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A inexigibilidade da licença ambiental para atividades agrosilvopastoris e sua inconstitucionalidade: uma ponderação entre direitos fundamentais

A inexigibilidade da licença ambiental para atividades agrosilvopastoris e sua inconstitucionalidade: uma ponderação entre direitos fundamentais

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É inconstitucional o Decreto do Estado da Bahia que tornou inexigível a licença para as atividades agrossilvopastoris, pondo em risco a tutela do meio ambiente em benefício de interesses políticos escusos.

Resumo: Ao estudo do licenciamento ambiental dedica-se este ensaio cujo resultado há de demonstrar a inconstitucional o Decreto do Estado da Bahia que tornou inexigível a licença para as atividades agrossilvopastoris, pondo em risco a tutela do meio ambiente em benefício de interesses políticos escusos. Não se pode ignorar, contudo, o direito constitucional ao trabalho e a livre iniciativa do produtor rural que se vê privado do direito de regularizar sua atividade econômica, cabendo ao intérprete, no caso concreto, ponderar esses direitos atribuindo-lhes eficácia ótima com fulcro no princípio da unidade da constituição e da concordância prática.

Palavras-chave: Meio ambiente. Competência administrativa. Licenciamento. Inexigibilidade. Inconstitucionalidade. Direito fundamental ao trabalho. Livre iniciativa. Ponderação. Eficácia ótima.


1. INTRODUÇÃO

A Constituição brasileira garante o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado essencial a sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de protegê-lo. A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Não é raro que esses direitos fundamentais entrem em choque, cabendo ao Poder Judiciário o papel de harmonizá-los com solução ótima, gerando a menor perda de eficácia possível para os direitos em jogo.

O presente ensaio volta-se ao problema do Decreto Estadual da Bahia que tornou inexigível o licenciamento ambiental para atividades agrosilvopastoris, dispensando todos os seus estudos e vistorias de impacto ao ecossistema. A questão é grave, pois a rápida destruição do bioma cerrado está afetando a regulação de grandes rios, como o Rio São Francisco, e compromete o abastecimento de água no país. Por outro lado, uma vez que o órgão estadual competente se nega a proceder ao licenciamento, por considerá-lo inexigível, o órgão federal se opõe a legislação estadual recusando o documento de dispensa em substituição a licença ambiental. O produtor rural, então, fica impedido de produzir em sua propriedade, vulnerando os princípios da livre iniciativa e o direito ao trabalho. Sem licenciamento, não poderá haver qualquer produção no estado da Bahia. O tema deste ensaio foi pensado a partir da reação dos produtores rurais aos embargos das atividades agrícolas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente – IBAMA, na região oeste da Bahia e as ações judiciais ajuizadas nesse contexto de conflito entre os produtores, o Instituto do Meio Ambiente da Bahia – INEMA e o IBAMA.

Para enfrentá-lo, primeiramente, analisar-se-á a competência legislativa e material dos entes federativos em matéria ambiental para demonstrar que a competência para licenciar atividades agrosilvopastoris é do Estado, possuindo o órgão federal competência supletiva. Examina-se o licenciamento e sua importância para a tutela do meio ambiente, demonstrando tratar-se de medida imprescindível, sendo inconstitucional sua dispensa.  A partir das normas de interpretação constitucional, em especial da unidade da constituição e da concordância prática, busca-se solução que, de um lado, resguarde a tutela do meio ambiente e de outro possibilite a continuidade da produção agrícola no estado da Bahia, garantindo eficácia ótima e harmônica às normas constitucionais.


2. A COMPETÊNCIA MATERIAL E LEGISLATIVA DOS ENTES FEDERATIVOS EM MATÉRIA AMBIENTAL

A Constituição Federal prevê que o meio ambiente é matéria de competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal[1]. Já a proteção do meio ambiente e o combate à poluição em quaisquer de suas formas é de competência comum para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios[2].

A técnica da repartição vertical de competência legislativa adotada pela Constituição Federal de 1988 resulta na atribuição de competência concorrente não cumulativa à União, aos Estados e ao Distrito Federal sobre a matéria enumerada no art. 24. Cabe a União editar normas gerais e aos Estados e Distrito Federal estabelecerem normas suplementares, que complementem a normatização geral da União para atender as peculiaridades regionais e locais. Caberá ainda aos Estados editarem normas supletivas que supram lacunas diante da ausência de norma geral da União, caso em que havendo norma geral superveniente da União, ela irá sobrepor-se e prevalecer sobre as demais[3].

Na mesma linha da brasileira, a Constituição alemã prevê o estabelecimento de normas gerais pela Federação sobre matéria ambiental, mais precisamente a caça, a proteção de sítios naturais e de paisagens e sobre o regime de águas[4]. A lei italiana nº 394, de 8 de julho de 1986, também prevê dentro das competências do Ministério do Meio ambiente, a propositura ao Conselho de Ministros de “norma geral de direção e coordenação para a gestão das áreas protegidas de caráter geral e local”. A Constituição da Espanha de 1978 de igual modo traça a repartição das competências entre o Estado central e as comunidades autônomas, estabelecendo que o Estado tem competência exclusiva sobre a proteção do meio ambiente, sem prejuízo das Comunidades Autônomas estabelecerem normas adicionais de proteção[5].

A dificuldade no sistema brasileiro está na definição e identificação das normas gerais e suplementares. Para a doutrina, normas gerais visam à aplicação da mesma regra em determinado espaço territorial, atendendo a um interesse de dimensão nacional, que alcance território e população de mais de um Estado federado, assegurando-se homogeneidade de tratamento e evitando atrito na interação federativa. Trata-se de um conceito aberto e indeterminado, sendo possível apenas estabelecer um centro mínimo de significado já que as zonas marginais de incerteza serão definidas a cada caso[6].

Ao contrário da competência legislativa, a competência material ou administrativa apenas atribui o poder de execução. Ela pode ser exclusiva, inerente a União, como é o caso das situações relacionadas à exploração econômica dos recursos naturais com potencial energético ou comum, atribuída conjuntamente a União, Estados e Distrito Federal. A competência administrativa comum, tratada no art. 23 da CF, estabelece o modo como cada entidade vai efetivamente atuar na proteção do meio ambiente e tem como consectário a disposição do art. 225 da Constituição, segundo o qual cabe ao Poder Público velar pelo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.


3. O LICENCIAMENTO AMBIENTAL

O licenciamento ambiental[7] é uma ação típica e indelegável do Poder executivo, na gestão do meio ambiente, por meio da qual a Administração Pública exerce o devido controle sobre as atividades humanas impactantes[8].  Trata-se do mais importante mecanismo de defesa e preservação do meio ambiente já que através dele a Administração Pública impõe condições e limites para o exercício de cada uma das atividades potencialmente poluidoras[9].

Sob o enfoque do interesse da coletividade, as licenças administrativas estabelecem as condições mínimas de exercício da atividade econômica e as contrapartidas exigidas do particular.  As fases ou etapas do procedimento de licenciamento estão previstas no art. 10 da Resolução CONAMA 237/97[10]. Para orientar a atuação dos órgãos ambientais competentes, a citada Resolução, em seu anexo I, apresenta uma lista de atividades para as quais se recomenda o licenciamento ambiental, destacando-se nesse rol a obrigatoriedade de licenciamento das atividades agropecuárias e os projetos agrícolas.

Uma das etapas do licenciamento é o estudo prévio de impacto ambiental, uma modalidade de avaliação de impacto ambiental (AIA) e deve ser realizado para subsidiar o procedimento de licenciamento ambiental de atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente[11]. É inconstitucional norma que dispensa os estudos de impacto ambiental - EIA/RIMA em casos de significativo impacto ambiental, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal[12].

O licenciamento ambiental decorre do poder de polícia da Administração Pública, sendo prerrogativa de direito público que autoriza a Administração Pública a restringir as liberdades individuais em benefício da coletividade[13].  As três esferas de competência estão habilitadas a licenciar empreendimentos impactantes, por meio dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente[14]. A competência específica para o licenciamento ambiental deve recair apenas sobre um ente federado competente, pois não é possível o licenciamento ambiental simultâneo por mais de um deles[15].

A definição do ente federativo competente para o licenciamento deve ser fixada em cada caso concreto e demanda uma análise cronológica objetiva dos variados critérios adotados a partir da Lei 6.938/81[16].

3.1. COMPETÊNCIA PARA O LICENCIAMENTO AMBIENTAL

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/81, estabeleceu, em sua redação originária e dada pela Lei nº 7.804/89, que o licenciamento ambiental de atividades consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras dependeria de prévio licenciamento do órgão estadual competente. Seria, contudo, atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente supletivamente - quando o órgão estadual fosse omisso -, ou quando a atividade com significativo impacto ambiental fosse de âmbito nacional ou regional[17].

Em 1997, a Resolução nº 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA adotou como critério, dentre outros[18], o do alcance dos impactos ambientais diretos do empreendimento, verificável em cada caso concreto[19]. O fundamento para a repartição da competência entre entes da federação para o licenciamento passou a ser o impacto ambiental da atividade, mas a dificuldade estava na identificação de qual seria a extensão geográfica dos impactos ambientais diretos de determinada atividade[20] [21]. Os Municípios, por sua vez, teriam competência para licenciar empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e aqueles que lhes forem delegados pelo Estado através de instrumento legal ou convenio[22].

O estabelecimento de critérios pela Resolução CONAMA nº 237/97 foi objeto de críticas sob o argumento de não se tratar de instrumento legal apto a atribuir competência administrativa aos entes federativos, não tendo força suficiente para revogar a Lei 6.938/81, que atribuía aos estados membros a competência para o licenciamento ambiental[23]. Com a edição da lei complementar nº 140 de 2011, a discussão perdeu o objeto, pois ela trouxe critérios de fixação da competência muito semelhantes aos da Resolução nº 237/97 do CONAMA, exceto quanto às atividades licitatória de competência dos estados que passaram a ter caráter residual, todos os empreendimentos que não sejam de competência da União, enumerados no art. 7º e do município, rol do art. 9º, deverão ser licenciados pelo órgão ambiental dos estados membros[24].     

A competência de licenciamento ambiental de um órgão não retira o poder de polícia de outro órgão integrante do SISNAMA. Assim, ainda que a atividade desempenhada pelo autor devesse ser licenciada por órgão municipal ou estadual de Meio Ambiente, permanece competência do IBAMA de fiscalizar a aplicação da legislação ambiental, no exercício do poder de polícia, bem como de pleitear a reparação dos danos ambientais perpetrados[25].

A preocupação com a proteção ambiental autoriza a atuação legítima do IBAMA, que como órgão federal responsável pela execução das diretrizes da política nacional para o meio ambiente, detém competência para empreender operações tendentes a coibir a prática de ações potencialmente poluidoras e pleitear a reparação pelo dano ambiental causado, inclusive, quando se depara com licenças concedidas indevidamente pelos Estados e Municípios, devendo, todavia, ser resguardada a incolumidade do pacto federativo[26].

3.2. DA INEXIGIBILIDADE DE LICENÇA AMBIENTAL PARA AS ATIVIDADES AGROSSILVOPASTORIS: OS DECRETOS ESTADUAIS Nº 15.682/14 E Nº 16.963 E SUA INCONSTITUCIONALIDADE.

            Com base no art. 8º, XIV, da LC n. 140/11[27], a competência para expedir licença para a atividade agrossilvopastoril, como regra, é do órgão estadual. Na Bahia, essa competência não pode ser delegada para os Municípios ante a vedação contida na Resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente - CEPRAM/BA nº 4.327/13, a qual não reconhece a agricultura como de impacto local e não autoriza que os municípios da Bahia licenciem essa atividade.

O Decreto Estadual da Bahia nº 15.682/14, alterando o Decreto nº 14.024, de 06 de junho de 2012, tornou inexigível o licenciamento ambiental para as atividades agrossilvopastoris[28]. Uma vez apresentado o requerimento de licenciamento ambiental, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia - INEMA concedia uma certidão com a informação de que aquela atividade atendia aos requisitos para a dispensa de licenciamento ambiental.

Não há transparência quanto ao móvel da nova legislação estadual – se o atendimento a interesses políticos escusos, se ao clamor de grandes ruralistas do estado ou ambos – fato é que a tutela do meio ambiente foi ignorada, assim como o processo de desertificação que o oeste da Bahia vem sofrendo com o desmatamento excessivo que impede o acesso das águas das chuvas aos lençóis freáticos[29].  A rápida destruição do bioma cerrado está destruindo a gigantesca rede de raízes que atua como uma esponja, ajudando a recarregar os aquíferos que levam água às torneiras de todas as regiões do Brasil[30].  

Em substituição ao procedimento de inexigibilidade de licença ambiental, o Estado da Bahia editou em 2016 o Decreto nº 16.963 instituindo o “procedimento especial de licenciamento ambiental”. Trata-se de licenciamento obtido por procedimento especial eletrônico extremamente simplificado e rápido, exigindo do produtor apenas a realização de um cadastro online, que dispensa estudo ambiental ou vistoria prévia independentemente do porte, natureza ou localização do empreendimento. Por via transversa, houve mais uma vez a dispensa do próprio licenciamento ambiental.

O órgão regulamentador da atividade efetiva ou potencialmente poluidora, no caso o Poder Executivo da Bahia, não levou em conta a obrigatoriedade de prévio licenciamento ambiental em desrespeito à Resolução nº 237/97 do CONAMA e as normas constitucionais de tutela do meio ambiente. Ao regulamentar a Política Nacional do Meio Ambiente, a citada norma prevê a obrigatoriedade do licenciamento para atividades agrosilvopastoris, não havendo espaço para interpretações distintas. O Estado-membro deve complementar a norma geral, com base nas especificidades e características da sua região, mas não pode dispensar o licenciamento, reduzir a proteção ambiental[31].

A competência dos Estados para legislar, quando a União já editou uma norma geral, pressupõe obediência à norma federal[32]. A regra situa-se no campo da hierarquia das normas e faz parte de do sistema de “fidelidade federal”[33]. O intuito do legislador ao atribuir competência aos estados foi ampliar a proteção ambiental possibilitando a adequação das normas às peculiaridades locais.

Diante desse quadro, a Justiça Federal da Bahia determinou, por decisão liminar, que o INEMA voltasse a realizar o licenciamento das atividades agrossilvopastoris na Bahia, de acordo com a legislação federal em vigor, por procedimento regular, sob pena de multa diária de R$ 100 mil. A magistrada condutora do feito suspendeu, com efeito retroativo, os artigos 8º e 135º do Decreto Estadual nº 15.682/2014 e as alterações feitas pelo Decreto Estadual nº 16.963/2016[34].

A redução da proteção ambiental pela legislação dos estados, motivada por interesses políticos escusos e particulares, em detrimento da coletividade não é admissível. A questão que se põe, contudo, está em saber como conciliar a proteção ao meio ambiente e o direito do produtor rural ao trabalho, a livre iniciativa e o dever de atribuir função social à propriedade.


4.A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E O DIREITO AO TRABALHO E A LIVRE INICIATIVA: harmonizando direitos fundamentais

A inexigibilidade da licença ambiental pelo Estado da Bahia torna impossível que o produtor rural ou agropecuarista obtenha a autorização por procedimento regular com prévios estudos de impacto ambiental como exigido pelo IBAMA, nos termos da Resolução do CONAMA nº 237 e da Lei Complementar nº 140/11. Disso resulta, em tese, a ilicitude de toda e qualquer atividade agrossilvopastoril no estado da Bahia, com o consequente embargo das atividades. Torna ainda impossível a adequação de atividades já embargadas aos fins colimados pela legislação ambiental.

Refletindo a gravidade da situação, a conclusão é no sentido de que devem ser compatibilizados os direitos fundamentais envolvidos: o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de um lado, e o direito igualmente fundamental ao trabalho e a livre iniciativa dos produtores rurais – algumas vezes, pequenos produtores que dependem da produção para sua subsistência agrícola –, de outro.

A Constituição deve ser vista em sua inteireza e as tensões entre as normas nela previstas devem ser harmonizadas[35]. É premissa básica da unidade constitucional a inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais[36], cabendo ao intérprete conferir sentido conformador e conciliável entre os preceitos constitucionais, sem, de nenhum modo, aniquilar definitivamente um deles em benefício do outro[37]. As tensões entre normas constitucionais devem ser solucionadas em benefício da unidade da Constituição, sendo que a coerência entre tais normas se alcança com interpretações sistemáticas.

No tema ora enfrentado, o proprietário rural tem a legítima confiança ou justificada expectativa de que os atos produzidos pelo INEMA são legais e que autorizam o seu empreendimento agrícola, na medida em que foram expressamente chancelados pelo Órgão Estadual responsável segundo a lei. Assim, diante do atendimento dos demais requisitos necessários ao exercício da atividade agrosilvopastoril e demonstrada sua boa-fé, é possível a suspensão do embargo lavrado contra sua atividade até que o próprio IBAMA realize o licenciamento do empreendimento, enquanto o órgão estadual não o põe ilicitamente em prática[38].

Não se pode perder de vista que o IBAMA, ante a competência supletiva[39] e capacidade técnica, pode – e deve – proceder ao licenciamento exigido do produtor rural, evitando, assim, prejuízos maiores ao regular exercício de sua atividade, que também possui sua função social, consistente na geração de empregos, produção de alimentos e pagamento de tributos[40]. Trata-se de solução que garante a proteção do meio ambiente sem comprometer o direito ao trabalho e ao livre exercício de atividade econômica. 

Além disso, conquanto a área já esteja sendo objeto de exploração, a interrupção da atividade agrícola não fará o pronto restabelecimento, tanto da fauna quanto da flora, caso tenha havido dano ambiental. Haverá, aliás maior impacto pois as terras nuas, por tempo indeterminado, fazem com que a água da chuva evapore antes de penetrar o solo. Todavia, o raciocínio não se aplica se ficar demonstrado que a continuação da atividade, no caso concreto, ampliará ou causará mais impacto ambiental relevante.

Em verdade, é inadmissível que o administrado envide esforços em prol da regularização ambiental de sua atividade de agricultura junto a Autarquia estadual, e o procedimento não seja reconhecido pela Autarquia federal sem que esta, ao menos indique qual seria a solução para se regularizar o empreendimento. Ora, não basta ao órgão federal exigir uma licença que o órgão estadual competente se recusa a conceder, sem apresentar outra solução para o produtor rural.

Essa conduta termina por impedir o exercício de direitos fundamentais tal como o direito ao trabalho e o livre exercício de atividade econômica. Esvazia ainda a função social da propriedade, impedindo, por via obliqua, que se produza atividade agrícola em toda e qualquer área rural no estado da Bahia. Os problemas constitucionais devem ser resolvidos de forma que os direitos fundamentais em jogo sejam conformados e tenham eficácia ótima[41]. A interpretação adequada para o conflito entre as normas de proteção ao meio ambiente e o direito ao trabalho e a livre iniciativa é aquela que, dentro das condições reais dominantes numa determinada situação, harmoniza e concretizar de forma excelente ambos os direitos fundamentais[42].


5. CONCLUSÃO

A competência administrativa comum, tratada no art. 23 da Constituição Federal, estabelece o modo como cada entidade vai efetivamente atuar na proteção do meio ambiente e tem como consectário o dever do Poder Público de velar pelo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O licenciamento ambiental, corolário da competência administrativa, é uma ação típica e indelegável do Poder executivo, na gestão do meio ambiente, por meio da qual a Administração Pública exerce o devido controle sobre as atividades humanas que possam causar impacto ao meio ambiente.

As três esferas de competência estão habilitadas a licenciar empreendimentos impactantes, por meio dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente. A competência para expedir licença para a atividade agrossilvopastoril, como regra, é do órgão estadual. Será, contudo, atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente – IBAMA supletivamente quando o órgão estadual for omisso.

O Decreto Estadual da Bahia nº 15.682/14, alterando o Decreto nº 14.024, de 06 de junho de 2012, tornou inexigível o licenciamento ambiental para as atividades agrossilvopastoris. O Decreto nº 16.963 de 2016, substituindo o anterior, instituiu o “procedimento especial de licenciamento ambiental”, que, por via transversa, também dispensa o próprio licenciamento ambiental. O Estado-membro deve complementar a norma geral, com base nas especificidades e características da sua região, mas não pode dispensar o licenciamento, reduzindo a proteção ambiental. Viola-se a legislação federal em matéria ambiental e, por conseguinte, a Constituição Federal.

A inexigibilidade de licitação pelo órgão estadual impossibilita a produção agrícola e pastoril no estado na medida em que a carta de dispensa ou a licença simplificada não é aceita pelo IBAMA ante a sua inconstitucionalidade, levando ao embargo da atividade por aceita da devida licença ambiental. O produtor rural, inclusive o pequeno produtor, sofre óbice ao exercício dos seus direitos fundamentais. Conflitam, no caso concreto, direitos fundamentais de igual envergadura constitucional – de um lado, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de outro, o direito ao trabalho e a livre iniciativa.

Os conflitos de normas constitucionais devem ser resolvidos de forma que os direitos fundamentais sejam harmonizados e tenham eficácia ótima. Assim, diante do atendimento dos demais requisitos necessários ao exercício da atividade agrosilvopastoril, é possível a suspensão do embargo à atividade pela ausência de licença até que o próprio IBAMA realize o licenciamento do empreendimento. O proprietário rural tem a legítima confiança ou a justa expectativa de que os atos produzidos pelos órgãos públicos são legais e essa expectativa merece tutela sem que a proteção meio ambiente seja vulnerada.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

BRAGA, Paula Sarno. Normas de Processo e Normas de procedimento. O problema da repartição de competência legislativa no Direito constitucional brasileiro. Integridade e coerência na jurisprudencia do STF. Salvador: Jus podivm, 2015.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003

FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 6ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Competência comum, concorrente e supletiva em matéria de meio ambiente. Disponível em: Acesso em 30ago2017.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Vírgilio Afonso da (org). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 127 e 128.

THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. Jus Podivm: Salvador, 2013.

https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/bbc/2017/03/27/como-as-raizes-do-cerrado-levam-agua-a-torneiras-de-todas-as-regioes-do-brasil.htm. Acesso em: 23out.2017

http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/liminar-determina-que-inema-volte-a-realizar-o-licenciamento-de-atividades-agrossilvipastoris-na-bahia. Acesso em: 18out.2017.

http://www.portalbrasil.net/regiao_centrooeste.htm. Acesso em 22.out.2017.


Notas

[1] Art. 24 CF. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:  I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; II - orçamento;III - juntas comerciais;IV - custas dos serviços forenses;V - produção e consumo;VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;IX - educação, cultura, ensino e desporto;IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação; X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; XI - procedimentos em matéria processual; XII - previdência social, proteção e defesa da saúde; XIII - assistência jurídica e Defensoria pública; XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; XV - proteção à infância e à juventude; XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.

[2] Art. 23 da CF. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;; VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar; IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios; XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.

[3] A Constituição não concedeu ao Município, no art. 24, competência legislativa concorrente com os demais entes federativos. Mas, no art. 30, inciso II o legislador constituinte lhe conferiu o poder de suplementar lei federal ou estadual para atender a interesse local.

[4] A Lei fundamental de Bonn de 1949 foi uma das fontes imediatas de inspiração do Constituinte brasileiro, com seu sistema de repartição globalmente considerado. O equilíbrio encontrado na federação alemã se deve em grande parte à forma como se dispôs sobre a competência legislativa, enfatizando-se e ampliando-se, ao menos em tese, a atuação estatal. (BRAGA, Paula Sarno. Normas de Processo e Normas de procedimento. O problema da repartição de competência legislativa no Direito constitucional brasileiro. Integridade e coerência na jurisprudência do STF. Salvador: Jus podivm, 2015.p. 291).

[5] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Competência comum, concorrente e supletiva em matéria de meio ambiente. Disponível em: Acesso em 30ago2017. p. 168.

[6] BRAGA, Paula Sarno. Op. Cit. p. 117-118.

[7] Lei Complementar nº 140/11. “Art. 2o  Para os fins desta Lei Complementar, consideram-se: I - licenciamento ambiental: o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental; (...)”. 

[8] MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 482.

[9] FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 6ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 23.

[10] Resolução CONAMA nº 237/97 “Art. 10 - O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas: I - Definição pelo órgão ambiental competente, com a participação do empreendedor, dos documentos, projetos e estudos ambientais, necessários ao início do processo de licenciamento correspondente à licença a ser requerida; II - Requerimento da licença ambiental pelo empreendedor, acompanhado dos documentos, projetos e estudos ambientais pertinentes, dando-se a devida publicidade;

III - Análise pelo órgão ambiental competente, integrante do SISNAMA , dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados e a realização de vistorias técnicas, quando necessárias; IV - Solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambiental competente, integrante do SISNAMA, uma única vez, em decorrência da análise dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados, quando couber, podendo haver a reiteração da mesma solicitação caso os esclarecimentos e complementações não tenham sido satisfatórios; V - Audiência pública, quando couber, de acordo com a regulamentação pertinente; VI - Solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambiental competente, decorrentes de audiências públicas, quando couber, podendo haver reiteração da solicitação quando os esclarecimentos e complementações não tenham sido satisfatórios; VII - Emissão de parecer técnico conclusivo e, quando couber, parecer jurídico; VIII - Deferimento ou indeferimento do pedido de licença, dando-se a devida publicidade.

[11] THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. Jus Podivm: Salvador, 2013. p. 249.

[12] EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRAIEDADE AO ARTIGO 225, § 1º, IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque.(ADI 1086, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2001, DJ 10-08-2001 PP-00002 EMENT VOL-02038-01 PP-00083)

[13] STF, ADI 1505-ES, Relator Ministro Eros Grau. Julgamento: 24/11/2004.

[14] Lei nº 6.938/81. “Art. 17-L. As ações de licenciamento, registro, autorizações, concessões e permissões relacionadas à fauna, à flora, e ao controle ambiental são de competência exclusiva dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente.” 

[15] Art. 7º da Resolução nº 237/97 do CONAMA e art. 13 da Lei Complementar nº 140/2011.

[16] THOMÉ, Romeu. Op. Cit. p. 254.

[17] Lei nº 6.938/81. “Art 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento por órgão estadual competente, integrante do SISNAMA, sem prejuízo de outras licenças exigíveis (redação atual dada pela LC 140/11). Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. (Redação anterior dada pela Lei nº 7.804, de 1989)

[18] Os outros critérios estão previstos no art. 4º, com exceção do inciso III, e no 5º da Resolução nº  237 do CONAMA: “Art. 4º - Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber: (...) I - localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; no mar territorial; na plataforma continental; na zona econômica exclusiva; em terras indígenas ou em unidades de conservação do domínio da União; II - localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados; IV - destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN; V- bases ou empreendimentos militares, quando couber, observada a legislação específica. Art. 5º - Compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades: I - localizados ou desenvolvidos em mais de um Município ou em unidades de conservação de domínio estadual ou do Distrito Federal; II - localizados ou desenvolvidos nas florestas e demais formas de vegetação natural de preservação permanente relacionadas no artigo 2º da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, e em todas as que assim forem consideradas por normas federais, estaduais ou municipais; III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais de um ou mais Municípios; IV – delegados pela União aos Estados ou ao Distrito Federal, por instrumento legal ou convênio. Parágrafo único. O órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, oparecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento.

[19] Art. 4º - Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber: (...) III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados; (...) § 1º - O IBAMA fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Estados e Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento. § 2º - O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências.

[20] THOMÉ, Romeu. Op. Cit. p. 256.

[21] No caso de licenciamento de atividades em unidades de conservação da natureza, a competência é do ente instituidor.

[22] THOMÉ, Romeu. Op. Cit. Jus Podivm: Salvador, 2013. p. 256.

[23] Ibidem. p. 261.

[24] Art. 8º da Lei Complementar nº 140/11.

[25] A propósito, cito os seguintes julgados do TRF da 1ª Região: AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO ILEGAL DE 190 HECTARES DE FLORESTA AMAZÔNICA PARA PECUÁRIA. ÁREA DA RESERVA LEGAL DE IMÓVEL RURAL NÃO OBSERVADA. DANO AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E PROPOTER REM. DEVER DE REPARAR O DANO DO POSSUIDOR/PROPRIETÁRIO DO BEM IMÓVEL OBJETO DA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL. SENTENÇA MANTIDA.  1. Apelação do IBAMA e do MPF. A derrubada de floresta nativa em área da Amazônia Legal configura ofensa aos interesses da União, pois seus recursos naturais lhe pertencem (CF/88, art. 20, IX).  2. A proteção ao meio ambiente é da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Município (art. 23, VI c/c art. 225 da CF/88), o que implica dizer que a defesa ambiental concerne a todas pessoas de Direito Público da Federação de forma não excludente.  (…) (AC 0014351-80.2010.4.01.4100 / RO, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.572 de 07/12/2012); ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL. ZONA COSTEIRA. PATRIMÔNIO NACIONAL. COMPETÊNCIA PARA LICENCIAMENTO AMBIENTAL DO IBAMA. TUTELA PROCESSUAL-CAUTELAR DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225, CAPUT).  I - Em se tratando de exploração de atividade potencialmente poluidora do meio ambiente, a competência do ente municipal e/ou estadual, para o licenciamento ambiental, não exclui a competência do IBAMA, que se impõe, em casos assim, em face da tutela cautelar constitucionalmente prevista no art. 225, § 1º, V e respectivo § 3º, da Constituição Federal, na linha auto-aplicável de imposição ao poder público (incluído o Poder Judiciário) e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput).  II - Ademais, as obras de construção de empreendimento imobiliário inserido nos limites territoriais de zona costeira marítima, como no caso, constitucionalmente classificada como patrimônio nacional (CF, art. 225, § 4º), cuja utilização subordina-se às disposições legais de regência, observadas, sempre, as condições que assegurem a preservação do meio ambiente, afigurando-se irrelevante, na espécie, a existência de licenciamentos ambientais estaduais e/ou municipais, posto que, em casos assim, o bem a ser tutelado é o meio ambiente ecologicamente equilibrado, que não dispensa o inafastável estudo prévio de impacto ambiental, conforme determinam, em casos que tais, o art. 225, §1º, IV, da Constituição Federal, o art. 10 da Lei nº. 6.938/81 e as Resoluções nºs 01/86 e 237/97-CONAMA.  III - A tutela constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CF, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação), e a consequente prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada), exigindo-se, inclusive, na forma da lei, a implementação de políticas públicas voltadas para a prevenção de potencial desequilíbrio ambiental, como na hipótese dos autos.  (…) (AG 0018353-06.2012.4.01.0000 / MA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.384 de 29/08/2013).

[26] Se houver autuação de mais de um órgão ambiental, o art. 17, §3º da LC nº 141/2011 estabelece que prevalecerá o auto de infração lavrado por aquele órgão que detenha a atribuição de licenciamento.

[27] LC nº 140/11. Art. 8o  São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7o e 9o; (...)”.

[28] Decreto Estadual da Bahia nº 15.682/14. "Art. 135. Os empreendimentos agrossilvopastoris a serem implantados deverão observar as regras estabelecidas no Anexo IV, para fins de enquadramento e verificação da exigência do procedimento de licenciamento ambiental, sujeitando-se, ainda, ao registro no Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais - CEFIR e ao requerimento, quando necessário, da autorização para supressão de vegetação e da outorga de direitos de uso de recursos hídricos. (...) ANEXO IV - EMPREENDIMENTOS E ATIVIDADES NÃO SUJEITOS AO LICENCIAMENTO AMBIENTAL”

[29] “No início da década de 90, restavam apenas 20% (vinte por cento) da vegetação original dos cerrados. Em Goiás, as práticas ambientais agressivas adotadas pela agropecuária, esgotam os mananciais e destroem o solo. No nordeste de Goiás e Mato Grosso, há constante desertificação, ocasionada pelo desmatamento sem controle. Entre 1998 e 2000 (três anos), quase 900 mil hectares de floresta são derrubados.” (Disponível em http://www.portalbrasil.net/regiao_centrooeste.htm. Acesso em 22.out.2017).

[30] O antropólogo baiano Altair Sales Barbosa explica que os aquíferos são abastecidos pelas chuvas, mas dependem da vegetação para que a água chegue lá embaixo já que muitas plantas do cerrado para sobreviverem em um ambiente pobre de nutrientes desenvolveram raízes profundas e muito ramificadas. (Como as raízes do Cerrado levam água a torneiras de todas as regiões do Brasil. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/bbc/2017/03/27/como-as-raizes-do-cerrado-levam-agua-a-torneiras-de-todas-as-regioes-do-brasil.htm. Acesso em: 23out.2017).

[31] Interessante registrar que os Estados, ao implementar a sua própria legislação ambiental, ou quando executam as normas gerais da União, não estão sujeitos ao poder revisional ou homologatório da União. Esse controle só pode ser feito pela União através de ação judicial, procurando anular o ato administrativo estadual acusado de invasão da competência federal ou descumprimento das normas gerais federais. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. Cit. p. 170.

[32] “ (...) ambos os decretos editados pelo estado da Bahia violaram a Lei nº 10.431/2006, do próprio estado, quanto a competência legislativa estadual, já que apenas uma norma federal possui aptidão para excluir hipóteses específicas da exigência de elaboração de estudos e relatório de impacto ambiental. Os estados só podem assinar leis suplementares em questões relacionadas ao meio ambiente que tenham por objetivo conferir garantias extras.” (Disponível em: http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/liminar-determina-que-inema-volte-a-realizar-o-licenciamento-de-atividades-agrossilvipastoris-na-bahia. Acesso em: 18out.2017).

[33] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. Cit. p. 170.

[34] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-imprensa/noticias-ba/liminar-determina-que-inema-volte-a-realizar-o-licenciamento-de-atividades-agrossilvipastoris-na-bahia. Acesso em: 18out.2017.

[35] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 106.

[36] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 187.

[37] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1187.

[38] Demonstrada a boa-fé do proprietário rural que tem a legítima confiança ou justa expectativa de que seus atos são legais e de que autorizam o seu empreendimento agrícola, pois pautadas em orientação do órgão estadual competente, torna-se razoável a suspensão do embargo da atividade rural, quando a ausência da licença for o único impedimento para tanto.  O meio ambiente, contudo, não pode ficar desamparado de modo que o produtor deve regularizar seu empreendimento de acordo com as diretrizes apontadas pelo IBAMA, mas por meios a serem oferecidos pelo Estado.

[39]Nesse sentido, cita-se os seguintes julgados: “ADMINISTRATIVO. IBAMA. COMPETÊNCIA PARA LICENCIAMENTO AMBIENTAL. TUTELA PROCESSUAL-CAUTELAR DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225, CAPUT). INFRAÇÃO AMBIENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE MADEIRA. VEÍCULO PERTENCENTE A TERCEIRO. APREENSÃO. LIBERAÇÃO. NOMEAÇÃO DO PROPRIETÁRIO DO BEM COMO FIEL DEPOSITÁRIO. DECRETO 6.514/2008. POSSIBILIDADE.  1. Em se tratando de exploração de atividade potencialmente poluidora do meio ambiente, a competência do ente municipal e/ou estadual, para o licenciamento ambiental, não exclui a competência supletiva do IBAMA. Precedentes.  (TRF1, AC 0009572-97.2010.4.01.3901/PA, e-DJF1 p.401 de 27/10/2015); ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO AMBIENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE MADEIRA. VEÍCULO PERTENCENTE A TERCEIRO. APREENSÃO. LIBERAÇÃO. NOMEAÇÃO DO PROPRIETÁRIO DO BEM COMO FIEL DEPOSITÁRIO. DECRETO 6.514/2008. POSSIBILIDADE.  1. Em se tratando de conduta lesiva ao meio ambiente, a competência do ente municipal e/ou estadual para o licenciamento ambiental não exclui a competência supletiva do IBAMA, que se impõe, em casos assim, em face da tutela cautelar constitucionalmente prevista nos arts. 23, VII e 225, § 1º, inciso VII e respectivo § 3º, da Constituição Federal, na linha auto-aplicável de imposição ao poder público (incluído o Poder Judiciário) e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, para as presentes e gerações futuras (CF, art. 225, caput), tudo em harmonia com o princípio da precaução, já consagrado em nosso ordenamento jurídico. Precedentes.  (TRF1, AC 0000496-17.2008.4.01.3902/PA, DJF1 p.364 de 27/10/2015).”

[40] O IBAMA também tem o dever de observar os ditames da boa-fé objetiva e viabilizar a regularização ambiental indicando, passo a passo, a conduta a ser adotada pelo administrado, perdido entre tantas orientações contrapostas de entes distintos de um mesmo Estado em sentido amplo (INEMA, CEPRAM, IBAMA).

[41] SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Vírgilio Afonso da (org). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 127 e 128.

[42] “A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.” (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 22 e 23.)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. A inexigibilidade da licença ambiental para atividades agrosilvopastoris e sua inconstitucionalidade: uma ponderação entre direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5236, 1 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61622. Acesso em: 27 abr. 2024.