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A função social da propriedade nos contratos agrários

A função social da propriedade nos contratos agrários

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Sumário – 1. Introdução. 2. Estado Democrático Social de Direito. 3. A propriedade no Estado Social de Direito. 4. A Função Social da Propriedade. 5. Função Social no Direito Comparado. 6. A Função Social no Direito Brasileiro. 7. Função Social no Estatuto da Terra. 8. Função Social nos Contratos Agrários. 9. Conclusões. 10. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO.

Nos últimos duzentos anos, a humanidade experimentou mudanças em uma velocidade e intensidade sem par na história em praticamente todos os campos de atividades. O Estado evoluiu do absolutismo monárquico para um modelo Liberal-iluminista e posteriormente para um modelo de Estado Social. O conhecimento passou a ser formulado sob bases científicas. O modelo econômico sofreu todas as influências da Revolução Industrial e hoje se vislumbra mais um salto evolutivo às expensas da tecnologia. O Direito enquanto ciência, não se alheou a essas transformações que se reproduziram em seu âmbito se não uniformemente, com certeza em toda sua extensão. O Direito Agrário, como ramo do Direito que é, também não ficou indiferente a esse processo, muito antes pelo contrário constituiu campo de vanguarda dentro do conjunto de matérias especializadas que compõe o sistema jurídico. Mais especificamente no campo dos contratos agrários, legislação específica incorporou à sua disciplina as mais recentes conquistas da dogmática jurídica que procuraram tornar ainda mais eficientes esses potentes mecanismos de fomento das políticas estatais, colocando-os em consonância com os esforços gerais na busca dos objetivos colimados pelo conjunto da sociedade e ganha realce nesse contexto a função social da propriedade como princípio imanente em qualquer espécie de negócios jurídicos cujo conteúdo verse sobre propriedade e posse de bens. O Direito Agrário e dentro dele o direito Contratual Agrário tendo por objeto a atividade agropecuária, setor de fundamental importância na pauta de prioridades de qualquer sociedade moderna, é um setor onde mais sensíveis e prementes se tornaram as modificações sócio-político-jurídicas.

Em face dessa realidade, faz-se mister, em qualquer estudo que aborde o direito contratual agrário, ou melhor se diria agrário contratual, abordar a função social da propriedade, que é a face mais saliente das novas concepções político-jurídicas. A função social da propriedade, princípio que hoje encontra-se dentre as normas constitucionais sujeitas ao grau máximo de rigidez, é um instituto jurídico em posição de alicerce dentro dos contratos agrários. Objetivamos aqui efetuar uma panorâmica da função social da propriedade dando especial enfoque à irradiação de sua influência no campo dos contratos agrários.


2. ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO.

O conjunto de princípios que regem a ordem jurídica de um Estado em dado momento estão fundamentalmente ligados à concepção do modelo do próprio Estado. A função social da propriedade é um princípio cuja gênese está intimamente relacionada à concepção de um Estado Democrático Social de Direito. Com efeito, não podemos compreender em profundidade a função social da propriedade sem compreender o modelo de Estado em que ela surge e vige, e para tento faz-se necessário analisarmos a evolução recente do Estado.

Obviamente não iremos nós nos embrenhar em profundo acerca do Estado para o que se recomenda uma consulta a diversas obras de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. Diga-se de passagem, um tal esforço refugiria por completo do âmbito de nosso trabalho. Por isso, se nos interessam especialmente os três últimas fases do modelo de Estado.

Pois bem, até a revolução Francesa (1789) a concepção de Estado amoldava-se ao modelo do chamado Estado Absolutista, cuja principal característica residia na concentração quase absoluta de poderes em mãos de um monarca que representada a personificação do próprio Estado. É bem verdade que havia um conjunto de limitações a esse poder que variava de ordenamento para ordenamento e cujo princípio remonta à Magna Carta do Rei João Sem Terra (1215), sem que com essa limitação se pudesse afirmar atingido o alicerce da concentração de poderes. Durante séculos esse modelo, cuja origem identifica-se com a formação das grandes nações européias por volta dos séculos XII e XIII, preponderou absoluto. Ocorre que a política mercantilista, impulsionada pelo ciclo das navegações e pelo colonialismo, com forte incremento da atividade comercial foi paulatinamente modificando a extratificação social. Não demorou muito para que a burguesia, nova classe que surgia baseada na concentração de dividendos econômicos e sob o pálio da filosofia iluminista, sucede-se à nobreza no poder, tendo por ponto culminante a ruptura traumática da Revolução Francesa. Surge então o Estado Liberal sob a fórmula de um Estado de Direito o que deu origem a nomenclatura Estado Liberal de Direito. Conforme bem frisa o Professor Luiz Ernani Bonesso de Araújo, o objetivo maior era dar ampla liberdade e garantia para o exercício de suas atividades [1] e, citando a Macridis, identifica três núcleos da democracia liberal [2]. O núcleo moral, baseado no postulado da liberdade individual e social, esta última correspondendo ao direito de ascensão social. O núcleo econômico cuja a base é a economia capitalista fundamentada na liberdade de ação e na propriedade privada. O núcleo político tem como princípios o consentimento individual, o governo representativo, o constitucionalismo e a soberania popular. José Afonso da Silva [3] identifica como características do Estado Liberal de Direito: a submissão ao império da lei, entendida como ato emanado formalmente do poder legislativo; divisão de poderes; enunciado e garantia dos direitos individuais.

Seguiu-se à Revolução Francesa a Revolução Industrial, revolucionando a matriz econômica e sob os auspícios da filosofia liberal. Ocorre que o modelo capitalista preconizado pelo liberalismo, ou seja, um modelo em que a atividade econômica é levada à cabo sem qualquer controle, começou a produzir um quadro de graves desigualdades sociais e exclusão. A Revolução Industrial, que se faz sentir em especial nos países europeus mais adiantados e mais tardiamente na América, contribui para a urbanização de significativas massas humanas, outrora dedicadas à atividades agrícolas. As massas de assalariados, submetidas a uma igual condição de submissão econômica e sujeitas a uma jornada desumana, começam a se organizar em sindicatos e movimentos sociais. Tal é o quadro que, a partir de meados do século passado, começam a pipocar movimentos reivindicatórios sob a égide do socialismo e do anarquismo. Fourier, Owem, Saint Simon e depois Marx e Engel constroem a doutrina socialista que visa abolir a luta de classes e a exploração do trabalho pelo capital. O anarquismo vai mais longe e propugna o fim do Estado. As novas ideologias que se opõem ao modelo liberal, sobretudo no aspecto econômico, irão redundar em episódios como a Comuna de Paris e no iniciar deste século em movimentos revolucionários como as Revoluções Mexicana e Russa. Nos Estados onde não se implantaram regimes fulcrados nas novas ideologias, elas tiveram o mérito de apontar as falhas e contradições do modelo liberal iluminista. Sob o ponto de vista jurídico, o modelo liberal concebe lei sob uma ótica essencialmente formal, dissociada da realidade. Em tal ordem de idéias, a norma jurídica protetiva mais se afigura uma emanação inócua e meramente enunciativa do que um verdadeiro comando revestido do jus imperii.

Ante a insofismável evidência de que o modelo então vigente chegava ser contraditório nos seus resultados na medida em que os postulados de igualdade e justiça permanecem longe de se constituírem realidades palpáveis, e que a opressão e a desigualdade devem ser atacadas antes de tudo como fatos do mundo concreto, o modelo liberal começa a ceder passo a um conteúdo social. A pressão para que isso aconteça intensifica-se também na medida em que as populações ganham em termos intelectuais. Surge então o Estado Democrático Social de Direito que, consoante a lição de José Afonso da Silva, citando a Elias Diaz, busca a fusão de dois elementos quais sejam o modelo capitalista e a consecução do bem estar social geral [4]. A recepção do ideário Democrático Social no Direito Positivo faz-se na Constituição Mexicana (1917) e na Constituição de Weimar (1919). A partir de então grande parte das Constituições ocidentais reserva capítulos voltados aos direitos sociais. Sob o ponto de vista jurídico, ou seja, sob o ponto de vista da influência do conceito de Estado Democrático social de Direito, a lei transcende do seu aspecto meramente formal para adquirir um contorno material. Somam-se aos direitos individuais direitos econômicos e sociais e principalmente buscam-se meios de tornar esses direitos uma realidade efetiva, concreta. No preciso dizer do Professor Ernani Bonesso: " A relação formal pela referência a uma lei geral e abstrata dirigida a todos os cidadãos de forma indistinta permanece como salvaguarda da ação abusiva do Estado, mas, lado a lado com leis de índole programáticas, obrigatórias para o Poder Público que deve atuar para atender às necessidades do cidadão". [5] Impende notar, no entanto, que as noções de Estado Democrático de Direito e de Estado Social podem existir independentes uma da outra, conforme lembra José Afonso da Silva trazendo-nos exemplos de Estados Sociais que não eram democráticos como o Estado Nazista e o Estado Facista. [6]

A Carta Política de 1988 indubitavelmente possui franca inspiração social, tendo consagrado diversos dispositivos na busca de um conteúdo mais solidarista, mais humanitário, embora a situação econômica do Estado e da maior parte da sociedade seja um óbice considerável a que os objetivos colimados tornem-se uma realidade palpável.


3. A PROPRIEDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO.

Antes de adentrarmos ao estudo da função social da propriedade é a nosso ver imperioso que façamos uma breve análise da evolução histórica da propriedade, ponto base para que bem compreendamos a função social que a ela se apõem hodiernamente, mesmo porque a função social é consectário lógico da evolução do conceito de propriedade.

A propriedade, compreendida como a potestate individual excludente da ingerência de outrem sobre um bem, está fundamentalmente ligada aos meios de produção. No primitivismo dos primeiros agrupamentos humanos não há lugar para a propriedade como a conhecemos hoje senão sob a forma rudimentar de domínio sobre um mínimo de bens individuais de uso pessoal. A própria situação de nomadismo de alguns grupos dificulta que se consiga o agregamento de riqueza. Segundo Pedro e Cáceres [7] a "revolução do regadio", com incremento da produção agrícola, e a "revolução dos metais" possibilitaram saltos evolutivos que permitiram a criação de condições que levaram à evolução do conceito de propriedade para a propriedade individual. A noção de propriedade individual ampla será firmada especialmente na Grécia e em Roma, fundada em um modelo de família gentílica em que o pater familiae desenvolvia a liderança no grupo. Assim, a propriedade familiar se sobrepõem à propriedade comunitária [8]. Com a queda do modelo gentílico consolidou-se uma propriedade realmente individual, porém não se pode falar que fosse absoluta, pois submetia-se a certas restrições como as decorrentes de vizinhança.

Acompanhando a queda do Império Romano, segue-se o modelo feudal cuja principal característica reside na concentração da propriedade e na exploração indireta da terra. A propriedade concentra-se em mãos de poucos senhores feudais que permitiam a seus servos explorarem as terras em troca de vassalagem. Com a unificação das nações européias e o absolutismo monárquico surge um terceiro componente corporificado no poder do rei, que é o senhor absoluto nos limites do reino. É de se observar que o poder que exerce é mais formal do que concreto já que, no feudo, é o senhor feudal titular de poder absoluto.

O desenvolvimento da burguesia, que irá culminar na Revolução Francesa, implicará na retomada do conceito romano de propriedade individual. O Code de Napoleón, diploma legislativo que influenciará profundamente os séculos XIX e XX, em seu art 554 contempla a propriedade como "um direito de dispor das coisas de forma absoluta, desde que não se faça delas uso proibido pelas leis". A própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previa que o direito de propriedade só se limitaria na medida em que atingisse o direito alheio [9]. Tal concepção influenciou as codificações da segunda metade do século XIX, como a italiana (1865), a portuguesa (1867) e a alemã (1898), tendo penetrado inclusive no Código Civil Brasileiro, art 524. Contrapondo-se ao caráter absoluto do direito de propriedade, surgiu a teoria do abuso do direito, nomenclatura que Pontes de Miranda julga mais acertada do que abuso de direito [10], e que teve como prosélitos Saleilles, Charmont e principalmente Josserand, aos quais se antepuseram Planiol, Rarde e Esmeim. Diga-se de passagem que a noção de abuso do direito já houvera, sob forma rudimentar, se construído em Roma [11], e teve acolhida no BGB, § 226, Código Suíço, art 2, 2ª alínea e CC da Polônia, art 135.

Mas o grande golpe na propriedade individualista começou a ser urdido por Leon Duguit com o "solidarismo" que, sem negar a propriedade privada, identificava a necessidade de submissão do seu exercício a um direito coletivo. Após adveio o constitucionalismo social a que se somou a intervenção da Igreja através das Encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII (n. 10, 15, 20 e 23), Quadragésimo Anno, de Pio XI (n.47, 48 e 49) e Mater et Magistra (n.27 e 40), sendo que as duas primeiras datam de 1891 e 1931 respectivamente. Estava aberto o caminho para a função social da propriedade, representando o quinto ciclo evolutivo.


4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Grosso modo, podemos simplificadamente conceituar a função social da propriedade como a submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo. Duguit já afirmava que: "O proprietário, é dizer, o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir esta riqueza uma ''função social'' a cumprir; enquanto cumpre essa missão, seus atos de propriedade estão protegidos. Se não os cumpre, ou deixa arruinar-se sua casa, a intervenção dos governantes é legítima para obrigar-lhe a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que possui conforme seu destino" [12]. Vivanco, citado por Paulo Torminn Borges, define a função social da propriedade afirmando que: "La función social es ni más ni menos que el reconocimiento de todo o titular del domínio, de que por ser um miembro de la comunidad tiene derechos y obligaciones com relación a los demás miembros de ella, de manera que si él ha podido elegar a ser titular del domínio, tiene la obligacion de cumplir com el derecho de los demás sujeitos, que consiste en no realizar acto alguno que pueda impedir u obstaculizar el bien de dichos sujetos, o sea, la comunidad" [13]. José Cretella Júnior, ao tratar da função social da propriedade conclui que: "... o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito em nossos dias a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar a concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público". [14] Luiz Ernani Bonesso de Araújo afirma, quanto à propriedade à luz da função social, que "antes de se pensa-la a partir dos interesses individuais, ela deve ser pensada pelo interesse da coletividade, da sociedade" e adiante segue: "Em outros termos, da exigência de que a propriedade rural cumpra sua função social, passa-se a vê-la como ela sendo a própria função social, determinada pelo exercício do direito à terra, como forma de alcance da justiça social no campo" [15]. Luciano de Souza Godoy [16] de sua parte apostila que: "A propriedade privada, como um direito individual e funcionalizado, isto é, que tem presente uma função social, apresenta um conceito não absoluto de propriedade – pela função social que lhe é inerente. Essa fórmula é adotada em grande parte dos países, como conceito de propriedade juridicamente correto". Não obstante alguma doutrina, escassa, e alguns sistemas legislativos ainda neguem a função social da propriedade, hoje ela é uma realidade, um principio adotado e defendido por doutrinadores de escol, conforme nos dá conta Rafael Augusto de Mendonça Lima [17].


5. FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO COMPARADO.

Antes de tudo é necessário que uma ressalva que é fundamental, e que diz respeito ao Direito Ambiental. Destarte o Direito Ambiental é uma das faces da função social da propriedade na medida em que a proteção ambiental toma em conta interesses da coletividade quando da atividade agrária.

No que diz respeito a função social da propriedade podemos afirmar que teve acolhida bastante favorável na maioria dos ordenamentos ocidentais. Precursoramente a Constituição Mexicana de 1917, art. 27, e Weimar (Alemanha, 1919), art. 153, seguidas, depois, pela Constituição italiana de 1947, art. 42. Vista a proteção ambiental como face da função social, podemos observar a Constituição da Espanha (1978), arts. 148 e 149, a Constituição Alemã de 1949, reformada em 1972 (art. 74, n. 24) e a lei italiana n. 394 de 1986 (art. 5º, 3). Também a lei francesa nº 76-673 de 1976 e a Lei de Controle de Poluição inglesa de 1974 [18].

Na América Latina são expressivos os exemplos de adoção da função social da propriedade. Fora do âmbito do Mercosul, podemos coligir dois exemplos segundo Graciela Beatriz Rojas Rojas. O primeiro refere-se ao Peru, cuja Constituição de 1993 dispõe que: "El derecho de propriedad és inviolable. El Estado o garantiza. Se exerce com armoniz com el bien comum y dentro de los limites de liy", texto muito assemelhado ao art. 153 da Constituição Weimar. O segundo refere-se à Colômbia, cujo art. 58 da Constituição de 1993 dispõe que: "Se garantizar la propriedad privada y los demás derechos adquiridos com arregalo a los leyes civiles" e segue: "Cuando de la aplicacion de uma ley expedida por motivo de utilidad publica o interés social, resultam em conflito los derechos de los particulares por la necessidad por ella reconocida, el interés privado deberá ceder al interes publico o social".

Já no âmbito do Mercosul, a Constituição Argentina de 1994 nenhuma referência à função social fez, mantendo, em seu art. 17, a base da Constituição de 1853, que agasalha um princípio de inviolabilidade mais rígido. No entanto, conforme assinala Fernando P. Brebbia [19], o art. 41 do texto constitucional argentino consagra princípios de proteção ambiental e uso racional o que não deixa de ser um aspecto da função social da propriedade. Diz o art. 41: Todos los habitantes gozam derecho a um ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades produtivas satisfagam las necessidades presentes sim comprometer las de las geraciones futuras: y tiene el deber de preservalo. El daño ambiental generará prioritariamente la obligación de recomponer, seguin lo estabeleza la ley. Las autoridades proverán a la protecion de este derecho, a la utulización racional de los recursos naturales, a la preservación del patrimonio nacional y cultural y de diversidad biologica y la información y educación ambiental...". Na doutrina daquele país Vivanco elenca como fins essenciais da Política Agrária a conservação dos recursos naturais renováveis, o incremento racional da produção agrária e a segurança e bem estar social [20]. Vê-se que inobstante não haver o texto constitucional tratado expressamente nem por isso se pode firmar ausente a função social da propriedade no Direito Argentino o que se reforça em outra passagem do mesmo Vivanco, quando afirma que: "El derecho del titular implica el poder de usar libremente la cosa; pero a la vez supone el deber de utilizarla de manera que no se desnaturalice. Ello em razón de que su capacidad produtiva interessa por igual a todos lo sujeitos de la comunidad y de que los elementos essenciales para la vida humana como la alimentación provienem de cosas agrarias como la tierra o los animales" [21].

No Paraguai, a Constituição de 1992 em seu artigo 109, após referir-se à inviolabilidade da propriedade, permite a despropriação por utilidade pública ou interesse social. Graciela Beatriz Rojas Rojas [22] ao referir-se ao dispositivo afirma que "la norma constitucional citada como pode advertirse suspedita el contenido y limites de la propriedad privada a la ley, atendiendo su función económica y social y a fin de hacerla accesible para todos". Segundo a autora, o Estatuto Agrário de 1963 estaria revogado, pois se referia a um sistema em que as desapropriações se faziam por decreto do executivo. A lei nº 854/63 considerava que o imóvel rural cumpria função sócio-econômica mediante a exploração eficiente da terra, aproveitamento racional e observância das disposições sobre conservação e reposição de recursos naturais renováveis.

A doutrina uruguaia não fica indiferente à função social da propriedade. Ao tratar das "idéias-força" do direito agrário, Adolfo Gelsi Bidart pronunciou-se no seguinte sentido: "Otra de las más transitadas em los últimos tiempos, es ‘la función social de la propriedad’, subsayando que la titularidad de ésta impone no la exclusividad; sino de la apertura; no la mezquindad, sino la utilización de la misma de modo refleje em si la orientación social y, además, em su explotación, transcienda el solo critério individual del proprietário y se incorporou a la orientación general de interes comum". [23]

Vê-se que, tenham ou não os ordenamentos recepcionado-a expressamente a função social da propriedade, encontra acolhida na esmagadora maioria dos ordenamentos de inspiração romano-canônica, ainda que seja em sede doutrinária ou jurisprudencial. Visto isto, estamos habilitados a penetrar no ordenamento nacional.


6. A FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO BRASILEIRO.

Até a independência regeu-se o Brasil pela legislação portuguesa corporificada nas Ordenações Manoelinas, Afonsinas e Filipinas. A primeira legislação pátria independente surge em 1824 com a Constituição Imperial, outorgada por D. Pedro I. Em seu artigo 179, inc. XXII, sob inspiração liberal, consagrava que "É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude". Embora se permitisse a desapropriação por bem público, não se pode inferir que se houvesse aí contemplado qualquer homenagem à uma função social. A Constituição de 1891 acrescentou como causas para a desapropriação a necessidade ou utilidade pública, mas conforme nos faz ver Paulo Torminn Borges "a primeira Constituição Republicana, em 1891, estava dominada pelo mesmo fervor individualista na concepção do direito de propriedade" [24]. O mesmo Autor destaca que emenda constitucional de 1926 consistiu a primeira limitação ao direito de propriedade. A esta limitação, que se referia à minas e jazidas minerais, a Constituição de 1934 somou a concernente às quedas d’água e ainda ressalvou, em seu artigo 113, n. 17, que o exercício do direito de propriedade não se poderia fazer contra o interesse social ou coletivo. Os mesmos princípios foram mantidos no texto de 1937, art. 122, n. 14, e 143, e na Lei Constitucional n. 5, de 1942. A Constituição de 1946, francamente voltada a contrariar o anterior período de exceção, procurou condicionar o exercício da propriedade ao bem estar social e a preconizar a justa distribuição da propriedade com igualdade de oportunidades para todos (art. 141, § 16 e 147).

As Constituições de 1967 e 1969 deve-se à inserção da função social da propriedade, e como condicionante da propriedade. Na primeira art. 150, § 22 e 157 e parágrafos, e na segunda, art. 153, § 22, e 161 [25]. A Constituição de 1988 dedicou diversos dispositivos à disciplina da propriedade. José Afonso da Silva enumera os seguintes arts. 5º, in XXIV a XXX, 170, II e III, 176, 177, 178, 182, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222 [26]. Na verdade, o art. 5º nos incisos XXII e XXIII traz os princípios basilares da propriedade, o primeiro garantindo-a., o segundo atrelando-a a função social. Nos interessam especialmente o art. 5º, inc. XXII e XIII, 170, II e III e 186. O inciso XXII do art. 5º afirma que: "é garantido o direito da propriedade". O inc. XXIII afirma que "a propriedade atenderá sua função social". O art. 170, dando início ao capítulo I, do Título VII, Da Ordem Social e econômica prescreve: "art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:II – propriedade privada, III – função social da propriedade". O art. 186, por seu turno, dentro do Capítulo III, Da Política Agrícola e Fundiária e Da Reforma Agrária, elenca os requisitos da função social da propriedade rural de forma clara, verbis: "art. 186 – A Função Social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

- Aproveitamento racional adequado.

- Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

- Observância das disposições que regulam as relações de trabalho.

- Exploração que favoreça o bem estar dos proprietarios e dos trabalhadores".

Em primeiro plano é de invocar o magistério de José Afonso da Silva acerca da natureza pública da função social da propriedade. Segundo o eminente constitucionalista "os juristas brasileiros, privatistas e publicistas concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao Direito Civil, considerado direito real fundamental" e emenda que "essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não levou em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais" [27]. Em outra passagem, o mesmo autor ao referir-se à inserção do princípio da função social na ordem economica diz "já destacamos antes a importância desse fato, porque, então embora também prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem economica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" [28].

Além do caráter publicistico, nota-se uma conjugação complexa de requesitos na construção da função social da propriedade, de tal modo que a definição do art. 186 valeu de Ismael Marinho Falcão do seguinte comentário: "Diante de tal conceituação resta evidente que é pelo trabalho e não pelo simples fato do título que o homem conquistará o direito de propriedade sobre a terra" [29]. Conforme o Prof. Ernani Bonesso de Araújo "a propriedade passa, então, a ser vista como um elemento de transformação social" [30].

A lei 8.629 de 25 de fevereiro de 1995 veio regulamentar o art. 186 da CF. Os arts. 6º e 9º, especialmente discorrem acerca da regulamentação dos incisos do artigo constitucional, que vêm repetidos no art. 9º. O parágrafo 1º, que trata do aproveitamento racional remete aos parágrafos 1º a 7º do art. 6 da lei. O parágrafo 2º condiciona a utilização da terra à sua vocação natural, resguardando-se a continuidade do potencial produtivo. O parágrafo 3º trata da preservação ao meio ambiente. O parágrafo 5º do artigo 9º trata do bem estar social de proprietários e trabalhadores, afirmando que a exploração deve atender às necessidades básicas dos que labutam na terra, observando-se as normas de segurança do trabalho e a não provocação de conflitos e tenções sociais. O art. 6º define a propriedade produtiva e estabelece critérios para sua configuração.

É importante observar que não se está negando o direito de propriedade, apenas se está introduzindo um interesse preponderante, que corresponde ao interesse da coletividade, em busca de que a propriedade seja um mecanismo de justiça social. Busca-se assim a conciliação do modelo economico capitalista com uma política social que almeje a reduzir desigualdades e promover a dignidade humana, enquanto princípios e fins da Constituição e norteadores da ação estatal. Conforme lembra Paulo Tormim Borges é preciso um "proprietário que faça a terra produzir como mãe dadivosa, mas sem exaurir, sem esgotar, porque as gerações futuras também querem tê-la produtiva". [31]


7. FUNÇÃO SOCIAL NO ESTATUTO DA TERRA.

A Emenda Constitucional n. 10, de 1964, alterando o art. 5, inc. XV, da Constituição Federal de 1946, concedeu à União competência para legislar sobre o Direito Agrário. Estava aberta a porta para o Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30 de Novembro de 1964, que recebeu a regulamentação pelo Decreto 59566, de 14 de Novembro de 1966. Apesar de produzidos sob um regime de exceção, a novel legislação de então, configurou-se um conjunto de normas de vanguarda, tendo, na maioria dos dispositivos, adotado posições das mais adiantadas e consonantes ao espírito do direito contemporâneo. Pomos em destaque os art. 2º caput e seu parágrafo 2º, alínea b, bem como os arts. 12 e 13 da Lei 4504/64. Diz o art. 2º caput, verbis: "art. 2º: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionado pela sua função social, na forma prevista nesta Lei". O parágrafo 2º, alínea b, reza que dentre os deveres do poder público está o de "zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social...". O artigo 12, na Seção II, traz em seu caput que "à propriedade privada da terra cabe intrínsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta lei. "O art. 13, por fim, determina que "o poder público promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem sua função social". Estabeleceu-se franca opção pela função social da propriedade configurando-se uma das primeiras manifestações de ruptura do "privatismo individualista" no sistema positivo nacional, que, sem dúvida, influenciou toda a discussão seguinte que redundou na CF/88, e preparando o caminho para evoluções como as leis de locações e de defesa do consumidor, 8245 e 8078 respectivamente, na medida em que o Estatuto Terra representou uma das primeiras manifestações concretas do "solidarismo jurídico".


8. FUNÇÃO SOCIAL NOS CONTRATOS AGRÁRIOS.

Eleitos os objetivos a serem alcançados, e eles correspondem a situações subsumíveis sob o princípio geral função social da propriedade, há que se municiar o Estado de meios que possibilitam atingir-se o fim colimado. Neste desiderato, utiliza-se o Estado de meios diretos e indiretos. Nos meios diretos, intervem na condição de pessoa jurídica de direito público em relações jurídicas das quais faz parte utilizando-se do jus imperii que lhe é inerente, como v. g. quando realiza uma desapropriação por interesse social. Há em contrapartida situações em que o Estado age indiretamente através do regramento de ralações das quais não faz parte diretamente, mas nas quais sua ingerência tem influência, conduzindo aos fins colimados. Nessa ordem de idéias os contratos agrários constituem meios indiretos de intervenção do Estado na busca da função social da propriedade, eis que a especialização na disciplina de muitos de seus aspectos estruturais e funcionais cria condições para que, também nas relações privadas que neles se materializam, estejam presentes os princípios solidaristas compreendidos no princípio geral da função social.

Há que se ressaltar que, conforme dissemos, a função social da propriedade é um princípio maior, sob o qual compreendem-se diversos fins, constituindo uma soma complexa. Não basta tornar a terra produtiva, ou distribui-la garantindo o acesso à terra. Além disso é preciso tutelar as relações que tenham por objeto o solo, garantindo proteção às partes menos favorecidas, a proteção ambiental, o uso racional dos recursos, a proteção e resguardo das normas trabalhistas, porque no atingimento de todos esses objetivos é que se assegura a efetividade da função social da propriedade.

Atento a essa complexidade, o legislador ao elaborar o Estatuto da Terra (Lei 4504/64) e o executivo ao editar o Decreto 595566, não se limitaram a dispositivos gerais, indo adiante dentro da disciplina dos contratos agrários, cientes da imperiosa necessidade de disciplina especial nessa espécie contratual. Essa especialidade, caracterizada pela permanente presença de um caráter protetivo e publicístico ressalta em diversos pontos como no informalismo, prazos mínimos, cláusulas obrigatórias, redações legais, direito de preferência, dentre outros pontos.

Os arts. 92 do Estatuto da Terra e 11 do Decreto 59.566 caracterizam o informalismo. O primeiro admite a avença tácita, o segundo a forma verbal. Sem dúvida, os contratos agrários não podem ter necessidade de formalismo pois via de regra as partes são homens afeitos às lides campeiras e poucos versados nas letras da lei. O informalismo protege exatamente essas partes e estão em perfeita consonância esses dispositivos, conforme nos dá conta João Bezerra Costa [32], com a legislação alienígena representada pela Lei 76, art. 3º vigente em Portugal desde 29/09/77, que admite contratos verbais em contratos de áreas inferiores a dois hectares; pela Lei espanhola nº 83 de 31/12/81, art. 20. Note-se que o artigo 14 do Decreto 59566/66 permite prova testemunhal qualquer que seja o valor do contrato agrário a contrario sensu do art. 402 do CPC.

Estão previstos prazos mínimos para os contratos agrários no artigo 13, II, alínea a do Decreto 5956/66 e nos arts. 95, inc. XI, alínea b e 96, inc. V, alínea b do Estatuto da Terra. Os prazos mínimos de 3, 5 ou 7 anos, também previstos na legislação espanhola ( 3 ou 6 anos) e na França (pode ir até 9 anos), existem não só para proteção do agricultor, dando-lhe segurança e estabilidade, mas também para proteção do solo e do seu potencial produtivo, conforme bem frisa Paulo Tormim Borges ao afirma que "prazo mínimo é estabelecido principalmente para evitar o mau uso da terra". [33]

O caráter publicístico presente nos contratos agrários também se faz sentir em cláusulas obrigatórias que limitam a liberdade contratual. Daí o artigo 12 do Decreto 59566/66 que enumera onze cláusulas obrigatórias. Da mesma forma, o art. 13 nos traz uma série de vedações legais. Também o Estatuto da Terra, art. 95 inc. XI, elenca cláusulas obrigatórias no intuito de formar um sistema de proteção que elida a exploração das partes e promova a função social da propriedade pelo racional aproveitamento do solo.

Também contemplou a legislação agrária o direito de preferência tanto para a aquisição do imóvel quanto para a renovação do contrato. A primeira forma está prevista no Art. 92, § 3º do Estatuto da Terra e nos arts. 45, 46 e 47 do Decreto 59566/66. Importante ressaltar que o art. 47 do Decreto 59.566/66 somado ao art. 92, § 4º, do Estatuto da Terra criaram verdadeiro direito real de aquisição do arrendatário ou parceiro outorgado, que pode haver para si o imóvel mediante o depósito do valor. Referimo-nos a arrendatários e parceiros outorgados porque reputamos extensível a ambos o direito de preferência. Outros, como Paulo Torminn Borges esposam opinião contrária o que se vê quando afirma que "embora os arts. 34 e 38 do Decreto 59.566/66 mandem aplicar à parceria as regras atinentes ao arrendamento, no que couber, parece-nos que a preferência para a aquisição do imóvel, objeto do contrato agrário, atinge só o caso de arrendamento, não o da parceria" [34] admitindo porém, o festejado agrarista, que a jurisprudência inclina-se por opinião extensiva. À semelhança do direito brasileiro, encontramos o direito de preferência na França, Código Rural, Título I, Livro VI, art. 790 a 801, na Itália, leis 590, de 26 de maio de 1965, e 817, de 14 de agosto de 1971; em Portugal, lei 76/77, art. 29, e na Espanha, na Lei Agrária n. 83, de 31 de dezembro de 1980, art. 84 a 97. [35] O nosso C. C. já previa o direito de preferência nos arts. 683 e 1139, tratando respectivamente da anfiteuse e do condomínio, e mais recentemente na lei de locações, lei 8245, art. 27 usque 34.

Estes são apenas alguns pontos em que na disciplina dos contratos agrários, se pode vislumbrar, direta ou indiretamente, forte influência da busca de uma efetivação da função social da propriedade conforme a orientação do artigo 186 do Código Supremo da Nação; muitos outros há, dizendo respeito às obrigações dos contratantes, preço, obediência a regulamentos administrativos, extinção dos contratos e outros que serão oportunamente tratados.


9. CONCLUSÕES.

Não bastasse a natural propensão do ser humano ao convívio em sociedade, somos compelidos a um tal comportamento pela capacidade de sapiência de que somos dotados ante a constatação de que em grupo, com a soma de esforços, eleitos objetivos comuns, podemos atingi-los com maior facilidade. Ocorre que o convívio em grupo implica sempre, em grau maior ou menor, interferência dos atos individuais na esfera alheia. Da mesma forma, a existência de um sem fim de atos que se devem condicionar pelo respeito a fins comuns, quer seja positivamente buscando produzir condições favoráveis à consecução desses objetivos, quer negativamente abstendo-se de práticas prejudiciais ao atingimento dos objetivos comuns, compondo uma estrutura complexa e intrinsecamente interativa, implica a inarredável necessidade de coordenação. Na junção desses dois fatores, ou seja, da interferência recíproca dos comportamentos e do condicionamento da ação individual aos objetivos da coletividade, reside a gênese das noções de Estado e de Direito.

É bem verdade que primitivamente as noções de Estado e de Direito, sendo despicienda aqui a discussão acerca da precedência de um ou outro, estiveram mais associadas à imposição da força de um indivíduo ou grupo sobre os demais, impelidos pelo réprobo intuito de dominação. Isto porém, não invalida que a existência do Estado e do Direito se constituíssem sobretudo emanações da aquiescência individual embasada nas duas conclusões acima referidas, o que se aproxima da concepção de Estado preconizada pelo jusnaturalismo contratualista de Hobbes e Locke.

A força, entendida como poder de soberania do Estado e imposição aos seus súditos, ou seja, como o próprio jus imperii não é um componente desprezível, muito pelo contrário é um fator essencial, pois da mensuração de sua intensidade se extrai a inspiração mais ou menos totalitária de um Estado, com maior ou menor espaço para o indivíduo. Essas considerações são fundamentais à compreensão da transição de um Estado de modelo liberal – iluminista para um Estado de modelo social.

Abstraídos os múltiplos aspectos sob os quais se pode analisar a evolução do Estado e do Direito, de extensão e complexidade tais que demandaram das maiores mentes anos a fio de estudos, podemos afirmar de forma simplória e superficial que o Estado surge como conseqüência da vida em sociedade, regulando as relações dos seus súditos entre si e entre eles e ele Estado através do Direito, em um mecanismo de regulação do exercício do poder (força) que se torna monopólio do Estado, salvo raras exceções. Nas relações Estado – indivíduo o Direito está sempre presente pois o Estado é uma criação humana e tem natureza abstrata, é em síntese, uma construção político – jurídica. Nas relações entre pessoas, o quod plerunque fit e que se desenvolvam antes de tudo enquanto relações fáticas, ainda quando feitas sob a forma jurídica. O quod plerunque accidit é carecerem essas relações de ingerência estatal por sua especial configuração ou como garante do seu adimplemento.

O desenvolvimento da humanidade faz-se por ciclos que se sucedem e se repetem opondo-se o conseqüente ao antecedente. Cada ciclo, que se identifica por características especificas, contrapõe ao anterior, o qual é por ele negado. Ao repetir-se, no entanto, não apresenta a mesma configuração da anterior ao ciclo ao qual se contrapõe. Há sempre um fator, ou conjunto de fatores, que atua, via de regra de forma constante, e que faz com que os ciclos reapareçam sempre diferenciados. As concepções do Estado e do Direito não refogem a essa característica. Em um dado momento um determinado Estado toma uma feição mais autoritária, fazendo preponderar o seu interesse. Segue-se um ciclo mais liberal em que se reduz a presença do Estado. Há um fator que altera o ciclo que se repete e que é, segundo o chamava Pontes de Miranda, o "princípio da redução do quantun despótico". Em tal ordem de idéias, a cada ciclo, na expansão do poder estatal essa expansão é menor, ao passo que a cada ciclo de retração, maior é a retração com a conseqüente ampliação da auto – afirmação individual.

O ponto culminante desse processo evolutivo caracterizado pela constante conquista de espaço por parte do indivíduo frente ao Estado, é a Revolução Francesa. O movimento em França representa uma violenta, porém esperada, ruptura com um modelo secular em que sempre ganhou maior destaque o poder estatal. A Revolução Francesa constitui um verdadeiro grito de auto – afirmação do indivíduo frente ao Estado. O Estado Liberal – Iluminista encampa a posição de garantidor dos direitos individuais, tão somente no plano formal porém.

O modelo econômico do liberalismo, sob inspiração de Adam Smith, Jeremias Benthan e John Stuart Mill, é o capitalista. O incremento da Revolução Industrial em cuja matriz produtiva se vislumbra um centro de gravidade localizado no acúmulo de capital, que se encontra em mãos de poucos, não tardou a causar graves desequilíbrios sociais, descortinando graves falhas e contradições no modelo então vigente. Está aberta a porta para o próximo ciclo que retoma um modelo em que o Estado tem posição proeminente. Claro que o modelo que se começa a se construir já incorpora as conquistas do liberalismo no campo dos direito individuais. Por isso o Estado Social preconiza um Estado ativo e até certo ponto intervencionista, sem que isso negue o conjunto de conquistas do cidadão frente ao Estado. Busca-se, como se vê, uma harmonia, um equilíbrio entre o interesse individual e o coletivo, ou seja, o indivíduo deve exercer seu direito dentro do limite da observância dos interesses individuais alheios e dos interesses coletivos, hoje ditos transindividuais ou intersubjetivos.

Durante este século, o Estado Social penetrou com seus dogmas, em maior ou menor escala, em todos os sistemas jurídicos ocidentais de orientação romano – canônica, buscando transformar a igualdade formal do liberalismo em uma igualdade concreta, material. Mantém, contudo, o Estado – Social o modelo capitalista, não buscando como as utópicas doutrinas socialistas, estabelecer uma igualdade de resultados, mas sim uma igualdade de possibilidades, através da promoção de um mínimo de condições de desenvolvimento humano dentro do contexto da sociedade. A Constituição de 1988 é bem o retrato dessa tentativa, embora se possa afirmar que muitos dispositivos de Constituições e leis infraconstitucionais anteriores fossem sensíveis aos valores sociais.

Algumas áreas do Direito, possuem institutos e dão margem à relações nas quais sobreleva a presença dos valores sociais, haja vista o interesse, direto ou indireto, de caráter público que então se verifica. Por vezes alguns institutos, comuns a várias áreas do Direito e presentes em relações de natureza absolutamente díspar, irradiam sua influência sobre uma vasta abrangência, trazendo consigo o caráter publicístico que lhes é inerente. A identificação dessas relações e institutos é fácil; basta verificar os diplomas legais para verificarmos a preponderância ou não de valores sociais, coletivos. São exemplos as leis 8078/90 e 8245/91, tratando respectivamente das relações de consumo e das relações locatícias de imóveis urbanos. Em numerosos dispositivos de ambas as leis salta aos olhos a presença direta ou indireta, de valores sociais. No campo locatício busca-se amainar o problema habitacional ao mesmo tempo em que se defere especial proteção ao inquilino. À moradia está fundamentalmente relacionada a dignidade humana, fundamento da República do Brasil conforme o inc. III do art. 1º da CF [36]. Na defesa do consumidor, contemplada constitucionalmente no art. 5º inc. XXXII objetiva promover um equilíbrio entre as partes visando diminuir as desigualdades econômicas. Vê-se como tônica a humanização do Direito, vindo bem a calhar a idéia do contratualismo já que o Estado deve servir a todos pois é de cada indivíduo que obtém legitimação. Se cada qual abre mão de sua auto – determinação, de sua soberania para o Estado, deve ele buscar agir em prol de cada qual e de todos.

Especificamente tratando do Direito Agrário, que é hoje ramo autônomo de estudo pelo alto grau de especialização que demanda, trata-se de uma área do Direito inteiramente permeada pela prevalência de valores sociais. Na sua base estão a propriedade do solo e a produção agropecuária ambas demandando a presença de interesse público. A função social da propriedade, contrapondo-se à noção da propriedade absoluta individualista preconizada pelo Códe de Napoleón, inspirada não só no liberalismo mas também na pandectologia, reconhece na propriedade imprescindível mecanismo de justiça social. A função social é um conceito complexo que não está relacionado exclusivamente à produtividade, mas também ao trabalho e à proteção do meio ambiente e do potencial produtivo do solo [37]. O Estatuto da Terra e o decreto que o regulamenta constituíram experiências pioneiras na introdução de valores sociais no Direito Positivo nacional e o fato de se terem produzido em uma época atribulada da história política nacional não impediu que obtivessem um padrão de excelência em seus dispositivos, sintonizados com as mais modernas correntes contemporâneas.

Os contratos agrários por seu turno constituem relações jurídicas de natureza privada nas quais porém verifica-se uma forte gama de interesses públicos. Destarte o contrato agrário, tendo por objeto a exploração da terra e a produção agropecuária coloca-se em íntima ligação às políticas governamentais, as quais encontram um importante mecanismo de atuação na disciplina de tais contratos. Isto posto, inserem-se os contratos agrários dentre as relações jurídicas especiais que, sem perderem o caráter privado, demandam intervenção de disciplina publicística, tal como as relações de consumo e locatícias, dada a sua especial configuração. Esta disciplina publicística toma múltipla forma e variado conteúdo em toda a disciplina dos contratos agrários, tornando relativo e condicionado o dogma da liberdade contratual e enfraquecendo o dogma do "pacta sunt servanda", o que representa um novo enfoque nas relações privadas dessa espécie e um critério orientador para o julgador.

Verificamos que a função social da propriedade é um princípio solidamente assentado sobre uma base doutrinária e legislativa, tendo sido erigido em princípio constitucional como se pode atestar em várias passagens de nossa constituição. Como a propriedade é um instituto de vasta aplicação jurídica o princípio da função social, inserindo-se no conteúdo da propriedade, irradia efeitos por igual extensão, atuando porém mais intensamente em algumas áreas capitais. O jurista moderno não pode se alhear a esse novo enfoque que se dá ao instituto da propriedade, mormente o agrarista, tanto mais quando vivemos sérios problemas de distribuição de terras e graves tensões no campo. Da correta compreensão da função social da propriedade, depende indubitavelmente a atuação do jurista, qualquer que seja a atividade a ser desenvolvida. Esta é apenas uma singela contribuição nessa busca.


NOTAS

01. Luiz Ernani Bonesso de Araújo, Acesso à Terra no Estado Democrático de Direito, Ed. URI, 1998, p. 22. Refere-se às atividades da burguesia.

02. Idem ibidem, op. cit., p. 23.

03. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 9ª ed., 1992, p. 103, n. 14.

04. Elias Dias, Estado de Derecho y Sociedad Democratica, apud, José Afonso da Silva, op, cit., p. 105.

05. Luiz Ernani Bonesso de Araújo, Acesso à Terra no Estado Democrático de Direito, cit., p. 28.

06. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 105.

07. Pedro Cáceres, História Geral, São Paulo, Ed. Moderna, 1992, p. 15.

08. Cf. Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, v. II, p. 117, apud Luiz Ernani Bonesso de Araújo, op. cit., p. 57. Ver ainda, Ismael Marinho Falcão, Direito Agrário Brasileiro, Edipro, 1995, p. 207.

09. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 245.

10. Conforme Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo LIII, § 5500, n. 5, p. 71: "A expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado de fato’ e ‘estado de direito’ porém não ‘abuso de fato’ ou ‘abuso de direito’. Abusa-se de algum direito, do direito que se tem..."

11. Cf. José Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, Forense, 10ª ed., v. II, n. 183, p. 455.

12. Leon Duguit apud Ismael Marinho Falcão, Direito Agrário Brasileiro, cit., p. 208.

13. Antônio C. Vivanco apud Paulo Torminn Borges, Institutos Básicos do Direito Agrário, Saraiva, 8ª ed., 1994, p. 8.

14. José Cretella Junior, Comentários a Constituição Brasileira de 1988, Forense Universitária, 2ª ed., 1990, v. I, n. 216, p. 302.

15. Luiz Ernani Bonesso de Araújo, Acesso à Terra no Estado Democrático de ireito, cit., p. 66 e 68.

16. Luciano de Souza Godoy, Direito Agrário Constitucional, O Regime da Propriedade, Atlas Jurídica, São Paulo, 1998, p. 29.

17. Direito Agrário, Renovar, 1994, p. 81.

18. Cf. Paulo Afonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros, 7ª ed., 1998, os. 46 e 206 a 210.

19. Fernando P. Brebbia, Derecho Agrario y Derecho Ambiental in Direito Agrário no Mercosul, EDUCP, 1998, p. 21.

20. Vivanco, Teoria do Derecho Agrario, p. 200, apud, Rafael Augusto de Mendonça Lima, Direito Agrário, Renovar, 1994, p. 73.

21. Vivanco, op. cit., p. 471, apud Paulo Torminn Borges, Institutos Básicos do Direito Agrário, cit., p. 8.

22. Graciela Beatriz Rojas Rojas, La Función Social e el Régimen de Expropriación de Inmuebeles Rurales, in Direito Agrário no Mercosul, cit., p. 324.

23. Adolfo Gelsi Bidart, Un Aspecto de Derecho Agrario y Ambiente, Direito Agrário no Mercosul, cit., p. 345 – 346.

24. Paulo Torminn Borges, Institutos Básicos do Direito Agrário, cit., p. 2.

25. José Cretella Junior, Comentários a Constituição Brasileira de 1988, cit., p. 299.

26. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 244.

27. Idem ibidem, op. cit., p. 246.

28. Idem ibidem, op. cit., p. 690.

29. Ismael Marinho Falcão, Direito Agrário Brasileiro, cit., p. 212.

30. Luiz Ernani Bonesso de Araújo, Acesso à Terra no Estado Democrático de Direito, cit., p. 81.

31. Paulo Torminn Borges, Institutos Básicos do Direito Agrário, cit., p. 9.

32. José Bezerra Costa, Arrendamento Rural, Direito de Preferência, AB Editora, 1993, p. 30

33. Paulo Torminn Borges, Institutos Básicos do Direito Agrário, cit. n. 130, p. 89.

34. Idem ibidem, op. cit., n. 158, p. 107.

35. José Bezerra Costa, Arrendamento Rural, Direito de Preferência cit., p. 64 – 65.

36. Recente emenda constitucional, de número 26, de 14/02/2000, vigorando desde a data de sua publicação, alterou o art. 6º da CF para incluir dentre os direitos sociais a moradia.

37. A proteção ambiental que encontrava acolhida em dispositivos esparsos de diversas leis é hoje uma realidade consagrada em leis especificas, podendo-se falar de um direito ambiental. Exemplificativamente citam-se leis 6938/81, 7804/85, 9433/97 e 9605/98. A própria CF destina diversos dispositivos ao assunto.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4125. Acesso em: 19 abr. 2024.