típicas, segundo a Lei em comento: a) impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos (artigo 3º); b) negar ou obstar emprego em empresa privada (artigo 4º); c) recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador (artigo 5º); d) recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau (artigo 6º); e) impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar (artigo 7º); f) impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público (artigo 8º); g) impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público (artigo 9º); h) impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades (artigo 10); i) impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos (artigo 11); j) impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido (artigo 12); k) impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas (artigo 13); l) impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social (artigo 14); m) praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (artigo 20).

Tecidas tais considerações, passaremos a analisar no próximo tópico os tipos penais previstos no artigo 20, caput, da Lei Caó e o artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, suas diferenças e aplicabilidade nos casos de racismo no futebol.

4.5. Artigo 20 da Lei Caó

A redação do artigo 20 da Lei 7.716/89 sofreu sensíveis alterações com a edição das Leis 8.081/90 e 9.459/97 .

Atualmente, busca-se tutelar a igualdade de todos, em homenagem ao princípio da isonomia, extraído do artigo 5º da Constituição Federal .

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa (ou grupo de pessoas, podendo, portanto, ser unissubjetivo ou plurissubjetivo).

Quanto ao sujeito passivo, entendemos que as vítimas são, além daqueles que sofrem a prática do induzimento, da incitação da discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a própria sociedade, em razão do mal estar advindos dessas condutas.

Os verbos do tipo são: praticar, induzir ou incitar.

  • Segundo o dicionário Aurélio, praticar significa fazer, realizar, executar.

  • induzir tem o sentido de fazer cair ou incorrer.

  • Quanto ao verbo incitar, significa instigar, impelir e suscitar.

Segundo a doutrina,

“as condutas de praticar, como induzir e incitar, são crimes formais, isto é, a consumação se efetiva independentemente de um resultado naturalístico, bastando para tanto a prática da discriminação, não necessitando que traga o resultado pretendido pelo sujeito ativo. (...) Na hipótese de um indivíduo induzir ou incitar o outro a praticar a discriminação, havendo a consumação o indutor ou induzidor responde na modalidade praticar. Se o induzido ou incitado não praticar o delito, por nada responderá, porém aquele que induziu ou incitou responderá por essas condutas”.

Trata-se, também, de tipo misto alternativo, bastando a realização de uma só conduta para configuração da espécie criminosa.

Assim sendo, se o agente, num mesmo contexto fático, induz alguém à prática discriminatória e também a pratica, responderá por um só crime.

As condutas previstas no caput são puníveis a título de dolo, não havendo que se falar em culpa por falta de previsão legal.

Caso o agente pratique a discriminação, estando em consonância com qualquer dos outros delitos previstos na lei, responderá por um daqueles artigos, visto que o delito em comento (artigo 20) é subsidiário implícito, aplicando-se o princípio da especialidade em caso de conflito aparente de normas.

4.6. Artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal

A injúria qualificada pelo preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal Brasileiro foi inserida no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei 9.459, de 13 de maio de 1997, que impôs penas de reclusão, de 1 a 3 anos, e multa, se a injúria for cometida mediante “utilização de elementos referentes a raça, cor, religião ou origem”.

O parágrafo 3º ainda sofreu acréscimos advindos do artigo 110 da Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), inserindo novas circunstâncias qualificadoras ao crime de injúria.

Aqui tutela-se a honra subjetiva, isto é, o sentimento de cada indivíduo acerca de seus atributos morais, intelectuais e físicos, ou seja, sua dignidade e decoro.

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa (ou grupo de pessoas, podendo, portanto, ser unissubjetivo ou plurissubjetivo).

Quanto ao sujeito passivo, entendemos que as vítimas são aquelas que são injuriadas, tendo como afrontas determinantes àquelas referente à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

A consumação do delito em comento se dá quando a vítima toma conhecimento da ofensa, podendo se externar através de gestos, sinais, palavras, escritos, desenhos e sons (v.g. quando torcedores reproduzem, nos estádios, som de macaco, em alusão à cor da pele de um jogador). Segundo escólio do professor Guilherme de Souza Nucci, “Não é necessário que terceiro dela tome conhecimento”.

Admite-se a tentativa quando a ofensa é manifestada por escrito ou por desenho. Se a ocorrência se der de forma oral, por gestos ou sinais, estaremos diante de hipótese de crime instantâneo.

Ainda segundo o professor Nucci, pode-se classificar o delito em comento como:

“(...) comum (aquele que não demanda sujeito ativo qualificado ou especial); formal (delito que pode ter resultado naturalístico, embora não seja indispensável); de forma livre (podendo ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente, inclusive de maneiras indiretas ou reflexas); comissivo (“injuriar” implica em ação) e, excepcionalmente, comissivo por omissão (omissivo impróprio, ou seja, é a aplicação do art. 13, §2º, do Código Penal); instantâneo (cujo resultado se dá de maneira instantânea, não se prolongando no tempo); unissubjetivo (que pode ser praticado por um só agente); unissubsistente ou plurissubsistente (pode ser praticado por um ou mais atos integrando a conduta de injuriar); admite tentativa, se for plurissubsistente”.

In casu, a ação penal é condicionada à representação do ofendido ou seu representante legal, conforme se extrai do artigo 145, parágrafo único, do Código Penal, devendo-se observar o prazo para o exercício do direito de representação que, segundo dispõe o artigo 38 do Código de Processo Penal, é de seis meses.

Admite-se a possibilidade de perdão judicial (artigo 140, parágrafo 1º, incisos I e II do CP).

Ainda segundo as pesquisas encetadas, a injúria proferida no calor da discussão não configura crime, pois ausente estará o elemento subjetivo específico, que é o animus de magoar e ofender.

Nesse sentido: TACRIM/SP, Ap. 1.175.699/8-SP.

4.7. Comparativo entre o artigo 20 da Lei Caó e o artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal e a necessidade de advento de um novo tipo penal

Analisados os tipos penais em comento, verifica-se que o agente incidirá na prática do delito previsto no artigo 20 do Código Penal quando a ofensa se dirigir a direito do ofendido, ferindo a ideia isonômica, lembrando-se do caráter subsidiário do delito (somente se aplicará quando a conduta não se identificar com nenhuma daquelas outras previstas na Lei nº 7.716/89).

Nesse sentido, é escólio do professor André Estefam: “No racismo, o agente nega o exercício de algum direito ao ofendido por motivo de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional ou, de alguma maneira, incita o preconceito”

Quando a intenção do agente se direcionar à ofender a honra subjetiva do agente, atingindo o seu âmago, estamos diante da figura penal tipificada no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal.

Nas palavras do ilustre Mirabette, “na sua essência, é a injúria uma manifestação de desrespeito e desprezo, um juízo de valor depreciativo capaz de ofender a honra da vítima no seu aspecto subjetivo.”

Celso Bittencourt, por sua vez, esclarece que: “o valor que o agente atinge é imaterial, interior, superior à própria dor ou sofrimento físico que o agente possa sentir, é o seu valor espiritual, a própria alma, é aquilo que interiormente o motiva a continuar a aventura humana na Terra: a sua honra pessoal. O corpo, a saúde, a integridade ou incolumidade são atingidos reflexamente”.

Todavia, segundo pesquisas encetadas na internet, encontramos interessante explanação do professor Almiro de Sena Soares Filho, estabelecendo outras diferenças entre os institutos em enfoque:

“Não há um pensamento unânime na doutrina e jurisprudência. Há pontos de vista que se destacam, dentre eles, há dois posicionamentos: o primeiro ensina que se deve verificar a questão subjetiva, ou seja, analisar se quando o agente proferiu aquelas expressões, ele estava querendo atingir aquele indivíduo do grupo étnico-racial ou ele queria atingir toda a coletividade, todo o grupo ao qual faz parte a vítima. O problema está em avaliar exclusivamente esse critério, porque depende unicamente da pessoa que proferiu as expressões. Na prática, o que se vê é que o agressor, quando assume que proferiu as injúrias, justifica-se afirmando que as fez porque estava irritado com a vítima, mas que não é racista, tendo vizinhos, amigos e até parentes negros. O segundo posicionamento toma por base o contexto objetivo em que foi pronunciada aquela expressão. Então analisa-se o ambiente em que se deu a conduta, a pessoa que pronunciou, a própria vítima, o histórico de conduta de cada envolvido, além da análise do próprio critério subjetivo para que se possa classificar a conduta como Injúria Racial ou Racismo. A crítica que se faz a essa dicotomia legal é que ela acaba por beneficiar o infrator de crime de racismo, porque tende a classificar-se as condutas como meras injúrias”

(texto disponível em: https://www.mpdft.mp.br/pdf/unidades/nucleos/ned/Estudo_legislacao_penal_combate_racismo.pdf)

Interessantes apontamentos, na medida que revelam a grande problemática da questão: diferenciar, na prática, qual tipo penal foi infringido.

Isto porque, como bem asseverou o articulista, quando o agente é detido pela prática de ato discriminatório, argumenta que o fez “no calor da emoção”.

É o caso, por exemplo, dos torcedores de futebol que desferem insultos e agressões aos jogadores nos estádios, tema do presente trabalho. As agressões costumam ser proferidas de forma verbal, como no caso de torcedores que imitam macacos, em alusão à coloração da pele do jogador ou membro da comissão de arbitragem, ou ainda com a prática de gestos (v.g., arremessa de bananas no gramado, imitações de macaco etc.) . Via de regra, os agentes argumentam que infringiram a lei sem dolo específico de ofender os jogadores ou a raça dos jogadores. Agiram no “calor das emoções proporcionadas pelo time do coração”. Que “não suportam ver o time do coração perder” ou ainda que “entraram na onda dos demais torcedores”.

Nesse sentido, colhe-se inclusive julgado no sentido de que ofensas racistas em jogos de futebol não possuem o condão de ofender:

“Queixa-crime Injúria qualificada - Inexistência da intenção de ofensa dirigida ao querelante – Absolvição Necessidade Sentença mantida - Apelação do querelante não provida. Com recomendação.

Vistos.

Pela r. sentença de fls. 143/144, cujo relatório se adota, Joaquim Clemente Machado foi absolvido da imputação apontada na presente ação privada (artigo 140, § 3º, do Código Penal), com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal. Inconformado, o querelante interpôs recurso de apelação objetivando a condenação do querelado nos termos da queixa-crime (fls. 151/155). Regularmente processado o recurso, manifestou-se a douta Procuradoria Geral de Justiça pelo não provimento da apelação (fls. 176/177).

É o relatório.

Não há nos autos elementos para sustentar a tese de crime de racismo tipificado no artigo 140, § 3º, do Código Penal, conforme pretende o querelante Sandro José Rodrigues de Camargo. A conduta descrita na denúncia, na qual afirma que o querelado Joaquim Clemente teria chamado Sandro de “macaco”, realmente não restou comprovada. O que se extrai dos autos é no sentido de que o querelante foi expulso de uma partida de futebol. Quando saía do campo, a torcida começou a proferir xingamentos, formando-se uma confusão generalizada. Ao ser ouvido, o querelado negou os fatos e disse que quem o ofendeu foi o querelante, xingando-o de 'corno', 'velho', 'vagabundo' e 'mato você com a mão' (fls. 85). As testemunhas arroladas confirmaram as versões de um e de outro (fls. 80, 81, 82, 83 e 84).

O crime previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal protege a honra subjetiva, punindo os atos que atentem contra a dignidade e o decoro, utilizando-se de expressões referentes a raça, cor, etnia, origem ou religião, ofendendo, assim, a honra subjetiva.

No presente caso não ficou demonstrado que o querelado em seu comentário queria discriminar o querelante. Suas palavras, proferidas no calor da discussão, não foram dirigidas a determinada pessoa, uma vez que todos se xingavam e trocavam ofensas. Ademais, estava ausente o elemento subjetivo específico, que é a especial vontade de magoar e ofender.

Nesse sentido, a lição de Guilherme de Souza Nucci (in Código Penal comentado, 10ª edição, Editora RT, pág. 682): “Em discussões acaloradas, é comum que os participantes profiram injúrias a esmo, sem controle, e com a intenção de desabafar. Arrependem-se do que foi dito, tão logo se acalma, o que está a evidenciar a falta de intenção de ofender.”

Assim, sendo as provas conflitantes, não é possível decidir-se em favor de um ou de outro. Portanto, o conteúdo probatório não foi suficiente para atribuir ao querelado o crime descrito na queixa-crime. Diante disso, é de rigor a manutenção da absolvição.

Por derradeiro, observa-se que a autuação está equivocada, pois o delito capitulado no artigo 140, § 3º é apenado com reclusão. Devendo, portando, a presente apelação ser submetida à douta revisão. Assim, recomenda-se sua retificação.

Posto isso, nega-se provimento ao apelo. Com recomendação”

(TJSP, Apelação nº 0003319-92.2010.8.26.0238, Relator Des. Ivo de Almeida, j. 15.3.2013) – grifo nosso.

Data maxima venia, respeitado o entendimento do órgão julgador, ousamos discordar da fundamentação adotada. Isto porque, ao nosso ver, um indivíduo pensante que desfere palavras racistas contra à vítima tem claramente a intenção de ofender a honra subjetiva, de humilhar, execrar. O direito penal não pode se omitir. Em nosso entendimento, essa permissividade tem enorme relação com a continuidade dessas práticas nas arenas.

E não se permite aqui a defesa da corrente minimalista de que o direito penal é ultima ratio e não deve se preocupar com coisas mínimas. Como analisado no desenvolver deste trabalho, verificamos os enormes danos que os afrodescendentes vem sofrendo desde o início da escravidão. Os danos são irreversíveis.

Abaixo, colhemos alguns fatídicos episódios de racismo no futebol pátrio:

“Em entrevista durante a apresentação no Bahia, nesta semana, o meia Zé Roberto disse que deixou o Internacional, time com o qual tinha contrato até 2013, porque seu filho foi vítima de racismo na escola. "Eu não gosto nem de falar muito sobre isso. Mexeu muito comigo, com a família. Foi o que mais fez com que eu deixasse o Inter", confessou. Na final do Campeonato Gaúcho de 2011, o jogador foi alvo de outra manifestação racista, quando a torcida gremista imitou o som de macacos ao ouvir o seu nome durante uma substituição. O meia Tinga também sofreu o mesmo tipo de ataque em 2006, em um jogo do Internacional contra o Juventude, pelo Brasileiro. Cada vez que pegava na bola, a torcida imitava o som de macaco. Hoje, ele prefere não falar mais sobre o episódio. Jogadores gremistas também já foram alvo de racismo. Ainda em 2006, Jeovânio Rocha do Nascimento foi alvo de uma ofensa racista após uma entrada forte do então zagueiro do Juventude Antônio Carlos, que deixou o campo esfregando a mão no braço, referência racista à cor da pele do adversário. Hoje no Santa Cruz, o jogador prefere não falar mais sobre ao assunto. 'Preto filho da p****' A frase acima foi a ofensa racista ouvida pelo jogador Glauco Simonelli Venancio, quando defendia o Ypiranga de Erechim (RS), após pedir a bola do gandula em uma partida contra o Santa Maria. "Estávamos perdendo o jogo por 3 a 2. Quando eu fui pedi a bola para o gandula, ele não queria dar, daí eu falei pô, me dá rápido, então o preparador de goleiros estava do outro lado da grade daí ele falou: 'preto filho da p***' e me chamou ainda de macaco". "Não sou eu que vou conseguir acabar com isso, porque sempre vai existir, mas é difícil, porque você está ali, lutando pelo pão de cada dia, para dar um futuro para a sua família. Quando aconteceu isso, minha filha estava presente, e quando chegamos em casa ela veio me perguntar: 'pai, por que você está chorando, o que foi que aconteceu?' Mas naquele momento eu não podia falar. Inclusive, um dia ela chegou para mim e disse: 'pai, por que eu nasci moreninha, então?' Eu respondi que era porque Deus quis assim", lembra”.

(texto obtido junto ao sítio: https://esportes.terra.com.br/futebol/estaduais/campeonato-gaucho/relembre-ze-roberto-e-outros-casos-de-racismo-no-futebol.html)

Como cediço, os delitos raciais além de provocarem uma humilhação extrema à vítima, acabam também atingindo seus familiares.

Em regra, os autores dos delitos em comento acabam por ser enquadrados no delito de injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal), que permite a liberação através de fiança, bem como a prescrição da pena, gerando a sensação de impunidade.

Ainda nos casos que envolvem personalidades, o dano costuma ser maior, devido à publicidade.

Nesse sentido, vale trazer à baila posicionamento do articulista Henrique Massara:

“Em regra, as ofensas de cunho racista proferidas a um indivíduo, que acabam por ofender a sua honra são qualificadas como injúria racial na esfera criminal, o que facilita a vida de quem comete esse tipo de crime por permitir a liberação através de fiança, bem como a prescrição da pena. Porém, a prática de ofensas racistas em um estádio de futebol a um jogador profissional merece uma análise mais acurada. Isso porque o futebol, um dos maiores esportes do mundo, e, sem dúvida, o maior e mais querido esporte do Brasil, é assistido por milhões de pessoas ao redor do mundo e, por isso, atinge uma coletividade imensurável de pessoas. Ademais, o jogador de futebol representa toda uma nação e inspira a população que representa a lutar por um país melhor, a se superar a cada dia e a persistir até alcançar seus objetivos. Quando praticamente todas as pessoas presentes em um estádio ofendem uma figura pública com enorme influência na população, essa ofensa reflete em toda a coletividade de pessoas do país, especialmente no caso de competições internacionais, como a Libertadores, em que clubes de países diferentes se enfrentam. (...) Logo, o cenário jurídico perfeito seria se pudéssemos considerar que há crime de racismo quando ofensas são proferidas contra um jogador, que por ser uma figura pública amplia o universo da ofensa, que não atinge apenas a honra da vítima como indivíduo, mas toda a população do país, que no caso de Tinga, alcançou o povo brasileiro composto por uma rica miscigenação de raças.”

(disponível em: https://www.cunhapereira.adv.br/artigos/caso-tinga-racismo)

Por isso, sugerimos estudos acerca da viabilidade de um tipo penal mais específico, com pena mais severa, voltado a coibir exatmente a prática racista contra atletas, em espetáculos públicos, já que como bem delineado pelo advogado Henrique Massara, no artigo supra,

“a interpretação da doutrina e da jurisprudência exige a presença de um requisito que afasta a prática do crime de racismo em praticamente todos os atos de preconceito racial, que é a segregação. A título de exemplo, a segregação racial ocorre quando uma pessoa é impedida de fazer algo em razão de sua cor ou raça. Sendo assim, esse requisito afasta qualquer possibilidade de enquadramento no crime inafiançável de racismo, desqualificando-o para a injúria racial”.

Todos nós, adeptos do bom esporte, do esporte jogado, das grandes e emocionantes disputas, estamos cansados de presenciar esses episódios de desinteligência. Essas atitudes acabam, além de atingir o intimo da vítima, seus familiares, possuem um poder de destruição muito maior, visto o alcance proporcionado pela mídia. Atinge torcedores, não torcedores e até aqueles que não acompanham futebol, visto que essas situações sempre acabam ultrapassando as páginas esportivas.

No âmbito administrativo, sabemos que é de costume da FIFA punir os infratores com o impedimento de frequentar estádios, aplicar multas aos clubes ou até mesmo bani-los para sempre. Todavia, a própria FIFA reconhece a ineficiência de tais medidas . Mudanças são necessárias e em caráter de urgência, para evitar que o futebol não retroceda às épocas em que era praticado somente pelo aristocratas.


CONCLUSÃO

A crença na existência de raças humanas distintas e superiores umas às outras, normalmente relacionando características físicas hereditárias a determinados traços de caráter e inteligência ou manifestações culturais é um problema arraigado em todas as sociedades, desde os primórdios da existência humana.

Recentes episódios de racismo trouxeram à tona um tema ainda pouco discutido no futebol brasileiro: a discriminação racial. Nos estádios, tiradas racistas e homofóbicas são ouvidas com freqüência e nada parece ser feito para coibir essa prática criminosa.

A temática do combate e da luta contra o preconceito racial é das urgências mais preciosas não só para o futebol, como também para o mundo. A constante elevação dos direitos humanos como valor universal para uma modernidade presente e futura é a sinalização de que a questão racial significa o ponto crucial sobre os próximos e decisivos passos da humanidade: isonomia material.

No âmbito administrativo, a punição aos infratores com o impedimento de frequentar estádios, a aplicação de multas aos clubes ou até mesmo seu banimento se mostram medidas infecientes para coibir essas atitudes criminosas.

Já no âmbito penal, os dispositivos legais previstos na Lei Caó e no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal não se revelam como medidas suficiente para repreender os autores dessa modalidade criminosa, haja vista as dificuldades encontradas na produção de prova, bem como a resistência da própria jurisprudência em aplicar o que a lei prevê, por entender que ofensas de cunho racial nos estádios são proferidas no calor do momento, apenas um “desabafo” do torcedor contra os membros das equipes ou a comissão de arbitragem.

Uma primeira reflexão pode nos levar a crer que o racismo está intimamente relacionado com a falta de educação, de acesso a cultura. Todavia, em nosso entendimento, isso não procede, pois com essa teoria não poderíamos explicar, por exemplo, como a Espanha, um país Europeu, de primeiro mundo, com níveis quase nulos de analfabetismo tenha uma população tão preconceituosa (vide caso Daniel Alves, entre outros em que, basicamente, os criminosos tem o intuito de humilhar e execrar a vítima, comparando-a, via de regra, à primatas -ofensa preferida pelos agressores).

A análise de todos esses elementos nos revela, ao fim, a necessidade de desenvolvermos estudos acerca da viabilidade de um tipo penal mais específico, com pena mais severa, voltado a coibir exatamente a prática racista contra atletas, em espetáculos públicos.


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FEDERÁTION INTERNACIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION: https://pt.fifa.com.

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https://oglobo.globo.com/esportes/diretor-da-fifa-diz-que-multas-financeiras-por-racismo-sao-desrespeitosas-12477769

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https://www.wikipedia.org/wiki/Carlos_Alberto_de_Oliveira_%28Ca%C3%B3

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Autor


Informações sobre o texto

Artigo apresentado como requisito para conclusão do Módulo II do Curso de Pós Graduação “Lato Sensu” em Direito Penal na Escola Paulista da Magistratura.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Rafael Cícero Cyrillo dos. O negro no futebol brasileiro. O racismo sob a égide penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7493, 6 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32033. Acesso em: 10 maio 2024.