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Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito

Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito

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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Natureza e função da Lei de Introdução ao Código Civil; 3. A Lei de Introdução ao Código Civil e a questão da aplicação da norma jurídica; 3.1. A integração e a textura aberta da normas; 3.2. A imprescindibilidade da interpretação; 3.2.1. As funções da interpretação; 4. A função do artigo 5º na prática; 5. Do processo sociológico ou teleológico; 5.1. Eqüidade; 5.2. Fim social; 5.3. Bem comum; 6. Princípios gerais de direito; 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Nas cadeiras acadêmicas dos cursos de direito o aluno é conduzido a entender que quão melhor será o profissional, quanto mais conhece a lei, seus dispositivos, o número de determinado artigo, etc.

Há tempos que KELSEN propôs o chamado princípio da pureza, entendendo que o método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo, ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma, não se misturando com fato social ou como valor transcendente, numa visão precipuamente reducionista. [1]

A preocupação de dar pureza à Ciência do Direito procede do fato de que KELSEN tinha obsessão pela matemática pura. E a precisão desta despertou nele a inspiração para criar uma Teoria Pura do Direito, à luz de uma ciência que pudesse ser tratada com o rigor da matemática, que tem na pureza a sua essência que exsurge dos enunciados, das proposições e dos axiomas.

A Teoria Pura do Direito propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e exclui deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa rigorosamente determinar como Direito. [2]

Tal raciocínio conduz a idéia de que as normas jurídicas valem não porque são justas, ou porque sejam eficazes a vontade que as instituem, mas sim, por estarem ligadas a normas superiores por laços de validade, numa série finita que culmina numa norma fundamental – teoria da norma fundamental.

Contudo, para os aplicadores do direito, isso não basta, é imprescindível discutir a lei, aplicá-la ou não quando em conflito com o justo, e, alfim, observar qual o justo a ser aplicado.

É necessário avançar neste aspecto, a sociedade clama por justiça, pela igualdade, só assim o direito ganha sentido.

O objetivo do presente trabalho não é abordar ou valorar as várias técnicas ou processos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico. Tampouco de aprofundar sobre a teoria objetiva (mens legis) ou teoria subjetiva (mens legislatoris), ou efeitos da interpretação: declarativo, extensivo ou restritivo.

A abordagem desse trabalho cingir-se-á ao destaque do comando deôntico do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil [3] que preceitua que ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum; juntamente com a verificação das lacunas e da necessidade de integração, o que nos remete ao artigo 4º do mesmo diploma, sendo que aí será destacado tão-somente os princípios gerais de direito com sua função diretiva no ordenamento jurídico.

Contudo, imprescindível será a utilização de conceitos e lições concernentes a integração, técnicas de interpretação, etc., como pressupostos a fim de concluir este ensaio [4], até porque as diversas técnicas interpretativas não se operam isoladamente, não se excluem reciprocamente; antes, se completam.

O capital problema do intérprete-aplicador é o de saber qual deve ser o sentido legal decisivo ou prevalente para o efeito de aplicação ao caso concreto, devendo, para tanto, empregar todas as técnicas interpretativas e os meios integradores, combinando-os entre si, sem, contudo, esquecer do disposto no artigo 5º da LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL, ou seja, os fins sociais a que ela se dirige às exigências do bem comum.

Destaca-se ainda que a aplicação do direito por intermédio das decisões judiciais tem grande importância, não somente em termos pecuniários ou de liberdade, mas, sim numa dimensão moral associada a um processo judicial legal, e, portanto, um risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça pública.


2. NATUREZA E FUNÇÃO DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

O legislador brasileiro preferiu colocar normas atinentes à revogação da lei, a sua aplicação, os casos de integração, fora do corpo do Código Civil Pátrio – o que fez bem, precedendo-o, por se tratar de normas sobre a aplicabilidade das leis em geral, conferindo-lhes uma autonomia em lei destacada, uma lei introdutória.

Tal comportamento foi inspirado no modelo alemão, denominando Lei de Introdução o complexo de disposições preliminares que antecedem ao Código Civil, não fazendo, contudo, parte deste.

O foco aqui está no Decreto-Lei nº 4.657/42, que revogou a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Lei nº 3.071/16), modificando vários princípios que haviam inspirado o legislador de 1916 e descrevendo as linhas básicas da ordem jurídica.

Trata-se, na verdade, de uma lei de introdução às leis, por abranger princípios determinativos de aplicabilidade das normas e questões de hermenêutica jurídica sem qualquer discriminação, pois é, verdadeiramente, o diploma da aplicação, no tempo e no espaço, de todas as normas brasileiras, sejam elas de direito público ou privado, exercendo assim uma função de lei geral.

Não é demais afirmar que a Lei de Introdução ao Código Civil é uma lex legum, ou seja, um conjunto de normas sobre normas, constituindo um direito sobre direito, um superdireito, um direito coordenador de direito, regendo não as relações de vida, mas sim as normas, já que indica como interpretá-las e aplicá-las. [5]


3. A LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL E A QUESTÃO DA APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

É cediço que toda ciência tem de se defrontar com dificuldades.

No Iluminismo se assentou a idéia de que as normas deveriam ser estabelecidas com clareza e segurança jurídica absoluta, por intermédio de uma elaboração rigorosa, a fim de garantir, especialmente, uma irrestrita univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos, devendo ser o juiz o escravo da lei. Neste contexto, a segurança jurídica se confundia com a noção de justiça.

Contudo, a partir do século XIX esta concepção começou a vacilar.

A norma jurídica por natureza é geral, abstrata, fixa tipos, referindo-se a uma série de casos indefinidos e não a casos concretos.

Urge assim a necessidade de estudo quanto ao momento da aplicação da norma pelo operador do direito, ou seja, submeter um caso particular ao império de uma norma jurídica.

A norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário entre a norma e os fatos da vida. A aplicação do direito, dessa forma concebida, denomina-se subsunção.

A subsunção revela a tenacidade do aplicador do direito em se aproximar mais da realidade fática, completando a idéia abstrativa contida na norma, vez que a norma de direito é um modelo funcional. Esse raciocínio ganha brilho na seguinte lição:

"Deveras, o direito nunca é, mas a todo momento pode vir a ser, e, logo que é, deixa de ser; fora da decisão judicial não há direito, mas a todo momento, dessa decisão, o direito pode surgir, e, logo que surge, desaparece, porque o direito objetivo, confeccionado para o julgamento de um fato, só serve para esse julgamento; e consome-se pela aplicação." [6]

Contudo a realização da subsunção apresenta problemas face a ausência de informação sobre os fatos ocorridos e pela indeterminação semântica dos conceitos normativos, ou seja, são as lacunas normativas: de conhecimento [7] e de reconhecimento. Nos prenderemos ao "segundo problema" – as lacunas de reconhecimento.

As lacunas de reconhecimento são oriundas da zona de incerteza, do problema da penumbra, dos conceitos plurissignificativos (isto é, vagos, imprecisos, indeterminados ou fluidos) [8], pois se originam, não da completude ou incompletude do direito [9], mas sim de certas propriedades semânticas da linguagem.

CARLOS MAXIMILIANO com sua lavra indelével há tempo firmou:

"A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto." [10]

Também nesse sentido, valiosa é a lição de ATIENZA no sentido de que é impossível eliminar toda a vagueza dos conceitos, haja vista que o veículo utilizado pelos mesmos é uma linguagem natural, e não uma linguagem artificial construída a propósito de eliminar as imprecisões. [11]

Para que a subsunção ocorra, resolvendo-se os problemas oriundos das lacunas, de conhecimento ou de reconhecimento, é indispensável uma interpretação para saber qual a norma que incide sobre o caso entelado, ou seja, para subsumir é imprescindível a interpretação. "A subsunção está condicionada por uma prévia escolha de natureza axiológica, entre as várias interpretações possíveis, daí a importância do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil." [12]

Por vezes o aplicador do direito se depara diante de uma situação onde não encontra norma que seja aplicável, pelo menos aparente, devido a um defeito do sistema normativo que pode consistir na ausência de uma solução, ou na existência de várias soluções incompatíveis. Trata-se de um problema de lacuna normativa, no primeiro caso, ou de lacuna de conflito, no segundo.

Diante de um, ou de outro caso, o aplicador do direito deverá lançar mão da interpretação sistemática a fim de colmatar essa lacuna.

A lacuna constitui um estado incompleto ou imperfeito do sistema, que deve ser preenchido ou corrigido utilizando-se do princípio da plenitude do ordenamento jurídico e da unidade da ordem jurídica.

Pode-se definir sistema jurídico (cada sistema jurídico) como uma ordem teleológica de princípios gerais de direito, sendo o sistema jurídico um sistema aberto. Aberto no sentido de incompleto, que evolui (pois é histórico e cultural) e se modifica; decorrente da provisoriedade do conhecimento científico. Cada norma é parte de um todo, de modo que não podemos conhecer a norma sem conhecer o sistema, o todo no qual estão ligados. [13]

Em obediência aos princípios mencionados, "a primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema". [14]

Para que ocorra a integração normativa ou a exclusão de qualquer contradição, imprescindível palmilhar na missão dos seguintes dispositivos da Lei de Introdução ao Código Civil:

"Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum." (grifo nosso)

Assim, não há espaço no nosso ordenamento jurídico para as lacunas e antinomias, até pelas disposições legais citadas, pois o jurista ao aplicar os preceitos jurídicos, a fim de criar uma norma individual, deverá interpretá-los, integrá-los e corrigi-los, mantendo-se nas balizas estipuladas pelo ordenamento jurídico.

3.1. A Integração e a Textura Aberta das Normas

Não é demais trazer à colação a brilhante pena de COUTURE, pois segundo ele, "quando a lei cai no silêncio, podemos dizer – [...] – que esse silêncio está povoado de vozes... Quando o juiz dita sua sentença, não é só um intérprete das palavras da lei, mas também de suas vozes misteriosas e ocultas". [15]

Com precisão peculiar CAIO MÁRIO engloba quase todo objeto de tela deste ensaio na seguinte lição:

"O aplicador da lei (notadamente o juiz na decisão dos casos de espécie) terá de se valer de toda uma técnica, no plano do desenvolvimento jurídico, ainda que transcedendo à lei [...], porém mantendo-se ‘nos limites das valorações fundamentais do ordenamento jurídico’ sem penetrar no âmbito do ‘arbítrio judicial’.. ." [16]

A norma jurídica contém elasticidade para corresponder às diferentes exigências que variam no tempo e produzir efeitos mesmo quando se alteraram os fatos e os valores em razão dos quais surgiu, pois a norma permanece em evolução, respondendo a novas necessidades, a novos problemas oriundos da mutação dos tempos, aduzindo significações novas que seu elaborador não poderia ter pressentido. Por isso que se afirma que a norma é mais inteligente que seu criador, sobrevive ao tempo, enquanto este é efêmero.

CANARIS sustenta que cada sistema científico é tão-somente um projeto de sistema, que apenas exprime o estado dos conhecimentos do seu tempo. Por isso, e necessariamente, ele não é nem definitivo nem fechado. Dessa forma, o jurista, como qualquer outro cientista, deve estar sempre preparado para por em causa o sistema até então elaborado e para o alargar ou modificar, com base numa melhor consideração. A abertura do sistema significa a incompletude e a provisoriedade do conhecimento científico [17].

Nesta esteira urge a necessidade de conceber a idéia de sistema uno, completo e coerente de conceitos e categorias, iluminando e comandando a elaboração teórica e a aplicação prática do conhecimento jurídico moderno, verificando assim a funcionalidade do sistema, que serve eficazmente de base para a ampliação do nível de generalidade e de abstração conceitual sempre que a variedade crescente das situações reais exigir. É o caso, dentre outros, da ampliação de conceitos como o de cidadania para incorporar a figura do consumidor, bem como do conceito de casamento abarcando a união estável do casal, independentemente de formalidades legais.

O desenvolvimento desses entendimentos devem ser creditados, dentre outros, a HART, ENGISCH, LARENZ e DWORKIN.

HART, um autor de transição entre o positivismo clássico e o positivismo moderado, defende a tese de que o direito é, com freqüência, incompleto e parcialmente indeterminado, o que permite dizer que o direito possui uma textura aberta, reconhecendo explicitamente que a regra de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores substantivos. [18]

Uma das razões que justifica a tese da textura aberta é a indeterminação da própria linguagem. Ao mesmo tempo que os termos gerais utilizados pela legislação traz a vantagem de abranger maior número de situações, por outro lado, exige a intervenção de um aplicador do direito, diferente do legislador, com o mister de decidir sobre a indeterminação da regra, utilizando assim da discricionaridade do aplicador do direito para "criar" [19] o direito. Seja qual for o processo escolhido para a comunicação de padrões de comportamento, estes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuindo aquilo que foi designado como textura aberta, sendo este o preço que se paga pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite as questões de fato. [20]

Palmilhando nesse sentido afirma HART:

"É, contudo, importante apreciar por que razão, posta de parte esta dependência da linguagem tal como efectivamente ocorre, com as suas características de textura aberta, não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efectiva, uma escolha nova entre alternativas abertas. Dito de forma breve, a razão reside em que a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses." [21]

A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos aplicadores de direito, os quais devem determinar o equilíbrio, a luz das circunstâncias, entre os interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso, afinal o mundo jurídico não está fechado e é necessário dar dinamismo ao direito. [22]

Quando o aplicador do direito não encontra norma jurídica que lhe seja aplicável, não podendo subsumir o caso concreto a nenhum preceito, face a um defeito do sistema que pode consistir numa ausência de norma, na presença de disposição legal injusta ou em desuso, estar-se diante do problema das lacunas, sendo imprescindível um desenvolvimento aberto do direito. Essa permissão de desenvolver o direito compete aos aplicadores sempre que se apresentar uma lacuna, pois devem integrá-la, criando uma norma individual, dentro dos limites impostos pelos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. [23]

ENGISCH sintetiza este entendimento da seguinte forma:

"Podemos reunir ‘lacunas’ e ‘incorreções’ sob o conceito comum de ‘deficiência’. Estamos, pois, em face de duas formas distintas de Direito deficiente. A deficiência a que chamamos ‘lacuna’ é afastada por meio da ‘integração jurídica’. O juiz actua aqui ‘praeter legem’, ‘supplendi causa’ [...]. Diferentemente, a deficiência a que chamamos ‘incorrecção’ é afastada através da ‘correcção’ da lei: o juiz aqui actua ‘contra legem’, ‘corrigendi causa’. A linha de fronteira entre o preenchimento de lacunas e a correcção jurídica nem sempre é nítida e segura." [24]

DWORKIN, após criticar a corrente conservadora quando chamou os que adotam de maus juízes, usurpadores e destruidores da democracia, discorre acerca da corrente progressiva asseverando:

"Algumas pessoas sustentam o ponto de vista contrário, de que os juízes devem tentar melhorar a lei sempre que possível, que devem ser sempre políticos, no sentido deplorado pela primeira resposta. Na opinião da minoria, o mau juiz é o juiz rígido e ‘mecânico’, que faz cumprir a lei pela lei, sem se preocupar com o sofrimento, a injustiça ou a ineficiência que se seguem. O bom juiz prefere a justiça à lei." [25] (grifo nossso)

3.2. A Imprescindibilidade da Interpretação

"A interpretação, que outrora parecia água plácida, estagnada, é hoje um mar assaz agitado." [26]

O professor FERRAZ JR. tratando do problema da interpretação assevera com vigor que "é hoje um postulado quase universal da ciência jurídica a tese de que não há norma sem interpretação, ou seja, toda norma é, pelo simples fato de ser posta, passível de interpretação". [27]

O tema da hermenêutica e da interpretação jurídica se presta ao processo de aplicação da norma jurídica levado a cabo pelo aplicador do direito. Sob esse enfoque, só faz sentido interpretar a lei, tendo em vista um problema que requeira solução legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve, pois a norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para a consecução de fins mais elevados. [28]

A hermenêutica jurídica refere-se a todo um processo de interpretação e aplicação da norma que implica na compreensão total do fenômeno que requer solução, com o objetivo de "fazer a lei falar".

A gênese do termo hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Significava trazer algo desconhecido e ininteligível para a linguagem humana.

Apontam-se três tarefas específicas da hermenêutica como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.

Pode-se então concluir preliminarmente que a parêmia latina in claris cessat interpretatio [29] não tem qualquer aplicabilidade, pois qualquer lei, qualquer dispositivo, claro ou ambíguo, comporta interpretação, sendo dever do aplicador do direito a interpretação a fim de aplicá-lo. [30]

Uma norma, por mais clara que possa parecer, requer sempre uma interpretação.

Nesse sentido, bastante convincente é a lição de DEGNI:

"A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se a aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente, e a outras questões que, na prática, em sua atuação, podem sempre surgir. Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente." [31]

Observa-se desse modo que é pérfido o brocardo in claris cessat interpretatio, pois as leis claras contêm o perigo de serem entedidas apenas no sentido imediato decorrente dos seus dizeres, quando, na verdade, têm valor mais amplo e profundo que não advém de suas palavras, sendo assim imprescindível a interpretação de todas as normas por conterem conceitos com contornos imprecisos.

Tal brocardo deve ser entendido no sentido de que o esforço hermenêutico é mais simples ou mais complexo, conforme o entendimento do texto normativo seja mais ou menos fácil, pois sustentar a clareza do preceito é já ter realizado prévio labor interpretativo.

3.2.1. As funções da interpretação

As funções da interpretação são: a) conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; b) estender o sentido da norma a relações inéditas e inesperadas; e c) temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social.

Inolvidável que a interpretação, como as artes em geral, possui a técnica, os meios para chegar aos fins colimados.

É a hermenêutica que contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar.

Quando se interpretar uma norma, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir, conforme prescreve o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e não resumir o exercício interpretativo em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, olvidando-se do coeficiente axiológico e social nelas contido.

Afirma-se então que interpretar não é apenas desvendar o sentido contido atrás da expressão legal, mas é arte jurídica de eleger, dentre os significados possíveis albergados pela lei, o decisivo para dado caso concreto, por exteriorizar o sentido mais favorável ou adequado ao fim social e ao bem comum.

Uma decisão acerca de um caso concreto não contém uma interpretação puramente científica, pois foi fundada numa controvérsia, ou seja, sobre uma questão de fato; influenciando-se pelas circunstâncias da causa. Uma vez alterando-se os fatos, modifica-se a ilação.

Emerge assim a grande utilidade prática do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, pois ao se interpretar a norma a fim de decidir, deve-se ter como escopo uma solução justa ao caso singular apreciado, sem conflitar com o ordenamento jurídico e com o meio social.

Além do mais, a norma jurídica tem que ser interpretada, exercitada, pois a essência do direito é a realização prática. Uma norma que jamais foi realizada ou que deixou de ser, não merece mais este nome, transformou-se numa rodagem inerte que não faz mais trabalho algum no mecanismo do direito e que se pode retirar sem que disso resulte a menor transformação. [32]


4. A FUNÇÃO DO ARTIGO 5º NA PRÁTICA

Articulada no modelo teórico hermenêutico a ciência do direito deve relacionar a hipótese de conflito e a hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido, assumindo, assim, uma atividade interpretativa, tendo uma função primordialmente avaliativa, por propiciar o encontro de indicadores para uma compreensão parcial ou total das relações, surgindo então uma teoria hermenêutica tendo, dentre outras, a tarefa de: interpretar as normas, verificar a existência de lacuna e afastar contradições normativas.

Vê-se assim que a ciência jurídica exerce funções relevantes não só para o estudo do direito, mas também para a aplicação jurídica, viabilizando-o como elemento de controle do comportamento humano ao permitir a flexibilidade interpretativa das normas, autorizada pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e ao propiciar, por suas criações teóricas, a adequação das normas no momento de sua aplicação, ou seja, a sua atualização.

A dogmática jurídica possui uma função social, podendo ser vista como uma agência de socialização, por permitir a integração do homem e da sociedade num universo coerente [33], destacando ainda que o ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordenamento jurídico, descobrindo-o, reformulando-o e apresentando-o como um todo coerente e adequado às valorações sociais vigentes.

LARENZ sustenta que:

"É missão dos tribunais decidir de modo ‘justo’ os conflitos trazidos perante si e, se a ‘aplicação’ das leis, por via do procedimento de subsunção, não oferecer garantias de uma tal decisão, é natural que se busque um processo que permita a solução de problemas jurídicos a partir dos ‘dados materiais’ desses mesmos problemas, mesmo sem apoio numa norma legal. Esse processo apresentar-se-á como um ‘tratamento circular’, que aborde o problema a partir dos mais diversos ângulos e que traga à colação todos os pontos de vista – tanto os obtidos a partir da lei como os de natureza extrajurídica – que possam ter algum relevo para a solução ordenada à justiça, com o objectivo de estabelecer um consenso entre os intervenientes." [34]

Para cumprir tão árdua tarefa deverá o aplicador do direito basear-se no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vez que contém um parâmetro à atividade jurisdicional, fornecendo as várias trilhas possíveis para uma decisão, que, ao aplicar a norma ao caso concreto, atenda à sua finalidade social e ao bem comum.


5. DO PROCESSO SOCIOLÓGICO OU TELEOLÓGICO

O processo sociológico ou teleológico objetiva adaptar a finalidade da norma às exigências sociais, ao bem comum, conforme prescreve o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Destaca tal processo que a interpretação não pode cingir-se a uma arte dialética pura, desenvolvendo-se como método geométrico num círculo de abstrações, mas sim deve penetrar nas necessidades práticas da vida e da realidade social.

Ao aplicador do direito não se pode permitir quedar-se surdo às exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, manter contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a ela adaptar-se, o que resulta assim que a norma se destina a um fim social, de que o aplicador do direito deve participar ao interpretar o preceito normativo. [35]

O processo teleológico procura o fim, a ratio do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido, ou seja, o resultado que ela precisa alcançar com sua aplicação.

Nesse diapasão deverá o intérprete e aplicador atender as mudanças socioeconômicas e valorativas, examinando a influência do meio social e as exigências da época, o desenvolvimento cultural do povo e os valores vigentes na sociedade, concluindo-se assim que as expressões "fins sociais" e "bem comum" do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil devem ser entendidas como sínteses éticas da vida em sociedade, pressupondo uma unidade de objetivos na conduta social do homem.

Tal dispositivo consagra o critério teleológico, sem desprezar os demais processos interpretativos, por conter apenas diretrizes norteadoras ao aplicador do direito. A interpretação legal é essencialmente teleológica, pois deve buscar a finalidade social e valorativa da norma, ou seja, o resultado que se pretende alcançar na sua atuação prática. [36]

Vê-se assim que o bem comum e a finalidade social são fórmulas gerais ou valorativas que visam uniformizar a interpretação, constituindo pontos referenciais para que se aprecie a lei ao aplicar sob o prisma do mesmo momento.

A norma contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil indica ao intérprete-aplicador o critério do fim social e do bem comum como idôneos à adaptação das leis às novas exigências sociais e seus valores, constituindo uma espécie de janela da norma, pois propicia a norma a ser aplicada respirar a atmosfera fático-social e valorativa que a envolve, sendo dever do intérprete-aplicador abrir essa janela perscrutando as necessidades práticas da vida social, a realidade sócio-cultural e seus valores. Fazendo isto, estaremos injetando vida a norma, atualizando-a para que se compatibilize com os anseios vigentes da sociedade.

5.1. Eqüidade

Pode-se dizer que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil está a consagrar a eqüidade como elemento de adaptação e integração da norma ao caso concreto.

A eqüidade apresenta-se como elemento de adaptação e integração da norma ao caso concreto, a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, moldando-se ao caso concreto. Nesta sua função, a eqüidade não pretende quebrar a norma, mas adaptá-la às circunstâncias sócio-valorativas do fato concreto no instante de sua aplicação.

Nesse contexto a parêmia dura lex, sed lex merece ser revisitada, pois a finalidade da norma não é ser dura, mas justa; daí o dever do intérprete ao aplicar a norma ao caso concreto, sem desvirtuar-lhe as feições e torcer sua direção, arredondar as suas arestas e adaptar sua rigidez.

Contrapondo-se aos positivistas RÁO já afirmava com sutileza ao tratar da eqüidade e o julgamento contra a lei:

"Adaptar a lei a casos concretos, suprir-lhe os erros e as lacunas, mitigar-lhe a rigidez com escopo de humanistas, de benignitas, não significa ser lícito ao juiz, em princípio, julgar contra legem.

Sem dúvida casos ocorrem, raríssimos, nos quais pode o juiz encontrar-se em face de lei obsoleta, ou manifestamente iníqua, não mais correspondente às condições sociais do momento e cuja aplicação rígida e formal possa causar dano à ordem pública, ou social. Nesta hipótese, melhor será considerar-se a lei inadaptável ao caso concreto, por dissonância com os elementos de fato e socorrer-se, para a solução do conflito, das demais fontes do direito." [37]

Inquestionável que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil permite ao intérprete-aplicador corrigir a inadequação da norma à realidade fático-social e aos valores positivados, harmonizando o abstrato e o rígido caráter da norma à realidade, mitigando seu rigor, corrigindo-lhe os desacertos, ajustando-a do melhor modo possível ao caso emergente. [38]

Não é demais aqui lançar a seguinte conclusão:

"O juiz é a viva vox juris. A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças’ (STF, Ciência jurídica, 42:58)." [39] (grifo nosso)

A eqüidade, em diversas acepções, é encarada como suprema regra de justiça que os homens devem obedecer, confundindo-se com a própria idéia de justiça, o que não facilita o trabalho, face a indagação que perdura: o que é justiça? [40]

Apenas a título de apresentar manifestação quanto a indagação tem-se:

"A justiça é o elemento moral do direito, moral no sentido espiritual, de teleológico; e é seu princípio e fim, pois sem ela não conceberia o direito, que existe tão só como meio, ou técnica de realizá-la. [...] A justiça ‘é o horizonte na paisagem do direito’, horizonte que é ao mesmo tempo um limite para a paisagem e um ponto de referência para apreciá-la. A paisagem é penetrada de horizonte e vive de claridade que dêle flui; o direito é incarnação da justiça e só tem vida e sentido quando visto à sua luz. A justiça é idéia, é valor e é ideal. [...] Como ideal, a justiça é a aspiração de realizar determinada forma de vida social, que encarne aquêle estado plenário de equilíbrio representado pela idéia de justiça." [41]

Destaca-se também a lição de RAWLS quanto ao objeto da justiça:

"Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes quero dizer a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais." [42]

Inolvidáveis também são as Escrituras, cabendo aqui destacar o que concerne aos deveres dos juízes: "Segue a justiça, e só a justiça, para que vivas e possuas a terra que o Senhor teu Deus te dá" [43].

Cumpre-nos, por derradeiro, destacar que a despeito da extrema importância da eqüidade na atenuação da rigidez do ordenamento, não podendo ela ensejar, ao operador do direito, a criação casuística de normas que este considera justa ao caso concreto, pois a busca pela justiça não pode conduzir à completa insegurança jurídica, o que devastaria a ordem social.

5.2. Fim social

Não existe norma que não contenha uma finalidade social imediata. Sendo assim, o conhecimento do fim é uma das preocupações precípuas da ciência jurídica, como deve ser do aplicador do direito.

"O fim é a causa final ou aquilo em razão do qual algo se faz." [44]

O princípio da finalidade da norma deve nortear toda a tarefa interpretativa, senão, a aplicação da norma em desconformidade com seus fins, constitui ato de burlar a norma, pois quem desatende ao fim normativo está desvirtuando a própria norma.

Destaca-se que esse fim (telos), não poderá ir de encontro ao bem comum, nem ser anti-social. [45]

Ausente a definição legal de "fim social" o intérprete-aplicador em cada caso concreto deverá averiguar se a norma a ser aplicada atende a finalidade social, que varia no tempo e no espaço, aplicando o critério teleológico na interpretação da lei, sem desprezar os demais processos interpretativos.

Considerar-se-á assim como fim social o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituíram a razão de sua composição, abrangendo assim o útil, a necessidade social, seus anseios, o equilíbrio de interesses e etc..

Não há norma jurídica que não deva sua origem a um fim, a um propósito, caso contrário, a norma seria uma reunião de palavras vazias.

A aplicação da lei deve seguir a marcha dos fenômenos sociais, recebendo, de forma ininterrupta, vida e inspiração da sociedade, produzindo assim a maior soma possível de energia jurídica.

CARLOS MAXIMILIANO acentua:

"Desapareceu nas trevas do passado o método lógico, rígido, imobilizador do Direito: tratava todas as questões como se foram problemas de Geometria. O julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes do seu veredictum. Se é certo que o juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto; todavia este alcance e aquele sentido não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação – o bem social." [46]

Não se pode permitir, como já alardeava IHERING, o retorno aos tribunais da Idade Média, em que as decisões judiciais não estavam em harmonia com o sentido jurídico do povo, pois é no vigor, na energia do sentimento jurídico de cada cidadão, que possui o Estado o mais fecundo manancial de força, a garantia mais segura da sua própria duração. O sentimento jurídico é a raiz de toda árvore; se a raiz nada vale, tudo o mais não passa de uma miragem. Venha uma tempestade e toda a árvore será arrancada pela raiz. [47]

5.3. Bem comum

A noção de bem comum é bastante complexa, metafísica e de difícil compreensão, cujo conceito dependerá da filosofia política e jurídica adotada. Esta noção se compõe de diversos elementos ou fatores, o que dará origem a várias definições. Em regra se reconhecem como elementos do bem comum a liberdade, a paz, a justiça, a segurança, a utilidade social e a solidariedade.

Contudo, para alguns doutrinadores as exigências do bem comum são os elementos que impelem os homens para um ideal de justiça, aumentando-lhes a felicidade e contribuindo para o seu aprimoramento.

O bem comum não é o somatório dos interesses individuais, como pretendia o individualismo, mas sim a coordenação do bem dos indivíduos, segundo um princípio ético. Todo sistema jurídico se inspira numa concepção do bem comum, isto é, nos fins pelos quais a sociedade optou, porque ela os considera bons.

Para TELLES JR. bem comum é a ordem jurídica, por ser o único bem rigorosamente comum, que todos os participantes da sociedade política desejam necessariamente, que ninguém pode dispensar. Sem ordem jurídica não há sociedade; logo somente a ordem jurídica é um bem comum. [48]

Há ainda aqueles que procuram harmonizar, na concepção de bem comum, os dois pólos: o filosófico e o sociológico, entendendo que o bem comum não é o fim do direito, mas da própria vida social – o que concordamos na inteireza. Assim, a fórmula "bem comum" serve como limitador do poder do intérprete-aplicador do direito, fazendo com que, ao prolatar sua decisão, considere as valorações positivadas na sociedade, sem atentar às suas pessoais. A noção de bem comum introduz no direito um princípio teleológico, passando a norma jurídica, sua interpretação e aplicação a ter uma dimensão finalista, colocando-se a seu serviço.

Não é demais aqui trazer à baila o raciocínio conclusivo de DWORKIN:

"A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que queremos ter." [49]

Cobra relevo mencionar que a expressão "exigências do bem comum" contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil parece significar mera ociosidade do legislador, pois é evidente que as normas jurídicas se destinam ao bem comum. Como o ordenamento não pode ter palavras inúteis, supérfluas, deve se inclinar para o entendimento de que essa expressão se refere a uma diretriz para a solução de casos duvidosos, em que, diante de mais de um caminho trilhável, o intérprete-aplicador deve seguir aquele que mais consulta utilidade comum dos cidadãos, pois se trata não de uma mera orientação interpretativa, mas de um dever que se impõe ao intérprete-aplicador da norma.


6. PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

CARLOS MAXIMILIANO em sua clássica obra Hermenêutica e aplicação do direito no capítulo referente aos princípios gerais de direito inaugura-o com a seguinte lavra:

"Todo conjunto harmônico de regras positivas é apenas o resumo, a síntese, o substratum de um complexo de altos ditames, o índice materializado de um sistema orgânico, a concretização de uma doutrina, série de postulados que enfeixam princípios superiores. Constituem estes as diretivas idéias do hermeneuta, os pressupostos científicos da ordem jurídica." [50]

Os princípios gerais de direito são os cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico. Os princípios gerais de direito não são resgatados fora do ordenamento jurídico, porém descobertos no seu interior.

De acordo com os ensinamentos de ATALIBA tem-se que:

"Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos).

Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas conseqüências." [51]

GRAU aponta no sentido de encontrar o fundamento do direito posto na sociedade que historicamente o pressupõe, e que é no direito pressuposto que se encontra os princípios gerais de um determinado direito dessa sociedade. A sociedade produz o direito pressuposto; o Estado o direito posto, apenas o direito produzido pela sociedade é comprometido com a justiça. [52]

Ao invocar os princípios gerais do direito o aplicador investiga o pensamento mais alto da cultura jurídica, perquirindo o pensamento filosófico sobranceiro ao sistema, ou as idéias estruturais do regime, impondo, por consectário lógico, a regra em que dada espécie se contém implícita no organismo jurídico nacional, permitindo ao aplicador do direito suprir a deficiência legislativa com a adoção de um cânon que o legislador não chegou a ditar sob a forma de preceito, mas que se contém imanente no espírito do sistema jurídico. [53]

Inquestionável que os princípios gerais de direito é fonte de máxima importância, contudo da mais difícil utilização, pois exigem do aplicador do direito um manuseio com instrumentos mais abstratos, complexos e de idéias de maior teor cultural do que os preceitos singelos de aplicação quotidiana.

Os princípios gerais de direito, entendemos, não são preceitos de ordem ética, política, sociológica ou técnica, mas elementos componentes do direito. São normas jurídicas de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico, em sua aplicação e integração, podendo estar positivados ou não.

TORRÉ destaca que os princípios gerais de direito se reduzem a justiça, mas com ela não se identificam. [54]

HART em seu pós-escrito dirigido às críticas que seu pensamento recebeu, ensina que os princípios jurídicos diferem das demais regras de "tudo ou nada" porque, quando são aplicáveis, não "obrigam" a uma decisão, mas apontam para uma decisão, ou afirmam uma razão que pode ser afastada. E comenta ainda o entendimento de DWORKIN, para quem, os princípios jurídicos diferem das regras porque têm uma dimensão de peso, mas não de validade, e, por isso, sucede que, em conflito com outro princípio de maior peso, um princípio pode ser afastado, não logrando determinar a decisão, mas, não obstante, sobreviverá intato para ser utilizado noutros casos em que possa prevalecer, em concorrência com qualquer outro princípio de menor peso. Por outro lado, as regras ou são válidas ou inválidas, mas não tem esta dimensão de peso, por isso quando entrarem em conflito, apenas uma delas pode ser válida, e a outra reformulada, de forma a torná-la coerente com a sua concorrente e, conseqüentemente, inaplicável ao caso dado. [55]

DWORKIN após a superação do positivismo jurídico por HART, e mais pretencioso, nega este positivismo, para afirmar o direito como construção a partir de princípios. Para ele os princípios estão acima da prática, e é a eles que os aplicadores do direito e os cidadãos estão adstritos. [56]


7. CONCLUSÃO

A norma jurídica não se identifica com suas palavras, que constituem apenas um meio de comunicação, em regra, imperfeito. Entendê-la não pode se restringir a averiguar o sentido imediato oriundo da expressão, mas indagar e buscar o que o texto encerra, desenvolvendo-o em todos os seus espectros possíveis até alcançar o seu real conteúdo.

A dificuldade da interpretação é selecionar, mediante o emprego dos vários processos interpretativos, a melhor, mesmo que de lege ferenda, entre as várias soluções que a norma comporta, sem esquecer que a escolha deverá ocorrer sobre o prisma da utilidade social e da justiça, sendo que esta é histórico-social e objetiva por estar na consciência jurídica da sociedade.

Conclui-se que o operador do direito ao aplicar a norma, quer seja ela de subsunção do fato à norma, quer seja de integração de lacuna, exerce um mister com dimensão nitidamente descobridora de norma individual, já que despendem, se necessário, de uma construção jurídica a fim de elaborar uma justificação aceitável de uma situação existente, não aplicando os textos legais friamente, atendo-se, intuitivamente, às suas finalidades, com sensibilidade, condicionando e inspirando sua decisão aos limites contidos no sistema jurídico, demarcados pelos princípios gerais de direito.

Não se aceitando essa maleabilidade para o descobrimento normativo, o direito não se concretizaria, pois, sendo inflexível, não teria a possibilidade de acompanhar as mutações sociais e valorativas da realidade, que não é, nem vai ser, plena e acabada, estando sempre se perfazendo.

Espera-se que o conceito de direito se expanda, aprofundando suas bases numa política mais geral de integridade, comunidade e fraternidade, inumando a idéia de ser o direito um instrumento de dominação de classes. Se o direito não existe por e para um ideal de justiça, para que então o direito?

É preciso vivificar os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, buscando a justiça, arrefecendo a norma quando este se chocar com aquela. E que os defensores do positivismo não se esqueçam que não é a doutrina ou a jurisprudência que estão trazendo esse entendimento, mas sim o direito posto por intermédio dos dispositivos aqui tratados.

A era da aplicação mecânica do direito está por se esvair. Cada vez mais os aplicadores do direito estão cientes que só com a revitalização da norma, por intermédio da adaptação das normas ao fim social imposto pelo meio e pela realidade, é que se poderá alcançar a justiça.


NOTAS

01. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, passim.

02. Ibidem.

03. Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942.

04. Ou melhor, "abandonar" este simples ensaio, afinal seria muita pretensão concluir peremptoriamente.

05. Maria Helena Diniz, Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada, p. 4.

06. Maria Helena Diniz, op. cit., p. XVII.

07. As lacunas de conhecimento referem-se aos casos individuais em que não há certeza fática, restando dúvida ao aplicador do direito se certo fato pertence ou não a uma determinada classe ou tipo.

08. Destaca-se aqui a zona de certeza positiva, dentro na qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria obrigada. As dúvidas só tem cabida no intervalo entre ambas.

Cf.: Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, p. 209, que diz que se pode distinguir "... nos conceitos jurídicos indeterminados um núcleo conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito".

09. As tradicionas lacunas jurídicas.

10. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 29.

11. Manuel Atienza, Introducción al derecho, p. 19: "Probablemente es impossible eliminar del todo la vaguedad de nuestros conceptos, en especial cuando el vehículo de los mismos es el lenguaje natural (castellano, catalán, inglés...) y no un lenguaje artificial construido a propósito para eliminar en lo posible la vaguedad y las imprecisiones en general (el lenguaje científico)."

12. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 10.

13. Eros Roberto Grau. O direito posto e o direito pressuposto, p. 19.

14. Tercio Sampaio Ferraz Jr., p. 285.

15. Eduardo J. Couture, Introdução ao estudo do processo civil, p. 55.

16. Caio Mário da Silva Pereira, Institutos de direito civil, p. 125.

17. Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p.106.

18. Herbert L. A. Hart, O conceito de direito, passim.

19. Cf.: Ronald Dworkin, O império do direit, p. 3-10, que entende que o aplicador "descobre" o direito, e não "cria" o direito, o que com ele concordamos.

20. Herbert L. A. Hart, op. cit., p. 139-141.

21. Ibidem, p. 141.

22. Herbert Hart, op. cit., p. 148.

23. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 91-2.

24. Karl Engisch, op. cit., p. 275.

25. Ronald Dworkin, op. cit., p. 11.

26. Carlos Maximiliano, op. cit., p. 83, tratando da importância e complexidade da tarefa do hermeneuta.

27. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Ciência jurídica, p. 68.

28. Margarida Maria Lacombe Camargo. Hermenêutica e argumentação, p. 13-14.

29. Ou, in claris non fit interpretatio.

30. Cf.: Carlos Maximiliano, op. cit., p. 196, que também entende que tal parêmia já se acha destituída de valor científico.

31. Apud. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 144.

32. Rudolf Von Ihering, A luta pelo direito, p. 43.

33. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 138.

34. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 170.

35. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 157.

36. Maria Helena Diniz, op. cit,, p. 158.

37. Vicente Ráo, O direito e a vida dos direito, p. 95.

38. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 161.

39. Ibidem, p. 174.

40. Cf.: Hans Kelsen, O que é justiça? Nesta obra o autor inaugura seu pensamento com a seguinte assertiva: "Talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor.", p. 1.

41. J. Flóscolo Nóbrega, Introdução ao direito, p. 30.

42. John Rawls, Uma teoria da justiça, p. 7.

43. Deuteronômio 16:20.

44. Aristóteles, Ética a nicomáquea, VII, 8, 1151, apud Maria Helena Diniz, op. cit, p. 162.

45. Cumpre salientar que, em filosofia social, o conceito de "fim social" equipara-se ao de "bem comum", cf. Silvio de Macedo, Fim social, in Enciclopédia saraiva de direito. v. 37, p. 391.

46. Op. cit., p. 129-130.

47. Rudolf Von Ihering, op. cit., p. 60-5, passim.

48. Goffredo Telles Jr., Introdução à ciência do direito, p. 89-92.

49. Ronald Dworkin, op. cit., p. 492.

50. P. 241.

51. Geraldo Ataliba, República e constituição, p. 34.

52. Eros Grau, op. cit., p. 35-55 passim. Traz ainda o autor: "Ensina Ferrara (1978/160): ‘Todo o edifício jurídico se alicerça em princípios supremos que formam as suas idéias directivas e o seu espírito, e não estão expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes princípios obtêm-se por indução, remontando de princípios particulares e conceitos mais gerais, e por generalizações sucessivas aos mais elevados cumes do sistema jurídico. E é claro que quanto mais alto se leva esta indução, tanto mais amplo será o horizonte’.", p.55.

53. Caio Mário da Silva Pereira, op. cit., p. 49.

54. Abelardo Torré, Introducción al derecho. 6ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1972, p. 367, apud, Maria Helena Diniz, op. cit. 127.

55. Herbert L. A Hart, op. cit., p. 323.

56. Ronald Dworkin, op. cit., p. 492.


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Autor

  • Anderson Sant

    Anderson Sant'Ana Pedra

    Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Mestre em Direito pela FDC/RJ, Especialista em Direito Público pela Consultime/Cândido Mendes/ES, Chefe da Consultoria Jurídica do TCEES, Professor em graduação e em pós-graduação de Dir. Constitucional e Administrativo, Consultor do DPCC ­ Direito Público Capacitação e Consultoria, Advogado em Vitória/ES

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Informações sobre o texto

Texto também divulgado na seguinte publicação: Revista forense eletrônica. Rio de Janeiro: Forense. ISSN nº 1678-6777, v. 368, p. 557-565. jul./2003.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRA, Anderson Sant'Ana. Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3762. Acesso em: 20 abr. 2024.