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Procedimentalização da fiança no âmbito da polícia judiciária

Procedimentalização da fiança no âmbito da polícia judiciária

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A fiança trata-se de um direito subjetivo constitucional do flagranteado. Sua denegação – quando se verificar as hipóteses legais que a autorizam – constituirá constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão. Vejamos suas peculiaridades.

Sumário:1- Noções gerais, definição e finalidade; 2- Fiança nas Constituições brasileiras; 3- Previsão da fiança no Código de Processo Penal; 4- Arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia; 4.1- Valor da fiança na esfera policial; 4.2- Critérios para fixação do valor da fiança; 4.3- Na prática, como se dará a procedimentalização da fiança na Delegacia de Polícia; 4.3.1- Fiança prestada em espécie (dinheiro); 4.3.2- Fiança prestada em metais, pedras ou objetos preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca; e 5- Conclusões.


1. Noções gerais, definição e finalidade

O instituto da fiança teve seu surgimento na antiguidade e sempre foi ligado à liberdade das pessoas. A concessão dessa liberdade se dava (e ainda é assim até os dias hodiernos) por meio de uma garantia, prestada em dinheiro, metal precioso e outros objetos de valores.

Não é demais ressaltar que o tema é bastante conhecido e não suscita nenhuma dúvida para os delegados de polícia que já labutam há algum tempo, contudo, para os novos o assunto fiança pode lhes causar algumas particularidades ainda não vivenciadas.

Na esfera da Polícia Judiciária, a fiança consiste no pagamento – pelo flagranteado ou terceiro ligado a este – de determinado valor arbitrado pelo delegado de polícia, a fim de que o mesmo (flagranteado) possa ser posto em liberdade, devendo, para tanto, cumprir algumas obrigações processuais, sob pena de ser ela (fiança) quebrada.

Mirabete entende que “a fiança é um direito subjetivo constitucional do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível” (MIRABETE, 2008, p. 415).

Também é merecedora de close a definição dada pelo doutrinador ISHIDA que preleciona que “a fiança é uma caução, tratando-se de uma garantia real, visando acautelar o cumprimento das obrigações do réu relativas à persecução penal” (ISHIDA, 2010, p. 189).

A fiança trata-se de um direito subjetivo constitucional do flagranteado. Sua denegação – quando se verificar as hipóteses legais que a autorizam – constituirá constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão.

Sendo um direito subjetivo, não há necessidade de ser a fiança requerida – na delegacia de polícia – pelo flagranteado ou por seu advogado.

No tocante à sua finalidade, o STJ já decidiu que “o instituto da fiança tem por finalidade a garantia do juízo, assegurando a presença do acusado durante a persecução criminal e o bom andamento do feito. Interpretando sistematicamente a lei, identifica-se uma finalidade secundária na medida, que consiste em assegurar o juízo também para o cumprimento de futuras obrigações financeiras.” (STJ. 6a Turma. RHC 42.049/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 17/12/2013).


2.   Fiança nas Constituições Brasileiras

Em todas as Cartas Magnas brasileiras (exceto a de 1937), de alguma forma, há menção sobre a fiança. A atual, mormente no seu art. 5º, traz diversos incisos que dizem a respeito ao instituto em destaque. Vejamos:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; e

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. (destaquei)

Para o que se propõe o presente artigo, o inciso disposto em último plano revela-se como o de maior importância, haja vista que o flagranteado não poderá ser recolhido à prisão, caso seja admitida – pela lei – a sua liberdade provisória. Portanto, deve o delegado de polícia estar sempre atento a isso, para que não cometa nenhuma arbitrariedade (abuso de autoridade).

A liberdade provisória é um direito do flagranteado, o que lhe assegura – desde que cumpra com todas as obrigações – aguardar livremente o restante do processo até o seu desiderato.


3. Previsão da fiança no Código de Processo Penal

A fiança, propriamente dita, está prevista no CPP no capítulo VI, que se refere à liberdade provisória, com ou sem fiança, nos arts. 321 a 350. Como veremos a seguir:

Art. 321.  Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 322.  A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (destaquei)

Parágrafo único.  Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 323.  Não será concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (destaquei)

I - nos crimes de racismo; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). 

[...]

Art. 324.  Não será, igualmente, concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (destaquei)

I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - em caso de prisão civil ou militar; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

[...]

IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 325.  O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011) (destaquei)

[...]

I - de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). (destaquei)

II - de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 1o  Se assim recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (destaquei)

I - dispensada, na forma do art. 350 deste Código; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços); ou (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - aumentada em até 1.000 (mil) vezes. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

[...]

Art. 326.  Para determinar o valor da fiança, a autoridade terá em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento. (destaquei)

Art. 327.  A fiança tomada por termo obrigará o afiançado a comparecer perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento. Quando o réu não comparecer, a fiança será havida como quebrada. (destaquei)

 Art. 328.  O réu afiançado não poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante, ou ausentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado. (destaquei)

Art. 329.  Nos juízos criminais e delegacias de polícia, haverá um livro especial, com termos de abertura e de encerramento, numerado e rubricado em todas as suas folhas pela autoridade, destinado especialmente aos termos de fiança. O termo será lavrado pelo escrivão e assinado pela autoridade e por quem prestar a fiança, e dele extrair-se-á certidão para juntar-se aos autos. (destaquei)

Parágrafo único.  O réu e quem prestar a fiança serão pelo escrivão notificados das obrigações e da sanção previstas nos arts. 327 e 328, o que constará dos autos. (destaquei)

Art. 330.  A fiança, que será sempre definitiva, consistirá em depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar. (destaquei)

 § 1o  A avaliação de imóvel, ou de pedras, objetos ou metais preciosos será feita imediatamente por perito nomeado pela autoridade. (destaquei)

§ 2o  Quando a fiança consistir em caução de títulos da dívida pública, o valor será determinado pela sua cotação em Bolsa, e, sendo nominativos, exigir-se-á prova de que se acham livres de ônus. (destaquei)

Art. 331.  O valor em que consistir a fiança será recolhido à repartição arrecadadora federal ou estadual, ou entregue ao depositário público, juntando-se aos autos os respectivos conhecimentos. (destaquei)

Parágrafo único.  Nos lugares em que o depósito não se puder fazer de pronto, o valor será entregue ao escrivão ou pessoa abonada, a critério da autoridade, e dentro de três dias dar-se-á ao valor o destino que Ihe assina este artigo, o que tudo constará do termo de fiança. (destaquei)

Art. 332.  Em caso de prisão em flagrante, será competente para conceder a fiança a autoridade que presidir ao respectivo auto, e, em caso de prisão por mandado, o juiz que o houver expedido, ou a autoridade judiciária ou policial a quem tiver sido requisitada a prisão. (destaquei)

Art. 333.  Depois de prestada a fiança, que será concedida independentemente de audiência do Ministério Público, este terá     vista do processo a fim de requerer o que julgar conveniente.

Art. 334.  A fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 335.  Recusando ou retardando a autoridade policial a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 336.  O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Parágrafo único.  Este dispositivo terá aplicação ainda no caso da prescrição depois da sentença condenatória (art. 110 do Código Penal). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 337.  Se a fiança for declarada sem efeito ou passar em julgado sentença que houver absolvido o acusado ou declarada extinta a ação penal, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto, salvo o disposto no parágrafo único do art. 336 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 338.  A fiança que se reconheça não ser cabível na espécie será cassada em qualquer fase do processo.

Art. 339.  Será também cassada a fiança quando reconhecida a existência de delito inafiançável, no caso de inovação na classificação do delito.

Art. 340.  Será exigido o reforço da fiança:

I - quando a autoridade tomar, por engano, fiança insuficiente;

II - quando houver depreciação material ou perecimento dos bens hipotecados ou caucionados, ou depreciação dos metais ou pedras preciosas;

 III - quando for inovada a classificação do delito.

Parágrafo único.  A fiança ficará sem efeito e o réu será recolhido à prisão, quando, na conformidade deste artigo, não for reforçada.

Art. 341.  Julgar-se-á quebrada a fiança quando o acusado: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV - resistir injustificadamente a ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

V - praticar nova infração penal dolosa. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 342.  Se vier a ser reformado o julgamento em que se declarou quebrada a fiança, esta subsistirá em todos os seus efeitos

 Art. 343.  O quebramento injustificado da fiança importará na perda de metade do seu valor, cabendo ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva.(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 344.  Entender-se-á perdido, na totalidade, o valor da fiança, se, condenado, o acusado não se apresentar para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 345.  No caso de perda da fiança, o seu valor, deduzidas as custas e mais encargos a que o acusado estiver obrigado, será recolhido ao fundo penitenciário, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 346.  No caso de quebramento de fiança, feitas as deduções previstas no art. 345 deste Código, o valor restante será recolhido ao fundo penitenciário, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 347.  Não ocorrendo a hipótese do art. 345, o saldo será entregue a quem houver prestado a fiança, depois de deduzidos os encargos a que o réu estiver obrigado.

Art. 348.  Nos casos em que a fiança tiver sido prestada por meio de hipoteca, a execução será promovida no juízo cível pelo órgão do Ministério Público.

Art. 349.  Se a fiança consistir em pedras, objetos ou metais preciosos, o juiz determinará a venda por leiloeiro ou corretor.

Art. 350.  Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste Código e a outras medidas cautelares, se for o caso. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Parágrafo único.  Se o beneficiado descumprir, sem motivo justo, qualquer das obrigações ou medidas impostas, aplicar-se-á o disposto no § 4o do art. 282 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 Como se vê, os dispositivos acima elencam todas as nuances a respeito da aplicabilidade da fiança criminal, seja pelo juiz de direito, seja pelo delegado de polícia. Contudo, dar-se-á maior atenção àqueles direcionados à polícia judiciária, uma vez que o cerne deste trabalho é a aferição da fiança criminal na fase da investigação policial.

Com o advento da Lei 12.403/2011, a fiança continuou sendo compreendida como medida de contracautela substituta da prisão em flagrante, mediante o pagamento do quantum arbitrado e compromisso de cumprir as obrigações decorrentes do processo, tais como: pagamentos de despesas processuais, multas e indenização, caso ocorra condenação, dentre outras. Mas também passou a ser medida cautelar expressa no art. 319, VIII, do CPP, portanto, pode ser cumulada com outras medidas. Na sua aplicação, o juiz deve levar em conta os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, consoante inteligência do art. 282 do CPP. 


4. Arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia

Como é cediço, a lei adjetiva penal (art. 322) permite, expressamente, ao delegado de polícia o arbitramento de fiança no caso de delito cuja pena (em abstrato) privativa de liberdade máxima não ultrapasse 4 (quatro) anos, desde que inexistam os impeditivos legais previstos nos artigos 323 e 324 do CPP.

Ressalte-se, de outra banda, que o cargo de delegado de polícia atualmente compõe as carreiras jurídicas (Lei 12.830/13) e , portanto, é perfeitamente possível ele fazer a análise do caso que lhe é apresentado, adotando as providências pertinentes a sua atribuição, como se fosse “uma espécie de juiz da fase pré-processual”[1].

Deflui-se, diante das informações já postas, que a fiança criminal está diretamente ligada à prisão-liberdade de alguém, portanto, na seara policial, sua importância eclode por ocasião de lavratura da prisão em flagrante.

Na situação em concreto, apresentado o conduzido ao delegado de polícia, este, primeiramente, deve verificar se é caso de prisão em flagrante prevista no art. 302 do Código de Processo Penal. Restando isso configurado, em seguida, promove o juízo de tipicidade do fato, buscando fazer a subsunção do delito praticado pelo conduzido à norma incriminadora, observando-se a sua pena máxima (em abstrato), cuja análise é de fundamental importância no que se refere ao arbitramento de fiança no âmbito policial.

Dessa apreciação podem fluir as seguintes constatações: a) não sendo a pena privativa de liberdade superior a 2 (dois) anos, lavra-se Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), atentando-se para o disposto no art. 69 da Lei 9.099/1995, que diz respeito ao compromisso de comparecimento do flagranteado perante o Juizado Especial Criminal competente;  b) se a pena não ultrapassar 4 (quatro) anos, independentemente de ser reclusão, detenção ou prisão simples, lavra-se o Auto de Prisão em Flagrante (APF), vislumbrando-se a possibilidade do arbitramento de fiança pelo delegado de polícia, desde que não haja causas impeditivas; e c) caso a pena seja superior a 4 (quatro) anos, lavra-se o Auto de Prisão em Flagrante (APF), ficando o delegado de polícia impossibilitado de arbitrar fiança ao conduzido após a lavratura do APF. Nessa situação, somente Juiz pode arbitrá-la.

In casu, o que interessa é a situação em que a pena privativa de liberdade (em abstrato) do delito atribuído ao conduzido não seja superior a 4 (quatro) anos, haja vista que é permitido o arbitramento de fiança pelo delegado de polícia. Mas, qual é o valor (máximo e mínimo) dela e os critérios adotados para a sua fixação? Isso é o que se verá adiante. 

4.1 Valor da fiança na esfera policial

Conforme inteligência do art. 325, I, do CPP, o delegado de polícia poderá – dependendo do caso concreto – fixar o valor da fiança, entre 01 (um) e 100 (cem) salários mínimos, podendo reduzi-la até o máximo de 2/3 (dois terços), bem como aumentá-la em até 1.000 (mil) vezes.

Nos dias atuais, esses valores seriam equivalentes a R$ 293,33 (duzentos e noventa e três reais e trinta e três centavos), ou seja, 1/3 do salário mínimo, e a R$ 88.000.000,00 (oitenta e oito milhões de reais), o que corresponde a 100 (cem) salários mínimos multiplicados por 1.000 (mil), limite máximo permitido por lei para o delegado de polícia arbitrar a fiança.

Mister ressaltar que o delegado de polícia, diante do que se deflui do teor art. 350 do CPP, não poderá conceder a dispensa da fiança, mesmo sendo o conduzido hipossuficiente, pois isso caberá ao juiz.

4.2 Critérios para a fixação do valor da fiança

Para o cálculo da fiança, o delegado de polícia deverá seguir o que reza o art. 326 do CPP, ou seja, analisará a situação processual do conduzido; a natureza do crime (causas legais de aumento ou diminuição da pena, dimensão do dano etc.); as suas condições pessoais de fortuna (pobre, rico etc.); a sua vida pregressa (antecedentes criminais e sociais); as circunstâncias que dizem respeito a sua periculosidade (perversidade, reincidência etc.); e a valor provável das custas processuais.

Convém oportunizar que o delegado de polícia também deverá levar em conta eventual concurso material de crimes, pois, caso o conduzido tenha, na mesma situação, praticado dois crimes, cujas penas máximas (em abstrato) – somadas – ultrapassem o teto de 4 (quatro) anos, não poderá ele arbitrar a fiança.

Ademais, o delegado de polícia deve se ater, ainda, ao crime na forma tentada. Suponha-se que a pena máxima (em abstrato) de determinado delito seja de 5 (cinco) anos. A princípio, não poderá ser arbitrada fiança na delegacia de polícia, mas reduzindo-se 1/3 (um terço), isto será possível, uma vez que a pena ficará no patamar de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, o que permitirá sua concessão na esfera policial.

A fiança deverá ser justa e dentro dos parâmetros legais, evitando-se a fixação de valores irrisórios ou excessivos. Destarte, as condições financeiras do conduzido prevalecerão para estipulação de um valor suficiente para garantir o juízo, pois isto é a finalidade precípua da fiança. Assim sendo, esta deverá ser arbitrada de modo que assegure o comparecimento do conduzido (indiciado) no curso do processo criminal, mas nunca de forma que inviabilize a sua prestação, uma vez que o conduzido somente será posto em liberdade se pagá-la; caso contrário, continuará preso.

Há situações em que 1 (um) salário mínimo poderá representar muito para alguém, enquanto que 100 (cem) salários mínimos não representará nada para outrem. Tudo irá depender da capacidade financeira de cada um.

Extrai-se, então, da exegese do acima explanado que a fiança deverá “ser sentida” por quem a presta, mas jamais deverá ser aplicada de modo a tolher a sua implementação. 

4.3 Na prática, como se dará a procedimentalização da fiança na Delegacia de Polícia?

Como já dito, diante de uma situação de prisão em flagrante, o delegado de polícia, ab initio, ouvirá o(s) condutor(es), colhendo-se a(s)  assinatura(s) deste(s) e entregando-lhe(s) cópia do termo e do recibo de entrega do(s) preso(s); na sequência ouvirá as testemunhas que presenciaram o(s) delito(s) ou, pelo menos, duas pessoas que tenham presenciado a apresentação do(s) preso(s) ao delegado de polícia, colhendo-se suas assinaturas; no passo seguinte, colherá as declarações da(s) vítima(s) (se for caso), colhendo-se sua(s) assinatura(s); e, ao final, interrogará o(s) conduzido(s) a respeito da(s) imputação(ões) que lhe é(são) feita(s),colhendo-se, também, a(s) assinatura(s) deste(s).

Feito isso, sendo admissível a fiança, o delegado de polícia terá a obrigação de conceder tal benefício (exceto se houver causas impeditivas), uma vez que não se trata de uma faculdade, consoante exegese do art. 304, § 1º, do CPP, in verbis:

Art. 304 - Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.

§ 1º - Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja. (destaquei)

A deliberação acerca da concessão da fiança se dará no próprio corpo do APF, antes de sua conclusão, ou logo depois desta, no despacho em que o delegado de polícia determina as providências de praxe, tais como: expedições de nota de culpa, nota dos direitos e garantias constitucionais, ofícios ao Magistrado, Parquet e Defensor Público (se for o caso), dentre outras.

Na rotina policial, costuma-se prestar fiança em espécie (dinheiro), até porque é mais prático, mas nada impede que ela também possa ser em metais, pedras, objetos preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar, consoante inteligência do art. 330 do CPP.

4.3.1 Fiança prestada em espécie (dinheiro)

Realizado o depósito do valor arbitrado, o comprovante deverá ser entregue – por quem tenha prestado a fiança – ao delegado de polícia, que determinará ao escrivão a lavratura do termo de fiança no livro específico, que é obrigatório nas unidades policiais (Distritais, Centrais de Flagrantes, Departamentos), conforme reza o art. 329 do CPP.

Lavrado o termo de fiança, este deverá ser assinado pelo delegado de polícia, afiançado e escrivão. Há caso em que também é assinado pelo afiançador, o que ocorre quando a fiança é prestada por terceiros.

Na sequência, extrair-se-á a certidão, juntando-a ao procedimento policial (APF).

Como dito acima, não é o termo de fiança que deverá ser juntado aos autos do inquérito, mas, sim, a sua certidão, cujo equívoco é constantemente percebido no dia a dia policial.

Nos dias hodiernos, como todos os documentos costumam ser digitados, sugere-se que, após a sua confecção, extraia-se uma cópia do termo de fiança, colando-a no livro específico (não precisa ser manuscrito). Saliente-se, ainda, a obrigatoriedade de constar o número de ordem no termo de fiança, o que assegura o seu controle.

Outra importância da existência, na delegacia de polícia, do livro destinado a registro de fiança, é a facilidade de se saber, sem maiores dificuldades, o valor global das fianças arbitradas num determinado período. Essa informação costuma ser solicitada no relatório de atividades elaborado no final de cada ano pelos órgãos ligados à Segurança Pública.

Merece registro que, não sendo possível ser realizado, de pronto, o depósito da fiança, por ser feriado ou final de semana, haja vista os estabelecimentos bancários se encontrarem fechados, não haverá nenhum óbice para se colocar o conduzido em liberdade, pois poderá o valor arbitrado ser entregue ao escrivão que lavrará o respectivo termo, inclusive se comprometendo a efetivar o seu depósito no próximo dia útil, e a juntar o comprovante aos autos do inquérito policial; tudo sendo registrado no termo de fiança.

Adotados os supracitados procedimentos, o conduzido – antes de ser posto em liberdade – deverá ser informado, pelo escrivão, das obrigações e da sanção previstas nos arts. 327 e 328 do CPP, o que constará dos autos do inquérito policial, através de certidão.

Outro ponto que merece ser destacado é o caso do conduzido (flagranteado), por ocasião da prestação da fiança que lhe foi arbitrada já se encontrar numa outra unidade policial ou prisional diversa da qual o autuou. Nessa situação, faz-se necessária a expedição de alvará de soltura ou guia de soltura direcionada ao diretor do respectivo estabelecimento para o devido cumprimento.

4.3.2 Fiança prestada em metais, pedras ou objetos preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca

Por disposição expressa no Código Processo Penal, quando se tratar de “imóvel, ou de pedras, objetos ou metais preciosos”, será feita imediatamente a avaliação por perito nomeado pela autoridade. Já no caso de consistir em “caução de títulos da dívida pública, o valor será determinado pela sua cotação em Bolsa, e, sendo nominativos, exigir-se-á prova de que se acham livres de qualquer ônus”.

Na situação supra, a prestação da fiança é complexa e mais trabalhosa. Portanto, não é recomendada no âmbito policial, muito embora seja legalmente permitida, devido ao finito tempo da prisão em flagrante. Outro óbice é a dificuldade em se arrumar alguém apto para realizar tal avaliação, principalmente nas delegacias de polícia interioranas.

Não é despiciendo salientar que a avaliação procedida por pessoa que não esteja apta para tanto poderá resultar equívocos que causarão, provavelmente, prejuízos futuros ao processo criminal.

No tocante aos demais procedimentos cartorários, tudo seguirá as mesmas regras delineadas no subtópico anterior. 


5.    Conclusões

Diante do que foi explanado no presente estudo, fica evidente que a fiança tem natureza contracautelar (art. 321 a 350 do CPP) e, também, cautelar (art. 319, VIII do CPP). Como contracautela substituta da prisão em flagrante, consiste em um direito subjetivo do preso, devendo o delegado de polícia concedê-la na situação em que haja previsão legal.

Em sendo um direito subjetivo, não haverá necessidade – no âmbito policial – de que seja a fiança requerida pelo flagranteado, seu advogado ou terceiros, devendo o delegado de polícia arbitrá-la ex-ofício, quando observadas as hipóteses legais que a autorizam, independentemente de requerimento ou não.

Conclui-se, também, que a fiança criminal deverá ser “sentida por quem a presta”, porém, jamais a ponto de obstaculizá-la, pois, caso isso ocorra, haverá uma arbitrariedade (abuso de autoridade).


REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processual Penal. Brasília, DF: Senado, 1941.

ISHIDA, Válter Kenji. Processo Penal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2010.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª Edição ver. E atual. Até 31 de dezembro de 2005. São Paulo: Atlas, 2008.

SANNINI NETO, Francisco. Delegado de polícia: o juiz da fase pré-processual. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano19, n.4018, 2 jul. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/29963>. Acesso em: 16 abr. 2015.


Autor

  • Manoel Alves da Silva

    Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade de Tecnologia de Alagoas (FAT). Graduado em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas de Maceió (CESMAC). Integrante da Polícia Civil do Estado de Alagoas com vasta experiência em prática cartorária. Atualmente exerce as funções de Chefe de Cartório da Delegacia Geral da Polícia de Alagoas (DGPC). Articulista colaborador do Jus Navigandi.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Manoel Alves da. Procedimentalização da fiança no âmbito da polícia judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4597, 1 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38408. Acesso em: 2 maio 2024.