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A fundamentação discursiva dos direitos humanos em Habermas

A fundamentação discursiva dos direitos humanos em Habermas

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Com base na teoria do agir comunicativo e da ética do discurso de Habermas, examinou-se a sua fundamentação discursiva dos direitos humanos, confrontando argumentos que lhe são favoráveis e contrários.

Introdução

O presente artigo consiste em uma análise do tema da fundamentação discursiva dos direitos humanos em Habermas. Essa fundamentação irá amparar-se na teoria ético-discursiva habermasiana. Não serão, portanto, objeto deste artigo, questões relativas à implementação e proteção prática dos direitos humanos, as quais - ainda que de suma importância - devem ser perscrutadas, sem prejuízo da investigação de questões acerca dos fundamentos teóricos dos direitos humanos. A busca por fundamentos teóricos para os direitos humanos conduziu-nos à ética do discurso habermasiana, cujo cunho racional, universalista e formal nos parece contribuir para a afirmação da universalidade dos direitos humanos frente às manifestações críticas a essa universalidade.

Antes de examinar, porém, essa teoria e sua contribuição à fundamentação dos direitos humanos, a preocupação teórica será a de expor alguns dos principais aspectos filosóficos, históricos, políticos e jurídicos, surgidos após o Iluminismo, que contribuíram para a crise da universalidade ética e dos direitos humanos no mundo contemporâneo. Será, assim, empreendida uma sucinta análise de fatos e ideias, que abordará tendências factuais e intelectuais que conduziram à crise da modernidade e do Iluminismo, notadamente no que concerne à universalidade ética e dos direitos humanos nos tempos hodiernos.

No que concerne à crise da modernidade e do Iluminismo, será destacada a posição anti-fudacionalista e anti-universalista de Richard Rorty, em contraposição à posição habermasiana.

Por fim, será promovida uma análise da ética do discurso em Habermas, nela ressaltando elementos conducentes à fundamentação dos direitos humanos, em especial da sua universalidade.


I - A crise da Universalidade Ética e dos Direitos Humanos: Aspectos filosóficos, históricos, políticos e jurídicos contemporâneos

O legado universalista ocidental, que remonta às tradições greco-romana e judaico-cristã, mas se consolida, especialmente, com o Iluminismo - contribuiu para afirmação da universalidade ética e dos direitos humanos. Há, contudo, na atualidade, um conjunto de manifestações teóricas e práticas que confronta essa herança universalista.

Tais manifestações ocorrem, por exemplo, na filosofia contemporânea, designada pós-moderna, cujo ceticismo e relativismo éticos condenam a modernidade iluminista, e ocorrem ainda sob a forma de movimentos políticos, culturais e religiosos particularistas, cuja característica comum reside no apelo emocional a algum elemento particular e no repúdio, muitas vezes violento, ao universalismo. Esse repúdio atinge a universalidade dos direitos humanos, contestada por argumentos antiuniversalistas.

Em certa medida, portanto, hoje se verifica não apenas uma afirmação da universalidade ética e dos direitos humanos, mas também a sua negação. Visa-se aqui investigar aspectos de algumas dessas manifestações críticas do legado universalista ocidental.    

As manifestações teóricas antiuniversalistas são, em geral, reunidas no que se tem chamado pensamento pós-moderno, que se pretende ser não só posterior ao pensamento moderno, mas, sobretudo, antimoderno. Assim sustenta Habermas: "A pós-modernidade apresenta-se deliberadamente sob traços de uma antimodernidade" (HABERMAS, 1987, p. 5)

Para Habermas, o pensamento ocidental, desde o fim do século passado, com fim dos grandes sistemas metafísicos do idealismo alemão tem-se caracterizado, sobremaneira, pela reação à prevalência, ao longo da tradição da metafísica ocidental, do universal, do atemporal e do necessário sobre o particular, o mutável e o contingente. (HABERMAS, 1990, p. 43). Assim, essas manifestações teóricas de pensamento pós-moderno, presentes em diversas áreas das ciências e da Filosofia, contestam o jugo racionalista e universalista da modernidade.

Segundo Manfredo Araújo de Oliveira, o pensamento pós-moderno

"privilegia a heterogeneidade e a diferença como força libertadora na vida humana, defende a fragmentação e a indeterminação do pensar, sendo marcado por uma profunda desconfiança em relação ao que considera o caráter opressor e nivelador de todo discurso universalista. Fala-se, hoje, da morte desta razão una e universal e se proclama o início de um novo tempo em que o pluralismo das múltiplas razões substitui a "razão totalizante" da tradição". (OLIVEIRA, 1995, p. 159)

Segundo Sérgio Paulo Rouanet, a sociedade, tal qual é caracterizada pelo pensamento pós-moderno, é um

"fervilhar incontrolável de multiplicidades e particularismos, pouco importando se alguns vêem nisso um fenômeno negativo, produto de uma tecnociência que programa os homens para serem átomos, ou outros um fenômeno positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas as totalizações ou o terrorismo do conceito, ou o da polícia". (ROUANET, 1987, p. 234)

De acordo com Rouanet, estaríamos a testemunhar, nos tempos atuais, o colapso do próprio projeto civilizatório da modernidade.

"Não se trata de uma transgressão na prática de princípios aceitos em teoria, pois nesse caso não haveria crise de civilização. Trata-se de uma rejeição dos próprios princípios, de uma recusa dos valores civilizatórios propostos pela modernidade. Como a civilização que tínhamos perdeu vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie". (ROUANET, 1993, p.11) 

Segundo, Manfredo A. de Oliveira, vive-se, na atualidade, uma crise da civilização da razão, haja vista a convicção, largamente disseminada nos meios intelectuais, de que

"nossa razão mostra-se hoje uma ilusão, ou seja, nossa razão parece emergir como racionalidade perversa, dominadora. A racionalidade ter-se-ia tornado cínica, pois por trás da máscara do esclarecimento e da liberdade, na verdade, o que caracteriza nossa epocalidade é a experiência da perda de sentido da vida, através da institucionalização e da concretização de uma razão que é antes desrazão perversa, instrumental, não só dominando a natureza e os homens, mas ameaçando a própria vida humana"(OLIVEIRA, 1995, p. 68) 

As críticas à modernidade – notadamente às correntes de pensamento jusnaturalista e liberal -, elaboradas por Hegel e seus seguidores, apelam não para uma negação da modernidade; antes indicam a necessidade realizar as mais belas promessas do Iluminismo: emancipação econômica, política e intelectual do gênero humano, a partir do potencial libertador da razão esclarecida, bem como tentar oferecer uma compensação pela dissolução do mundo religioso. Essa compensação e os impasses da modernidade só podiam ser superados pelo uso do instrumento por excelência da modernidade - a razão. Assim, tanto a esquerda - sobretudo com Marx - quanto a direita hegeliana procuraram curar os males da modernidade com os recursos intelectuais da modernidade, e sem em nenhum momento contestar seus valores fundamentais. (HABERMAS, 2000, p. 89-91)

A civilização da razão, cujo apogeu ocorre na modernidade, só encontrará, a partir do explosivo pensamento de Nietzsche, elementos que irão solapar alicerces dessa civilização, uma vez que a crítica nietzscheana a ela se manifesta na contraposição radical entre razão e vida dotada de sentido. A história dessa civilização origina-se com o inventor da metafísica e da ética: Sócrates, cujo papel nefasto, segundo Nietzsche, consistiu em ter feito prevalecer no Ocidente o homem teórico e apolíneo, para o qual importa a racionalidade provedora de conceitos e valores transcendentais, estáticos, coerentes, homogeneizadores, universais, necessários, e impositivos, sobre o homem trágico dionisíaco pré-socrático, para o qual interessa a vida mundana, mutante, contraditória, heterogênea particular, contingente e superiormente livre. Para Nietzsche, a sobrevalorização do homem teórico apolíneo representou um niilismo concernente à vida humana, naquilo que possui de mais autêntico, seu furor pulsional, espontaneidade e criatividade. O Cristianismo surgiu para reforçar esse niilismo, sustentando a ideia de pecado, cerne da moral dos fracos, cujo propósito seria o de tentar constranger os fortes. (NIETZSCHE, 1983, passim)

Esse niilismo, para Nietzsche, atinge seu ápice na modernidade. Esta representa a época de maior negação da vida e , por conseguinte, precisa ser integralmente rejeitada. A crítica nietzscheana da modernidade e de sua racionalidade opressora constituir-se-á em ponto de partida teórico das críticas produzidas pelo pensamento pós-moderno, seja na vertente antimetafísica de Heidegger e Derrida, seja na corrente pós-estruturalista de Bataille, Barthes, Lacan e Foucault, entre outros como Deleuze, Lyotard, Guattari e Baudrillard. (HABERMAS, 2000, passim)

 Todos esses pensadores pós-modernos, acima mencionados, criticam a razão, que é denunciada na medida em que perde sua função subversiva e emancipatória e se põe a serviço do poder, instrumento de repressão e adversária do prazer. Esses pensadores são vistos como os arautos da pós-modernidade filosófica, ao anunciarem o reino do particular contra o geral, do fragmento, contra a totalização, do corpo contra a razão,.(HABERMAS, 2000, passim)

No âmbito da recusa à racionalidade moderna, o pensamento pós-moderno repugna especialmente o universalismo, tão exaltado pela modernidade iluminista. Esse universalismo é proclamado pelos iluministas do século XVIIII, especialmente no âmbito da moral, no intuito de demonstrar que a religião não era indispensável para assegurar a observância da lei moral universal. Até o final do século XIX, prevaleceu, nos meios intelectuais, a defesa de uma moral universalista, laica e racional, mas a partir do início do século XX século, ocorre o que Rouanet chamou de "mutação moral":

"No início do século XX, começou a delinear-se uma certa mutação moral. A psicanálise devassou os mecanismos da repressão. Simultaneamente, o modernismo estético passou a valorizar a espontaneidade, a dessublimação, a vida pulsional. O surrealismo passou a advogar a estetização da vida, sua transformação em obra de arte. Em contraste com a moral burguesa do início do capitalismo, a moral do capitalismo tardio tornou-se crescentemente anárquica, invertendo a hierarquia tradicional entre a razão e as paixões: a inteligência era agora vista como secundária com relação ao desejo." (ROUANET, 1987, p. 247) 

Além da substituição da austeridade e o autocontrole, que caracterizavam o capitalismo ascético no início da modernidade, pelo hedonismo, cada vez mais presente nas sociedades pós-industriais, sustenta Bauman haver uma regressão para o particularismo ético das sociedades tradicionais, o qual tem se manifestado nas várias subculturas (culturas jovens, seitas, movimentos ecologistas e pacifista, etc.), que proliferaram desde os anos 70, atomizando a moral. Essa seria a "condição pós-moderna" da moralidade. (BAUMAN, 1997, passim)

Essa “condição pós-moderna” da moralidade pressupõe um antiuniversalismo ético que questiona as quatro teses fundamentais do universalismo ético moderno e iluminista - já mencionadas no tópico anterior - que afirmam: 1) uma natureza humana universal; 2) interesses universais da humanidade prevalecentes sobre os interesses particulares (Cosmopolitismo); 3) a possibilidade de firmar critérios universais de moralidade(Princípios de fundamentação da ação moral) e , por fim, 4) a existência de normas e valores universais substantivos.

Crítica à primeira tese

Apelando à história, o antiuniversalismo dirige-se a contra a concepção da natureza humana ou do homem universal, pois este seria uma abstração a-histórica e, portanto, vazia. Recorrendo, ao contexto social, nega essa concepção, por não inserir o homem no conjunto de suas de determinações sociológicas, desconsiderando que o homem é um produto do seu meio e da sua comunidade. Enfim, utilizando-se de aspectos somáticos, relativos a elementos ligados ao código genético, à fisiologia ou à endocrinologia, recusa a existência de seres humanos indiferenciados. (ROUANET,1993, p. 52)

Muitos pensadores marxistas, como Louis Althusser (Dicionário de Sociologia, p. 37), negaram a existência de uma natureza humana universal, pois tal natureza sempre fora caracterizada ao molde dos interesses burgueses. Assim, o pensamento liberal afirmou, por exemplo, ser próprio da natureza humana o desejo de acumular riqueza, quando, para os marxistas e o próprio Marx, esta paixão aquisitiva não seria própria do homem e, sim, de uma classe social, em dado momento histórico. Os marxistas criticavam ainda o caráter abstrato e formal dos direitos humanos tal como eles se apresentavam nas fases primeira e segunda da história dos direitos humanos.

Ao longo do século XIX e início do século XX, o caráter universal, abstrato e formal dos direitos humanos encontrava-se em crescente contradição com as condições particulares, concretas e materiais de vida da maioria da população mundial. As disparidades econômicas e sociais entre classes e entre países agravavam-se com o rápido processo de industrialização dos países capitalistas avançados e com o processo de colonização da Ásia e África.

A crítica marxista à universalidade dos direitos humanos contribuiu, no entanto, no final do século XIX e início do XX, a partir de acontecimentos como a Revolução Russa e a Constituição de Weimar para o surgimento de uma terceira fase dos direitos humanos, a qual, agora, contemplaria os direitos econômicos, sociais e culturais. Afirmam-se, agora, direitos de coletividades ao seu livre desenvolvimento econômico, social e cultural. Essas fases de direitos não divergem, porém, quanto à universalidade dos direitos humanos. (FERREIRA FILHO, 1998, p.48-9)

Crítica à segunda tese

Além da crítica à ideia de uma natureza universal, verifica-se ainda que o cosmopolitismo ou o internacionalismo modernos vem sendo criticado. Essas críticas traduzem posições nacionalistas de direita, como as professadas, por exemplo, por Georg Haider, na Áustria, ou Le Pen, na França, e revelam origem fascista ou nazista, cujas manifestações são, especialmente, o racismo e a xenofobia. Há ainda críticas decorrentes do nacionalismo de esquerda de matiz marxista de governos bolivarianos e grupos guerrilheiros latino-americanos (Zapatistas), que, justificam o repúdio a qualquer referência estrangeira como forma de resistência ao imperialismo e de preservação da identidade nacional. Em alguns casos, os nacionalismos, de cunho político, étnico e religioso, têm instigado o fervor separatista, especialmente depois do fim da Guerra Fria, o qual parece ter despertado ódios ancestrais, eclodindo guerras fratricidas, como a que ocorreu nos Bálcãs. 

Crítica à terceira tese

Os critérios universais da moralidade também são contestados como sendo, na verdade, relativos a culturas particulares. O imperativo categórico kantiano, por exemplo, não seria um fato da razão, como julgava Kant, mas expressão da cultura racionalista europeia, que se pretendeu universal e assim procurou se impor a outras culturas.

Crítica à quarta tese

A universalidade de certas normas substantivas é, por fim, negada em nome da afirmação de particularismos nacionais, raciais, classistas e culturais. Essa universalidade está sendo sabotada, sustenta Rouanet: "Os nacionalismos mais virulentos despedaçam antigos impérios e inspiram atrocidades de dar inveja a Gêngis Khan. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham eleições". (ROUANET, 1993, p. 9)

- O particularismo nacional ou o nacionalismo, seja de direita, seja de esquerda, sustenta que não há nem pode haver normas substantivas universais, porquanto isso representaria um desrespeito às normas substantivas particulares e nacionais.

“Para o nacionalismo conservador, inspirado em Herder, o homem não existe como normatividade transcultural e trans-histórica. A moral finca suas raízes no Volksgeist, e como cada povo tem seu Geist, os valores morais são múltiplos. O que é válido hoje, na Alemanha, não foi válido, antes, na Grécia antiga, nem válido na França contemporânea.(...) para o nacionalismo de esquerda, muda a intenção política, mas não o dispositivo teórico. Os valores da metrópole e os dos povos colonizados são distintos e incomensuráveis, com a consequência de que a primeira não pode, sem etnocentrismo, transferir seus valores para os segundos, e estes não podem, sem alienar-se, aceitar normatividades que lhe são estranhas”.(ROUANET, 1993, p. 240)

- O particularismo racial sustenta que a universalidade normativa não leva em consideração a diversidade racial, isto é, as peculiaridades de cada raça, incluindo-se os valores e normas morais próprios. A afirmação do particularismo racial, em sua versão conservadora, manifestou-se no racismo ariano e no anti-semitismo nazista, em sua versão “progressista”, revelou-se, por exemplo, no racismo negro, encontrado em países como Estados Unidos e Brasil. (ROUANET, 1993, p. 240)

- O particularismo classista encontra respaldo teórico no marxismo ortodoxo, pelo qual se contestou o universalismo normativo, por considerá-lo uma máscara universal da moral particular burguesa, a qual está a atender não aos interesses do ser humano em geral, mas apenas aos da classe burguesa. (ROUANET, 1993, p. 241)

- O particularismo cultural repudia a universalidade normativa por entendê-la como manifestação do etnocentrismo europeu e norte-americano, pelo qual os valores e normas da Civilização Ocidental, por serem considerados superiores, deveriam ser “exportados” para as culturas “selvagens” ou “inferiores” como verdadeiramente universais. (ROUANET, 1993, p. 241-2)

Reagindo contra o evolucionismo eurocêntrico do século passado, que considerava a civilização ocidental um exemplo a ser visado como modelo por todo o resto da humanidade, antropólogos como Ruth Benedict e Melville J. Herskovits e outros cientistas sociais, sustenta Rouanet (1993, p. 241-2), asseveram que não existe o Homem; só existem homens, no plural, sempre situados em suas respectivas culturas, que lhes prescrevem o horizonte do que pode ser conhecido e pensado., bem como não há mais a cultura, como depósito de valores comuns, mas culturas, conjuntos individualizados de hábitos, atitudes, representações coletivas, maneiras de sentir e de fazer . Assim, as culturas são incomensuráveis entre si, o que é verdadeiro em uma não o é em outra, e as normas e valores de uma são diferentes das normas e valores de outra. Dessa forma, dissolve-se o homem em sua cultura, proclamando a existência de tantas humanidades particulares quantas forem as culturas.

Segundo Rouanet, os antropólogos culturais contemporâneos supracitados, afirmam:

 “que o pluralismo cultural e ético é visto não somente como um fato, mas como algo moralmente valioso em si mesmo. A heterogeneidade cultural funda uma política da tolerância, pois, se todos os sistemas normativos são moldados pela cultura, não há padrões científicos para julgar normas alheias, e, portanto, qualquer tentativa de avaliação seria, além de arrogante e imperialista, teoricamente injustificada”.(ROUANET, 1993, p. 241)

Para o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, o relativismo contamina quase toda a antropologia moderna, o qual seria, parcialmente, resultante de um complexo de culpa da disciplina em face das teorias evolucionistas que predominaram neste campo teórico. A desmoralização legítima e o desmascaramento do caráter ideológico dessas teorias, pela antropologia moderna, degeneraram, contudo, na ideologia do relativismo, que oculta a possibilidade de superar o etnocentrismo por meio de um virtual acordo entre agentes étnicos distintos.(OLIVEIRA, 1996, p. 19) 


II –  O debate entre Rorty e Habermas: contextualismo x universalismo. 

O relativismo disseminado, não apenas na Antropologia, é também uma das marcas do pragmatismo de Richard Rorty. 

O pragmatismo, seja na versão de seus fundadores como Peirce, James e Dewey, seja em versão mais recente, como a de Debrock e Rorty, apresenta alguns traços comuns, quais sejam:

uma crítica a formulações metafísicas e ao prestígio dado ao fundacionalismo, ou seja, à filosofia como ramo do pensamento responsável por encontrar os fundamentos das coisas do mundo. Além disso, está presente no estilo pragmatista uma noção de responsabilidade filosófica no sentido de que ao invés de se aprimorar no estudo dos princípios e categorias apriorísticas, o filósofo deve buscar uma melhor consciência das conseqüências e dos resultados obtidos com as nuances do discurso filosófico. Finalmente, em vez de visualizar o homem como um ser neutro, imparcial e asséptico, para o pragmatismo o contexto é peça fundamental para se analisar fatos, problemas e questões e oferecer sugestões úteis e eficazes. (...) O anti-fundacionismo, o consequencialismo e o contextualismo formam uma espécie de tripé de sustentação de toda a formulação pragmatista (KAUFFMAN, 2010, p. 66 e 67)

Não seria inexato dizer que, em Rorty, o consequencialismo (versão contemporânea do utilitarismo) e do contextualismo (versão linguístico-pragmática do relativismo) decorrem do anti-fundacionalismo, isto é, da recusa do esforço racional e milenar, porque inútil e inglório, em encontrar fundamentos teóricos ou filosóficos transcendentais, universais e transepocais, bem como um conceito de verdade eterno.

Para Rorty, verdade é simplesmente o nome dado à propriedade compartilhada por todos os enunciados ditos verdadeiros. Rorty duvida, porém, que haja uma essência ou um conceito universal de verdade, por isso ele descarta a necessidade desse vocábulo, principalmente se ele vier acompanhado da insistência (habermasiana) em universalizar as pretensões de verdade atreladas a enunciados teóricos.

Em Rorty, em lugar de buscarmos o argumento mais racional (Habermas), devemos buscar o argumento que funciona melhor para uma dada audiência (sempre contextualizada). Para Rorty (2005a, 2005b), não há, portanto, argumentos melhores ou piores, independentemente dos contextos em que são enunciados. Afirma ele que a racionalidade, o saber e a verdade brotam da contingência e revelam-se ferramentas que podem ser úteis para lidar com problemas cotidianos.

O contextualismo rortyano não adota, cegamente, - é bem verdade - um relativismo cultural absoluto, vez que admite que há audiências que são melhores moral e politicamente que outras, defendendo, como Habermas, os contextos sociais democráticos, pluralistas e tolerantes, o que não deixa de colocar Rorty em posição contraditória com o seu contextualismo. Habermas, aliás, entenderá que Rorty acaba mesmo entrando numa contradição performativa, conceito que será posteriormente explanado.

Considerando, todavia, coerente o seu contextualismo, Rorty o dispensa de fundamentação teórica.

Assim, acerca das ideias de Rorty, afirma Benvindo:

Como um experimento que se realiza institucionalmente pelas práticas de vida, o pensamento do autor se volta para o estabelecimento de uma comunidade moral e jurídica que pode, por meio da linguagem, aprofundar a democracia e, por consequência, continuamente reinventar as instituições e incitar transformações nas relações interpessoais. Se há alguma razão a ser afirmada, ela somente pode ser compreendida como práticas compartilhadas comunicativamente. Não há, por isso, a necessidade de um fundamento, de uma ordem universal a-histórica, rompendo-se a ligação entre verdade e justificabilidade. (BENVINDO, 2010, p. 183)

Prossegue Benvindo sobre Rorty:

Suas palavras são fortes e, no âmbito da democracia e dos direitos humanos, expõem uma preocupação muito mais direta com o funcionamento das instituições do que, propriamente, com a busca de um fundamento seguro, típica característica da filosofia moderna. Os efeitos no âmbito do constitucionalismo são sentidos pela necessidade de se abandonar o questionamento sobre o fundamento da Constituição e sua substituição pela pergunta sobre a finalidade que dela se espera. Essa ênfase teleológica – e, por conseguinte, não originária – é o parâmetro para se aferir a legitimidade das instituições. (BENVINDO, 2010, p. 184)

Para Habermas, embora Rorty tenha acertado em sua crítica ao intento metafísico de fundamentação absoluta da verdade, valorizando a práxis social de contextos linguísticos e pragmáticos situados histórica e culturalmente, o pensador norte-americano, todavia, se equivoca em repudiar, por completo, um esforço racional de fundamentação pós-metafísica da pretensões universais de validade em ações comunicativas contextualizadas em busca do melhor argumento sobre o qual repousaria um consenso racional, ainda que mutável.

Segundo o filósofo alemão, Rorty, assim como Gadamer, desconsidera a força crítica da razão, em face de tradições culturais e contextos sociolinguísticos consolidados. Em última análise, esses dois últimos pensadores acabam rendendo-se à facticidade, quando esta deve estar em tensão complementar com a validade.

Em Habermas, já não se trata de uma racionalidade monológica ou solipsista, mas de uma racionalidade comunicativa, que se verifica em ações comunicativas, cujos participantes travam debatem racionais e partem de pressuposições universais, cuja refutação resulta em contradição performativa, sendo esse o equívoco maior de Rorty.

Afastando-se da crítica ao pragmatismo rortyano, Habermas constrói sua concepção discursiva dos direitos humanos e da democracia, com base em sua teoria do agir comunicativo e em sua ética do discurso, o que se poderá constatar a seguir.


 III - A fundamentação da universalidade dos direitos humanos mediante a ética do discurso de Habermas

A. fundamentação da universalidade dos direitos humanos: necessidade e status

A crise da universalidade dos direitos humanos sugere que o esforço de fundamentação ético-filosófica dessa universalidade ainda é necessário. Haja vista que as impugnações políticas mencionadas, em grande medida, põem em cheque a base teórica de sustentação da universalidade dos direitos humanos, solapando a força das iniciativas práticas de implementação desses direitos.

Parece-nos, portanto, precipitada a concepção de que já se tenha superado a fase de fundamentação dos direitos humanos, como defendem, por exemplo, N. Bobbio e A. A. Cançado Trindade.

Em face do atual reconhecimento dos direitos humanos, afirma Bobbio: “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (BOBBIO, 1992, p. 24). 

Também para A. A. Cançado Trindade, 

“nas últimas décadas, tem havido um distanciamento gradual da ‘fase legislativa’, de preparo e redação dos tratados e instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, para ingressarmos na fase de efetiva implementação desses direitos, que, provavelmente, se estenderá e se aperfeiçoará até o final do século.” (TRINDADE, 1990, p. 222)

Ainda que se possa aceitar que a universalidade dos direitos humanos tenha alcançado consagração sem precedentes e que, assim, cumpre enfatizar, cada vez mais, a necessidade de criar e implementar mecanismos de proteção dos direitos humanos, é preciso admitir que ainda persistem questionamentos teóricos, como os do ceticismo e relativismo éticos, discutidos acima. Além disso, permanecem impugnações políticas e manifestações práticas, como as dos particularismos, de contestação dessa universalidade. Isto nos permite ensejar novo esforço de fundamentação dessa universalidade, até mesmo para dar maior base teórica para a ‘fase de implementação’ dos direitos humanos. 

Não se trata, porém, de uma fundamentação última ou metafísica, pela qual se desconsiderariam aspectos históricos acidentais ou circunstanciais atinentes à questão dos direitos humanos. Admite-se, como Bobbio, que “os direitos humanos constituem uma classe variável, (...) o elenco dos direitos humanos se modificou e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses das classes no poder , dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.” (BOBBIO, 1992, p. 18). Concorda-se, portanto, com Bobbio quanto à tese de que qualquer pretensão de fundamentação da universalidade dos direitos humanos deve reconhecer que não existem direitos do homem, por força única e exclusiva de sua natureza, como defenderam os jusnaturalistas.   

Aceitar a impossibilidade de uma fundamentação última ou absoluta da universalidade dos direitos humanos não significa, contudo, que todo projeto de fundamentação esteja, desde logo, fadado ao fracasso. Supõe-se ser possível uma fundamentação não absoluta dessa universalidade, a qual respeitaria a relatividade histórica e cultural da sociedade humana. Esse respeito não representa uma adesão total ao relativismo, mas, sim, uma absorção deste pela universalidade, em moldes semelhantes àqueles apresentados por Habermas na defesa do universalismo de sua ética do discurso.

B. O cognitivismo ético habermasiano e as abordagens não-cognitivistas da ética

A ética do discurso caracteriza-se por inserir-se na tradição do cognitivismo ético - que hoje reúne pensadores éticos, tais como Karl-Otto Apel, Ernst Tugendhat e Jürgen Habermas - que, na linhagem kantiana, admitem ser possível fundamentar uma ética de caráter secular, formal, racional e universal.

O cognitivismo ético contesta, portanto, o ceticismo ético, cuja tese central nega a possibilidade de fundamentação da ética nos moldes cognitivistas.

A corrente cética de pensamento, conquanto tenha surgido na Antiguidade, pode ser considerada como uma radicalização do pensamento empirista, notadamente da filosofia de Hume, para quem todo conhecimento se reduz a relações entre ideias ou a questões de fato. As questões de valor não são passíveis de serem tratas racionalmente.  

Assim, em Hume, como analisa Manfredo A. de Oliveira,

 “em se tratando de afetos, atos de vontade e ações não tem sentido levantar a questão da adequação à realidade. Razão e vontade são duas dimensões irredutíveis e daqui se segue a tese da dicotomia entre razão e moral: as regras da moral não podem ser consequências da razão, mas têm a ver com os sentimentos. (...) Ora, o critério fundamental de nossos julgamentos morais é se as ações são úteis ou agradáveis.” (OLIVEIRA, 1995, p. 40)

Tal critério remete apenas à nossa subjetividade, individualidade e particularidades, excluindo a possibilidade de uma ética de caráter universalista, fundada na razão.

Habermas acredita ser viável fundamentar um padrão universal de julgamento moral, desde que seja possível afirmar um princípio ético que sirva de base para um eventual acordo entre ego e alter em argumentações morais. Tal princípio encontraria sustentação em pressuposições inevitáveis da ação comunicativa. Esta inevitabilidade representaria o caráter universal desse princípio ético.

Antes, porém, de chegar ao momento de fundamentação desse princípio, Habermas irá desenvolver um diálogo crítico entre o cognitivismo ético, representado por ele, e o ceticismo ético que nega a possibilidade de uma fundamentação racional de uma ética universalista e secular. Esse diálogo desenvolve-se em sete etapas argumentativas. (HABERMAS, 1989, p. 62)

Na etapa inicial, Habermas baseia-se na fenomenologia do fato moral elaborada por Strawson, em “Freedom and Resentment” , no qual se afirma a atitude performativa – que nos leva a adotar o papel da 1o e da 2o pessoas num diálogo - como a que permite, diferentemente da atitude objetivante – pela qual se assume o papel da 3o pessoa frente a um dado de realidade - perceber propriamente os fenômenos morais. Tais fenômenos não podemos vê-los, por muito tempo, adotando uma atitude objetivante, pois estão eles inseridos no mundo da vida no qual crescemos e nos educamos e, desse modo, eles nos afetam e nos envolvem de tal modo a nos exigir a adoção de uma atitude performativa. Impõe-se, portanto, adotar a atitude performativa seja por parte do falante, seja por parte do filósofo moral. (HABERMAS, 1989, p. 65-67)

Habermas extrai algumas conclusões da fenomenologia do fato moral de Strawson: 

1. O âmbito dos fenômenos morais só é percebido numa atitude performativa.

2. Tais fenômenos não podemos ignorá-los por muito tempo, adotando por exemplo uma atitude objetivante, pois estão eles inseridos no mundo da vida no qual crescemos e nos educamos. Impõe-se, portanto, adotar a atitude performativa seja por parte do falante, seja por parte do filósofo moral.

3. O caráter moral de nossas reações afetivas ante uma ofensa, por exemplo, reside no fato de que tal ofensa constitui uma infração de uma expectativa de validade suprapessoal. As reações afetivas remetem, portanto, a critérios universais para a avaliação de normas.

4. Essa pretensão de validez universal de normas supõe a legitimidade das mesmas, a qual precisa ser demonstrada por razões.

5. A justificação prático-moral das razões de uma norma não requer uma justificação racional instrumental, mas uma justificação ético-racional, propriamente. (HABERMAS, 1989, p. 67-70)

Na etapa seguinte do debate entre cognitivismo e ceticismo éticos, tratar-se-á de distinguir a abordagem cognitivista da ética, em Habermas, das abordagens objetivista e subjetivista da ética.

A abordagem objetivista julga que os enunciados teóricos e práticos não revelariam nenhuma diferença quanto às pretensões de validez, nem quanto ao modo de se justificá-las. Nesse sentido, os objetivistas afirmam os enunciados teóricos e práticos poderiam ser igualmente verificados ou falseados, de modo que ciência e ética estariam na mesma situação de prova de suas proposições.

A abordagem subjetivista, por sua vez, julga que os enunciados práticos não revelam a possibilidade de serem verificados ou falseados, isto é, não podem ser testados, como os enunciados teóricos. Dessa forma, os subjetivistas negam qualquer chance de os enunciados práticos serem tratados em termos racionais e, assim, tais enunciados estariam reservados ao âmbito da subjetividade, ou seja, ao âmbito da decisão pessoal ou social, em última instância arbitrária.

Conforme Habermas:

“naturalmente os subjetivistas não negam os fatos gramaticais que atestam que efetivamente, no mundo da vida, não cessamos de discutir sobre questões práticas como se estas fossem decidíveis com base em boas razões. Mas eles explicam essa confiança ingênua na possibilidade de fundamentar normas e mandamentos como uma ilusão suscitada pelas intuições morais da vida quotidiana”.(HABERMAS, 1989, p. 75)

Os resultados, respectivamente, das abordagens objetivista e subjetivista são antagônicos, quais sejam: de um lado se afirma a possibilidade de racionalmente tratar proposições práticas, tal como as proposições teóricas, de outro, se nega essa possibilidade.

Para Habermas, conquanto essas abordagens cheguem a resultados opostos, “ambos os lados partem da premissa falsa de que é a validez das proposições descritivas e só ela que determina o sentido em que as proposições em geral podem ser fundadamente aceitas”.(HABERMAS, 1989, p. 74-5)

A abordagem cognitivista de Habermas não parte dessa premissa, pois sustenta que os enunciados práticos podem ser racionalmente tratados, mas não exatamente no mesmo sentido que os enunciados teóricos. A pretensão de validez das proposições práticas é a de correção normativa e não de verdade, como no caso das proposições teóricas. A pretensão de validade dos enunciados éticos não envolve verificação ou falseamento empírico, mas apenas a argumentação racional. Portanto, Habermas afasta-se tanto dos objetivistas quanto dos subjetivistas. 

Habermas entende que

“as abordagens não-cognitivistas desvalorizam de um só golpe o mundo das intuições morais do quotidiano. Segundo essas doutrinas, numa perspectiva científica só se pode falar empiricamente sobre a moral. Nesse caso, assumimos uma atitude objetivante e restringimo-nos a descrever que funções preenchem as proposições e os sentimentos que, do ponto de vista interno dos participantes, são qualificados de morais. Essas teorias não querem e não podem concorrer com as éticas filosóficas; elas aplainam em todo o caso o caminho para as investigações empíricas, após ter ficado aparentemente claro que as questões práticas não são passíveis de verdade e que as investigações éticas no sentido de uma teoria normativa são desprovidas de objeto”. (HABERMAS, 1989, p. 76-7)

O cognitivismo ético habermasiano, portanto, não concorda, especialmente com as abordagens subjetivistas, em cuja origem filosófica se encontram o empirismo e o positivismo, porquanto não haveria, segundo Habermas, no dizer de Rouanet: “o abismo entre proposições descritivas e as normativas. Umas e outras estão sujeitas à argumentação discursiva, e a validade de ambas depende de um consenso fundado”. (ROUANET, 1993, p. 222)

Consciente de que a facticidade de uma norma não se identifica com sua validade, Habermas, como revela Luís B. L. Araújo, distingue “com clareza, a norma em vigor da norma válida. A questão da verdade moral (...) está associada não só ao reconhecimento da norma, mas também, e sobretudo, às boas razões apresentadas em defesa de sua legitimidade.” (ARAÚJO, 1997, p. 186-7)

Assim Habermas nega a concepção segundo a qual somente as questões teóricas seriam passíveis de receber tratamento racional. Assim Freitag e Rouanet ressaltam:

“como se verifica, o conceito de justificação discursiva elimina o abismo entre questões teóricas e questões normativas , que , desde Hume mas especialmente em Weber e nos positivistas modernos, considera unicamente as proposições descritivas como suscetíveis de validação; as proposições prescritivas ou relativas a valores, pertencem à esfera da mera opinião, e não são, a rigor, nem verdadeiras, nem falsas. Com sua teoria da validação consensual de afirmações e recomendações ( proposições normativas) Habermas tenta revogar o interdito positivista, voltando à tradição grega, para a qual as questões relativas à vida desejável eram mais que quaisquer outra, suscetíveis de serem verdadeiras. A teoria consensual de Habermas pretende elevar tais questões à dignidade da Wahrheitsfähigkeit (literalmente, capacidade de serem verdadeiras), mostrando que a lógica do discurso prático, no qual elas são debatidas é idêntica à lógica do discurso teórico, no qual são debatidas as proposições descritivas” (FREITAG e ROUANET, 1990, p. 18-9) 

C. A fundamentação do princípio de universalização da ética do discurso e seu status de fundamentação.

Habermas sustenta, como veremos a seguir, ser possível não só fundamentar racional e discursivamente proposições normativas, mas também o princípio sobre o qual tais proposições encontram sua fundamentação. Trata-se da terceira etapa da discussão acima mencionada.

Para defender essa tese, Habermas precisa antes criticar o positivismo – cujas raízes remontam , como vimos, ao empirismo humeano -, pois tal corrente de pensamento advoga ser impossível validar racionalmente proposições normativas.

“O positivismo abole a distinção entre razão teórica e razão prática, e só admite a primeira. com o desaparecimento da razão prática, o reino das normas e dos fins deixa de ser acessível à razão, pois esta, reduzida á razão científica, só tem competência sobre as proposições analíticas da lógica e da matemática e sobre as proposições sintéticas relativas ao mundo objetivo dos fatos. As proposições normativas escapam a essas duas esferas. Elas não são nem empíricas nem tautológicas, e portanto não podem ser fundamentadas à luz da única instância racional que sobreviveu à dissolução da razão kantiana - a razão teórica.(...) A moral é privatizada, reduzida ao foro íntimo de cada um. É a expressão de emoções e preferências pessoais. Está entregue ao contingente, ao irracional, ao subjetivo.” (ROUANET, 1993, 220)

Habermas responde ao positivismo, sustentando que as proposições normativas podem ser validadas racionalmente, na medida em que também elas, juntamente com as proposições descritivas, permitem um processo argumentativo de discussão racional acerca da pretensão de validade nelas implícitas. Nesse caso desaparece o abismo entre proposições descritivas e as normativas. Umas e outras estão sujeitas à argumentação discursiva, e a validade de ambas depende de um consenso fundado.

Além de criticar o positivismo, Habermas terá de enfrentar o racionalismo crítico, porquanto esta corrente filosófica sustenta não ser possível encontrar algum princípio de fundamentação que escape ao esforço de falsificação.

Ora, se, para Habermas, as normas podem ser fundamentadas desde que repousem sobre um consenso racional, então é preciso dar fundamento a esse consenso. Para Habermas, esse fundamento das normas consensuais válidas, é ele próprio passível de ser fundamentado, contrariando aqui o racionalismo crítico, especialmente de Hans Albert (ALBERT, 1994, passim). Trata-se agora da quarta etapa de argumentação contra o ceticismo.

Assim ele propõe o princípio “U”, como regra de argumentação, que permitiria aos interlocutores chegarem a um consenso racional.

 O princípio “U” da ética do discurso de Habermas é assim expresso: “toda norma válida deve satisfazer a seguinte condição: que as consequências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as consequências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem” (HABERMAS, 1989, p. 86)

A fundamentação do princípio “U” baseia-se no reconhecimento de que o conteúdo do princípio “U” encontra-se implícito nas pressuposições de toda argumentação. Para demonstrar essas pressuposições, Habermas recorre ao conceito de “contradição performativa”, desenvolvido por Karl Otto Apel. Essa contradição é aquela em que se incorre no momento mesmo em que se expressa a réplica a uma tese, pelo fato de que tal réplica só seria possível de ser enunciada, admitindo a tese - que se pretende negar- como verdadeira.

Assim, um dos exemplos de contradição performativa é a réplica à tese: “penso, logo existo”. Ora, para negar tal tese, já a pressuponho como válida; daí a contradição performativa.

O mesmo ocorreria com a réplica ao princípio “U”, pelo qual se defende que as normas sejam válidas se forem aceitas livre e racionalmente, num processo argumentativo, por todos. Haja vista que “quando nego que a validade da argumentação exige a aceitação livre de todos, só posso fazê-lo por um ato lingüístico que pressupõe que minha tese é verdadeira, mas isso significa pressupor que sua verdade possa ser livremente aceita por todos. Teríamos a seguinte frase: ‘ Afirmo como verdadeiro, isto é, submeto essa tese ao livre exame de todos, que não estou obrigado, como participante de uma argumentação, a aceitar que minha tese seja submetida ao livre exame de todos’. De novo manifesta-se uma contradição performativa, estou negando numa parte da frase aquilo mesmo que estou afirmando em outra.

O mesmo ocorreria com a réplica ao princípio “U”, pelo qual se defende que as normas sejam válidas se forem aceitas livre e racionalmente, num processo argumentativo, por todos. Haja vista que

“quando nego que a validade da argumentação exige a aceitação livre de todos, só posso fazê-lo por um ato lingüístico que pressupõe que minha tese é verdadeira, mas isso significa pressupor que sua verdade possa ser livremente aceita por todos. Teríamos a seguinte frase: ‘ Afirmo como verdadeiro, isto é, submeto essa tese ao livre exame de todos, que não estou obrigado, como participante de uma argumentação, a aceitar que minha tese seja submetida ao livre exame de todos”. (ROUANET, 1993, p. 223)

Aqui também ocorre uma contradição performativa, estou negando numa parte da frase aquilo mesmo que estou afirmando em outra.

O princípio “U” seria fundamentado por derivar de pressuposições inevitáveis existentes em toda argumentação, de modo que um falante, tão logo faça enunciados, não pode prescindir de assumi-las.

 “Tais pressupostos incluem o de que todos os participantes devem ser verídicos, o de que todos os interessados podem participar, o de que todos podem problematizar qualquer afirmação, o de que todos podem introduzir qualquer argumento no debate o de que ninguém pode ser coagido, etc. Não importa que essas condições sejam frequentemente contrafactuais, isto é, que não estejam sempre presentes em processos comunicativos concretos: trata-se apenas de pressupostos, que podem ou não se realizar, mas são pressupostos necessários, porque sem eles o ingresso na argumentação é impossível.” (ROUANET, 1993, p. 224).

Assim,

 “cada pessoa que ingressa num discurso prático se obriga intuitivamente aceitar procedimentos que equivalem ao reconhecimento implícito do princípio “U” . Não posso, sem contradizer aos pressupostos gerais da argumentação, aceitar, na argumentação moral, que alguns interessados sejam excluídos, que alguns participantes sejam coagidos, que outros não tenham a possibilidade de argumentar em defesa de seus interesses, que outros se arroguem o direito de não seguir a norma. o princípio da universalização está fundamentado.” (ROUANET, 1993, p. 224)

Na quinta etapa do debate, Habermas esclarece qual seja o status de fundamentação do princípio “U”, o qual se distingue daquele defendido por Apel. Se ambas as concepções – a habermasiana e apeliana - aferram-se à ideia de reconstruir os pressupostos do saber pré-teórico ou intuitivo que estão presentes na comunicação ou na argumentação em geral. Em Habermas, o procedimento reconstrutivo é concebido como hipotético e falível, enquanto, em Apel, ele é entendido como uma prova a priori.

Este caráter reconstrutivo da ética do discurso habermasiana configura-se, portanto, pelo fato desta ética utilizar reconstruções hipotéticas do saber pré-teórico ou intuitivo dos sujeitos capazes de falar e agir , de maneira falível, procurando aclarar os fundamentos presumidamente universais do falar e do agir. Por isso, ela necessita de uma confirmação por parte desses sujeitos, de modo que eles reconheçam , em cada caso, esses fundamentos.

Na realidade, segundo Habermas, a sua ética do discurso não pode nem precisa erguer uma pretensão última de fundamentação, porquanto uma filosofia transcendental, como a apeliana (APEL, 1994, passim) ainda excessivamente apegada a figuras do paradigma da filosofia da consciência, como a kantiana, não se sustenta após a passagem desse paradigma para o da filosofia da linguagem. Assim Habermas afirma:

“Tão logo os argumentos transcendentais são desacoplados do jogo de linguagem da filosofia da reflexão e se vêem reformulados no sentido de Strawson, o recurso à operação sintetizadora da autoconsciência perde evidência, o objetivo de prova das deduções transcendentais perde o seu sentido e também perde o seu direito àquela hierarquia que deveria subsistir entre conhecimento a priori dos fundamentos e conhecimento a posteriori dos fenômenos” (HABERMAS, 1989, p. 145)

A transformação da filosofia transcendental ocorreu como consequência da passagem do paradigma da filosofia da consciência para um paradigma da filosofia da linguagem. Essa passagem - chamada, de guinada linguística, foi realizada pelo pensamento filosófico contemporâneo e representou uma abordagem nova dos problemas filosóficos, os quais, agora, seriam investigados com base numa reflexão sobre a linguagem. (HABERMAS, 1990, passim) 

Essa nova abordagem se deu em função do reconhecimento de que o pensamento não poderia conceber-se sem a linguagem. Nesse sentido, Habermas propõe a reconstrução das estruturas da linguagem, mas não de suas características fonéticas, sintáticas ou semânticas, mas sim de suas características pragmáticas, que envolvem todos os elementos constitutivos da ação comunicativa . Assim, Habermas parte de uma guinada linguística para uma guinada pragmática. Essa última guinada significou uma abordagem da linguagem não apenas como um conjunto de sentenças, mas como um conjunto de proferimentos, contextualizados numa situação de fala na qual ego e alter se comunicam, tomam posições, erguem pretensões, ou seja, assumem papéis dialogais. (ARAÚJO, 1997, passim)

Com a guinada pragmática, verifica-se o fim do solipsismo do sujeito, em seu lugar se coloca a intersubjetividade. Para Habermas, portanto, não apenas sentenças são passíveis de uma análise formal, mas também proferimentos ou atos de fala. Essa análise formal é realizada pela sua pragmática formal ou universal que se propõe a reconstruir os pressupostos universais da competência não apenas linguística, mas comunicativa dos sujeitos falantes.

Assim, segundo Habermas a pragmática universal - resguarda o núcleo que está contido na fundamentação transcendental, isto é, “a ideia de que podemos nos certificar do caráter insubstituível de determinadas operações intuitivamente executadas desde sempre segundo regras.” (HABERMAS, 1989, p. 18)

A transformação da filosofia transcendental tornou-se necessária, conforme Habermas, a partir da constatação de que no cenário da filosofia contemporânea já não mais se crê nos chamados “mestres-pensadores”, como Kant e Hegel. Essa descrença seria decorrente do fato de a filosofia ter adquirido, segundo a concepção destes mestres pensadores, um papel muito superior àquele que se lhe poderia conceder. (HABERMAS, 1989, p. 18).

Em Kant, a filosofia desempenha um papel de um indicador de lugar das ciências e de um juiz sobre toda a cultura. A filosofia transcendental, enquanto teoria do conhecimento, pretende ser capaz de conhecer antes do conhecimento e estabelecer esse conhecimento primeiro como o seu domínio próprio. Em possuindo esse conhecimento, a filosofia se outorga o direito de exercer o poder de determinar os limites das ciências, indicando-lhes o seu lugar. Mas a filosofia transcendental não só encarrega-se da crítica da faculdade cognitiva, ao adotar um conceito formal de razão, esta se subdivide em três elementos: a faculdade da razão teórica, a faculdade da razão prática e a faculdade de julgar. A partir dessa subdivisão a filosofia transcendental passa a se ocupar da crítica de todas as faculdades da razão. Deste modo, a filosofia adquire

 “o papel de um juiz supremo perante a cultura em seu todo. Ao demarcar os limites (...) da ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte da crítica de arte, segundo características exclusivamente formais, e ao legitimá-las ao mesmo tempo dentro de seus limites, a filosofia se comporta como suprema instância jurídica não somente em face às ciências mas perante a cultura em seu todo.” (HABERMAS, 1989, p. 18-9) 

Hegel atribuirá à filosofia um papel ainda mais pretensioso que o conferido por Kant. Sua tarefa será a de absorver, de modo enciclopédico, o saber científico. Haja vista que o idealismo absoluto de Hegel já não reserva espaço para o incognoscível, como o fizera Kant. Assim, a substituição do transcendentalismo por um absolutismo apenas sobrecarrega o papel, desde antes, imodesto da filosofia.

A crítica aos papéis atribuídos a filosofia pela tradição metafísica e pelos "mestres pensadores" levou determinados pensadores como Richard Rorty a renunciarem à própria tarefa da filosofia. Para Rorty, a filosofia deveria abandonar qualquer caráter fundamentalista e sistemático, sua função seria a de contribuir na edificação de uma conversação constante entre os homens, na qual o filósofo não possui nenhum lugar privilegiado. Essa conversação adquire o status de um contexto último no qual o conhecimento deve ser compreendido, não como a apreensão de uma essência, mas como um direito a acreditar, conforme os padrões vigentes. Direito este que todos possuem igualmente. Assim Rorty afirma:

"pode ser que a imagem do filósofo oferecida por Kant esteja a ponto de seguir o caminho da imagem medieval do padre. Se isto acontecer, nem mesmo próprios filósofos continuarão a considerar seriamente a noção da filosofia como fornecendo “fundamentos" ou "justificações" para o resto da cultura, ou como adjudicando quaestiones juris sobre os domínios próprios de outras disciplinas.” (Rorty, 1988, p. 303)

Para Habermas, no entanto, é possível renunciar aos papéis de indicador de lugar e de juiz da cultura que foram conferidos à filosofia; sem precisar abdicar da tarefa da própria da filosofia. Habermas insiste que a filosofia deve agarrar-se à sua função de guardiã da racionalidade. Pois, recusar essa função seria abandonar a própria pretensão de razão pela qual a filosofia veio ao mundo. Desta forma, Habermas irá “defender a tese de que a filosofia, mesmo se retrai dos papéis problemáticos do indicador de lugar e de juiz, pode - e deve - conservar sua pretensão de razão nas funções mais modestas de um guardador de lugar e de um interprete.”(HABERMAS, 1989, p. 20)

Para Habermas, a filosofia ao invés de indicar o lugar das ciências, deve representar "o papel de um guardador de lugar para teorias empíricas com fortes pretensões universalistas” (HABERMAS, 1989, P. 20). Teorias estas que, apesar de seu caráter empírico, ao apresentarem fortes pretensões universalistas, são passíveis de serem pensadas filosoficamente. Tratar-se-ia, portanto, de uma divisão de trabalho não exclusivista e cooperativa entre filosofia e ciência, sobretudo, entre filosofia e as chamadas ciências reconstrutivas que procedem à reconstrução do saber intuitivo ou pré-teórico dos sujeitos que julgam, agem e falam de modo competente.

A filosofia, desta forma, deve renunciar também ao papel de juiz supremo da cultura. Em seu lugar, ele deve adotar um papel de intérprete, pelo qual ela pode renovar a sua relação com a cultura e, ao mesmo tempo, conservar a sua pretensão de totalidade. A cultura e suas unilateralizações não precisam de nenhuma fundamentação, bem como de nenhuma classificação hierárquica. Na realidade, elas precisam ser mediadas, e isso é o que a filosofia deve fazer por meio de seu papel de intérprete. Desse modo, a filosofia resguarda a sua pretensão de totalidade, agora realizando uma dupla mediação: (1º) realiza-se no esforço de manter a unidade no domínio cultural após as suas unilateralizações, quais sejam: as esferas axiológicas da ciência, da moral e da arte, e 2º) realiza-se na tentativa de manter o contato entre as culturas de especialistas e a prática comunicativa cotidiana. Portando, cabe à filosofia interpretar os aspectos capazes de serem mediados entre as culturas de especialistas e entre essas culturas e o mundo da vida. (HABERMAS, 1989, p.30-34).

Assim sendo, com essa concepção da filosofia como guardador de lugar e intérprete, Habermas recusa a concepção metafísica de filosofia, na qual esta era colocada em posição de privilégio diante das ciências, rejeita a concepção positivista pela qual a posição da filosofia era de subordinação à ciência, mas também abandona a noção, pelo próprio Habermas inicialmente sustentada, de uma filosofia como critica da ideologia, que carecia de uma base teórico-normativa. Base esta, que só com sua última concepção da filosofia será possível alcançar. Visto que, a ideia de emancipação ou de uma comunicação livre estão enraizadas nas estruturas da linguagem, as quais podem ser reveladas por meio de reconstruções dos pressupostos da comunicação. Aliás, realizar tais reconstruções é a própria função da pragmática universal, como se explica abaixo.

De fato, a pragmática universal habermasiana distingue-se da pragmática-transcendental apeliana, porquanto, sustenta Habermas:

“certamente, o saber intuitivo de regras que os sujeitos capazes de falar e agir tem que empregar para de todo poderem participar de argumentações, não é de certo modo, falível - mas, certamente, são falíveis nossas reconstruções desse saber pré-teórico e a pretensão de universalidade que a ela associamos.” (HABERMAS, 1989, p. 120)

 Nesse sentido, a pragmática universal não ergue a pretensão de uma fundamentação última como o faz a pragmática transcendental. O status da pragmática universal não é senão hipotético-reconstrutivo e o seu caráter falível exige que suas as reconstruções dependam de uma confirmação maiêutica, isto é, confirmação dada pelo próprio interlocutor de uma ação comunicativa. A pragmática universal depende também de confirmações indiretas que podem ser fornecidas pelas ciências reconstrutivas. Esse é o caso da teoria moral habermasiana que encontra seus traços essenciais na teoria do desenvolvimento da consciência moral de L. Kolhberg. Assim, a ética do discurso de Habermas pretende ajustar-se fenomenologicamente aos fatos psicológicos.

Entretanto, se a filosofia pode ser de algum modo confirmada, tal como as ciências, isso não significa que não guardem – filosofia e ciência - entre si nenhuma diferença. Para Habermas, elas encontram-se em relação de complementaridade. Voltando ao exemplo da teoria moral e da teoria psicológica de Kolhberg, temos a seguinte formulação dessa relação de complementaridade: "A ciência pode, pois , testar se a concepção moral de um filósofo se ajusta fenomenologicamente aos fatos psicológicos. Contudo, a ciência não pode ir além disso e justificar essa concepção moral como aquilo que a moral deveria ser” (HABERMAS, 1989, p. 56)

O trabalho cooperativo entre ciência e filosofia pode ser percebido ao longo da história das ciências que por diversas vezes abordaram questões científicas com base em hipóteses filosóficas. De outro lado, de disciplinas científicas, como as das ciências sociais, psicologia e psicanálise surgem temas que, apesar de sofrerem uma abordagem empírica, são passíveis de um tratamento universalista e, portanto, capazes de serem desenvolvidos filosoficamente.

Ao renunciar nas pretensões fundamentalistas ou absolutistas, a filosofia pode trabalhar cooperativamente com as ciências reconhecendo que aquilo que “outrora se julgava capaz sozinha de agora em diante só se pode esperar da coerência feliz de diferentes fragmentos teóricos.” (HABERMAS, 1989, p. 31)

Na sexta e penúltima etapa do debate entre o cognitivismo habermasiano e o ceticismo, Habermas procurar fazer ver ao cético que a alternativa de se calar para evitar o fato de assumir pressuposições da ação comunicativa é inviável, porquanto somos arrastados à ação comunicativa por sermos seres comunicativos, não se pode, pensa Habermas, abandonar a prática comunicativa, sem afetar a própria sanidade mental. (HABERMAS, 1989, p. 124-5).

Por fim, na última etapa, trata-se da defesa do caráter formal da ética do discurso. Como nos diz Luís Araújo, “para Habermas o objetivo da ética discursiva não é orientar na escolha de normas práticas concretas, mas explicar o valor prescritivo de tais normas.” (ARAÚJO, 1997, p. 190) O discurso prático, revela Habermas, não é um processo de geração de normas justificadas, mas ,sim, o exame da validade de normas propostas e consideradas hipoteticamente. (HABERMAS, 1989, p. 126)

O caráter formal da ética do discurso habermasiana permite-lhe a abertura para a discussão de propostas normativas dos integrantes do discurso, sem impor-lhes quaisquer normas concretas. Não caberia, portanto, a acusação de uma ética impositiva , pois ela não prescreve normas; apenas apela para o reconhecimento de pressuposições assumidas por todos os falantes, de qualquer cultura, quando do ingresso numa ação comunicativa. 

D. A ética do discurso de Habermas e a universalidade dos direitos humanos

Findas as etapas de debate entre o cognitivismo e o ceticismo, Habermas julga ter sido plausível o bastante para permanecer em defesa de uma ética racional, secular, formal, dialógica e universalista. Assim, pode-se estabelecer, agora, uma relação entre a ética do discurso e a universalidade dos direitos humanos, como veremos logo após a análise do vínculo existente entre universalismo ético-discursivo e o iluminista.

A ética discursiva afirma a existência de uma natureza humana universal, a qual revela o homem não como ser abstrato e individual, mas como um ser histórico e social, dotado de linguagem , de razão dialógica, de impulsos, desejos e interesses universais.(ROUANET, 1993, p. 242-8)

O cosmopolitismo moderno encontra também apoio na ética do discurso habermasiana, pois, em Habermas, as normas morais só podem ser validadas se puderem receber o assentimento de todos os seres racionais, pois todos os homens são participantes virtuais do discurso prático, de modo que as normas morais não serão válidas se lesarem os interesses gerais da humanidade.(ROUANET, 1993, p. 242-8)

A universalidade de critérios de moralidade é ainda respaldada pela ética discursiva, pois o princípio “U” habermasiano não é extraído arbitrariamente de qualquer concepção etnocêntrica, mas de pressuposições universais da linguagem, as quais existiriam independentemente de elementos culturais particulares.(ROUANET, 1993, p. 242-8)

A universalidade de normas substantivas não encontra na ética discursiva habermasiana sustentação . Haja vista que tal ética é formal e não substancial. Ela não produz ou propõe normas; apenas fornece um princípio formal que possibilite a sua validação. Se, portanto, a universalidade normativa substancial não é defendida, tampouco ela é negada pela ética do discurso de Habermas. Pode-se dizer que a ética do discurso implicitamente até admita a universalidade normativa substancial, porquanto nas pressuposições da linguagem não são extraídos apenas os elementos formais do princípio “U”, mas também elementos substanciais como o respeito à dignidade , à integridade física de cada participante de uma interação, o tratamento igual de todos os participantes a consideração dos interesses de cada um a ausência de violência, entre outros. Esses elementos substanciais ou materiais são universais, porque extraídos da estrutura formal da linguagem. Nesse sentido não há aqui nenhum etnocentrismo, pois tais normas não expressam preconceitos da cultura ocidental.(ROUANET, 1993, p. 242-8)

O universalismo ético-discursivo de Habermas pode, portanto, postular a condição de ser, pelo menos, um dos herdeiros do universalismo ético iluminista, cuja contribuição maior para a história talvez seja a afirmação da universalidade dos direitos humanos. 

Com a ética do discurso de Habermas, a universalidade dos direitos humanos pode fundamentar-se não num conceito abstrato de homem - como o fizeram, por exemplo, Locke e Kant, mas num agir humano concreto: o agir comunicativo, cujas pressuposições se revelam éticas e ao mesmo tempo inevitáveis, por isso universais.

O universalismo presente na ética do discurso de Habermas brota, portanto, das próprias entranhas da própria comunicação, independentemente da vontade dos interlocutores, o que evita o etnocentrismo. O caráter formal dessa ética também impede a imposição de normas substantivas não discutidas.

Assim, a ética do discurso habermasiana, nota Manfredo A. de Oliveira, em sendo

“uma ética universalista, enquanto se estabelece a partir da consideração dos homens como participantes de uma comunidade ideal de comunicação, portanto como iguais nos direitos e deveres, não se põe a serviço da uniformização repressiva dos estilos individuais e comunitários de vida. Antes, é esse tipo de reflexão ética que tematiza a condição de possibilidade do máximo desenvolvimento de formas de vida individuais e coletivas.” (OLIVEIRA, 1995, p.39)

Assim, além do universalismo e do formalismo, o caráter procedimental da concepção ética habermasiana manifesta-se também na fundamentação teórica da universalidade dos direitos humanos. Haja vista que a ética do discurso baseia-se em uma regra de argumentação que implica procedimentos imparciais por parte dos falantes.

Esse caráter procedimental da ética do discurso, Habermas também o defenderá aplicado ao âmbito político e jurídico, no qual a legitimidade das normas repousa no procedimento democrático. Assim Habermas sustenta que:

“The democratic procedure for the production of law evidently forms the only postmetaphisiscal source of legitimacy. But what provides this procedure with its legitimating force ? Discourse theory answers this question with a simple and at first glance unlikely answer: democratic procedure makes it possible for issues and contributions, information and reasons to float freely; it secures a discoursive character for political will-formation; and it therby grounds the fallibilist assumption that results issuing from propper procedure are more or less reasonable (...) The democratic procedure bears the entire burden of legitimation”.(HABERMAS, 1996, p. 480-1)

Assim, a teoria do discurso, em Habermas, encontra-se, portanto, na base tanto de sua concepção ética quanto de sua teoria político-jurídica universalistas, dando-lhes legitimidade. Do mesmo modo, pode-se afirmar que ela parece servir consequentemente, à sustentação da universalidade dos direitos humanos, que remetem ao conteúdo de pressuposições universais da ação comunicativa. Tais pressuposições são manifestas na ética do discurso e legitimam os princípios, direitos e liberdades fundamentais constantes na Declaração universal dos Direitos Humanos. Tal como o artigo XIX:

 “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XIX)

O pensamento habermasiano permite, em nível ético-político, sustentar o que em nível jurídico internacional vem sendo consagrado: o vínculo indissociável entre os direitos humanos e a democracia. Sem o reconhecimento e observância dos direitos humanos, em sua universalidade, indivisibilidade e interdependência, não há verdadeira democracia.(TRINDADE, 1997, passim)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percorridos os caminhos de afirmação e negação da universalidade dos direitos humanos, sustenta-se a necessidade, ainda atual, de fundamentação dessa universalidade. Para tanto, entende-se apropriado o recurso à ética do discurso de Habermas, que, em virtude do seu caráter racional, formal, universal , não-etnocêntrico e dialógico, pareceu oferecer - num mundo que pode ser caracterizado como “pós-metafísico”, i.e., num mundo onde a religião já não constitui fonte de uma ética universalista - resposta teórica e indicação prática plausíveis para uma defesa ético-filosófica da universalidade dos direitos humanos e do regime democrático mais efetivamente participativo, no qual se dê, ao mesmo tempo, a devida observância de tais direitos.

Notou-se que a ética do discurso habermasiana contribui para a fundamentação acima referida , oferecendo certos princípios teóricos que discutimos neste artigo. Seguimos o trajeto de justificação teórica da ética de Habermas, percorrendo as etapas de sua argumentação crítica quer com o ceticismo, seu principal replicador, quer com o cognitivismo de Tugendhat e Apel.

Identificou-se na afirmação do princípio "U" o núcleo da ética do discurso habermasiana. Percebemos que a sustentação desse princípio repousa na constatação hipotético-reconstrutiva e maiêutica de pressuposições pragmáticas inevitáveis presentes na ação comunicativa, as quais se manifestariam na formulação desse, cuja evidência e aceitação implícita se revelariam por artifício do recurso da contradição performativa.

Empreendida a fundamentação da ética do discurso habermasiana, procurou-se mostrar que o seu caráter especialmente universalista correspondia às exigências de fundamentação da universalidade dos direitos humanos. Mencionamos também como a teoria do discurso habermasiana atende às exigências de um regime democrático radical, no qual questões práticas fossem, por todos os interessados, discutidas racionalmente e a observância dos direitos humanos fosse substantiva e não apenas formal.

Face às resistências teóricas e práticas ao universalismo ético e à universalidade dos direitos humanos, considera-se que a ética do discurso habermasiana se apresenta como bem sucedido esforço teórico de defesa desse universalismo ético-jurídico.

Sustentou-se, assim, que a ética do discurso habermasiana confere maior força à universalidade dos valores éticos, como a democracia e os direitos humanos. Espera-se que as barreiras que continuem ou venham a obstá-los sejam, agora, mais facilmente superadas, quer em nível teórico, quer em nível prático, de modo que os seres humanos possam, sempre mais, usufruir do respeito universal e substancial aos seus direitos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, João Marcelo B. R.. A fundamentação discursiva dos direitos humanos em Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5780, 29 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72492. Acesso em: 5 maio 2024.