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O sentido contemporâneo das políticas públicas

O sentido contemporâneo das políticas públicas

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O estudo tem por objetivo analisar o conceito e a natureza das políticas públicas, cujo conteúdo tem sido direcionado pela concepção hodierna do regime democrático sob a perspectiva substancial, com vistas à concretização dos direitos fundamentais.

1.1. A complexidade das políticas públicas

Inúmeros são os conceitos de “política pública” formulados cujos sentidos são direcionados pelo enfoque que se pretendeu dar ao tema.

Essa multiplicidade conceitual decorre inelutavelmente da complexidade do objeto, que envolve uma engenhosa atuação estatal para fazer frente a um fenômeno social, o qual não “decorre de uma única e exclusiva causa, mas de um conjunto múltiplo e complexo de relações causais, de natureza econômica, política ou social, que concorrem de forma aleatória para a configuração de um problema público.” (IOCKEN, 2014, p. 87).

A heterogeneidade do fenômeno social que serve de ponto de partida para o desenvolvimento de uma política pública, caracterizada pela aleatoriedade e até mesmo pelo caos, demanda uma atuação igualmente plural e, por vezes, fragmentada da comunidade científica e do Estado, redunda na formatação de um processo de elaboração e construção de políticas públicas assentado na conjugação de diversas áreas do conhecimento, a exemplo da ciência política, da economia, da sociologia e do direito, cuja interdisciplinariedade evidencia a densidade do assunto.

Apesar de as abordagens conceituais e estruturais desenvolvidas no seio das diversas áreas do conhecimento envolvidas se apresentarem, por vezes, tópicas e até mesmo fragmentadas, elas não se mostram excludentes e servem de subsídio, tanto para as análises isoladas, como para as análises multidisciplinares, haja vista que as políticas públicas provocam uma confluência e interseção das diversas áreas de conhecimento, assumindo o papel de elemento catalisador e de força centrípeta no sentido dessa junção.

De tradição europeia, a abordagem estatal das ações governamentais direcionadas à formulação e implementação de políticas públicas parte da premissa de que o Estado deve ocupar posição central e protagonista para interferir efetivamente no processo travado no bojo da sociedade de modo a equacionar e moderar a sobrepujança das classes políticas dominantes.

Por sua vez, a abordagem de tradição americana, nominada pluralista, leva em consideração a distribuição do poder entre diversos atores sociais que, de forma autônoma, contribuem para formatar, ao final e de maneira concatenada, as políticas públicas, restando possível concluir que o Estado é o resultado desses processos sociais.

Ainda, desenvolveu-se a abordagem cognitiva e normativa que evidencia “a importância das dinâmicas de construção social da realidade na determinação dos quadros e das práticas socialmente legítimas.” (MULLER, Pierre; SUREL, Yves, 2002, p. 44).

Assim, como ponto de partida, serão trazidos a lume alguns conceitos desenvolvidos a respeito das políticas públicas para, ao final, se tentar alinhavar um conceito próprio ou, pelo menos, adotar um como mais apropriado ou alinhado com o objeto do presente estudo.

Em primeiro lugar, Thomas R. Dye define políticas públicas como “tudo aquilo que os governos escolhem fazer ou não fazer”, cuja definição foi adotada por Leonardo Secchi como premissa para qualquer conceituação de política pública, na medida em que a considera como um problema público (Dye apud SECCHI, 2013, p. 9).

Por sua vez, Jenkins (apud IOCKEN, 2014, p. 18) apresenta o seguinte conceito de política pública:

“O conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um ator ou grupo de atores políticos, que se refere à seleção de objetivos e dos meios necessários para lográ-los, numa situação especificada em que o alvo dessas decisões estaria, em princípio, ao alcance efetivo desses atores.” (apud IOCKEN, 2014, p. 18).

Ainda, política pública pode ser vista “um curso de ação intencional perseguido por um ator ou conjunto de atores, quando tratam de um problema ou matérias de interesse.”, conforme Anderson (apud IOCKEN, 2014, p. 20).

Já Mullher e Surel (2002, p. 10) a política pública consiste em um “processo pelo qual são elaborados e implementados programas de ação pública, isto é, dispositivos político-administrativos coordenados em princípio em torno de objetivos explícitos”.

No Brasil, Sundfeld e Rosilho (2014, p. 46-47), analisando o tema sob a perspectiva sobreposta do direito e da ciência política, formularam o seguinte conceito de política pública:

“Sob a ótica da ideia de políticas públicas, a tônica pode se deslocar de uma análise mais isolada da norma para outra na qual sejam levados em conta os grandes objetivos perseguidos pelo Estado e a relação entre meios e fins. Haveria, neste sentido, uma ampliação dos horizontes do conhecimento jurídico.” (SUNDFELD, Carlos Ari e ROSILHO, André, 2014, p. 46-47).

Ainda, Bucci (2008 e 2013) colocando em evidência a contribuição do direito, alinhavou a seguinte conceituação de política pública:

“[...] programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados [...], os quais devem “[...] visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados [...].” BUCCI, 2013, p. 38-39.

“[...] programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privada, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.” BUCCI, 2008, p. 226.

Por outro lado, Freitas (2009, p. 32) apresenta o seguinte conceito de políticas públicas, senão veja-se:

“Nesse enfoque, reconceitua-se, com vantagem científica, as políticas públicas como aqueles programas que o Poder Público, nas relações administrativas, deve enunciar e implementar de acordo com prioridades constitucionais cogentes, sob pena de omissão específica lesiva. Ou seja, as políticas públicas são assimiladas como autênticos programas de Estado mais do que de governo), que intentam, por meio de articulação eficiente e eficaz dos atores governamentais e sociais, cumprir as prioridades vinculantes da Carta, de ordem a assegurar, com hierarquizações fundamentadas, as efetividades do plexo de direitos fundamentais das gerações presentes e futuras.” (FREITAS, 2009, p. 32).

Assim, sob a perspectiva da funcionalidade do Estado e do ordenamento jurídico pátrio, é possível identificar os seguintes elementos e características componentes do conceito das políticas públicas.

De início, destaca-se que são programas ou conjunto de atos sistematizados ou inter-relacionados de forma estruturada que levam em consideração o ambiente circundante que se contrapõem aos atos isolados praticados pelo poder público, cuja ideia pode ser sintetizada pela expressão “processo decisório público”. (IOCKEN, 2014, p. 90).

Em segundo lugar, além de seu cariz institucional, isto é, da centralização do processo no âmbito do poder público, as políticas públicas tem assumido um papel de programa de Estado, em vez de governo, na medida em que são voltadas para o atendimento de demandas sociais prioritárias e permanentes de acordo com a CRFB, o que resta evidenciado, e.g., a partir da vigência quadrienal e descoincidente com os mandatos eletivos do plano plurianual (ideia de continuidade), que vigerá até o final do primeiro exercício financeiro do mandato do chefe do poder executivo subseqüente, cujo projeto será encaminhado até quatro meses antes do encerramento do primeiro exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa (art. 35, § 2°, I, do ato das disposições constitucionais transitórias-ADCT).

Ademais, percebe-se que o processo de formatação, implementação e controle das políticas públicas sofre a influência de diversos atores em todas as suas fases e facetas, razão pela qual se pode concluir que, a despeito de ser encabeçado e dirigido pela Administração Pública (Segundo Meirelles (2008, p. 60) “Para evitar confusão escrevemos sempre com maiúsculas à expressão Administração Pública quando nos referimos a entidades e órgãos administrativos”) e o Poder Legislativo, tem a participação efetiva de pessoas e entidades representativa da sociedade civil organizada, bem como de órgãos e pessoas jurídicas integrantes da estrutura estatal, em cujo bojo se passou a incluir o Poder Judiciário e os Tribunais de Contas que, de modo indireto (atuação exógena) e mediato passaram a interferir efetivamente no produto final do processo de elaboração das políticas públicas.

Ainda, para além dos princípios e valores encampados pela CRFB, com a assunção explícita dos direitos fundamentais, a consecução dos direitos fundamentais passou a ser a razão última da existência do Estado brasileiro, de modo que toda e qualquer problematização que sirva de suporte para a deflagração de um processo de formatação de uma política pública deve servir para a efetivação de tais direitos, em razão da primazia valorativa conferida a tais direitos pelo constituinte.

Revelando o destaque conferido pela CRFB ao planejamento público, o art. 165, I e § 1°, da CRFB prescreveu que “a lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.”

Conferindo maior legitimidade a esse instrumento normativo e consequentemente ao processo de formatação das políticas públicas, o art. 166, § 6° c/c os arts. 84, XXIII e 165, I, da CRFB estabeleceu a competência privativa do chefe do poder executivo para encaminhar o projeto de lei relativo ao plano plurianual para o poder legislativo (as duas Casa do Congresso Nacional, no âmbito federal), a quem caberá dispor sobre a matéria (art. 48, II c/c 166, caput), com a sanção do primeiro, restando vedada a edição de medida provisória (art. 62, § 1°, I, d, da CRFB) e de lei delegada (art. 68, § 1°, III, da CRFB) a respeito do tema.

Para não deixar dúvidas, o art. 165, § 4°, da CRFB dispõe que os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta constituição serão elaborados em consonância com o Plano Plurianual-PPA e apreciados pelo congresso nacional.

Além das demais Leis orçamentárias (Lei de Diretrizes Orçamentárias-LDO e Lei Orçamentária Anual-LOA – art. 165, II e III, da CRFB) de todas as esferas federativas deverem guardar vínculo de compatibilidade com o plano plurianual em seus bojos (arts. 165, § 7° e 166, § 3°, I e §4°), os planos e programas regionais e setoriais previstos na CRFB deverão ser elaborados em consonância com o plano plurianual apreciado pelo congresso nacional, os quais serão instrumentalizados nas respectivas leis orçamentárias, deverão servir para reduzir as desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional (art. 165, § 7°, da CRFB), indo ao encontro do objetivo fundamental encartado no art. 3°, III, da CRFB.

Por fim, ressai evidente a importância da análise dos meios disponíveis para a concretização das políticas públicas, os quais, em razão da constatação da escassez e insuficiência dos recursos (financeiros e humanos) públicos, devem ser ponderados a partir do princípio da eficiência, capitulado no art. 37, caput, da CRFB, bem como sob a perspectiva dos critérios da legitimidade e da economicidade estabelecidos no art. 70, caput, da CRFB vigente.

Em seguimento, apesar de não refletir a dinâmica das políticas públicas, com vistas a analisar com mais profundidade e facilidade o processo de formatação das políticas públicas, decompôs-se (IOCKEN, 2014, p. 23-24 e CASTRO, p. 90) este processo em fases ou ciclos, os quais, em geral, sofreram a seguinte categorização: 1) problematização; 2) formação da agenda; 3) formulação de soluções ou alternativas para alcançar os objetivos; 4) tomada de decisão; 5) implementação; 6) avaliação e a 7) conclusão do programa.

Na primeira fase, a da problematização, ocorre uma verdadeira disputa entre os atores públicos e privados para o preenchimento dos espaços “vazios” na agenda estatal, cujo embate, no mais das vezes, se dá de maneira assistemática, pulverizada e fragmentada em razão da multifacetariedade e complexidade (e até mesmo aleatoriedade) do fenômeno social que sofre a influência dos mais diversos fatores.

Nesta fase, a heterogeneidade dos atores envolvidos na disputa, sob a perspectiva dos seus valores, interesses e posições, acaba por influenciar o poder público condutor do processo a eleger as situações merecedoras de atenção, bem como o(s) enfoque(s) ou a(s) perspectiva(s) sobre a qual o tema será desenvolvido, com vistas a serem escolhidas para integrarem a agenda estatal relacionada às políticas públicas.

Há uma verdadeira filtragem e reorganização “promovida pelos atores sociais, que imprimem registros de inteligibilidade e de significação a uma realidade aparentemente caótica.” (IOCKEN, 2014, p. 87).

A segunda fase, a da formação da agenda, que se traduz no processo de eleição das prioridades de atuação do Estado, tem sofrido cada vez mais a interferência do processo de constitucionalização dos direitos fundamentais, ocorrida com a promulgação da CRFB, bem como com a respectiva mudança de postura por parte do Poder Judiciário que, com base no neoconstitucionalismo, tem tolerado cada vez menos a conduta omissiva ou a inação do Estado face a comandos normativos voltados à previsão de direitos subjetivos essenciais do homem.

Assim, a imposição ao Legislador de uma agenda composta de tarefas, fins e programas voltados à concretização de direitos fundamentais previstos na CRFB também redunda na obrigação, dirigida à administração pública, de formação de uma agenda a ser implementada, na medida em que os direitos fundamentais são a razão ou o motivo pelo qual o Estado deve agir através das políticas públicas (CASTRO, 2015, p. 102-103).

Esse sincretismo do processo de formatação das políticas públicas, isto é, essa inter-relação entre a política e diversas áreas do conhecimento, com especial destaque para o direito, tem contribuído para a eficiência, na medida em que elas se apresentam como limitadores recíprocos através dos indicadores produzidos em seus bojos.

Na fase da formulação de soluções ou alternativas para alcançar os objetivos, deve-se ter em vista, em primeiro lugar, a consecução dos resultados almejados, de modo a dar uma resposta efetiva a uma demanda social, isto é, de maneira a propiciar a concretização de um direito.

Não obstante, deve-se fazer uma ponderação entre os meios aventados e os resultados obtidos, levando-se em consideração os critérios da legalidade, legitimidade e economicidade, os quais correspondem, em última análise, ao princípio da eficiência, insculpido no art. 37, caput, da CRFB.

Em seguida, tem-se a fase da tomada de decisão que consiste na etapa em que os agentes públicos competentes escolhem, dentre as possibilidades erigidas na fase anterior, as alternativas que podem fazer frente aos problemas públicos definidos da melhor forma possível, isto é, levando em consideração os critérios da legalidade, legitimidade e da economicidade (art. 70, caput, da CRFB).

Diferentemente do que ocorre nas etapas anteriores (problematização e formulação de soluções), em que há a possibilidade de participação de uma pluralidade de atores, na fase da tomada de decisão, o número de participantes é reduzido, podendo se restringir a um grupo diminuto de pessoas ou até mesmo a uma única pessoa detentores legais de competência para a prática do ato administrativo de escolha.

A despeito da possibilidade de emprego de um racionalismo no bojo do processo de tomada de decisão, o qual também pode ser conduzido com base no modelo incremental (IOCKEN, 2014, p. 36), assentado em um processo de construção contínua, com vistas às ações já implementadas, na fase da implementação, a indeterminabilidade do resultado almejado, decorrente da fragmentação da construção do processo em vista da atuação descentralizada de múltiplos atores, da densidade técnica e da complexidade da ação pública e até mesmo da política eleitoral, se apresenta como uma característica típica e ordinária, pois “muitas vezes, apenas a realidade é capaz de identificar e mensurar variáveis não previstas na fase do planejamento.” (IOCKEN, 2014, p. 101).

Assim, primando-se pela busca da concretização de resultados afinados com os valores e normas encampados pelo sistema constitucional e, por consequência, pela eficiência da gestão pública, o sistema de controle deve levar essas contingências em consideração de modo a permitir a retomada e a reorientação do processo de formatação das políticas públicas, cuja reconstrução, não raro, acontece a posteriori (IOCKEN, 2014, p. 101).

A etapa da avaliação consiste na “fase do ciclo de políticas públicas em que o processo de implementação e o desempenho da política pública são examinados com o intuito de conhecer melhor o Estado da política e o nível de redução do problema que a gerou” (SECCHI, 2013, p. 63), a qual deve ser realizada com base em critérios (“mecanismos lógicos que servem como base para escolhas ou julgamentos” (SECCHI, 2013, p. 63) – eficiência, eficácia, impacto, sustentabilidade, análise custo-efetividade e satisfação do usuário), indicadores (“medidas indiretas, que devem ser calculadas a partir da identificação e quantificação dos resultados obtidos” ou “densificação dos critérios, ou seja, elementos capazes de permitir a aferição objetiva de algo que, antes, era abstrato” – CASTRO, 2015, p. 96) e padrões (“elementos que permitem referenciar, comparativamente, os indicadores” - CASTRO, 2015, p. 96).

A avaliação da política pública, que é obtida através da comparação entre a ação pública implementada e os padrões estabelecidos e que é realizada tanto internamente, isto é, no âmbito da pessoa jurídica de direito público ou de forma mais específica no bojo do órgão público condutor do programa, quanto externamente, através do sistema de controle externo desempenhado pelo poder legislativo, pelos tribunais de contas e pelo poder judiciário, tem o condão de aumentar a sensibilidade e a percepção que os atores políticos (SECCHI, 2013, p. 65) e sociais tem sobre a política pública de forma a promover um redirecionamento da política em andamento, assim como a servir de norte para a confecção de programas futuros.

Esgotada a fase da avaliação, desfecha-se o ciclo com o encerramento da política pública, que se dará com o alcance resultado esperado ou com a concretização da situação erigida, normalmente atrelada a um fator contingente, a exemplo do tempo.           


1.2. O sentido contemporâneo das políticas públicas: democracia substancial, direitos fundamentais e o direito fundamental à boa administração pública

De início, insta destacar que o poder constituinte que resultou na promulgação da CRFB de 1988 enunciou, em seu preâmbulo, que o Estado democrático, que se inaugurara, se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, lançando as bases orientativas mínimas para a formatação das políticas públicas.

Conforme explicitado alhures, os processos de constitucionalização dos direitos fundamentais, assim como o desenvolvimento do neoconstitucionalismo acarretaram a releitura da postura a ser adotada pelo Estado, cujas omissões frente a pretensões ligadas aos direitos fundamentais passaram a ser intoleradas, provocando uma diminuição da discricionariedade conferida tradicionalmente à Administração Pública e impondo a consecução de resultados coerentes com os valores constitucionais erigidos prioritariamente pelo constituinte, assim como de acordo com os referenciais de eficácia, eficiência e economicidade (IOCKEN, 2014, p. 79).

Trata-se de verdadeiro fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas (MENDES, 2004, p. 7-9).

Na visão de Luís Roberto Barroso, o fenômeno da judicialização ganhou proporção ainda maior em razão, dentre outras, da constitucionalização abrangente e analítica - constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – dos direitos (BARROSO, 2015, p. 439), bem como em virtude de não existem fronteiras fixas e rígidas entre os Poderes, havendo uma dinâmica própria e pendular nessas interações (BARROSO, 2015, p. 423-424).

Nesse contexto, imperioso destacar que a CRFB, em seu art. 1°, prescreve que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de direito e tem como fundamentos a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV), assentando genericamente as bases jurídico-positivas a partir das quais as políticas públicas devem ser elaboradas.

Ao instaurar o processo de redemocratização através da promulgação da CRFB, com a expressa assunção do regime de governo democrático (art. 1°, caput, e parágrafo único), o Estado brasileiro, além de assentar um marco histórico de mudança de sistema político, trouxe a lume uma série de normas prescritivas dirigidas à proteção da pessoa humana e ao desenvolvimento de instituições vocacionadas ao desenvolvimento desse novo regime a partir da interação entre elas, os indivíduos e a sociedade civil, provocando uma verdadeira transformação social.

Por se tratar de um fenômeno de natureza multidimensional, cuja dimensão humana e cultural é nuclear, a democracia, na qualidade de faceta do sistema político, que se mostra contingente aos valores encarnados pela sociedade em um dado espaço territorial e temporal, tem sofrido importante ressignificação.

Ao tempo de seu ressurgimento no Brasil, a democracia se centrava e se contentava com a adoção de um sistema de escolha de representantes, tanto do poder legislativo, quanto do executivo, através de um processo eleitoral, necessariamente periódico, com a participação ampla da população adulta.

Entretanto, transcorridos alguns anos de sua reinstauração, salta aos olhos sua limitação e insuficiência para garantia de diretrizes normativas basilares, como o “primado da lei, o respeito aos direitos dos cidadãos e o controle e a fiscalização dos governos” (PASE e BRILHANTE, 2015, p. 9), ressaindo evidente a prevalência de seu aspecto formal, procedimental ou minimalista.

Nesse contexto, tem ganhado corpo a concepção da democracia brasileira, ao lado formal ou procedimental, sob uma perspectiva substantiva ou material, com destaque para o seu conteúdo, vinculado “aos direitos fundamentais e centrada na realização do indivíduo em todas as suas potências”, apresentando-se, ainda, como uma “democracia de limite, de controle, de uso, e de ação do poder político.” (PASE e BRILHANTE, 2015, p. 3).

Assim, conclui-se que a democracia material impõe, ao Estado, a consecução eficiente de resultados efetivos de acordo com os valores incorporados ao texto constitucional, cuja primazia deve recair sobre os direitos fundamentais, representando a tônica do processo de formulação e implementação de políticas públicas.

De outro lado, tem-se que o processo democrático pode ser concebido como mecanismo de distribuição de autoridade, a exemplo da imposição da participação popular no planejamento público (art. 29, XII, da CRFB), em especial na gestão orçamentária, prevista no art. 4°, III, f c/c o art. 44 da Lei n. 10.257/2001 (BRASIL, 2001), que induz a repartição de “outros recursos cruciais para os cidadãos e para o funcionamento apropriado do processo, como poder, riqueza, educação, renda, acesso a conhecimento, oportunidades para desenvolvimento pessoal, entre outros.” (PASE e BRILHANTE, 2015, p. 12).

Em seguimento e em complemento, o art. 3° da CRFB elencou os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, os quais assumem a função de diretrizes e balizas jurídico-políticas do Estado brasileiro na formulação das políticas públicas, a saber:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Nesse ponto, percebe-se que os objetivos fundamentais do Estado brasileiro acima referidos, além de assumirem a feição de diretrizes jurídicas basilares para a formulação e execução das políticas públicas a serem levadas a cabo ordinariamente pelo poder executivo das respectivas unidades da federação, acabam por abranger, pela sua generalidade, toda e qualquer política pública a ser formulada, servindo de verdadeiro vetor jurídico da atuação estatal.

Assentadas tais premissas, fundamentos e diretrizes, a CRFB passa a estabelecer de forma mais específica, em seu título II, um rol de direitos e garantias fundamentais que, em razão de sua concretude, ostentam, de forma mais incisiva, a natureza de baliza jurídica para a atuação estatal na formulação das políticas públicas.

Apesar de haver um discenso doutrinário e até legislativo a respeito da nomenclatura dos direitos fundamentais, prevalece o entendimento no âmbito do direito internacional de que o mais adequado e usual é o termo direitos humanos, que se caracterizam pela “essencialidade de tais direitos para o exercício de uma vida digna”. (RAMOS, 2014, p. 51).

Esses direitos se caracterizam por sua centralidade, na medida em todas as normas do ordenamento jurídico devem ser interpretadas à luz dos direitos fundamentais (RAMOS, 2014, p. 87), pela universalidade, porquanto são atribuíveis, por inerência, a todos os seres humanos independentemente de qualquer outra qualidade (Art. 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948), pela indivisibilidade, haja vista que os direitos humanos são considerados uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada (RAMOS, 2014, p. 90) para se ter uma vida digna, é preciso ter seus direitos de primeira geração respeitados, assim como os direitos de segunda geração ou prestacionais, pela não exaustividade, porquanto o rol de direitos fundamentais se apresenta de forma exemplificativa, podendo ser extraído a partir da cláusula geral da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB) ainda que não esteja prescrito explicitamente, pela imprescritibilidade, inalienabilidade e indisponibilidade ou irrenunciabilidade, tendo em vista que não perecem pela passagem do tempo, não podem ser pecuniarizados, bem como não pode ser renunciados face a sua essencialidade.

Em seguimento, tem-se que a CRFB, em seu art. 5°, passou a estabelecer um rol de direitos e deveres individuais e coletivos que, em razão de sua particularidade, merece uma análise apartada, de modo que se torne possível visualizar um elo entre estes e as políticas públicas.

Por oportuno, traz-se a lume o estudo desenvolvido por Jellinek (apud RAMOS, 2014, p. 52) a respeito da posição do direito do indivíduo em face do Estado, no bojo do qual assentou as seguintes considerações em relação ao status negativo ou libertatis, litteris:

“Na segunda situação, o indivíduo possui o “status” negativo (status libertatis), que é o conjunto de limitações à ação do Estado voltado ao respeito dos direitos do indivíduo. O indivíduo exige respeito e contenção do Estado, a fim de assegurar o pleno exercício de seus direitos na vida privada. Nasce um espaço de liberdade individual ao qual o Estado deve respeito, abstendo-se de qualquer interferência. Jellinek, com isso, retrata a chamada dimensão subjetiva, liberal ou clássica dos direitos humanos, na qual os direitos têm o condão de proteger seu titular (o indivíduo) contra a intervenção do Estado. É a resistência do indivíduo contra o Estado. Ao Estado cabe a chamada prestação ou obrigação negativa: deve se abster de determinada conduta, como, por exemplo, não matar indevidamente, não confiscar, não prender sem o devido processo legal etc.” (apud RAMOS, 2014, p. 52).

Essa posição ou status se aproxima essencialmente dos direitos e deveres individuais e coletivos elencados no art. 5° da CRFB que representam em geral uma limitação à atuação estatal que se corporifica em uma conduta omissiva ou absenteísta.

Contextualizando historicamente, esse conjunto de direitos, denominados de 1ª geração pela doutrina constitucionalista, surgiu ao tempo das revoluções liberais do século XVIII ocorridas na Europa e nos Estados unidos, para se contraporem ao poder ilimitado das monarquias absolutistas, então, reinantes, representando o grupo de direitos mais importante à época de sua consagração.

Entretanto, apesar de Adam Smith, principal teórico econômico fundante do movimento político iluminista que embasou as referidas revoluções liberais do século XVIII ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, ter defendido que a “mão invisível” condutora da economia seria capaz de contemporizar os egoísmos individuais contrapostos (apud REALE, 2005, p. 37), o que se verificou, na prática (no mundo e no Brasil), com o surgimento e a expansão de uma nova classe político-social-econômica dominante, qual seja, a “burguesia”, cuja representatividade se espraia atualmente pelos mais diversos ramos da economia (indústria, comércio, bancos etc.), guiada por interesses egoísticos e predatórios, foi o incremento vertiginoso da concentração de renda, por um lado, e o subsequente crescimento de um grande número de pessoas hipossuficientes e desassistidas, o que acabou por reclamar uma mudança de postura do Estado, que teve que sair da inércia para assumir um papel mais ativo, seja intervindo na economia (arts. 173 e 174 da CRFB), seja oferecendo maior suporte às pessoas mais necessitadas.

A respeito da posição do direito do indivíduo em face do Estado, Jellinek (apud Ramos, 2014, p. 53-54) assentou as seguintes considerações em relação ao status positivo ou civitatis, in verbis:

“A terceira situação é denominada status positivo (status civitatis) e consiste no conjunto de pretensões do indivíduo para invocar a atuação do Estado em prol dos seus direitos. O indivíduo tem o poder de provocar o Estado para que interfira e atenda seus pleitos. A liberdade do indivíduo adquire agora uma faceta positiva, apta a exigir mais do que a simples abstenção do Estado (que era a característica do “status” negativo), levando a proibição da omissão estatal. Sua função original era exigir que o Estado protegesse a liberdade do indivíduo, evitando que sua omissão gerasse violações, devendo realizar prestações positivas. Assim, para proteger a vida, o Estado deveria organizar e manter um sistema eficiente de policiamento e segurança pública. Para assegurar o devido processo legal, o Estado deveria organizar de modo eficiente os recursos materiais e humanos do sistema de justiça. Porém, com a evolução das demandas e com o surgimento de novos direitos, emergem direitos a prestações sociais, nos quais se cobra uma ação prestacional do Estado para assegurar direitos referentes à igualdade material, como, por exemplo, direito à saúde, direito à educação etc.” Grifos nossos. (RAMOS, 2014, p. 53-54).

Essa posição ou status se aproxima essencialmente dos direitos sociais elencados prefacialmente nos arts. 6° ao 11 da CRFB que representam em geral um direito subjetivo a uma prestação material titularizado pelo indivíduo e oponível ao Estado, cuja atuação se corporifica em uma conduta comissiva.

Esse conjunto de direitos, denominados de segunda geração/dimensão/integração pela doutrina constitucionalista, passou a existir a partir da Revolução industrial ocorrida na Europa no final do século XVIII e início do século XIX, com o surgimento, nas cidades, da classe operária submetida a condições degradantes de trabalho, as quais passaram a reivindicar condições dignas de trabalho e de vida, conforme sintetizado por Ramos (2014, p. 55), senão veja-se:

“A segunda geração de direitos humanos representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um vigoroso papel ativo, além do mero fiscal das regras jurídicas. Esse papel ativo, embora indispensável para proteger os direitos de primeira geração, era visto anteriormente com desconfiança, por ser considerado uma ameaça aos direitos do indivíduo. Contudo, sob a influência das doutrinas socialistas, constatou-se que a inserção formal de liberdade e igualdade em declarações de direitos não garantiam a sua efetiva concretização, o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado para assegurar uma condição material mínima de sobrevivência. Os direitos sociais são também titularizados pelo indivíduo e oponíveis ao Estado. São reconhecidos o direito à saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros, que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento e são denominados direitos de igualdade por garantirem, justamente às camadas mais miseráveis da sociedade, a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos. Os direitos humanos de segunda geração são frutos das chamadas lutas sociais na Europa e Américas, sendo seus marcos a Constituição mexicana de 1917 (que regulou o direito ao trabalho e à previdência social), a Constituição alemã de Weimar de 1919 (que, em sua Parte II, estabeleceu os deveres do Estado na proteção dos direitos sociais) e, no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo direitos dos trabalhadores (ver abaixo a evolução histórica dos direitos humanos).” (RAMOS, 2014, p. 55).

Calha ressaltar que a utilização somente do critério cronológico para a divisão do direito em gerações, segundo o seu surgimento e sua garantia no mundo jurídico, está ultrapassada, motivo pelo qual preferimos utilizar a expressão “geração/dimensão/integração”, tudo consoante às lições de Trindade (1997, p. 390):

A visão compartimentalizada dos direitos humanos pertence ao passado e, como reflexo dos confrontos ideológicos de outrora, já se encontra há muito superada. O agravamento das disparidades sócio-econômicas entre os países, e entre as camadas sociais dentro de cada país, provocou uma profunda reavaliação das premissas das categorizações de direitos. A fantasia nefasta das chamadas “gerações de direitos”, histórica e juridicamente infundada, na medida em que alimentou uma visão fragmentada ou atomizada dos direitos humanos, já se encontra devidamente desmistificada. O fenômeno que hoje testemunhamos não é o de uma sucessão, mas antes de uma expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados consoante uma visão necessariamente integrada de todos os direitos humanos.

Por outro lado, Guerra Filho (2005, p. 46-47) destaca que:

ao invés de ‘gerações’ é melhor se falar em ‘dimensões’ de direitos fundamentais. [...] as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas”, e prossegue citando como exemplo “o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental.

Com efeito, retomando a discussão, tem-se que o poder constituinte de 1988 passou a prever, em seu art. 6°, de forma analítica e programática um conjunto de direitos vocacionados a atenderem às demandas sociais, como forma de reequilibrar ou amenizar as forças sociais, indo ao encontro dos objetivos assumidos pelo Estado em seu art. 6°, em prol do desenvolvimento do país, nos termos em que se seguem:

Art. 6°. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Partindo dessa base jurídica, a CRFB passou a prescrever de maneira minudenciada, no bojo do título VIII – da ordem social, diversas espécies de direitos sociais, a exemplo da seguridade social (arts. 194 e 195); saúde (arts. 196 ao 200); previdência social (arts. 201 e 202); assistência social (arts. 203 e 204); educação (arts. 205 ao 210); cultura (arts. 215 e 216); desporto (art. 217); ciência, tecnologia e inovação (arts. 218 e 219); comunicação social (arts. 220 a 224); meio ambiente (art. 225); família, criança, jovem e idoso (arts. 226 a 230) e índios (arts. 231 e 232).

Nesse contexto, como ponto de partida, percebe-se que a CRFB recebeu forte influência da corrente política social-liberal, que preconiza o compromisso do Estado brasileiro com a justiça social para fazer frente à histórica dívida social, bem como com a promoção do bem-estar social dos indivíduos, e parte do pressuposto de que o “[...] Estado não deve se reduzir à economia, cabendo-lhe atuar, como igual força e dedicação, em prol dos valores existenciais da educação, da saúde, do meio ambiente e da cultura [...]”, cuja formatação se mostra contingente e aberta “rumo à democracia social”. (REALE, 2005, p. 41).

Assim, além da fundamentalidade formal dos direitos fundamentais, decorrente de sua previsão explícita no texto constitucional, do reconhecimento de sua primazia jurídica, na medida em que os diplomas normativos infraconstitucionais que versam sobre direitos humanos possuem caráter supralegal (STF, Tribunal Pleno, RE n. 466343, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 03.12.2008, DJe de 5.6.2009), da sua intangibilidade (cláusulas pétreas) formalmente prevista no art. 60, § 4°, II e IV, da CRFB, da sua aplicabilidade imediata (art. 5°, § 1°, da CRFB), tem-se a sua fundamentalidade material, inferida de sua primazia axiológica, a qual é reforçada pelos valores encampados pelo constituinte de 1988 no preâmbulo da CRFB (democracia, garantia do exercício dos direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça), os quais foram incorporados juridicamente aos princípios que regem a República Federativa do Brasil (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político – art. 1° da CRFB) e endossados nos objetivos fundamentais erigidos no art. 3° da CRFB (construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e a da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).

Dessa dupla fundamentalidade dos direitos fundamentais decorrem os caracteres subjetivos – pretensão a uma prestação pertencente a um sujeito de direito e oponível ao Estado – e objetivo, que se revela como opção valorativa adotada pelo constituinte de 1988, que denotam, para além de uma eficácia dirigente voltado ao Estado, uma ordem cogente no sentido de sua efetiva concretização e realização prioritária em relação a outros bens jurídicos e direitos, significando a imposição de uma agenda de ação quanto aos programas públicos e exsurgindo evidente uma redução da margem de discricionariedade tradicionalmente conferida à administração pública de forma mais alargada.

Ainda, além de colocar em evidência a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB) e a construção da cidadania em sua integralidade (prisma político, civil e social) - art. 1°, II, da CRFB, a democracia substantiva ou material impõe o bom e efetivo funcionamento do Estado.

Nesse diapasão, tem-se concebido contemporaneamente como direito fundamental o direito à boa administração pública, por inspiração do art. 41 da declaração de direitos fundamentais da União Europeia, que estabelece que “Direito a uma boa administração - 1. Todas as pessoas em direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável” (UNIÃO EUROPÉIA, 2000).

Segundo Freitas, o direito à boa administração pública consiste em um “direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas.” (FREITAS, 2007, p. 7).

No Brasil, partindo da leitura combinada dos arts. 1°, 2°, 5°, 6°, 14 e 37, dentre outros, da CRFB, é possível concluir que o direito à boa administração pública encontra guarida no sistema constitucional pátrio, de modo que pode ser reivindicado juridicamente. Quanto ao direito à boa administração, Muñoz (2012, p. 17) sintetiza essas angustias ao afirmar que:

O bom governo e a boa administração dos tempos em que vivemos há de estar comprometidos radicalmente com a melhora das condições de vida das pessoas, devem estar orientados a fomentar a liberdade solidária dos cidadãos. Para isso, é preciso que o governo e a administração trabalhem sobre os problemas reais do povo e procurem buscar as soluções escutando os setores atingidos.

Daí, Valle (2011, p. 165) asseverar que:

Isso significa legar ao Estado a tarefa de entender que direito fundamental à boa administração – ou direito fundamental á governança -, como elemento de legitimação do agir do poder, é algo que só se alcança a partir da presença efetiva da cidadania como coautora das escolhas públicas.

Por fim, com vistas a propiciar a concretização dos direitos fundamentais, os quais deveriam ser aviados ordinariamente através da formulação e implementação das políticas públicas, a CRFB incrementou o acesso à justiça através de uma série de instrumentos e instituições vocacionadas a tutelar tais direitos, a exemplo do direito de petição aos poderes públicos independentemente do pagamento de tributos (art. 5°, XXXIV, a, da CRFB), da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5°, LXXIV, da CRFB) a ser patrocinada pela defensoria pública, a quem incumbe a orientação jurídica e a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, a teor do que prescreve o art. 134 da CRFB.

A par dessa ampliação judicial e ainda no bojo do sistema de controle das políticas públicas, o qual é composto por uma pluralidade de centros constitucionais de poder, ganha destaque o sistema de controle externo desempenhado pelos tribunais de contas que, “direcionadas à aferição da legitimidade fiscal, alarga o campo de controle, maximizando os efeitos da judicialização da política, agora sob a ótica orçamentária, financeira, patrimonial e contábil” (IOCKEN, 2014, p. 79), cujo sistema será objeto de estudo no capítulo terceiro desta dissertação.

Importante destacar que o desenvolvimento de um país está essencialmente ligado às oportunidades que oferece aos seus cidadãos de fazer escolhas e exercer plenamente sua cidadania. E isso não inclui apenas a garantia de direitos sociais básicos, como a saúde e a educação, mas também a segurança, liberdade, habitante e cultura (SEN, 2010).

Afinal, a política pública, como programa de ação governamental voltado à formulação e implementação de soluções para os problemas públicos relacionados às demandas da sociedade, deve ser concebida à luz do regime democrático substancial que se assenta no direito fundamental à boa administração e direciona a atuação estatal para a concretização eficiente dos direitos fundamentais dos cidadãos.


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Autor

  • Eduardo Luz Gonçalves

    Graduado em Direito pela UFPI, Pós-graduado lato sensu em Direito Processual pela UFPI, Mestrando em Desenvolvimento Regional pela UNIALFA, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Procurador da Fazenda Nacional e Procurador do Ministério Público de Contas do Estado de Goiás.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Eduardo Luz. O sentido contemporâneo das políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5491, 14 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67554. Acesso em: 27 abr. 2024.