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Normas de justiça em Hans Kelsen

Normas de justiça em Hans Kelsen

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Expõe-se o tratamento que Hans Kelsen confere a variadas normas de justiça: a justiça platônica, a justiça divina, a justiça aristotélica, o imperativo categórico kantiano e a justiça marxista.

SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Valores e justiça – 3 Normas de justiça – 4 Considerações finais

 

RESUMO: Este estudo pretende expor o tratamento que Hans Kelsen confere às variadas normas de justiça, em seu combate contra a ideia de que existe qualquer forma de justiça absoluta. Primeiramente, aborda-se a visão relativista de Kelsen acerca das normas de justiça como juízos de valor. Em seguida, apresentam-se as principais normas de justiça analisadas por Kelsen em sua obra, quais sejam, a justiça platônica, a justiça divina, a justiça aristotélica, o imperativo categórico kantiano, e a justiça marxista. Ao final, conclui-se que, na visão de Kelsen, nenhuma das normas de justiça apresentadas é válida em termos absolutos.

 

Palavras-chave: Hans Kelsen, normas de justiça, Teoria Pura do Direito, relativismo, axiologia.

 


 

1 Introdução

O grande empreendimento da obra e pensamento de Hans Kelsen consistiu, principalmente, em afirmar o caráter científico e autônomo do direito, rigorosamente delimitando-lhe o objeto – a norma jurídica e suas relações de validade (KELSEN, 2001, p. 359) – e determinando-lhe um método formal lógico-normativo.

Tal concepção da ciência jurídica implicou duas grandes formulações metodológicas, as quais marcaram o pensamento kelseniano: a) o isolamento (ou como enxergava Kelsen, a libertação) do direito em relação às demais ciências, excluindo-se a dependência dos fatos jurídicos de fatos sociológicos, psicológicos, econômicos etc.; b) a abstração axiológica, afastando do âmbito da ciência jurídica os juízos de valor, tais como visões morais e ideologias políticas.

É pertinente conferir o apontamento de Miguel Reale (1994, p. 455), referente ao contexto da ciência do direito no período em que Kelsen lançou ao mundo a sua teoria pura:

 

Quando Hans Kelsen, na segunda década deste século [XX], desfraldou a bandeira da Teoria Pura do Direito, a Ciência Jurídica era uma espécie de cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurava transpor os muros da Jurisprudência, para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.

 

Sintetizando a visão kelseniana de ciência jurídica, Miguel Reale (2002, p. 237) explana:

 

Kelsen é um adversário sistemático daqueles que querem reduzir a Ciência Jurídica a um capítulo da Sociologia, da Economia, da História ou da Geografia. Para ele, a Ciência Jurídica é uma ciência autônoma, que deve operar com métodos próprios e com absoluta fidelidade a seus prismas de observação. Partindo desta colocação metodológica, Hans Kelsen sustenta que a Ciência do Direito é uma pura ciência de normas e proposições normativas.

 

Conforme indica Maria Helena Diniz (2006, p. 118), Kelsen remete o “estudo desses elementos sociais às ciências causais (sociologia, psicologia jurídica etc.), uma vez que, em sua concepção, ao jurista stricto sensu não interessa a explicação causal das instituições jurídicas”. Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 86) atesta que Kelsen foi “um enérgico defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica, pelo que sempre insistiu na tese da separação entre o Direito e outras disciplinas do conhecimento humano.”

Desse modo, a teoria pura “responde à questão do que é o Direito, não do que deve ser. Esta segunda questão é uma questão de política, ao passo que a teoria pura do Direito é ciência” (KELSEN, 2001, p. 261).

A teoria pura kelseniana infere, pois, a neutralidade da ciência jurídica perante os valores, os quais o autor considera como insuscetíveis de apreciação científica para fins de se avaliar se são justos ou não (KELSEN, 2011, p. 16). Miguel Reale (2002, p. 374) aponta que “antes dos neopositivistas, e antecipando-se a eles, também Kelsen viu na justiça uma questão de ordem prática, insuscetível de qualquer indagação teórico-científica”. Para Kelsen (2006, p. 78), a ideia de que o direito deve, segundo sua própria essência, ser moral, “pode, apesar de sua insuficiência lógica, prestar politicamente bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável.”

A pureza da teoria, diz Kelsen (2001, p. 261), consiste na ideia de que “a ciência específica do Direito, a disciplina geralmente denominada jurisprudência, deve ser distinguida da filosofia da justiça”, de maneira que indagações sobre o que é justiça, o que é justo e injusto, pertencem ao domínio da Ética, não da ciência jurídica, esta que, segundo Kelsen, não possui competência para responder a questões relativas à justiça.

A problemática da moral e da justiça em Hans Kelsen, que não ignorou tal temática conquanto a tenha declarado banida do âmbito da Ciência Jurídica, é baseada em seu ferrenho embate contra o jusnaturalismo. O autor se insurge contra a pretensão de qualquer sistema de direito natural de sustentar-se em uma concepção de justiça com caráter absoluto e excludente de todas as demais. Eis o libelo de Kelsen (2011, p. 115) contra as doutrinas jusnaturalistas:

...cada uma dessas doutrinas jusnaturalistas dá ao indivíduo a ilusão de que a norma de justiça que ele escolhe ou pela qual opta provém de Deus, da natureza ou da razão, pelo que é dotada de validade absoluta, excluindo a possível validade de uma outra norma de justiça que a ela se oponha ou contradiga – e, por esta ilusão, muitos fazem um total sacrificium intellectus.

 

Ponderando que não se pode determinar qualquer elemento comum a todos os conteúdos das diferentes ordens morais vigentes em todas as sociedades de todos os períodos da história humana, Kelsen (2006, p. 73) considera que, quando não se pressupõe qualquer a priori como dado, isto é, “quando não se pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto”.

Dessa forma, diante da relatividade dos sistemas morais, e considerando a justiça como uma virtude moral (KELSEN, 2011, p.3), defende Hans Kelsen (2001, p. 223) que existe apenas um direito, ao mesmo tempo em que existem, no entanto, muitas justiças. Esse direito uno é o direito positivo, ou seja, “uma ordem coativa criada pela via legislativa ou consuetudinária e globalmente eficaz” (KELSEN, 2011, p. 117), baseado em uma norma fundamental que não é – e nem depende necessariamente de – uma norma de justiça, e da qual não depende a validade das normas do ordenamento:

 

Abstrair da validade de toda e qualquer norma de justiça (...), ou seja, admitir que a validade de uma norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são simultaneamente válidas – é justamente o princípio do positivismo jurídico. (KELSEN, 2011, p. 11, grifos no original)

 

Confira-se, a esse respeito, a constatação de Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 86):

 

Não obstante as críticas que recebeu, todas acusando-o de reduzir o conhecimento jurídico à norma e, consequentemente, esquecer as dimensões sociais e valorativas, Kelsen, na verdade, nunca negou tais aspectos, mas sustentou a necessidade de escolher, dentre eles, um que assegurasse autonomia ao jurista.

 

No que concerne à questão específica da justiça, eis as palavras do próprio Kelsen (2011, p. 70):

Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma – e isto é importante acentuar sempre – que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem muitas normas de justiça, diferentes umas das outras e contraditórias entre si.  (...) Especialmente não nega que toda ordem jurídica positiva – quer dizer, os atos através dos quais suas normas são postas – pode ser apreciada ou valorada, segundo uma destas normas de justiça, como justa ou injusta. Mantém, todavia, que estes critérios de medida têm um caráter meramente relativo...

Com efeito, Kelsen expõe variadas normas consideradas válidas no sentido de se valorar algo como sendo justo (normas de justiça), negando a todas um caráter absoluto e afirmando que “a decisão da questão de saber o que é justo e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que nós tomamos para base do nosso juízo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas” (KELSEN, 2011, p. 114).

Na perspectiva de Kelsen (ibidem), o problema de se indagar “o que é justiça?” não se encontra tanto no ato de tentar responder, quanto principalmente no ato de saber o que perguntar:

A tarefa do conhecimento científico não consiste apenas em responder às perguntas que lhe dirigimos mas também em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido.

No presente estudo, pretende-se abordar o tratamento doutrinário que Hans Kelsen dispensa à questão da multiplicidade das normas de justiça em sua influente e discutida obra, primeiramente apresentando-se a visão kelseniana do valor justiça, suscitando-se em seguida algumas das mais importantes entre as variadas normas de justiça possíveis sob a ótica de Kelsen.


2 Valores e justiça

“O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta”, afirma Hans Kelsen (2011, p. 4), e prossegue (ibidem, p. 4-5):

 

O resultado é um juízo exprimido que a conduta é tal como – segundo a norma de justiça – deve ser, isto é, que a conduta é valiosa, tem um valor de justiça positivo, ou que a conduta não é como – segundo a norma de justiça – deveria ser, isto é, que a conduta é desvaliosa, tem um valor de justiça negativo.

Dentro desse raciocínio, Kelsen defende que a qualidade de “justo” ou “injusto” de um indivíduo manifesta-se em sua conduta perante outros sujeitos, à luz de uma determinada norma de justiça com a qual aquela conduta seja compatível ou não. Em outras palavras, “um homem é justo quando seu comportamento corresponde a uma ordem dada como justa” (KELSEN, 2001, p. 2).

No entanto, o que caracteriza uma norma de justiça? Para Kelsen (2011, p. 7), significa aquela norma que “prescreve uma determinada conduta de homens em face de outros homens”, ou seja, que impõe ou proíbe uma conduta social. O autor pondera que a norma de justiça é uma norma moral, mas nem toda norma moral é uma norma de justiça.

De fato, Kelsen (2001) considera que há na Teoria do Direito dois juízos de valor, os quais o autor visualiza como pertencentes a duas esferas distintas: o valor de direito (ou juízo jurídico de valor), pelo qual se avalia determinada conduta como “lícita” ou “ilícita”, e o valor de justiça, pelo qual se valora a conduta como “justa” ou “injusta”.

Busquemos o que Kelsen entende por valor. O autor afirma que, “segundo uma teoria amplamente aceita, todo valor é função de um interesse, no sentido de uma atitude motor-afetiva” (KELSEN, 2001, p. 205). Essa teoria a que Kelsen se refere é a Axiologia, ou Filosofia dos Valores (Wertphilosophie), sobre a qual “se levanta todo o edifício das várias disciplinas axiológicas” (HESSEN, 1946, p. 18), tais como a Ética, a Estética e a Filosofia da religião.

Aponta David Schnaid (2004, p. 50) que “chamamos de juízos de valor àqueles que relacionam o objeto a um sentido para o ser humano, a uma finalidade. Sem isso eles não podem ser entendidos.”

Na opinião de Miguel Reale (1994, p. 210), quando “o homem toma atitude perante o fato e o insere no processo de sua existência, surge o problema do valor, como critério de compreensão”.

O valor é, portanto, um objeto da cultura, mostrando-se pertinente a observação de Raimundo Bezerra Falcão (2010, p. 19), para quem, “se a cultura é uma das conseqüências da conduta, e se a conduta contém necessariamente valor, inexiste como negar que os objetos culturais são e valem a um só tempo.”

A relação indissolúvel entre valor e conduta atesta o caráter teleológico do valor, e torna evidente que “o fim é valor enquanto racionalmente pode ser captado e reconhecido como motivo de agir” (REALE, 1994, p. 380). Dessa forma, é de se pressupor a implicação fundamental dos valores sobre qualquer concepção de justiça aceita por um indivíduo ou grupo. Aquiles Côrtes Guimarães (2007, P. 44-45) aponta a relevância que tem a questão dos valores para a indagação filosófica e aplicação prática da justiça:

Valorar é uma constância na atividade jurisdicional, uma vez que decidir é cindir, isto é, escolher entre um conjunto de valores, que se opõe a um outro conjunto de valores, realizando uma síntese cuja única unidade integradora é o juiz, no momento da sentença. (...)

Logo, a questão dos valores mostra à consciência fundante como questão radical, enquanto ingrediente decisivo no momento da determinação concreta do justo e do injusto por parte do Estado-juiz.

 

É de se reconhecer, portanto, que o valor é uma bússola pela qual se orienta a escolha entre duas ou mais diferentes normas de justiça. Hans Kelsen (2001 p. 222-223) exemplifica a interação entre o valor e a norma de justiça ao afirmar:

 

A norma de justiça tem significado diferente para um pacifista e um imperialista, para um nacionalista e um internacionalista, para um crente e um ateu. O homem primitivo tem uma concepção de justiça diferente da do homem civilizado. (...)

Portanto, não há um padrão exclusivo de justiça: o que encontramos efetivamente são muitos ideais diferentes e, muitas vezes, conflitantes.

 

A Filosofia dos Valores (Wertphilosophie) entende que os valores são relativos, porém passíveis de objetivação (SCHNAID, 2004, p. 56-58). Com efeito, objetivar compreende externar o espírito individual, depositar fora do sujeito as suas noções, suas experiências, seus valores, que se desvinculam do âmbito subjetivo e adquirem sentido para outros e indeterminados sujeitos. Falcão (2010) afirma que o espírito se objetiva em forma de cultura, e que a própria cultura é vida humana objetivada.

Na visão de Kelsen, entretanto, apenas o juízo jurídico de valor é passível de objetivação, não se objetivando o juízo de valor da justiça, que possui natureza diversa. Segundo Kelsen (2001, p. 223),

 

...o valor de Direito é objetivo, ao passo que o valor de justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes um grande número de pessoas tenha o mesmo ideal de justiça. Os juízos jurídicos de valor podem ser postos à prova objetivamente por fatos. Portanto, são admissíveis em uma ciência do direito. (...) Os juízos de justiça não podem ser postos à prova objetivamente.

 

Schnaid (2004, p. 57) menciona que “Hans Kelsen, em muitos de seus escritos, ataca, de maneira enérgica, a possibilidade de uma axiologia jurídica objetiva.”

Kelsen advoga tal postura por acreditar que o valor não é necessariamente relacionado a um interesse, como propõe a Wertphilosophie, mas que pode também ser relacionado a uma norma, o que seria o caso dos juízos jurídicos de valor: “Pressupondo a norma fundamental, podemos submeter a uma prova objetiva os juízos jurídicos de valor baseados na norma fundamental pressuposta” (KELSEN, 2001, p. 220-221). Isto porque, segundo defende o autor, ao serem os valores de direito relacionados não com uma vontade, mas com uma norma, podem valorar não só a conduta de um único indivíduo ou apenas dos indivíduos que partilhem daquela vontade, mas a conduta de todos, uma vez que, enquanto a vontade é subjetiva, a norma é objetiva.

A subjetividade dos valores – que para Kelsen, reitere-se, são impassíveis de objetivação, exceto os valores jurídicos – é um dos argumentos kelsenianos para defender a impossibilidade de se chegar a uma norma de justiça absoluta, fundada na razão:

O problema dos valores é, antes de tudo, o problema dos conflitos de valores. E esse problema não poderá ser solucionado com os meios do conhecimento racional. A resposta às questões que aqui se apresentam é sempre um juízo, o qual, em última instância, é determinado por fatores emocionais e possui, portanto, um caráter subjetivo. Isso significa que o juízo só é válido para o sujeito que julga, sendo, nesse sentido, relativo. (...)

Em última análise, é o nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito. (KELSEN, 2001, p. 4-5)

 

De fato, Kelsen (2001), para quem é inadmissível identificar “valor” com “valor absoluto”, alega que o ser humano, para satisfazer à necessidade de justificação de sua conduta, tenta apresentar os juízos de valor subjetivos, nascidos do emocional, como se fossem juízos de realidade, objetivos e verificáveis. Dessa forma, o positivismo kelseniano rejeita completamente a acepção dos valores como sendo juízos sobre a realidade ou como descrição de fatos, verificáveis por meio da experiência. Kelsen compara os juízos de realidade com os juízos de valor e conclui que, embora ambos tenham sua carga de subjetivismo, aquela dos juízos de valor é muito mais acentuada:

 

Enunciados sobre fatos baseiam-se, é verdade, na percepção de nossos sentidos, controlados por nossa razão, e, portanto, também são subjetivos, em certo sentido. Mas as percepções de nossos sentidos estão sob o controle de nossa razão em um grau muito maior do que estão nossos sentimentos (KELSEN, 2001, p. 293)

 

E ainda:

Enunciados científicos são juízos sobre a realidade; por definição, são objetivos e independentes de desejos e temores do sujeito que julga porque são verificáveis por meio da experiência. São verdadeiros ou falsos. Juízos de valor, porém, têm caráter subjetivo porque são baseados, em última análise, na personalidade do sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional de sua consciência em particular. (KELSEN, 2001, p. 349-350)

 

Nessa esteira de pensamento, é de se indagar onde se insere o direito – e sua relação com a moral – no contexto das concepções acima expostas. Kelsen (2006) usa a relatividade da moral buscando refutar a ideia de que uma norma deve satisfazer uma exigência mínima de justiça – conter em si um “mínimo moral” – para que possa ser considerada como direito. Na visão do autor, somente caso se pressuponha uma moral absoluta, de modo que o direito possa ter um conteúdo comum a todos os sistemas morais possíveis, é que se pode afirmar que todo o direito tem um caráter moral necessário. A teoria pura kelseniana tem o relativismo axiológico como um ponto de partida.

O que não significa, porém, que para Kelsen o direito não tenha relação alguma com a moral e com a justiça, nem que a ideia de inexistência de valores objetivos leve a negar a existência de uma norma válida de justiça. As conclusões de Hans Kelsen (2006, p. 75-76) a esse respeito estão expressas nas linhas:

 

Se, pressupondo a existência de valores meramente relativos, se pretende distinguir o Direito da Moral em geral e, em particular, distinguir o Direito da Justiça, tal pretensão não significa que o Direito nada tenha a ver com a Moral e com a Justiça, que o conceito de Direito não caiba no conceito de bom. Na verdade, o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser”, o que corresponde a uma norma. (...) Uma teoria dos valores relativista não significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer Justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós constituímos através de nossos atos produtores de normas e pomos na base de nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos.

 

A perspectiva de Kelsen é de que, havendo muitas justiças possíveis, uma ordem jurídica positiva que se baseia em uma determinada norma de justiça fatalmente entrará em contradição com diversas outras – e nem por isso perde sua validade. Dessa forma, uma ordem jurídica pode corresponder a qualquer das variadas normas de justiça, mas seu fundamento de validade não pode ser dependente dessa correspondência.


3 Normas de justiça

Vista a concepção kelseniana dos juízos de valor, particularmente do valor justiça, abre-se o caminho para abordar as mais importantes das muitas normas de justiça que Kelsen aponta como possivelmente válidas, ao mesmo tempo em que indica por que, a seu ver, nenhuma delas possui o caráter absoluto que se lhes atribui.

Na classificação de Kelsen (2011), há dois grandes tipos de normas de justiça: as do tipo metafísico, e as do tipo racional.

As normas de justiça do tipo metafísico são aquelas que não podem ser compreendidas pelo ser humano por meio da razão ou da experiência, sendo necessário pressupor a existência de uma esfera transcendente da qual as normas desse tipo provenham.

As normas do tipo racional, por outro lado, prescindem de uma instância transcendente, podendo ser pensadas empiricamente e entendidas pela razão, à qual as normas de justiça seriam imanentes.

Passa-se, pois, a considerar os dois tipos separadamente.

3.1 Normas do tipo metafísico

3.1.1 A justiça platônica

Deve-se a Platão o “dualismo típico de toda a metafísica: o dualismo que distingue entre uma esfera empírica e uma esfera transcendente” (KELSEN, 2011, p. 68), que em última instância faz germinar a teoria idealista do direito, a qual confronta um direito ideal, oriundo de uma esfera transcendente, com o direito real, posto pelo ser humano.

Na seara da ética, o dualismo platônico reside fundamentalmente na oposição entre bem e mal. Nota-se que tal oposição metafísica é concebida de maneira semelhante à oposição que há, na Axiologia, entre um valor e um desvalor. “Se o bem deve ser objeto da cognição, então a cognição deve também reconhecer o mal; e isso é verdade na filosofia platônica”, observa Kelsen (2001, p. 82).

Na concepção dualista que domina a maior parte do pensamento platônico, apenas o dever-ser possui existência real, de forma que apenas o bem existe, enquanto o mal não é um ser no mundo real, mas meramente a ausência de bem, o seu desvalor, sem existência em si mesmo. O mundo sensorial e empírico, em oposição ao mundo real das Ideias e do dever-ser, não é o mundo verdadeiro, mas apenas aparência de existência.

Nesse mundo sensorial, tudo varia conforme as circunstâncias e os pontos de vista, mas, para Platão, todas as percepções do mundo sensível às quais as pessoas se apegam e denominam “verdade” não passam de opinião (dóxa), apenas uma fluida ilusão da verdade, distante de ser o verdadeiro conhecimento (epistéme). “Entre os dois mundos em que se divide todo o universo, entre os domínios da dóxa e da epistéme, Platão pressupõe uma oposição implacável”, relata Kelsen (2001, p. 84).

As ideias de Platão representam “valores que devem, na verdade, ser realizados no mundo dos sentidos, mas que jamais podem aí ser plenamente realizados” (KELSEN, 2011, p. 62). Dispondo-as em um paralelo com a teoria kelseniana, pode-se dizer que as ideias retiram a sua validade de uma “norma fundamental” transcendente, que é a ideia do Bem absoluto, a qual “desempenha na filosofia de Platão o mesmo papel que a ideia de Deus na teologia de qualquer religião” (ibidem).

Kelsen indica que a ideia do bem contém em si a ideia da Justiça – e que Platão buscou, em quase todos os seus diálogos, responder à questão “o que é o Bem/a Justiça?”, sem conseguir chegar a um resultado definitivo pela via racional:

 

Platão remete repetidas vezes a um específico método de pensamento abstrato liberto de todas as representações sensíveis, a chamada dialética, que – segundo ele afirma – dá àquele que o domina a capacidade de apreender a Ideia. Todavia, ele próprio não emprega este método nos seus diálogos nem tampouco nos comunica os resultados desta dialética. (KELSEN, 2011, p. 63)

 

No diálogo Górgias, escrito provavelmente após a viagem de Platão à Sicília – fato determinante em sua vida e obra, pois o colocou em contato com o pitagorismo, “um guia ao qual permaneceu fiel durante todo o resto da vida” (KELSEN, 2001, p. 97) –, encontra-se uma doutrina de justiça que consiste na retribuição.

 

As principais teses morais dessa obra [Górgias] são que é melhor sofrer a injustiça que cometê-la, e que é melhor submeter-se à punição jurídica que escapar dela. A prova final dessas teses não repousa na demonstração um tanto duvidosa de Sócrates, a principal figura também nesse diálogo; depende antes do esplêndido mito que Platão relata na conclusão, no qual descreve como os bons serão recompensados e os maus são punidos no outro mundo.  (KELSEN, 2001, p. 98)

 

Kelsen (ibidem) observa que Platão, até seu último diálogo (As Leis), permaneceu fiel à concepção que vincula a retribuição à justiça. No final da obra central de Platão, A República, um ressuscitado narra o que sua alma viu no outro mundo, repetindo o leitmotiv de Górgias da justiça divina como retribuição.

Dessa forma, constata-se uma relação entre a doutrina da justiça e a doutrina da alma, e, portanto, a doutrina das Ideias. A justiça platônica depende do pressuposto da existência da alma antes do nascimento e depois da morte, conforme Kelsen (2001, p. 99):

A crença na concretização da justiça no outro mundo compele à concepção de uma existência futura da alma; a necessidade de uma cognição da natureza da justiça conduz à concepção de uma preexistência de alma, à teoria do conhecimento como reminiscência do que foi visto pela alma no outro mundo, antes de seu nascimento neste mundo.

 

Na doutrina das Ideias, o bem é substância da justiça, e com ela identificável. No entanto, critica Kelsen (2001, p. 103 e 2011, p. 63), Platão jamais ofereceu uma resposta definitiva ao que seria o bem em si, tratando, em A República, apenas do fruto do bem, sua sombra no mundo sensível, não alcançando a essência própria do bem, que se encontra além de todo conhecimento.

A conclusão de Kelsen (2001, p. 105) dirige-se a considerar a justiça platônica como uma experiência religiosa: “A conclusão final da sabedoria platônica, a resposta oferecida à questão formulada vezes e vezes ao longo dos diálogos, ou seja, a questão da natureza da justiça, é esta: trata-se de um mistério divino.”

Baseado nisso, Kelsen (2001, p. 106) afirma o seu posicionamento sobre a relatividade da justiça nas linhas:

 

Os sofistas haviam negado a existência de uma justiça absoluta; Sócrates afirmara-a apaixonada e dogmaticamente, mas foi finalmente obrigado a confessar que não sabia o que ela realmente era. Platão declara que se pode obter esse conhecimento por meio de sua filosofia; mas diz também que o resultado será inexprimível, que a questão permanecerá por responder, na verdade, que a questão não é sequer admissível. Assim, o caminho que devia conduzir do relativismo racionalista ao absoluto metafísico termina no misticismo religioso.

 

3.1.2 A justiça divina

Anteriormente aos ensinamentos de Jesus Cristo, a justiça divina das escrituras sagradas significava retribuição. Kelsen (2001) explana que muitos povos, inclusive o hebreu, interpretavam então a natureza segundo o princípio da retribuição, de forma que a morte, a doença, as dores do parto, a necessidade do labor, a má colheita, catástrofes, entre outros fenômenos naturais prejudiciais ao ser humano eram vistos como retribuição divina pelos pecados cometidos, enquanto os eventos desejáveis eram vistos como recompensas.

No Pentateuco encontram-se descrições nas quais o deus israelita prescreve punições para malfeitores (Genesis 19, 23 e seguintes; Levítico 10, 1 e seguintes; Êxodo 21,28; etc.) e recompensas para os virtuosos (Genesis 22,16 e seguintes; Números 25, 6 e seguintes; Deuteronômio 11,13 e seguintes; etc.)

No entender de Kelsen, o princípio de retribuição que constitui a justiça do deus israelita – aplicada, no entanto, por homens – é também lei de talião, pois a justiça da retribuição é primeiramente punição, e apenas ultimamente recompensa:

 

Como em quase todas as religiões, a punição e a recompensa não têm a mesma importância. A punição está em primeiro plano, a recompensa em último, nesse sistema de justiça, especialmente se tiver de se aplicada, não diretamente por Deus, de maneira transcendental, mas por homens, na forma de sanções socialmente organizadas. Que a justiça como retribuição signifique em primeiro lugar punição é a consequência do fato de ser a ameaça de punição por conduta indesejável – não a promessa de recompensa pela conduta contrária – a técnica específica do Direito positivo; e a ideia de justiça sempre reflete mais ou menos a realidade social tal como manifestada no Direito positivo. Portanto, o princípio da retribuição é apresentado também como jus talionis. (KELSEN, 2001, p. 43)

 

Kelsen conclui, pois, que o Antigo Testamento é dominado pela justiça do “igual por igual”.

Diferentemente, Jesus Cristo estabelece um princípio de retribuição que repudia o talião, na forma em que prescreve não retribuir o mal com o mal, mas com o bem. No ensinamento do Cristo, a nova justiça, que consiste no amor de Deus, significa amar os inimigos em lugar de devolver-lhes as injúrias por eles cometidas.

Ademais, Jesus nega ao ser humano o direito de julgar o semelhante. Escreve Kelsen (2001, p. 53) que “o conflito mais evidente entre o ensinamento de Jesus e a Lei judaica está no mandamento de não mais julgar outras pessoas (Mateus 7,1 ss.; Lucas 6,36 s.)”, de forma que a punição de um malfeitor aplicada por outra pessoa – um juiz – sob as normas socialmente vigentes não é condizente com a norma de justiça proferida por Jesus.

A nova justiça de Jesus é expressa, principalmente, no discurso do Sermão da Montanha (Mateus 4,23 e seguintes). Para Kelsen, a revolucionária doutrina do Cristo recusa-se a reconhecer o direito positivo, uma vez que seu princípio de justiça consiste no amor de Deus, não na retribuição, enquanto que “é a essência do Direito positivo resistir ao prejuízo, reagir ao prejuízo do delito com o prejuízo da sanção (...). É a técnica específica do Direito infligir ao malfeitor o mal da punição” (KELSEN, 2001, p. 45).

“Se não há mais retribuição”, escreve Kelsen (2001, p. 54), “então o Direito positivo não é mais aplicável.” E considera (2001, p. 46):

 

Do ponto de vista da razão humana, a doutrina de Jesus não é uma solução do problema da justiça na condição de problema de uma técnica social para a regulamentação das relações humanas; é antes a dissolução desse problema. Pois implica a solicitação de abandonar o desejo de justiça tal como concebido pelo homem.

 

É pertinente observar que, na interpretação de Kelsen, o “reino de Deus” proclamado por Jesus Cristo nos Evangelhos não se trata originalmente de um reino transcendental e espiritualizado, mas de um ideal de realização da justiça no mundo terreno. A leitura kelseniana da passagem em que Jesus diz a Pilatos: “Meu reino não é deste mundo” (João 18,36) entende que o reino se origina no céu, mas é estabelecido na terra, não com isto significando que o reino está além deste mundo.

 

Não pode haver dúvida de que o Reino de Deus, tal como escrito nos Evangelhos Sinópticos, era imaginado, em conformidade com a tradição judaica, como uma comunidade terrena de homens vivendo fisicamente. (...) A espiritualização do Reino de Deus é o resultado de um processo intelectual que se realizou, sob a influência de necessidades políticas e da especulação filosófica, apenas depois da morte de Jesus. A restauração messiânica do reino davídico era incompatível com o Império Romano. Portanto, é perfeitamente compreensível a tendência a reinterpretar essa ideologia, de maneira a torná-la politicamente aceitável às autoridades estabelecidas. (KELSEN, 2001, p. 66-67)

 

Se por um lado Kelsen considera revolucionária a visão de Jesus, segundo a qual haverá a ressurreição do corpo e o reino de Deus será a justiça realizada na terra, por outro considera conservador o ideal do apóstolo Paulo de realização da justiça em um mundo transcendental, anotando que esse ideal “alimenta o homem, que sofre a injustiça neste mundo, com a esperança de que os que lhe infligem o mal serão punidos após a morte. Portanto, não é necessário fazer nada contra eles neste mundo” (KELSEN, 2001, p. 77).

Observe-se que Kelsen não vê como origem da espiritualização do reino de Deus apenas a conveniência política em relação ao establishment do Império Romano, mas também a “tendência geral dos sentimentos religiosos de Paulo, sua inclinação para o irracionalismo e o misticismo” (KELSEN, 2001, p. 78).

Tal inclinação é o que leva Kelsen a afirmar que a doutrina de Paulo, “que é a base da teologia cristã da justiça” (KELSEN, 2001, p. 80), e segundo a qual a justiça divina é um segredo da fé (KELSEN, 2011, p. 65), não oferece resposta à questão “o que é justiça?”

Assim como a justiça platônica postula que os homens devem ser tratados conforme a ideia transcendente do bem, diz Kelsen (2011), a concepção da justiça divina afirma que os homens devem proceder conforme a transcendente vontade de Deus, igualmente absoluta e tão inacessível ao conhecimento humano quanto a ideia platônica do bem.

Portanto, se Deus é absoluto, eterno e imutável, sua justiça também há de ser. No entanto, “atribuir justiça à divindade para tornar a religião aplicável às relações humanas implica certa tendência para racionalizar algo que por sua própria natureza é irracional – o ser transcendental” (KELSEN, 2001, p. 27). Aquilo que é incompatível com o pensamento racional não é necessariamente incompatível com a fé religiosa, uma vez que contradições como a teodicéia seriam de fato contradições apenas para a limitada razão humana, mas não para a absoluta razão divina, de acordo com a teologia de Paulo pregada na Primeira Epístola aos Coríntios.

Para Kelsen, no entanto, tal forma de justiça leva em última instância a uma tautologia em razão de partir da – e conduzir à – noção de insondabilidade e incompreensibilidade da justiça divina:

 

Se a ideia de justiça divina deve ser aplicada à vida social dos homens (...), a teologia deve tentar partir de seu ponto inicial, a incompreensibilidade da justiça absoluta, para uma posição menos rígida – a suposição da vontade de Deus, embora incompreensível pela sua própria natureza, pode, não obstante, ser compreendida pelo homem de uma ou de outra maneira. A incoerência dessa posição torna inevitável que este torneio de pensamento deva, por fim, retornar ao ponto de partida. Como Deus existe, a justiça absoluta existe, e, assim, como se deve acreditar na existência de Deus, embora não seja capaz de compreender sua natureza, o homem deve acreditar na existência da justiça absoluta, embora não possa saber o que ela realmente significa. A justiça é um mistério – um dos muitos mistérios – da fé. (KELSEN, 2001, p. 28)

 

3.2 Normas do tipo racional

3.2.1 A justiça aristotélica

A doutrina da justiça de Aristóteles encontra seu centro no Livro V da obra Ética a Nicômaco. Naquele texto, “Aristóteles primeiro distingue a justiça em um sentido geral e a justiça em um sentido particular. Existem, sustenta ele, dois conceitos de justiça: a legitimidade e a igualdade.” (KELSEN, 2001, p. 124)

A legitimidade é, pois, um conceito mais amplo, e a igualdade um mais restrito, contido no conceito de legitimidade.

Kelsen (2001) entende que dentro da legitimidade aristotélica – a qual equivale ao total da virtude – está compreendida a conformidade com o direito positivo. Em outras palavras, a lei é idêntica à justiça. Embora Aristóteles utilize conceitos diferentes para tratar de justiça (díkaion) e direito (nóminon), afirma que todos os pronunciamentos do direito visam à felicidade geral, ou da classe dominante, carregando em si a legitimidade e com ela se equiparando, pois “justo” refere-se a qualquer coisa que produz e preserva a felicidade da comunidade política. Tal concepção “equivale a uma glorificação incondicional do Direito positivo” (KELSEN, 2001, p. 125).

No que concerne à justiça como igualdade, ela é subdividida por Aristóteles em dois tipos: a justiça distributiva, que consiste na repartição dos bens da comunidade entre seus membros, e a justiça corretiva, calcada na solução dos litígios e na punição dos malfeitores.

Aristóteles expressa a justiça distributiva em uma fórmula matemática, na qual expressa que, se ao indivíduo A corresponde o direito a, e ao indivíduo B corresponde o direito b, a justiça ocorre quando a razão entre o merecimento de A e de B for igual à razão entre o direito de a e de b.

De acordo com Kelsen (2001, p. 127), “a definição aristotélica de justiça distributiva nada mais é que uma formulação matemática do conhecido princípio suum cuique, a cada um o seu, ou a cada um o que lhe é devido”. No entanto, Hans Kelsen (2011, p. 18) acusa a fórmula suum cuique – e, por extensão, a fórmula da justiça distributiva – de resultar em tautologia, por pressupor a validade de uma ordem normativa que determine o que é efetivamente devido a cada um, servindo apenas para legitimar o direito positivo em quais sejam os direitos que ele prescreva como devidos, mas não para determinar, ela própria, o que é devido a todos.

 

A fórmula matemática da justiça distributiva de Aristóteles será aplicável apenas caso se pressuponha que o Direito positivo decide a questão de quais direitos devem ser conferidos aos cidadãos e quais diferenças entre eles devem ser relevantes. Como postulado, significa apenas que o direito positivo será aplicado em conformidade com o seu próprio significado. (KELSEN, 2001, p. 127)

 

Kelsen observa, ainda:

 

Contudo, não existem na natureza dois indivíduos que sejam realmente iguais, já que sempre há uma diferença quanto a sexo, raça, idade, saúde, riqueza e assim por diante. Não existe igualdade na natureza. Tampouco há igualdade na sociedade. A igualdade como categoria social, a afirmação de que dois indivíduos são socialmente iguais, não significa que não existem diferenças entre esses indivíduos, mas que certas diferenças que realmente existem, como, por exemplo, diferenças referentes a idade, raça, riqueza, são consideradas irrelevantes. A questão decisiva quanto à igualdade social é: que diferenças são irrelevantes? Para essa questão, a fórmula matemática da justiça distributiva de Aristóteles não tem nenhuma resposta. Tampouco para a outra questão essencial quanto aos direitos que o legislador deve conferir a cada indivíduo para ser justo. (KELSEN, 2001, p. 126)

 

Sobre a justiça na modalidade corretiva, “não é a igualdade de duas razões, é a igualdade de duas coisas, especialmente de duas perdas ou dois ganhos” (KELSEN, 2001, p. 128), de maneira que, por exemplo, a um serviço deve corresponder um contra-serviço equivalente em retribuição, bem como a um crime deverá haver uma pena equivalente. Afirma Aristóteles que, para realizar essa justiça, o juiz deve igualar a perda ou o ganho das duas partes. Em outras palavras – quais sejam, as de Kelsen (2001, p. 129) – deve o juiz “encontrar a metade da mesma maneira que um geômetra divide uma dada linha em duas partes iguais”.        

Mais uma vez, Hans Kelsen (2001, p. 129-130) interpõe a mesma crítica que interpusera ao princípio suum cuique:

 

A metáfora [do geômetra] não é uma solução do problema do serviço de retribuição justo e da punição justa. É apenas outra maneira de apresentar o problema. (...)

A questão decisiva, o que é o mal e o que é o bem, não é respondida por essa fórmula; tampouco a questão quanto ao que é “semelhante” ou igual. (...) As diferentes ordens jurídicas diferem muito na determinação do delito assim como das sanções, mas todas correspondem ao princípio da retribuição, que está na base da técnica social que chamamos Direito.

 

Essa concepção de conduta reta como meio-termo é denominada teoria do mesótes, segundo a qual a virtude é um meio-termo entre dois vícios. No âmbito da justiça, a conduta justa seria um meio-termo entre provocar a injustiça e sofrer a injustiça, na concepção aristotélica. Para Kelsen (2001, p. 131), a aplicação da fórmula do mesótes ao problema da justiça carece de coerência:

 

Cometer injustiça e sofrer injustiça não são dois graus diferentes de um mesmo e único substrato, não são nem mesmo dois fatos diferentes entre os quais se possa situar um terceiro fato. Um homem cometer injustiça implica o outro homem sofrer injustiça. Um não pode ser separado do outro. Dizer que a justiça é um meio termo entre cometer e sofrer injustiça é uma expressão figurada do julgamento de que a justiça não é injustiça, nem a injustiça que é cometida nem a injustiça que é sofrida, as quais, porém, são ambas a mesma e única injustiça.

 

Ademais, a respeito da metáfora do geômetra que divide uma linha em duas partes iguais, encontrando no centro a justiça, Kelsen (2011) observa que um geômetra só pode dividir uma linha em duas partes iguais caso tenha previamente como dados os dois pontos extremos. Dessa forma, o mesótes só é aplicável caso já se tenha como pressupostos os vícios e as virtudes já previamente determinados pelo conhecimento, para que se lhes possa dar o ponto médio.

Com efeito, Kelsen (2011, p. 30) afirma que Aristóteles “pressupõe o conhecimento dos vícios como conhecimento de algo per si evidente e pressupõe como vício ou defeito aquilo que a moral tradicional do seu tempo cataloga como tal”. Em vista disso, para Kelsen, a fórmula do mesótes possui função conservadora, pois apenas vem confirmar como sendo bom aquilo que a ordem social estabelecida considera como bom.

3.2.2 O imperativo categórico kantiano

“Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal”, declara Immanuel Kant (apud KELSEN, 2011, p. 21) em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Esse postulado é o denominado imperativo categórico, o qual “não é propriamente pensado como uma norma de justiça, mas como um princípio geral e supremo da moral no qual está contido o princípio da justiça” (KELSEN, ibdem).

David Schnaid (2004, p. 180) indica que, para Kant, “o homem age com consciência do dever, que lhe é imanente, e com esta base Kant reformula a Lei Moral, ou Imperativo Categórico”.

Sobre esse imperativo, que consiste em um poder querer sobre determinada conduta – isto é, a possibilidade de desejar que a máxima se torne universal –, Kelsen (2011) considera que ele não conduz a uma atuação necessariamente boa, pois um indivíduo tem a possibilidade de desejar que qualquer máxima de seu agir, independentemente de ser esta favorável ou atentatória à moral, se transforme em uma lei universal.

Primeiramente, Kelsen rebate o exemplo de Kant segundo o qual ninguém poderia desejar que uma máxima que prescreva o suicídio para escapar dos sofrimentos da vida se tornasse uma lei universal. De acordo com Kant, uma tal máxima entraria em contradição consigo mesma, pois seria contrária ao princípio essencial do próprio dever – o imperativo categórico –, que é incitar a promoção da vida. Para Kelsen (2011, p. 22-23), por outro lado, querer que essa máxima se torne universal não entra em contradição com um princípio absoluto do dever, mas apenas com a lei moral pressuposta por Kant.

Em seguida, Kelsen (2011, p. 23) desafia outro exemplo kantiano:

 

Uma outra máxima cuja compatibilidade com o imperativo categórico é analisada por Kant é aquela de se fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la. Imediatamente intuímos, diz Kant, que não poderíamos querer desta máxima que ela se transformasse numa lei universal, “pois segundo uma tal lei não haveria nenhuma promessa”. Mas por que haveria um homem mau de não poder querer uma tal situação? Se ele quer que a sua máxima seja uma lei universal, a sua vontade pode ser julgada como má desde que pressuponhamos a norma moral que diz que devemos cumprir as nossas promessas, mas não pode ser considerada como impossível.

 

Em suma, a partir desses e de outros exemplos semelhantes, Kelsen alega que as normas que Kant considera como autocontraditórias por serem incompatíveis com o princípio supremo de todo o dever não são incongruentes em face de um imperativo categórico, mas apenas em face de pressupostos que o filósofo de Königsberg considera como per si evidentes. Leia-se outro ilustrativo exemplo:

 

É patente que um egoísta pode querer uma lei universal do egoísmo e, simultânea e consequentemente, renunciar à ajuda dos outros, podendo, portanto, querer sem contradição que a sua máxima se torne lei universal. A contradição que aqui surge é a contradição entre a máxima e uma lei moral pressuposta por Kant, por força da qual devemos contribuir para o bem-estar dos outros. Só desta pressuposição, e não do imperativo categórico, se segue que o homem não “pode” querer, ou seja, afinal, não deve querer, que o princípio do egoísmo se torne uma lei universal. (KELSEN, 2011, p. 25)

 

Seguindo reiteradamente esse raciocínio, Kelsen (2011, p. 25-26) conclui:

 

É, assim, patente que, com o “poder querer” do imperativo categórico, se quer significar um “dever querer”, que o verdadeiro sentido do imperativo categórico é: “atua segundo uma máxima da qual devas querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que máxima eu devo querer e de que máxima eu não devo querer que ela se torne uma lei universal? A esta questão o imperativo categórico não dá nenhuma resposta.

 

Assim, afirma Kelsen que o imperativo categórico kantiano não determina qual é a máxima que pode valer como lei universal, mas exige somente que a conduta apresente conformidade com uma norma geral. “Contudo, a questão decisiva para qualquer ética, a questão de saber qual é o conteúdo da lei universal com a qual a máxima deve conformar-se, permanece por responder” (KELSEN, 2011, p. 26).

Enquanto Kant entende que o imperativo categórico é o princípio do qual decorrem todos os imperativos do dever por meio de dedução, Kelsen considera que a única dedução possível é verificar se uma lei moral pressuposta como válida será compatível com o imperativo categórico – e responde que ela sempre será, haja vista que o imperativo categórico “pressupõe a resposta à questão de como devemos agir para proceder bem e justamente como previamente dada por um ordenamento preexistente” (KELSEN, 2011, p. 27).

3.2.3 A justiça marxista

Uma crítica que Karl Marx (apud Kelsen, 2011, p. 41) dirige ao sistema capitalista é afirmar que o princípio de justiça dessa ordem social consiste na fórmula: “a igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe igual participação no produto do trabalho”.

Para Marx, esse princípio com pretensão à igualdade é, de fato, um direito da desigualdade, por não levar em consideração as diferenças individuais entre a capacidade de trabalho de cada qual, de modo que tal igualdade não passa de aparência.

Nessa esteira, a fórmula que Marx propõe como regra da verdadeira igualdade é: “cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (ibidem).

Kelsen (2011, p. 42) sintetiza o ponto de vista da justiça marxista nas linhas:

 

A crítica de Marx à ordem econômica capitalista reconduz-se ao postulado de que não devemos ignorar, ao pagar o salário do trabalho, certas desigualdades, a saber, a desigualdade das capacidades e necessidades dos diferentes indivíduos em singular, desigualdades essas que são ignoradas no sistema de salário da ordem econômica capitalista.

 

Pois bem, Kelsen concorda com Karl Marx em que o sistema capitalista não representa um direito igualitário, mas por um motivo diverso e com diferente conclusão. Na visão kelseniana, a desigualdade presente no capitalismo consiste não em tratar igualmente os desiguais, mas em propriamente tratar de forma desigual aquilo que é desigual, entendendo que a regra formulada por Marx, refratária ao princípio da retribuição, não corresponderia ao princípio da igualdade.

Kelsen compara, na fórmula “cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, o dever de produzir segundo a capacidade de cada um com a concepção platônica do Estado Ideal estabelecido em A República, e pondera que, para se determinar qual é a capacidade de cada um para produzir o quê, e qual é a necessidade que cada um de fato sente, seria indispensável pressupor um ordenamento em cujas regras houvesse critérios para que uma determinada autoridade competente decidisse qual a capacidade e qual a necessidade de cada indivíduo.

Ademais, opina Kelsen, utópico é presumir que, na sociedade comunista, todos cumprirão voluntariamente aquilo que o ordenamento designar como o dever de produzir atinente a suas capacidades, pelo que critica o fato de Marx silenciar sobre a questão de como o ordenamento reagirá em face da violação de sua ordem social, e se, mesmo nesse caso, assegurará ao violador as suas necessidades.

Dessa forma, Kelsen afirma que, para que se possa manter a norma de justiça marxista na condição de norma de justiça do tipo racional, necessário se faz entendê-la pressupondo-se um critério objetivo para a satisfação das necessidades. Com esse posicionamento, Kelsen (2011, p. 45) conclui:

 

O verdadeiro sentido do princípio de justiça comunista apenas pode ser: “cada um deve, segundo as suas capacidades, fixadas de conformidade com o ordenamento social, realizar o trabalho que é posto a seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um devem ser satisfeitas as necessidades pelo ordenamento social reconhecidas, pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios determinados também por esse ordenamento.”


4 Considerações finais

“Mas o que é justiça?” pergunta-se Hans Kelsen (2001, p. 134). “A essa questão Agostinho responde com a mesma fórmula usada por Aristóteles para um propósito totalmente oposto. `A justiça é a virtude que dá a cada um o que lhe é devido.` Mas o que é devido a cada um?”

Conforme todo o exposto, as conclusões de Kelsen acerca das normas de justiça sempre convergem para concluir que nenhuma se mostrou – e nem mesmo poderia mostrar-se – apta a responder o que é devido a cada um, a menos que se pressuponha um ordenamento que o defina.

Nesse raciocínio, baseado em uma teoria relativista dos valores, Kelsen defende por fim que a questão de saber o que é justo e o que é injusto constitui uma escolha de norma de justiça, uma opção que “apenas pode ser feita por nós próprios, por cada um de nós, que nenhum outro – nem Deus, nem a natureza, nem a razão como autoridade objetiva – pode fazê-la por nós. É este o verdadeiro sentido da autonomia da moral” (KELSEN, 2011, p. 114).

Para Kelsen, a ideia de que uma norma de justiça pela qual se opta provém de Deus, da natureza ou da razão, e por isso contém validade absoluta, não passa de ilusão.  

Hoje em dia, a justiça relativista de Hans Kelsen cede espaço para outras teorias da justiça como o discursivismo de Jürgen Habermas e o contratualismo de John Rawls. No entanto, o estudo da visão de mundo de Kelsen mostra-se proveitoso no sentido de se vislumbrar que razões e crenças o levaram a dedicar sua vida e obra em favor de uma teoria pura do direito, e de, assim, compreender o pensamento deste que é um dos grandes juristas de todos os tempos.

Por fim, não encontrando em nenhuma norma de justiça conhecida o caráter absoluto, Hans Kelsen (2001, p. 25) declara:

 

Seria muito mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.


REFERÊNCIAS

 

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 5 ed. Salvador: Editora JusPodium, 2011.

 

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

 

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

 

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HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores; tradução Prof. L. Cabral de Moncada. São Paulo: Saraiva, 1946.

 

KELSEN, Hans. O que é justiça? : a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

______. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

 

______. O problema da justiça. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

 

______. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

SCHNAID, David. Filosofia do direito e interpretação. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.


Rules of justice in Hans Kelsen

 

CONTENTS: 1 Introduction – 2 Values and justice – 3 Rules of justice – 4 Final considerations

 

ABSTRACT: This study intends to expose Hans Kelsen`s treatment concerning the various rules of justice, in his combat against the idea of the existence of any kind of absolute justice. Initially, the study reviews Kelsen`s relativist vision on the norms of justice as value judgments. Proceeding, it presents the main rules of justice analyzed by Kelsen in his work, namely, the Platonic justice, the divine justice, Aristotle`s justice, the Kantian Categorical Imperative, and the Marxist justice. Lastly, it concludes that, in Kelsen`s vision, none of the presented rules of justice is valid in absolute terms.

 

KEYWORDS: Hans Kelsen, rules of justice, Pure Theory of Law, relativism, axiology.

 

Normas de justicia en Hans Kelsen

 

CONTENIDO: 1 Introducción – 2 Valores y justicia – 3 Normas de justicia – 4 Consideraciones finales

 

RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo exponer el trato que Hans Kelsen da a las diferentes normas de justicia en su lucha contra la idea de que existe alguna forma de justicia absoluta. En primer lugar, se acerca al punto de vista relativista de Kelsen sobre normas de la justicia como juicios de valor. A continuación, vamos a presentar las principales normas de justicia analizadas por Kelsen en su trabajo, a saber, la justicia platónica, la justicia divina, la justicia aristotélica, el imperativo categórico kantiano, y la justicia marxista. Por último, se concluye que, a la vista de Kelsen, ninguna de las normas de justicia es válida en términos absolutos.

 

PALABRAS-CLAVE: Hans Kelsen, normas de justicia, Teoría Pura del Derecho, relativismo, axiología.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Yuri Ikeda. Normas de justiça em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4297, 7 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37470. Acesso em: 19 maio 2024.