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O princípio da monogamia e o concubinato adulterino

O princípio da monogamia e o concubinato adulterino

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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Processo histórico de delineamento da família; 2.1. Origem da família; 2.2. Círculos sociais e família; 2.3. O núcleo familiar e a sua concepção hodierna; 2.3.1. A dignidade da pessoa humana; 2.3.2. A igualdade entre os cônjuges; 2.3.3. A ideologia do afeto; 3. O princípio jurídico da monogamia; 4. O concubinato; 4.1. Conceito; 5. O concubinato adulterino; 5.1. Natureza jurídica; 6. Conclusão.


01. INTRODUÇÃO

A concepção acerca da família sofreu significantes variações ao longo dos tempos, tendo esta sido moldada conforme os anseios de cada época. Neste processo evolutivo, algumas das suas características foram preservadas, outras, por não mais se adequarem à realidade social, foram superadas. Tal processo de adaptação resultou no que hoje se entende por família.

Etapa importante do referido processo evolutivo ao qual a família vem se submetendo fora representada pelas inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, que conferiram status de família à união estável e aos núcleos monoparentais, pondo-se, desta forma, fim ao conceito matrimonializado de família. Neste diapasão, a afetividade, consubstanciada com a estabilidade (relacionamentos duradouros, o que exclui os envolvimentos ocasionais) e a ostensibilidade (apresentação pública como unidade familiar) passam a servir de lastro para a conceituação da família contemporânea.

Em face da evolução jurídica verificada, surgiu no cenário jurisprudencial e doutrinário posicionamentos divergentes no que pertine ao concubinato adulterino. Tais divergências deram azo às seguintes indagações, a serem respondidas pelos juristas pátrios: Continua vigorando o princípio da monogamia? Pode-se rotular de família os envolvimentos concubinários existentes em paralelo ao casamento ou à união estável? Devem-se atribuir efeitos a estas modalidades de envolvimento afetivo? Em caso afirmativo, quais efeitos? Em torno desta problemática foram desenvolvidas as linhas que se seguem.

Os questionamentos antes enumerados refletem o estado de perplexidade em que se encontram os estudiosos do Direito de Família em face das novidades introduzidas neste ramo. As alterações foram significativas, todavia, desconhecem-se ao certo os seus limites. Portanto, com o fito de se solidificar as novas fronteiras impostas ao Direito de Família, bem como visando a evitar interpretações anárquicas, descomprometidas com uma visão sistemática, há de se enfrentar o tema com cautela.


2. PROCESSO HISTÓRICO DE DELINEAMENTO DA FAMÍLIA

A família, na qualidade de núcleo básico de estruturação da sociedade, representa o resultado da inter-relação dos homens, sendo que adquire um formato compatível com os anseios de cada época. Os seres humanos, norteados pela busca da sobrevivência e pelo desejo de alcançar a felicidade, procuram eleger modelos de organização social que se coadunem com as suas pretensões. Isto explica as alterações sofridas pela família ao longo da história.

A evolução humana é marcada por processos sociais de adaptação ao meio. Estes são fatores perceptíveis que possuem o condão de influir nos rumos a serem tomados pela sociedade. Pontes de Miranda (2001, v.1, p. 47) enumera sete processos sociais de adaptação, quais sejam, o religioso (a caridade, a piedade, o devotamento); o moral (critério do ético e do não-ético); o estético (valores de beleza); o gnoseológico (conhecimento, ciência); o jurídico (justo, injusto, ordem extrínseca); o político (organização, administração pública, ordem intrínseca) e o econômico (útil, inútil: produção da riqueza).

Dentre os fatores acima elencados, destacam-se, no que se refere à estruturação da família, os aspectos religioso, econômico, moral e, por via de conseqüência, o jurídico. Estes, conforme se demonstrará ao longo da exposição, foram e continuam sendo determinantes no processo de definição da estrutura familiar. Giselda Hironaka (1999, p.08) menciona também o fator instintivo, representante da energia sexual, aspecto de relevância impar para a análise da conformação da família.

Constata-se que, não obstante ter sido o núcleo familiar alvo de drásticas modificações no decorrer da sua existência, algumas das suas características sobreviveram à influência dos processos adaptativos. Há, desta forma, a perpetuação das características que mantém a sua funcionalidade, sendo estas aproveitadas pelas gerações vindouras. De outra parte, no tocante aos pontos que não se coadunam com os novos paradigmas sociais, estes são eliminados da estrutura familiar. A existência do indigitado elo, que confere à família características transcendentais, justifica a digressão histórica que se passa a fazer.

2.1. A ORIGEM DA FAMÍLIA

Identifica-se na evolução humana, conforme leciona Rodrigo da Cunha Pereira (1997, p.18), três etapas distintas: o estado selvagem, a barbárie e a civilização. Tais fases da existência humana são divididas com base em dados históricos. Assim sendo, no estado selvagem, os seres humanos garantiam a sua sobrevivência diretamente da natureza, tanto pela coleta de frutos quanto pela caça. Em seguida, na barbárie, passa a ser introduzida a cerâmica, a domesticação de animais e a agricultura, acarretando a sedentarização. Por último, é instaurada a dita civilização, na qual se destaca a industrialização e a arte.

Dentro do citado processo evolutivo, verifica-se, desde os tempos mais remotos, a existência de núcleos familiares. A fim de identificar quais os moldes originariamente empregados à família, foram desenvolvidas teorias, tendo maior destaque as seguintes: a teoria da monogamia originária, a da promiscuidade primitiva e a teoria das uniões transitórias (cf. MIRANDA, 2001, v.1, p. 62/64).

A teoria da monogamia originária foi desenvolvida e defendida por muitos zoólogos, incluindo Charles Darwin. Os seus defensores acreditam ser o amor entre os casais, bem como entre pais e filhos, dados psicológicos irresistíveis, concluindo, por conseguinte, que a espécie humana sempre foi regida por este impulso instintivo. Tal teoria desconsidera o aspecto sexual, o qual incute no homem o desejo de variar, a atração pela novidade, que, caso fosse observado, poria em questão os seus fundamentos. Vislumbra-se, portanto, no amor filial a razão de ser da família, tendo sido esta, já nos primórdios, instituída sob a forma monogâmica.

Tomando por referência a prática de algumas espécies animais, desenvolveu-se a teoria das uniões transitórias. De acordo com esta, o homem e a mulher permaneciam juntos apenas por algum tempo após o nascimento do filho. A teoria em comento apóia-se em premissas as quais são relativizadas pela sociologia de certos grupos animais, nos quais não há tal permanência, ou o par sexual continua ligado, a despeito do desaparecimento ou do afastamento dos filhos.

Outros defendem a teoria da promiscuidade primitiva. Estes, conforme demonstra Sérgio Resende de Barros (2001a, p.05), com muita procedência, identificam um momento originário no qual inexistiam regras (anomia), imperando a promiscuidade absoluta. Esta fase teria sido seguida pelo matriarcado, vez que os agrupamentos familiares só podiam ser identificados pelo lado da mãe, que, ao contrário do pai, era sempre certa.. Outro fator apontado como justificativa para a instituição, a priori, do matriarcado seria a preponderância da mulher no terreno econômico-profissional, acarretando, consequentemente, a prevalência da monogamia. Isto por se entender ser este o modelo familiar preferido pelas mulheres. O patriarcado seria o último estágio, o qual se estendeu até os dias atuais.

Em consonância com a última das teorias, tem-se, em um primeiro momento, a prevalência da atração natural entre homens e mulheres como motivação das relações sexuais. Trata-se do que as tribos latinas denominavam affetio ou affectus, sendo estas "...palavras compostas da preposição ad, que significa para, e de uma forma nominal do verbo facere que significa fazer. O significado literal – feito para – traduz o fato de ser ou estar um feito para o outro, mutuamente." (BARROS, 2001a, p.06). Desta forma, ter-se-ia no afeto o fundamento dos primeiros núcleos familiares.

2.2. CÍRCULOS SOCIAIS E FAMÍLIA

O homem tem a sua existência marcada pela vida em sociedade, o que implica, obrigatoriamente, na interação com seus semelhantes. O fenômeno da interação humana, o mesmo que dá origem à família, ocorre no interior de círculos sociais. Tais círculos sociais, por sua vez, têm a sua conjuntura alterada de acordo com as peculiaridades de cada ocasião histórica. Oportuna é a análise destes modelos organizacionais a fim de se compreender o que levou a família a adotar as características hodiernamente perceptíveis.

Em termos de classificação, os círculos sociais são distinguidos de acordo com a abrangência que possuem. Assim sendo, verifica-se a existência de círculos mais e menos abrangentes, sendo que os de menor abrangência estão contidos nos de maior.

Pelo que indica os estudos antropológicos, as sociedades primitivas eram organizadas em clãs ou gentes. Nestes círculos sociais, os indivíduos se consideravam parentes uns dos outros, isto em função da crença de que existia uma ascendência comum, qual seja, o tóteme ou totem. Oportuna é a citação dos esclarecimentos prestados por Rodrigo da Cunha Pereira em relação à matéria em análise:

Totem é um animal ou, raramente, um vegetal, ou um fenômeno natural (chuva, água, por exemplo), ou mesmo um objeto, que mantém uma relação peculiar com o clã, sendo, pois, o objeto de tabus, proteção e deveres particulares. O totem é o antepassado comum do clã, ao mesmo tempo que é o espírito guardião e auxiliar. Cada clã possui seu totem, e os seus integrantes têm a obrigação sagrada de não destruí-lo. Na relação de subordinação ao totem está a base de todas as obrigações sociais e restrições morais das tribos. Nos lugares em que se encontram totens, havia lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo clã, com forte ligação entre totemismo e exogamia, sendo esta ordenação sagrada de origem desconhecida. (PEREIRA, 1997, p. 21/22)

Ainda dentro da lógica totêmica, em um âmbito mais abrangente, identifica-se a fratria ou cúria. Esta resultava da união de clãs em derredor de um totem comum. Com esta, amplia-se a lei da exogamia, vedando-se o envolvimento entre homens e mulheres que pertencessem a clãs derivados de fratria comum.

Com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, surgem as tribos. Estas, formadas por fratrias ou cúrias que, por sua vez, se constituíam de clãs ou gentes, foram se aglutinando e se estabelecendo em determinadas áreas, passando, com o tempo, a se apropriarem delas em caráter definitivo. Destes terrenos eram colhidos e cada vez mais produzidos, pelo trabalho, os bens indispensáveis à sobrevivência (cf. BARROS, 2001a, p.06).

Com a sedentarização, isto é, a partir do momento em que os grupos humanos passam a permanecer, em caráter definitivo, em determinadas áreas, o fator geográfico ganha maior relevância, passando a servir de critério na definição dos núcleos familiares, em detrimento da referência totêmica antes adotada. A importância da terra para a sobrevivência das coletividades humanas foi o que justificou o aumento da preocupação em se manter a propriedade do território ocupado entre os membros do grupo. Com isto, segundo Pontes de Miranda (2001, v.1, p. 55), "em vez de mística, torna-se territorial a soberania".

Com o intuito de perpetuar a propriedade do território ocupado nas mãos dos membros da família que o habitava, impôs-se alterações nos modelos sociais de relacionamento. Com este objetivo, foram criados mecanismos capazes de garantir a hereditariedade, ou seja, de se certificar a procedência dos filhos concebidos pelas mulheres integrantes das famílias gentílicas. Dentro desta ótica, surge a matrimonialização e a patrimonialização das relações sexuais, consistindo estas em adaptações introduzidas no ambiente familiar com o escopo de se atingir a garantia da hereditariedade e a manutenção dos territórios ocupados.

2.3. O NÚCLEO FAMILIAR E A SUA CONCEPÇÃO HODIERNA

Na atualidade, a família tem sido alvo de profundas reflexões, as quais vêm resultando em modificações no modo de pensá-la e defini-la. Não se trata de se questionar a instituição familiar em si, mas, sim, a forma que adquiriu como resultado do processo histórico antes examinado.

Conforme demonstrado, a família tende a se moldar à realidade social de cada época. Com a imposição legal da igualdade entre homens e mulheres, bem como em virtude da valorização da pessoa humana, constatou-se a necessidade de se promover modificações no modelo familiar herdado de Roma, que se propagou na história, impondo as suas características até os dias atuais, certo que com menor intensidade. A reformulação do conceito de família, desta forma, visa atender às inovações ocorridas no cenário social.

O momento atual, portanto, no que concerne ao Direito de Família, é de transição. Busca-se consolidar um novo formato a ser conferido à família, tendo o ordenamento jurídico pátrio passado a sofrer alterações significantes, a fim de se adequar aos novos anseios da sociedade. Neste diapasão, a Constituição Federal de 1988 representa um marco evolutivo nesse processo de adaptação, haja vista que ampliou o conceito de família, passando a servir de norte para todas as normas infraconstitucionais.

No capítulo da Constituição Federal dedicado à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, o qual abarca os artigos 226 ao 230, verifica-se que a tutela jurídica, antes dedicada apenas ao casamento, passa a considerar tanto as relações familiares dele decorrentes quanto outras modalidades, quais sejam, a união estável (art. 226, § 3º) e as famílias monoparentais (art. 226, § 4°). A primeira consiste, em conformidade com o artigo 1.723 do novo Código Civil, na união entre homem e mulher, caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o intuito de constituir uma família. A família monoparental, por seu turno, caracteriza-se pela vida em comum de qualquer dos pais com seus descendentes.

Referindo-se à supramencionada norma fundamental, Gustavo Tepedino assim se manifesta:

A Constituição Federal, centro reunificador do direito privado, disperso na esteira da proliferação da legislação especial, cada vez mais numerosa, e da perda de centralidade do Código Civil, parece consagrar, em definitivo, uma nova tábua de valores. (Tepedino, 2001, p. 350).

Valendo-se da expressão utilizada pelo consagrado civilista, com a inserção de uma nova tábua de valores no ordenamento jurídico, por intermédio da Constituição Federal de 1988, tornou-se imprescindível, a fim de atender a tais inovações, a reformulação do conceito de família, isto para evitar a ocorrência de conflitos dentro do sistema.

O referido conjunto de valores, que hoje prevalece por imposição constitucional, tem por base de sustentação, principalmente, a valorização da pessoa humana, implicando, consequentemente, na garantia da igualdade entre homens e mulheres.

2.3.1. A dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal vigente, logo no seu artigo 1º, estabelece os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Consistem estes em pontos de partida para todas as outras normas constitucionais, e, por conseguinte, devem influir no teor de todas as normas infraconstitucionais. Dentre outros aspectos, estabeleceu-se, no seu inciso III, a dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Brasileiro.

Em face do referido princípio, tem-se, conforme salienta Alexandre de Moraes (2003, p. 50), o afastamento da idéia de prevalência das concepções transpessoalistas do Estado e da nação que possam vir a ofuscar a liberdade individual. A dignidade da pessoa humana se refere a um valor espiritual e moral inerente ao indivíduo e que "...se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e trás consigo a pretensão de respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar".

Assim sendo, conforme entende Cristiano Chaves (2003, p.116/117), ao se adotar o princípio da dignidade da pessoa humana, por representar o mais importante valor reconhecido pela ordem jurídica brasileira, o ser humano, conseqüentemente, foi elevado ao centro de todo o sistema jurídico. Isto significa que as normas devem atender as suas necessidades e viabilizar sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade.

Portanto, não é mais suficiente a simples previsão do direito à vida, exigindo-se a garantia de uma vida digna. Tal evolução valorativa obriga os civilistas modernos a adotar uma nova postura, tanto em relação à interpretação quanto à aplicação de normas e conceitos jurídicos, assegurando assim a vida humana de forma integral e prioritária.

2.3.2. A igualdade entre os cônjuges

As normas jurídicas pertinentes à família, desde os tempos mais longínquos, vinham perpetuando toda sorte de desigualdade, tanto entre os filhos quanto, principalmente, entre os cônjuges. A estrutura patriarcal restou por disseminar preconceitos, os quais passaram a representar a regra das relações jurídicas travadas sob o manto deste ramo do direito, consolidando assim a prevalência da figura masculina.

Nem mesmo com o advento do Liberalismo, movimento este fundamentado, dentre outros princípios, no da igualdade, conseguiu-se reverter a realidade desigual incrustada no ambiente familiar. O referido movimento político-ideológico, não obstante ter conseguido estabelecer a igualdade formal nas relações sociais e econômicas, em nada atenuou a opressão do homem em relação à mulher. Estabeleceu-se, conforme indica Paulo Lobo (in: PERREIRA, coord., 1997, p.222), "a liberdade do ter mas não a do ser".

O processo histórico rumo à obtenção da igualdade entre homens e mulheres tem se desencadeado de forma muito lenta. Esta assertiva pode ser comprovada, por exemplo, ao se considerar que, no Brasil, até 1962, a mulher que se encontrasse em gozo do matrimônio era considerada relativamente incapaz, situação alterada apenas com o advento do Estatuto da Mulher casada, documento jurídico que afastou tal discrepância. Portanto, praticamente dois séculos após a Revolução Francesa ainda se admitia a imposição legal de um status inferior à mulher.

A valorização da dignidade humana e a sua previsão como fundamento da Constituição Federal vigente, conforme visto no item anterior, impôs a desestruturação da hierarquia familiar até então arraigada nas relações mantidas entre os diferentes sexos. Isto porque uma existência digna não se coaduna com a imposição de hierarquias entre homens e mulheres. Não por outro motivo, a própria Constituição, no seu artigo 226, § 5°, estabelece que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher".

Em consonância com o texto constitucional, o novo Código Civil, confirma, reiteradamente, a extinção da hierarquia conjugal, conforme se depreende dos artigos abaixo citados:

Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

[...]

Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.

Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.

[...]

Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.

Art. 1631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.

Em face do exposto, não resta qualquer dúvida quanto à igualdade de direitos e deveres hoje vigentes nas relações travadas entre homens e mulheres. Tanto é assim que, na relação conjugal, a vontade do homem e da mulher encontram-se no mesmo patamar hierárquico, havendo a necessidade de se convocar o Estado Juiz nos casos em que houver divergências.

2.3.3. A ideologia do afeto

Os atos e conceitos adotados pela humanidade encontram-se justificados por um conjunto de idéias, o qual reflete os interesses e anseios de um determinado grupo ou indivíduo. Há, no íntimo dos agentes sociais, crenças e pensamentos que os levam a optar por determinados comportamentos e traçar metas, sempre com o intuito de atingir um ideal. Este conjunto de princípios que impulsiona o homem e justifica os seus atos é denominado de ideologia.

Portanto, os fenômenos sociais, dentre eles a família, sofrem influência direta da ideologia prevalente, sendo esta responsável pela definição do seu conceito e justificativa dos moldes que possui. Assim sendo, para se superar o conceito tradicional de família, a fim de se admitir outros modelos familiares, a exemplo da união estável da família monoparental, tem-se buscado alterar a sua base ideológica de sustentação.

A ideologia tradicional da família, a qual vem sendo superada, fundamenta-se no seguinte raciocínio:

... o elemento basilar da sociedade não é o indivíduo, mas sim a entidade familiar monogâmica, parental, patriarcal, Isto é, a tradicional família romana, que veio a ser recepcionada pelo cristianismo medieval, que reduziu a entidade familiar à família nuclear e consagrou como família-modelo a Sagrada Família: pai (José). Mãe (Maria) e filho (Jesus). (BARROS, 2001b, p.08)

A Constituição Federal de 1988, embora tenha buscado tutelar o indivíduo, confere à família, no artigo 226 caput, o título de base da sociedade. Dentro desta lógica, teríamos uma sociedade constituída por famílias e não por indivíduos, o que, conforme demonstrado ao se analisar o princípio da dignidade da pessoa humana, não parece ser uma conclusão verdadeira.

Deveras, a norma jurídica, ao tutelar a família, o faz de forma mediata, tendo por objetivo maior garantir um ambiente saudável para o desenvolvimento dos indivíduos. Antes se acreditava que as uniões matrimonializadas eram as únicas capazes de conferir às pessoas uma existência digna, raciocínio este já ultrapassado, vez que a própria Constituição Federal de 1988 conferiu à união estável e aos núcleos monoparentais o status de família. Confirma-se, desta forma, a quebra do modelo único antes vigente. Saliente-se, conforme atesta Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p.43), que a liberdade de escolher qual o modelo familiar que se pretende adotar, por si só, consiste em uma faceta do princípio da dignidade da pessoa humana.

A admissão de outros modelos familiares que não o lastrado no casamento é resultado da alteração da base ideológica de sustentação da família. Procura-se hoje considerar a presença de vínculo afetivo como fator determinante para a enumeração dos núcleos familiares. O afeto que, conforme já demostrado, havia sido desprezado em razão de fatores históricos, volta, hodiernamente, a ganhar papel de destaque no Direito de Família. Busca-se identificar a existência da família sempre que estejam presentes os elementos afetividade, estabilidade (relacionamentos com duração significante, estando excluídos os envolvimentos ocasionais) e a ostensibilidade (a apresentação pública como unidade familiar).

No que concerne ao novo tratamento conferido à afetividade pelo ordenamento pátrio, Paulo Luiz Netto Lôbo, mais uma vez, se posiciona com muita propriedade, a saber:

O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação de fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas.

[...]

Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, a afetividade, necessário para a realização pessoal de seus integrantes. (LÔBO, 2002, p. 46/47)

Admitida a afetividade como elemento essencial dos vínculos familiares, resta saber até que ponto os relacionamentos humanos nos quais tal sentimento esteja presente podem vir a ser rotulados de família, sendo, consequentemente, abarcados pelas normas jurídicas que tutelam os indivíduos que a constituem. Isto é, o próximo desafio consiste em definir qual a atual abrangência do Direito de Família.


03. O PRINCÍPIO JURÍDICO DA MONOGAMIA

Familiaristas de renome nacional têm defendido a adoção de um conceito extremamente amplo para a família, identificando a sua presença em toda e qualquer relação em que esteja presente o elemento afetividade. Buscam, destarte, afastar a utilização de qualquer critério que possa resultar em eventual discriminação [1]. Contudo, ao assim procederem, acabam desrespeitando limites impostos pelo próprio sistema. A lógica adotada pelos referidos autores autoriza a atribuição do status de família aos envolvimentos concubinários existentes em paralelo ao casamento ou união estável, afrontando, por conseguinte, o vigente princípio da monogamia.

Afastar os preconceitos que a tanto se encontram incrustados no Direito de Família é um compromisso que os estudiosos contemporâneos devem assumir. Todavia, tal máxima não deve legitimar comportamentos precipitados, os quais resultam no atropelo das normas jurídicas estabelecidas. Assim o é pelo fato de que algumas das limitações às quais o referido ramo do direito se submete não são fruto de preconceitos, e sim de princípios jurídicos vigentes, mais precisamente, no caso em apreço, do já citado princípio jurídico da monogamia.

Ao longo do processo evolutivo ao qual a família se submeteu, algumas das suas características se tornaram obsoletas, tendo, em razão disto, sido descartadas. Foi, por exemplo, o que ocorreu com a prevalência da figura masculina e com a visão matrimonializada da família. Por outro lado, determinados elementos, certamente por continuarem a se coadunar com os anseios sociais, foram mantidos pelo legislador. Dentre os elementos que foram mantidos, encontra-se a monogamia.

Com efeito, entende-se por monogamia o sistema de constituição familiar pelo qual o homem possui uma só esposa ou companheira e a mulher apenas um único marido ou companheiro.

Deveras, o princípio da monogamia consiste em uma premissa indiscutível, sendo que toda a estrutura do Direito de Família, ao ser construída, tomou-o como referência. Tanto é assim que a melhor doutrina sequer questiona a sua existência. [2] A título de ilustração, citam-se, respectivamente, Washington de Barros Monteiro e Rodrigo da Cunha Pereira, autores que, apesar de representarem gerações distintas, comungam o mesmo entendimento, senão vejamos:

Em todos os países em que domina a civilização cristã, a família tem base estritamente monogâmica, que, no dizer de Clóvis, é o modo de união conjugal mais puro, mais conforme os fins culturais da sociedade e mais apropriado à conservação individual, tanto para os cônjuges como para a prole. A monogamia constitui a forma natural de aproximação sexual da raça humana. (MONTEIRO, 2001, v.2, p.54)

Rodrigo da Cunha Pereira, por sua vez, defende:

Começa-se, então, a fazer distinções através das expressões "concubinato puro" e "concubinato impuro". Essas expressões veiculam estigmas morais com as quais não se pode concordar. Porém, é necessário fazer uma distinção entre concubinato adulterino e não adulterino. Tal distinção não tem a função de discriminar ou de "moralizar". A importância desta distinção está em manter a coerência em nosso ordenamento jurídico com o princípio da monogamia. Se assim não o fizéssemos, estaríamos destruindo um princípio jurídico ordenador da sociedade. Todo o Direito de Família está organizado em torno desse princípio, que funciona, também, como um ponto-chave das conexões morais. (DIAS e PEREIRA, 2002, p. 231)

Do exposto, constata-se que a monogamia, ao contrário do que alguns possam pensar, não consiste em simples regra atinente à moral. Trata-se, em verdade, de dogma imposto pelo próprio ordenamento jurídico, e, por conseguinte, não se resume a uma sugestão proposta aos indivíduos.

A moral, como é sabido, estabelece regras indicativas, cujo descumprimento resulta apenas em reprimendas por parte da sociedade ou em um possível desconforto pessoal, em razão de se estar agindo em desconformidade com o consenso individual e coletivo. As normas jurídicas, de outra parte, são impositivas, não sendo oferecida escolha, e a conduta que as afronte implica na configuração do ilícito, seja de natureza penal ou civil.

No que pertine à monogamia, a sua não observação resulta na violação de normas tanto de natureza civil, quanto penal.

No plano cível, o novo Código Civil estabelece, no seu artigo 1.521, VI, a existência de vínculo matrimonial anterior como impedimento para casar, ou seja, prevê que as pessoas unidas por vínculo matrimonial encontram-se impedidas de celebrar outro casamento. Ao se referir à união estável, o legislador, no artigo 1.723, § 1° do mesmo diploma legal, adota a mesma regra, ao estabelecer que "a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso da pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente". Observe-se a pertinente ressalva contida na última parte da norma citada, a qual permite o reconhecimento de união estável nos casos de separação judicial ou de fato. Fica evidente que se objetiva evitar apenas a ocorrência de envolvimentos concubinários concomitantes ao efetivo gozo do casamento ou da união estável, não se buscando tutelar, portanto, o matrimônio per si.

O desrespeito ao modelo monogâmico implica, nos casos de duplo casamento, a nulidade de pleno direito daquele realizado por último. Em se tratando de posterior envolvimento afetivo não oficializado, a existência e gozo efetivo de prévio casamento ou união estável desautoriza seja este envolvimento abarcado pelas previsões legais pertinentes à união estável.

No âmbito do direto penal, ramo reservado à tutela dos bens jurídicos tidos como fundamentais para a sociedade, mantêm-se as normas voltadas à preservação do modelo monogâmico. Malgrado os posicionamentos favoráveis à descriminalização da bigamia e do adultério, tais condutas continuam tipificadas, respectivamente, nos artigos 235 e 240 do Código Penal. Aquele artigo impõe uma pena de dois a seis anos de reclusão a quem, sendo casado, contrair novo casamento. Este estabelece que a violação da fidelidade conjugal implica uma pena de quinze dias a seis meses de detenção.

Em face do exposto, surge a necessidade de se compreender o instituto do concubinato, nos interessando, mais especificamente, o concubinato adulterino. Isto a fim de se definir, com coerência, a sua posição dentro do ordenamento jurídico.


04. O CONCUBINATO

4.1. CONCEITO

A expressão concubinato, etimologicamente, deriva do vocábulo latino concubinatus, o qual, ainda na antigüidade, significava mancebia, amasiamento, abarregamento. Verifica-se também uma influência direta do verbo concumbo, de origem grega, que indica a ação de dormir com outra pessoa, copular, ter relação carnal, estar na cama (AZEVEDO, 2001, p.2001).

Da referida definição etimológica derivam duas vertentes conceituais distintas. A primeira é dotada de um sentido lato, restando por abarcar todas as modalidades de envolvimentos afetivos, entre homens e mulheres, que não estejam lastrados no casamento. Ou seja, sob uma ótica mais abrangente, é considerado concubinato toda e qualquer forma de união sexual livre. Conforme salienta Moura Bittencourt (1969, v.1, p.63): "No sentido amplo do concubinato, que desde a posse do estado de casado, com notoriedade e de longos anos, até a união adulterina, tudo se inclui na conceituação. Tudo, nesta ou naquela condição é concubinato".

Ao se esmiuçar a citada definição, vem a lume, em um plano mais detalhado, a segunda vertente conceitual. Nesta, pode-se identificar a presença de dois subgrupos dotados de características próprias, quais sejam, o concubinato puro ou honesto e o concubinato impuro, abrangendo este último o incestuoso e o adulterino.

Entende-se por concubinato puro a modalidade de envolvimento afetivo, entre homem e mulher, que obedeça aos ditames sociais. Trata-se de verdadeiro casamento não oficializado, vez que atende a todas as condições impostas à sua celebração, os envolvidos se comportam como se casado fossem, lhes faltando apenas o reconhecimento estatal.

O concubinato impuro, por sua vez, refere-se a todo e qualquer envolvimento afetivo, entre homem e mulher, que se estabeleça em afronta às condições impostas ao casamento, condições estas materializadas nos impedimentos matrimoniais. Isto é, será considerado impuro o vínculo mantido entre ascendentes e descendentes; afins em linha reta; entre o adotante e o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante; entre os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; e do adotado com o filho do adotante. Tais hipóteses, as quais encontram-se previstas no artigo 1521 do Código Civil, incisos I ao V, caracterizam o concubinato incestuoso.

Também é rotulada de impura a relação concubinária mantida entre o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte – Código Civil, art. 1521, VII. O mesmo ocorre em relação às pessoas que se encontrem no gozo de vínculo matrimonial. Estas, ao se relacionarem extramatrimonialmente, o farão pelo viés do concubinato impuro, mais especificamente, estarão a praticar o concubinato adulterino, isto em face da violação do impedimento previsto no artigo 1.521, VI do Código Civil.

Ressalte-se que, com o advento da Constituição Federal de 1988 e do novo Código Civil houve uma alteração na nomenclatura empregada às modalidades de concubinato. O concubinato puro passou a ser chamado de união estável, tendo sido elevado ao status de entidade familiar, restando o termo concubinato para todas as modalidades de concubinato impuro, conforme se depreende da análise do artigo 226, § 3º da Constituição Federal, combinado com os artigos 1.723, caput e § 1º; e 1.727 do Código Civil.

Mesmo tendo em vista a citada alteração de nomenclatura, para fins didáticos, é de grande valia a referência à classificação anterior, razão pela qual, ao longo do texto, será utilizada o termo concubinato adulterino.

Das diferentes modalidades de concubinato antes expostas, ter-se-á por objeto o concubinato adulterino.


05. O CONCUBINATO ADULTERINO

Já tendo sido abordadas, quando da conceituação do concubinato, as diferentes formas que este instituto pode vir a adquirir, cumpre, nesta oportunidade, nos atermos à questão controversa que se busca enfrentar, qual seja, a posição do concubinato adulterino – denominado apenas de concubinato pelo novo Código Civil – dentro do ordenamento jurídico pátrio.

Contudo, em face do emaranhado de casos concretos perceptíveis no meio social, os quais em muito se diferenciam, urge, de antemão, especificar qual o entendimento que se tem acerca do concubinato adulterino. Desta forma, espera-se obter uma clara individualização do tema sob análise, evitando que os casos variados, aos quais a doutrina e a jurisprudência fazem referência, possam vir a causar confusões.

Entende-se estar configurada a existência do concubinato adulterino nos casos em que se verifique a presença de envolvimento afetivo, entre homem e mulher, em paralelo ao casamento ou união estável. Ou seja, será concubinato adulterino a relação amorosa com terceira pessoa, mantida por homem ou mulher que se encontre efetivamente em gozo de casamento ou união estável. Para tanto, faz-se necessário também que o terceiro envolvido no triângulo amoroso tenha consciência da sua condição de amante e que seja possível se identificar, dentre as relações paralelas, aquela que, devido às circunstâncias, represente o núcleo principal.

Destarte, não há motivos para se considerar adulterino o relacionamento afetivo no qual um ou ambos os envolvidos encontrem-se separados de fato ou judicialmente, inclusive devido à expressa previsão contida no artigo 1.723, § 1º, do Código Civil vigente. O referido dispositivo legal estabelece não ser óbice à configuração da união estável o fato do companheiro, apesar de casado, não se encontrar efetivamente em gozo da relação matrimonial.

5.1. NATUREZA JURÍDICA

A definição da natureza jurídica do concubinato adulterino consiste no ponto nevrálgico de toda a abordagem que ora se realiza. Em verdade, trata-se de condição indispensável para se identificar a posição do modelo de relacionamento afetivo em comento dentro do ordenamento jurídico pátrio. O principal desafio consiste em verificar se tal instituto pertence ao direito de família.

Iniciando a perquirição de respostas para as indagações acima apresentadas, faz-se oportuna a referência ao posicionamento externado por Carlos Cavalcanti Albuquerque (2002, p. 04 e 09), para quem o concubinato adulterino consiste em uma espécie de entidade familiar, considerando a sua exclusão como uma afronta aos preceitos constitucionais. Portanto, para ele, tal modalidade de relacionamento afetivo encontra-se inserido no âmbito do direito de família.

Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p.53) também comunga do ponto de vista de que não se deve traçar distinções entre os núcleos fruto de envolvimento adulterino e as demais formas de entidades familiares. O referido autor, ao comentar acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça que determinou o fracionamento em partes iguais de indenização securitária entre a esposa e a concubina, as quais mantinham relacionamento concomitante com o de cujus, defendeu o acerto da decisão.

Na mesma linha de raciocínio, tem-se a tese recentemente defendida pela desembargadora Maria Berenice Dias ao apreciar a apelação cível n.º 70005330196, proveniente da comarca de Erechim/RS. Diante de um caso concreto em que restou comprovado o concomitante envolvimento afetivo do apelado com a sua legítima esposa e a sua amante, a magistrada, citando voto que proferira anteriormente, em julgamento no qual também fora relatora, defende a inclusão do concubinato adulterino como parte integrante do conceito legal de união estável, e, portanto, pertencente ao direito de família, nos seguintes termos:

Com o desenvolvimento da sociedade, o conceito de família sofreu uma profunda alteração, alteração esta a que foi sensível a jurisprudência que acabou se revelando como um fator decisivo para que as relações chamadas espúrias passassem a merecer o tratamento de concubinárias, sendo inseridas na órbita jurídica, acabando por serem alçadas à órbita constitucional como entidade familiar.

Ora, se agora ninguém mais identifica como família o relacionamento sacralizado pelo matrimônio, se o conceito de família alargou-se para albergar os vínculos gerados exclusivamente da presença de um elo afetivo, mister concluir que o amor tornou-se um fato jurídico, passando a merecer proteção legal.

Se agora mudaram os paradigmas da família, não mais se pode deixar de enlaçar no seu conceito todos os vínculos afetivos. Hoje, o toque que leva a inserir ou não o relacionamento no âmbito do Direito de Família é o afeto, independente da sacralização da união, da finalidade procriativa e até do sexo dos seus integrantes. Basta lembrar as famílias monoparentais para não se adentrar nos vínculos que prefiro chamar, não de homossexuais, mas homoafetivos.

Assim, merece ser reconhecido que se está frente a um novo conceito de família, em que basta a existência de um vínculo afetivo para assim nominá-la.

No entanto, para que se obtenha o reconhecimento de uma entidade familiar, nos moldes postos na lei, basta se identificar a presença dos pressupostos da lei, nos quais não se encontra nem a exclusividade e nem o dever de fidelidade para a sua configuração.

Sequer a Constituição Federal ou a legislação ora vigorante, que define a união estável (Lei 9.278/96), fazem qualquer distinção a respeito do estado civil do par ou estabelece a fidelidade ou exclusividade como pressuposto para o seu reconhecimento. Evoluiu o legislador ao não mais estabelecer como requisito à extração de efeitos jurídicos do vínculo afetivo a existência de impedimentos dos companheiros.

Igualmente, não distinguiu a lei o concubinato puro ou impuro, bem como jamais deixou de albergar este último, também chamado de adulterino, no conceito legal de união estável.

Portanto, nem a falta de convivência sob o mesmo teto nem a circunstância de um deles manter relacionamento, de qualquer natureza, com outra pessoa são impedientes para o reconhecimento da existência da união estável. (RIO GRANDE DO SUL.TJ/RS. 7ª Câmara Cível. Apelação cível n. 70005330196/2002. Relatora Des. Maria Berenice Dias. Porto Alegre, 07 de maio de 2003.)

Em que pese a autoridade da referida magistrada, com a devida vênia, não nos parece ser este o entendimento mais correto. Realmente, conforme antes exposto, o conceito de família vem sofrendo adaptações significativas, o que proporcionou o alargamento, mediante previsão constitucional, do rol dos modelos de relacionamentos tidos como pertencentes ao âmbito do direito de família, a exemplo do que ocorreu com a união estável e com os núcleos monoparentais. É certo também que o processo de transmutação pelo qual passa a família tem por principal justificativa a valorização do afeto, elemento este, atualmente, considerado fundamental. Todavia, tais premissas não possuem o condão de afastar a aplicabilidade do princípio jurídico da monogamia.

Com efeito, a conclusão a que chega a magistrada no voto acima citado – de que o ordenamento jurídico pátrio não estabelece como pressuposto para a configuração da união estável a exclusividade – soa um tanto descabida. Caso assim fosse, como se explicaria a previsão contida no artigo 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, que determina que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento? Certamente não será possível – em respeito ao artigo 1.521, VI do Código Civil – converter uma relação afetiva concubinária em casamento, e, por conseguinte, não nos parece poder ser considerada união estável o que não se pode converter em casamento. [3] A não ser que se aplique a mesma lógica para se concluir que não há exigência de exclusividade em relação ao casamento, o que soaria ainda mais ilógico, afrontando todos os argumentos, já mencionados, que dão suporte ao princípio da monogamia.

A atribuição do status de família à união estável partiu do pressuposto de que este modelo familiar deve tomar por referência as relações matrimonializadas, dispensando-se apenas o formalismo próprio do casamento. Isto porque a intenção do constituinte foi adequar o direito à realidade nacional e não promover uma revolução, de forma implícita, em toda a base de sustentação do Direito de Família. Não há como se admitir que um novo modelo, que deve observar os princípio aplicáveis a um anterior, possa vir a desvirtuar por completo o instituto paradigmático.

Deveras, a quebra do modelo matrimonializado de família consiste em uma verdade insofismável. Entretanto, a superação deste modelo único não implica a exposição do Direito de Família a toda e qualquer demonstração de afeto. A família, ainda que tenha se desvencilhado dos elementos religioso e formalístico, ainda carrega no seu bojo o elemento estabilidade. Constituir uma família ainda significa optar por uma relação estável, a qual é marcada pela comunhão de esforços em prol de um núcleo que transcende ao plano individual.

Neste diapasão, sem sombra de dúvidas, as relações adulterinas são causa de desestabilização das relações familiares. Isto é, consistem na negação do que se entende, no mundo ocidental, por família. O concubinato adulterino representa a prevalência de interesses individuais, os quais muitas vezes não passam de mera satisfação sexual, em detrimento do grupo, frustrando-se as expectativas tanto do consorte – entenda-se em sentido lato, a fim de abarcar a esposa, o marido, o companheiro ou a companheira – quanto dos filhos. Assim sendo, não há espaço no Direito de família para o concubinato adulterino.

Tanto é assim que o voto antes transcrito restou vencido. O desembargador José Carlos Teixeira Giorgis manifestou-se nos seguintes termos: "Como sustentado em outros votos, não consigo admitir a ocorrência de duas entidades familiares legitimadas, ou seja, dois casamentos, duas uniões estáveis ou uma união estável concomitante ao matrimônio." Já o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, complementando o julgamento, aduziu:

...não cabe o reconhecimento de união estável, sendo qualquer dos integrantes da relação casado, na constância do casamento.

[...]

Veja-se o art. 550 do Novo Código, que veda doações do adúltero ao seu cúmplice, sendo o prazo de dois anos para a sua anulação; art. 1642, inc. V, que autoriza que o cônjuge reivindique os bens doados ou transferidos pelo outro ao concubino, sem que para esta reivindicação necessite de autorização do outro, e, terceiro dispositivo, o art. 1.801, inc. III, que proíbe expressamente que o concubino de testador casado seja nomeado herdeiro ou legatário.

Ora, se desses dispositivos não se extrai a vedação do concubinato, que no Código é o concubinato adulterino, não atino o que seja vedação.

São regras claramente sancionatórias do concubinato, agora visto, legalmente no Novo Código, apenas como relação adulterina típica pela definição do art. 1.727, e que, por isso, não pode ser confundida com a entidade familiar merecedora da proteção jurídica ordenada pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal, ao menos que seja alterado o modelo monogâmico de família vigente, não apenas no Brasil, como em toda a civilização ocidental. (RIO GRANDE DO SUL.TJ/RS. 7ª Câmara Cível. Apelação cível n. 70005330196/2002. Relatora Des. Maria Berenice Dias. Porto Alegre, 07 de maio de 2003.)

A decisão citada não consiste em julgamento isolado. Em verdade, em outras oportunidades este mesmo entendimento já fora externado por magistrados brasileiros, no sentido denegar a inserção do concubinato adulterino no bojo do Direito de Família. [4]

A tese ora defendida também encontra sustentação na doutrina, sendo compartilhada por expoentes do Direito Civil pátrio, a exemplo do Professor Álvaro Villaça de Azevedo (2001, p. 211), para quem "o concubinato puro deve merecer, por parte do Estado, completa proteção e regulamentação legal, já o impuro ou concubinagem, não deve merecer apoio dos órgãos públicos e, mesmo, da sociedade."

No mesmo sentido se manifesta Rodrigo da Cunha Pereira. Valorizando o princípio da monogamia, considera incongruentes os argumentos que buscam atribuir guarida ao concubinato adulterino dentro do direito de família, senão vejamos:

[...] o direito não protege o concubinato adulterino. A amante, amásia, ou qualquer outra nomeação que se dê à pessoa que, paralelamente ao vínculo de casamento, mantém uma outra relação uma segunda ou terceira [...] ela será outra, ou outro, que não tem lugar em uma sociedade monogâmica. Alguns autores preferem nomear essas relações como "concubinato impuro", em oposição ao "concubinato puro", ou "honesto" [...] ou aqueles em que não há impedimento legal para o estabelecimento da relação. É impossível ao Direito proteger as duas situações concomitantemente, sob pena de contradizer todo o ordenamento jurídico.(PERREIRA, 1995, p. 74-75)

Cumpre salientar, devido aos estreitos laços que o direito de família mantém com outras searas do conhecimento humano – a exemplo da sociologia, filosofia, moral e religião –, o caráter jurídico dos argumentos antes elencados. Não se trata de iniciativa saudosista, impulsionada por uma eventual identificação e valorização da moral e dos bons costumes. Pelo contrário, trata-se de reconhecer os pontos nos quais o Direito de Família legitimamente evoluiu e redefinir as suas novas fronteiras, não desconsiderando a existência de uma base de sustentação que lhe confere identidade. Tal base de sustentação, na qual se encontra inserido o princípio da monogamia, impede que a família seja confundida com determinados modelos de envolvimento afetivo, a exemplo do concubinato adulterino.


06. CONCLUSÃO

As adaptações às quais o conceito de família fora submetido, ao longo de sua evolução histórica, possibilitaram que o afeto, elemento desconsiderado pelo modelo tradicional, voltasse a ocupar uma função relevante, dando origem ao que a doutrina chama de ideologia do afeto. Reconhecendo a importância do elemento afetividade, em detrimento do formalismo antes imperante, o constituinte de 1988 ampliou o conceito de família, a fim de nele englobar as uniões estáveis e núcleos monoparentais.

Todavia, atualizar o conceito de família não implica se desconsiderar todas as características do modelo anterior, e sim apenas desprezar os aspectos que não mais se coadunem com a realidade. Neste diapasão, a monogamia é um elemento que sobreviveu aos efeitos do tempo, tendo sido acolhido pela sociedade hodierna e, por esta razão, mantido pelo ordenamento jurídico pátrio.

Dentro deste quadro evolutivo, marcado pela valorização do afeto e superação de formalismos, conforme dito, preservou-se a vigência do princípio jurídico da monogamia, por se vislumbrar nele um dos sustentáculos de todo o Direito de Família ocidental. Isto porque o modelo monogâmico ainda é o que melhor atende às aspirações da sociedade contemporânea, garantindo a estabilidade necessária à educação da prole e ao desenvolvimento do homem na qualidade de agente econômico, político e científico.

Se no passado a monogamia consistia num meio de se garantir a descendência e, conseqüentemente, a manutenção do patrimônio entre os membros da família, hoje tal modelo se justifica pelos benefícios que propicia. Para se atingir uma existência digna, exige-se que as relações afetivas sejam dotadas de um mínimo de estabilidade, que, dentro da cultura ocidental, não há como ser atingida através da poligamia.

Neste contexto, o concubinato adulterino, por representar a negação ao princípio da monogamia, consiste em modelo de envolvimento afetivo não abarcado pelo Direito de Família, lhe sendo atribuído, em regra, apenas efeitos negativos. Vale dizer, a princípio, consta no ordenamento jurídico apenas normas desestimuladoras da prática do concubinato adulterino.


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Notas

1 Conferir Ivone Souza e Maria Berenice Dias (2001, p. 68), para quem: "A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana". No mesmo sentido, Paulo Luiz Netto Lobo (2002, p. 50/51): "Sujeitos dos deveres são o Estado, a família e a sociedade, que devem propiciar os meios de realização da dignidade pessoal, impondo-se-lhes o reconhecimento da natureza de família a todas as entidades com fins afetivos. A exclusão de qualquer delas, sob impulso de valores outros, viola o princípio da dignidade da pessoa humana."

2 Confirmando a assertiva, Orlando Gomes (2000, p. 93), In verbis: "O impedimento de vínculo deriva da proibição da bigamia. Não se trata, a rigor, de impedimento, não ser casado é um pressuposto para contrair núpcias justas e quem casado é não pode casar com outra pessoa qualquer. [...] O impedimento funda-se no princípio da monogamia." No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira (2002, v. 5, p.67), a saber: "Tendo em vista o tipo monogâmico dominante no mundo social, constitui impedimento a existência de um casamento anterior".

3 Neste sentido, BRASIL. Tribunal Regional Federal (2ª Região). 2ª Turma.. Apelação cível n.º 262934 – RJ (2001102010142708). Relator: Juiz Cruz Netto. 29 de maio de 2002. "Não se pode admitir que uma constituição que traduz em capítulo especial a preocupação do Estado quanto à família, trazendo-a sob o seu manto protetor, desejasse debilitá-la e permitir que uniões adulterinas fossem reconhecidas como uniões estáveis, hipótese em que teríamos bigamia de direito (TJERJ – AC n.º 1999.001.122920). Em uma sociedade monogâmica, o ordenamento não protege o concubinato adulterino, relação paralela ao matrimônio. A caracterização da união estável depende, inicialmente, da falta de impedimento de ambos os companheiros em estabelecer a relação."

4 Neste sentido: RIO GRANDE DO SUL. TJ/RS. 2ª Câmara Especial Cível. Apelação cível n. 7000457291/2002. Relatora Des. Ana Beatriz Iser. Porto Alegre, 11 de novembro de 2002.: "Reconhecido o concubinato, do tipo adulterino, sendo do conhecimento da amásia a condição de homem casado do concubino, impossível a caracterização da união estável nos termos previstos na Lei n.º 9.278/96, bem como inadmissível a pretensão de indenização à concubina, visto não serem ressarcíveis monetariamente as relações afetivas."; RIO GRANDE DO SUL. TJ/RS. 7ª Câmara Cível. Apelação cível n. 70002522027/2001. Relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos. Porto Alegre, 13 de junho de 2001.: "Mesmo que o relacionamento tenha perdurado no tempo, não configurou união estável, cuja característica é assemelhar-se ao casamento, indicando uma comunhão de vida e de interesses, que sugere a existência de "affectio maritalis", e também propósito de edificar uma família. Não é possível reconhecer união estável paralela ao casamento, e o concubinato adulterino não tem proteção legal. O mero relacionamento afetivo e sexual, clandestino e sem vida em comum, não agasalha pedido de alimentos."


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUADROS, Tiago de Almeida. O princípio da monogamia e o concubinato adulterino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 412, 23 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5614. Acesso em: 24 abr. 2024.