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O consórcio intermunicipal de saúde e a contratação de agentes comunitários de saúde (ACS)

O consórcio intermunicipal de saúde e a contratação de agentes comunitários de saúde (ACS)

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Ao empregarmos o consórcio público de direito público na seleção e contratação de ACS, será cumprido o art. 2º da EC n.º 51/06, pois a contratação será efetuada por entidade integrante do município.

Sumário:1. Considerações Preliminares. 2. Da evolução fática e jurídica do Agente Comunitário de Saúde. 2.1. Da regulação em nível infralegal. 2.2. Das formas de relação dos municípios com os ACS. 2.2.1. Da terceirização da contratação. 2.2.2. Da contratação em regime especial. 2.2.3. Do concurso público – cargo efetivo ou emprego público. 2.2.4. Da legalização da atividade de Agente Comunitário de Saúde. 2.2.5. Da transformação da atividade de ACS em profissão. 2.2.6. Da regulamentação da profissão de ACS no âmbito previdenciário 2.7. Da Emenda Constitucional n.º 51, de 14 de fevereiro de 2006. 2.2.7.1. Da dispensa de submissão a novo processo seletivo público. 2.2.7.1.1. Da controvérsia sobre a diferença entre concurso público e processo seletivo público. 3. Das competências do consórcio público. 3.1. Do fundamento constitucional do consórcio público. 3.2. Da abordagem infraconstitucional dos consórcios públicos. 3.3. Da possibilidade de previsão no protocolo de intenções. 3.4. Da possibilidade de cedência de pessoal ao consórcio de saúde. 3.5. Da possibilidade de adaptação dos contratos de consórcios para executarem o PACS. 3.6. Da possibilidade da celebração de convênio do consórcio de saúde com a União para fins de repasse de recursos do PACS. 4. Conclusões.


1.Considerações Preliminares

O consórcio intermunicipal de saúde é a espécie mais antiga de consórcio público existente em nosso país. A autorização para sua criação integra nosso ordenamento jurídico desde 15 de setembro de 1990, portanto há mais de quinze anos, data em que foi promulgada a Lei n.º 8.080 – Lei Orgânica da Saúde – que fundamentalmente dispôs sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e funcionamento dos serviços correspondentes em todo o território nacional, evidenciando-se, assim, tratar-se de norma nacional [01], tendo-se em vista o seu caráter cogente a todos os entes federativos face à temática tratada.

Vale lembrar que a Lei n.º 8.080/90, ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS), definiu-o em seu art. 4º como sendo "o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público" e que,além de atribuir a execução das ações e serviços de saúde aos órgãos e entidades acima elencados, o normativo previu ainda, a participação da iniciativa privada em caráter complementar [02], estabelecendo, assim, a possibilidade de as ações e serviços de saúde, que constituem o SUS, serem realizadas tanto por personalidades jurídicas de direito público quanto pelas de direito privado.

Também é importante referir que o art. 10 da Lei Orgânica da Saúde foi a primeira norma infraconstitucional brasileira a tratar sobre o tema consórcio público, ao disciplinar que "os municípios poderão constituir consórcios para desenvolver em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam" (grifo nosso),estimulando a gestão associada de serviços públicos na área da saúde há mais de década e meia atrás.

Portanto, esta constatação histórica assegura à área da Saúde, a condição de pioneira na criação e utilização do conceito de consórcio público no Brasil, motivo pelo qual, os mais recentes dados do IBGE sobre gestão municipal brasileira, colhidos em 2002 [03] e publicados em 2005, revelam que, dos 5.560 municípios brasileiros existentes em 2002, 2.169 participavam de consórcios intermunicipais de saúde, significando dizer que 39,01% das municipalidades brasileiras integravam, naquela oportunidade, um consórcio de saúde.

Trata-se de percentual revelador da grande aceitabilidade e utilidade do instituto no Brasil, pelo menos, na área da saúde pública, permitindo estimar que os demais setores de prestação de serviços públicos brasileiros também farão grande uso dessa ferramenta em futuro breve.

Apenas para fins de comparação, com intuito de demonstrar o alto grau de aceitação do instituto na área da saúde, a segunda e terceira espécies de consórcio mais utilizadas pelas municipalidades brasileiras são, respectivamente, os consórcios voltados para as questões ambientais (743 municípios) e de turismo (348 comunas) de acordo com as aludidas estatísticas do IBGE [04].

Portanto, neste cenário revelador do indiscutível destaque dos consórcios intermunicipais de saúde na implementação e aprimoramento da política nacional de saúde, é que examinaremos a viabilidade jurídica de contratação dos agentes comunitários de saúde pelos ditos consórcios, tema objeto do presente trabalho.

Evidente que a resposta que ofereceremos a tal indagação no desenlace deste ensaio, face à complexidade da matéria, que traz consigo o enfrentamento de normas constitucionais que parecem conflitar entre si, como veremos adiante, deverá ser produto de acurado exercício hermenêutico, fundado em consistente interpretação tópico-sistemática. Nesse sentido, pela pertinência ao tema, aproveitamos as palavras de JUAREZ FREITAS:

"interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro, pois qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito, para além de sua dimensão textual" [05].

Também é relevante destacar que a solução jurídica ofertada neste ensaio configura apenas uma das tantas possíveis a que se pode chegar através do emprego da hermenêutica jurídica. Contudo, nosso trabalho foi norteado pela intenção de encontrar dentre o rol das possíveis, consoante a utilização da interpretação tópico-sistemática, a que melhor atende ao conceito de justiça no caso concreto, razão maior do Direito.


2.Da evolução fática e jurídica do Agente Comunitário de Saúde

Contudo, antes de nos determos no exame do questionamento acima formulado, convém identificarmos os aspectos fáticos e jurídicos relevantes existentes em nosso ordenamento pátrio sobre os agentes Comunitários de Saúde (ACS), através de sucinta retrospectiva histórica sobre o assunto.

2.1.Da regulação em nível infralegal

Em 15 de dezembro de 1997, o então Ministro de Estado da Saúde, CARLOS CESAR DE ALBUQUERQUE, editou a Portaria n.º 1.886/97 [06] que teve por finalidade aprovar as normas e diretrizes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa de Saúde da Família (PSF). Este normativo, e em especial o seu Anexo I, foi a pedra angular na criação da atividade de ACS.

Segundo o referido regramento infralegal, o estímulo ao emprego de ACS nas ações de saúde configurava estratégia com vistas a possibilitar a efetiva reorientação do modelo assistencial adotado, até então, pela política nacional de saúde [07], ficando estabelecida a responsabilidade do Ministério da Saúde na regulamentação do cadastramento dos ACS e enfermeiros instrutores no SIA/SUS [08].

Ainda, de acordo com a aludida portaria, coube aos municípios as atribuições de "recrutar os agentes comunitários de saúde através de processo seletivo, segundo as normas e diretrizes básicas do programa"(grifo nosso) [09] e "contratar e remunerar os ACS e o(s) enfermeiro(s) instrutor(es)/supervisor(es)" [10].

Ademais, naquela oportunidade, as diretrizes operacionais do PACS estabeleciam os seguintes requisitos para a seleção e contratação dos ACS [11]: a) ser morador da área onde exercerá suas atividades há pelo menos dois anos; b) saber ler e escrever; c) ser maior de dezoito anos; e d) ter disponibilidade de tempo integral para o exercício de suas atividades.

As atribuições dos ACS, em termos gerais, consubstanciavam-se na implementação de ações de "prevenção de doenças e promoção da saúde, através de visitas domiciliares e de ações educativas individuais e coletivas nos domicílios e na Comunidade, sob supervisão e acompanhamento do enfermeiro Instrutor-Supervisor lotado na unidade básica de saúde da sua referência" [12].

2.2.Das formas de relação dos municípios com os ACS

E com tais normas e diretrizes fixadas pela Portaria MS n.º 1.886/97, há quase nove anos atrás, deu-se início ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde em todo o território nacional. Contudo, como é natural acontecer na implementação de qualquer projeto, logo surgiram os primeiros problemas de operacionalização do dito programa. Um deles dizia respeito à ausência de normatização, no âmbito do PACS, sobre a forma de contratação do Agente Comunitário de Saúde. É que diante da inexistência de diretrizes específicas nesse sentido, que possibilitassem a padronização da forma de contratação dos ACS, logo surgiram os mais variados modos de solução jurídica do impasse em nível local.

2.2.1.Da terceirização da contratação

Alguns municípios optaram pela terceirização da contratação, através da firmatura de convênios com organizações sociais (OS) ou organizações sociais de interesse público (OSCIP) ou, ainda, com cooperativas que se encarregariam de contratar diretamente os ACS. Nesta modalidade de solução, surgiu o problema do vínculo laboral indireto, responsabilizando subsidiariamente os Executivos Municipais quanto aos encargos trabalhistas e previdenciários eventualmente não pagos pelas prestadoras de serviço contratadas, conforme destacado no inciso IV do Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) [13].

2.2.2.Da contratação em regime especial

Outras municipalidades entenderam por realizar uma contratação de pessoal, em regime especial [14], através da contratação por tempo determinado, sem contudo, regular quaisquer direitos que deveriam ser previstos por força dos direitos e garantias constitucionais. Esta situação trouxe evidente prejuízo, em termos de direitos trabalhistas e previdenciários, ao pessoal contratado, sob tal espécie de ajuste, para o desempenho das atividades de ACS.

2.2.3.Do concurso público – cargo efetivo ou emprego público

Ainda, como forma de solucionar a questão, houve comunas que, numa abordagem mais ortodoxa, decidiram pela criação de cargos efetivos (regime estatutário) ou empregos públicos (regime celetista) para a realização das atividades de ACS.

Assim, alguns municípios decidiram realizar concurso público para provimento de seus cargos efetivos de ACS, sob regime estatutário. Dessa forma, abriram mão da relação contratual (mais flexível) para estabelecerem uma relação institucional (menos flexível) com os agentes comunitários de saúde. A linha de ação adotada por esses Executivos Municipais trouxe-lhes a grave desvantagem de sujeitarem-se à possibilidade de superveniência do fenômeno jurídico da estabilidade do servidor no cargo de ACS, tendo-se em vista que tal situação enseja sérios problemas de alocação e despesa de pessoal na eventualidade do encerramento ou suspensão do PACS no âmbito municipal.

Por sua vez, outros municípios preferiram adotar, no enfrentamento da questão, o emprego público, também mediante a devida e necessária realizaçãode concurso público, que a nosso sentir, parece ser a forma mais adequada para se realizar a contratação dos ACS, face a duas relevantes características dessa forma de contratação de pessoal:

a)inexistência de estabilidade do agente comunitário, viabilizando a extinção da relação de trabalho a qualquer momento, desde que satisfeitas as obrigações trabalhistas e previdenciárias. Assim, no caso de encerramento ou suspensão do PACS, o poder público contratante não terá problemas para dispensar os ACS; e

b)asseguração, aos ACS, de todos os direitos trabalhistas e previdenciários inerentes a um contrato de trabalho regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), implicando maior consistência jurídica na contratação realizada diante dos direitos constitucionalmente assegurados aos trabalhadores. Esta previsão contratual de direitos trabalhistas e previdenciários diminuirá, em muito, as probabilidades de prejuízos financeiros aos cofres públicos decorrentes de ações trabalhistas movidas por ACS contratados ao arrepio de tais direitos.

Todavia, diante desse amplo leque de formas de contratação de ACS, surgiu natural insegurança dos Executivos Municipais, quanto à eleição da forma jurídica mais adequada de seleção de pessoal para o desempenho das atividades de ACS. De seu turno, os agentes comunitários, que foram contratados sem as garantias trabalhistas e previdenciárias a que faziam jus, perceberam a necessidade de se movimentarem em busca da definição de tais regras, sob pena de serem injustamente prejudicados na relação firmada com o poder público.

2.2.4.Da legalização da atividade de Agente Comunitário de Saúde

Em nível legal, a figura do ACS surgiu pela primeira vez em nossa ordem jurídica através do Decreto n.º 3.189, de 04 de outubro de 1999, editado pelo Presidente de República, à época, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, cuja finalidade era a de fixar diretrizes para o exercício da atividade de agente comunitário de saúde.

O aludido normativo definiu que caberia ao ACS, "no âmbito do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, desenvolver atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio de ações educativas individuais e coletivas, nos domicílios e na comunidade, sob supervisão competente" [15], ratificando, em termos gerais, as disposições, nesse sentido, da Portaria MS n.º 1.886/97.

O referido decreto estabeleceu, ainda, que o ACS deveria "residir na própria comunidade, ter espírito de liderança e de solidariedade e preencher os requisitos mínimos estabelecidos pelo Ministério da Saúde" [16] e que seus serviços, na área do respectivo município, seriam remunerados, "com vínculo direto ou indireto com o Poder Público local, observadas as disposições fixadas em portaria do Ministério da Saúde" [17].

2.2.5.Da transformação da atividade de ACS em profissão

Em 10 de julho de 2002, o então Presidente da República, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, sancionou a Lei n.º 10.507, que transformou a atividade de ACS em profissão, definindo-lhe suas características [18] e estabelecendo-lhe os requisitos de seu exercício.

O aludido regramento definiu que o exercício da profissão de ACS dar-se-ia exclusivamente no "âmbito do Sistema Único de Saúde- SUS" [19] e que o agente comunitário deveria preencher os seguintes requisitos para o exercício da profissão: "I - residir na área da comunidade em que atuar; II - haver concluído com aproveitamento curso de qualificação básica para a formação de Agente Comunitário de Saúde; III - haver concluído o ensino fundamental" [20]. Portanto, percebe-se que a norma legal em apreço, derrogando os critérios fixados no Decreto n.º 3.189/99, estabeleceu novos requisitos para o exercício da profissão de ACS.

Por fim, a lei estabeleceu que o ACS "prestará os seus serviços ao gestor local do SUS, mediante vínculo direto ou indireto" [21], competindo ao Ministério da Saúde a regulamentação dos ditos serviços.

2.2.6.Da regulamentação da profissão de ACS no âmbito previdenciário

Diante da criação da profissão de Agente Comunitário de Saúde, a Diretoria Colegiada do Instituto Nacional de Seguridade Social (DC/INSS) expediu Instrução Normativa DC/INSS n.º 80, de 27 de agosto de 2002, para criar o inciso XIV do art. 7º da Instrução Normativa INSS/DC n.º 65, de 10 de maio de 2002 [22]. Referido inciso estabeleceu que o agente comunitário de saúde, com vínculo direto com o poder público local, deve filiar-se obrigatoriamente ao Regime Geral de Previdência Social, na condição de segurado empregado.

2.2.7.Da Emenda Constitucional n.º 51, de 14 de fevereiro de 2006

Como fruto, fundamentalmente, do engajamento de entidades representativas da categoria dos Agentes Comunitários de Saúde junto ao Congresso Nacional, surgiu a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 07/2003, que tratou de disciplinar a importante questão da forma de contratação dos ACS. Aludida proposta ensejou a promulgação da Emenda Constitucional n.º 51, de 14 de fevereiro de 2006, que acrescentou os §§ 4º, 5º e 6º ao art. 198 da Constituição Federal.

Em síntese, a referida emenda definiu que a admissão de ACS será por meio de processo seletivo público, "de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação" [23]. No que tange ao regime jurídico e regulamentação das atividades do ACS, a nova redação do artigo 198 da CF estabelece que lei federal disporá sobre tais assuntos [24].

A emenda também estabelece que "o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde...poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício" [25]. Portanto, a partir de 14/02/06, os ACS que não preencherem os requisitos estabelecidos nos incisos I a III [26] do artigo 3º da Lei n.º 10.502/02, sujeitar-se-ão a perda do cargo.

2.2.7.1.Da dispensa de submissão a novo processo seletivo público

A EC n.º 51/06 também alude à expressa dispensa de sujeição a novo processo seletivo público aos profissionais que, na data de promulgação da referida emenda e a qualquer título, estivessem desempenhando atividade de agente comunitário de saúde, na forma da lei, "desde que tenham sido contratados a partir de anterior processo de seleção pública conduzido por órgãos ou entes da administração direta ou indireta de Estado, Distrito Federal ou Município ou por outras instituições com a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação" [27] (grifo nosso).

De se ver que a aludida regra de dispensa da participação em processo seletivo público dos agentes comunitários de saúde que se encontravam no exercício de suas atividades põe fim à tormentosa questão relativa à correção/adequação ou não da forma encontrada pelo Município para realizar a contratação de seus ACS. Independentemente da forma aplicada no caso concreto, o único requisito exigido para a convalidação da contratação passou a ser a obediência ao princípio constitucional do concurso público, expresso no art. 37, inc. II da Constituição Federal [28].

2.2.7.2.Da controvérsia sobre o conceito e alcance da expressão "processo seletivo público"

Nesse passo, observa-se que para conferir maior celeridade nas suas atividades de seleção de pessoal, em especial na administração indireta, a administração pública brasileira criou um procedimento denominado de processo seletivo público, ao qual atribuiu características menos formais e mais céleres do que a forma convencional do concurso público previsto no artigo 37, inciso II da Constituição Federal. Até agora, encontra-se muito pouco sobre o assunto na doutrina consolidada, o que dificulta o exame da matéria, no sentido de se delimitar objetivamente o conceito e alcance da expressão processo seletivo público.

Em termos jurisprudenciais, o tema foi indiretamente suscitado no exame da questão, já de há muito superada, acerca da necessidade de realização de concurso público para contratação de pessoal no âmbito das entidades integrantes da administração indireta, que atuam sob o regime de direito privado (sociedade de economia mista e empresa pública).

Por exemplo, o Tribunal de Contas da União (TCU), em decisão prolatada pelo Ministro Relator LUCIANO BRANDÃO ALVES DE SOUZA no processo TC n.º 006.658/89-0, em Sessão de 15/05/1990 [29], assim se manifesta, verbis:

"As Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, mesmo aquelas que visem a objetivos estritamente econômicos, em regime de competividade com a iniciativa privada, não poderão realizar contratações de pessoal, inclusive daquele vinculado ao setor operacional da atividade fim, sem o prévio certame público, a menos que Emenda à Constituição venha a estabelecer expressamente essa exceção, ou autorizar a adoção, por essas empresas, de métodos simplificados de seleção de pessoal, de modo a se evitar que a delonga no provimento de determinados cargos ou empregos implique em sérios prejuízos para as entidades, com reflexos negativos na atuação do próprio Estado."

Diante desse entendimento manifestado pelo TCU, parece ficar claro que a adoção de procedimentos seletivos diversos do concurso público constitucionalmente previsto, careceria de emenda constitucional nesse sentido, autorizadora de métodos simplificados de seleção de pessoal. Todavia, vale lembrar que o atual Texto Constitucional nada dispõe a respeito, levando-nos ao fundamental questionamento acerca da constitucionalidade da realização de processos seletivos públicos, mais simplificados que os concursos públicos.

Contudo, no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), o voto do Ministro PAULO BROSSARD, no julgamento do Mandado de Segurança n.º 21.322-DF, datado de 03/12/92, a despeito da inexistência da aludida previsão constitucional, sinalizou que aquela Corte Suprema admite diferenciação entre concurso público e seleção pública ao asseverar que "o procedimento do concurso ou da seleção pública dos candidatos da administração pública indireta pode ser diverso da administração direta, mas não pode dele prescindir e nem deixar de ser pública".

O voto do Ministro BROSSARD parece indicar tratar-se o processo seletivo público de uma espécie do gênero concurso público, porém mais simplificado e célere, mas ainda obrigado a atender aos princípios constitucionais da publicidade, igualdade e impessoalidade norteadores dos concursos públicos.

Mais recentemente, em 12/05/04, abordando novamente a questão, agora no exame de Questão de Ordem em Ação Cautelar n.º 200-1-SP, na qual se discute se o processo seletivo público, a que se refere o art. 4º da Lei Municipal n.º 3.939/92, do Município de Jundiaí, satisfaz a exigência contida no art. 37, inciso II, da Magna Carta, o Ministro-relator CARLOS AYRES BRITO assim se manifesta, fls; 6/7:

"12. No caso, a questão de fundo gira em torno de equivalência, ou não, entre os institutos do concurso público e do processo seletivo, para se saber se o art. 4º da Lei municipal n.º 3.939/92, ao referir-se ao último, estaria em consonância com a norma do art. 37, inciso II, da Magna Carta, que condiciona a investidura em cargo ou emprego público à aprovação prévia do candidato ‘em concurso público de provas ou de provas e títulos’."

Contudo, o Recurso Extraordinário n.º 408.620, que apreciará o mérito da questão ainda pende de apreciação. Seu futuro acórdão poderá trazer um posicionamento definitivo da Suprema Corte acerca de um conceito objetivo de processo seletivo público e seu conseqüente emprego pela Administração Pública.

Enquanto isso, diante da ausência de manifestação do STF acerca do instituto, é prudente considerá-lo como mera variação terminológica do instituto concurso público (portanto, trata-se de concurso público), ainda que possa ser caracterizado por procedimento mais célere e simplificado [30], desde que isso não signifique qualquer violação ao mandamento constitucional insculpido no art. 37, inc. II, da Constituição Federal. A nosso sentir, o estabelecimento de conceito de processo seletivo público que seja dissonante das características do de concurso público estabelecido constitucionalmente, implicaria necessária emenda constitucional, como referido na decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), datada de 15/05/1990, no processo TC n.º 006.658/89-0, já mencionada neste trabalho.

Assim, retomando o exame da EC n.º 51/06, todos os ajustes celebrados com ACS antes da referida emenda constitucional, desde que antecedidos de processo de seleção pública (repita-se por relevante), continuarão vigendo na forma acordada, sem a necessidade de submissão dos ACS contratados e em plena atividade ao processo seletivo público instituído a pela referida emenda, requisito indispensável à contratação de agentes comunitários de saúde a partir de 15 de fevereiro de 2006.

Portanto, a situação dos atuais ACS contratados através de processo de seleção pública em nada se altera, seguindo os ajustes celebrados antes de 15/02/06, seu rumo normal. Assim, por exemplo, os agentes contratados mediante celebração de contrato por tempo determinado, antecedido por processo de seleção pública, continuarão desempenhando normalmente suas atividades até a extinção do acordo por decurso do prazo contratual.

Diverso será o tratamento a ser dispensado aos ACS contratados sem anterior processo de seleção pública. Estes agentes, a contar de 15/02/06, a nosso sentir, deverão ser afastados de suas funções, sob pena de a permanência deles em atividade vir a constituir inconstitucionalidade a ser apreciada no âmbito do Tribunal de Contas, para fins de negativa de executoriedade dos atos considerados inconstitucionais pela fiscalização do Controle Externo, forte na Súmula 347 do STF [31].


3.Das competências do consórcio público

As considerações que serão feitas, a partir de agora, dizem respeito a um consórcio público de saúde, criado segundo o regramento da Lei n.º 11.107/05 ou que tenha sofrido adaptação de seu formato para o modelo estabelecido pela referida lei.

Esta ressalva é importante, na medida em que os consórcios criados antes da Lei n.º 11.107/05 não são considerados pelo normativo em apreço como consórcios públicos na estrita acepção técnica do termo, mas meros "instrumentos congêneres" [32], pelo que as disposições da Lei Geral dos Consórcios não se lhes aplicam, implicando-lhes a impossibilidade de usufruírem as vantagens licitatórias, processuais e tributárias decorrentes da interpretação dos dispositivos da Lei n.º 11.107/05.

3.1Do fundamento constitucional do consórcio público

O fundamento constitucional do contrato de consórcio público repousa no artigo 241 da Constituição Federal, que disciplina, verbis:

"Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos." (grifo nosso)

Como se percebe com facilidade, a norma é explícita ao permitir a gestão associada de serviços públicos – no caso em apreciação, os de saúde –, bem como anuir com a transferência total ou parcial de encargos essenciais à continuidade dos aludidos serviços transferidos, que originariamente foram atribuídos aos municípios.

Por conseguinte, surge da aludida regra constitucional a possibilidade de que o serviço público, que decorre da implementação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), seja objeto de gestão associada de um consórcio intermunicipal de saúde. Pelo mesmo fundamento constitucional acima transcrito, também configura-se a possibilidade de os encargos de seleção e contratação dos ACS serem objeto de transferência dos municípios consorciados à entidade consorcial.

3.2.Da abordagem infraconstitucional dos consórcios públicos

Em nível infraconstitucional, a análise da possibilidade de contratação merece a interpretação sistemática de artigos das Leis n.º 8.080/90 e 11.107/05. Iniciando pela Lei Orgânica da Saúde, como vimos no início deste trabalho, temos que o seu art. 10 estabelece expressamente a possibilidade de os municípios constituírem consórcios para desenvolverem "em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam" [33] (grifo nosso). Portanto, novamente, encontramos expresso permissivo legal em nosso ordenamento jurídico a autorizar que os municípios outorguem a um consórcio público, a tarefa de selecionar e contratar ACS, bem como implementar o PACS.

Em seguida, trazemos à colação o artigo 2º da Lei Geral dos Consórcios, cujo § 1º, inciso I, estabelece que, para o cumprimento de seus objetivos, o consórcio público poderá "firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo". A toda evidência, esta regra também conduz o operador jurídico a concluir pela possibilidade de os municípios celebrarem ajuste com o consórcio intermunicipal de saúde do qual façam parte, objetivando a transferência dos encargos de seleção e contratação dos ACS, assim como a execução do PACS.

E mais, o inciso III do indigitado parágrafo disciplina a faculdade de o consórcio "ser contratado pela administração direta ou indireta dos entes da Federação consorciados, dispensada a licitação", medida de suma importância, que poderá ser empregada em favor do consórcio por ocasião do ajuste a ser celebrado entre ele e os municípios interessados em transferir os encargos de seleção e contratação de ACS e execução do PACS.

Este permissivo de dispensa licitatória parece tratar-se de incentivo aos municípios utilizarem-se da figura do consórcio público na execução de serviços públicos que, de forma individualizada, lhes seria muito ou demasiadamente custoso em níveis técnicos, financeiros, administrativos e/ou operacionais.

Demais disso, de se perceber que a partir da publicação da Emenda n.º 51/06, de acordo com seu artigo 2º, os ACS "somente poderão ser contratados diretamente" (grifo nosso) pelos entes federativos, pelo que fica abolida a dita contratação através de terceirizadas (OS, OSCIP, cooperativas, entidades privadas, etc), o que evidencia a conveniência da utilização de contrato de consórcio público de direito público, eis que esta modalidade de consórcio é suportada por associação pública (autarquia interfederativa [34]), entidade integrante da administração indireta dos municípios consorciados.

Assim, ao empregarmos o consórcio público de direito público (associação pública) na aludida seleção e contratação de ACS, estaremos dando cabal cumprimento ao caput art. 2º da EC n.º 51/06, na medida em que a contratação será efetuada por entidade integrante do município, portanto, ocorrendo de forma direta, em estrita conformidade com o preconizado no artigo 6º, inciso II, da Lei n.º 11.107/05 [35].

3.3.Da possibilidade de previsão no protocolo de intenções

No caso dos consórcios de saúde ainda em processo de criação, vale destacar a possibilidade de os municípios consorciandos, durante os trabalhos preparatórios [36] para a celebração do protocolo de intenções, poderem estabelecer como competência a ser transferida ao futuro consórcio, a execução do PACS, nela incluído o processo de seleção e contratação dos ditos agentes comunitários de saúde. É o que se depreende da interpretação sistemática das alíneas a e b do inciso XI do artigo 4º da Lei n.º 11.107/05, verbis:

"Art. 4º São cláusulas necessárias do protocolo de intenções as que estabeleçam:... XI – a autorização para a gestão associada de serviços públicos, explicitando: a) as competências cujo exercício se transferiu ao consórcio público; b) os serviços públicos objeto da gestão associada e a área em que serão prestados;..."

3.4.Da possibilidade de cedência de pessoal ao consórcio de saúde

Ainda, referimos a faculdade atribuída aos consórcios no sentido de requerer aos futuros entes consorciados a cedência de pessoal necessário para levar a cabo os encargos decorrentes da execução do PACS, tudo com assento na previsão contida no § 4º do art. 4º da Lei Geral dos Consórcios [37]. No caso de implementação da aludida cedência, temos que será necessária a celebração de contrato de programa entre o ente federativo cedente e o consórcio, tendo em conta o preconizado no artigo 13 da Lei n.º 11.107/05 [38], ressaltando que a celebração do aludido contrato estará dispensada de procedimento licitatório face à alteração que o art. 17 da Lei n.º 11.107/05 procedeu no art. 24 da Lei n.º 8.666/93 [39].

Diante dessas perspectivas, surge a seguinte indagação: como os municípios prestarão contas à União dos recursos que ela lhes repassou para fazer frente ao custeio dos ACS, no âmbito local, se a execução do PACS for transferida ao consórcio de saúde? A resposta é simples na medida em que o § 4º do artigo 8º da Lei Geral dos Consórcios prevê a obrigatoriedade do consórcio "fornecer as informações necessárias para que sejam consolidadas, nas contas dos entes consorciados, todas as despesas realizadas com os recursos entregues em virtude de contrato de rateio, de forma que possam ser contabilizadas nas contas de cada ente da Federação na conformidade dos elementos econômicos e das atividades ou projetos atendidos", tudo visando a permitir o atendimento, pelos municípios consorciados, dos dispositivos da Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) –.

3.5.Da possibilidade de alteração dos contratos de consórcios para realizar a execução do PACS

Na eventualidade de o consórcio público de saúde já ter sido criado e não tiver sido prevista, dentre suas competências, a execução do PACS, aí incluídas a seleção e contratação de ACS, lembramos que esta situação poderá ser contornada através da alteração do contrato de consórcio público, que "dependerá de instrumento aprovado pela assembléia geral, ratificado mediante lei por todos os entes consorciados", nos exatos termos do artigo 12 da Lei Consorcial.

3.6.Da possibilidade da celebração de convênio do consórcio de saúde com a União para fins de repasse de recursos do PACS

Outra possibilidade disponibilizada pela Lei n.º 11.107/05 aos consórcios de saúde é a faculdade de a entidade consorcial celebrar convênio com a União, tendo em vista "a descentralização e a prestação de políticas adequadas em escalas adequadas" [40], para fins de concentrar diretamente em sua pessoa o repasse dos recursos federais para custeio dos ACS, contanto que os municípios consorciados assim o desejem, mediante a necessária deliberação em assembléia geral, desonerando dessa forma as municipalidades consorciadas da responsabilidade de gerenciamento das aludidas verbas, o que simplificaria o processo de fiscalização das verbas repassadas a este título, pois o órgão de controle externo responsável teria o seu trabalho simplificado, uma vez que teria de fiscalizar uma entidade apenas (consórcio de saúde), ao invés dos inúmeros municípios consorciados.

Assim, quer parecer que a adoção dessa forma de repasse de verbas, diretamente ao consórcio de saúde, pode representar forma eficaz de simplificação e racionalização das atividades de controle e fiscalização do uso das verbas utilizadas na implementação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, representando economia na utilização dos recursos humanos e materiais na fiscalização dos ditos recursos públicos.


Conclusões

Este estudo teve por objeto analisar, diante da exegese das normas pertinentes de nossa ordem jurídica, a existência ou não da possibilidade de os consórcios intermunicipais de saúde poderem receber, dos municípios consorciados, a atribuição de execução dos PACS, aí incluídas as competências para selecionar e contratar os agentes comunitários de saúde.

Considerando que o desafio assumido somente poderia ser satisfatoriamente vencido a partir da realização de exercício hermenêutico acerca das normas pertinentes, realizamos o exame dos seguintes dispositivos, na busca de extrair-lhes as normas jurídicas relativas ao objeto do tema em apreciação. Assim, visitamos os seguintes artigos: na Constituição Federal, o artigo 241; na Emenda Constitucional n.º 51/06, os artigos 1º e 2º; na Lei n.º 8.080/90, os artigos 4º e 10; e na Lei n.º 11.107/05, os artigos 2º, § 1º, inc. I e III; 6º, inc. II; 4º, inc. XI, alíneas a e b, e seu § 4º; 8º e seu § 4º; 12, 13, 14 e 17, tendo este último artigo alterado, dentre outros, os artigos 24 e 112 da lei n.º 8.666/93 igualmente abordados no presente ensaio.

Também consultamos a jurisprudência pátria a fim de definirmos o atual momento do debate sobre a equivalência ou não das expressões concurso público e processo seletivo público, esta última empregada na EC n.º 51/06. Descobrimos que o tema ainda carece de definição, por parte do STF, conforme se depreende do estudo dos acórdãos proferidos no Mandado de Segurança n.º 21.322-DF, datado de 03/12/92, e no exame de Questão de Ordem em Ação Cautelar n.º 200-1-SP, de 12/05/04.

Em suma, o trabalho hermenêutico empreendido abordou o exame de quinze artigos de lei e de jurisprudência de nossa Corte Constitucional. Para facilitar, elencamos abaixo as principais conclusões, resultado da exegese realizada:

a)A Lei n.º 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde – foi a primeira norma infraconstitucional brasileira, após o advento da Constituição Federal de 1988, a tratar sobre o tema consórcio público, ao disciplinar que "os municípios poderão constituir consórcios para desenvolver em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam",portanto expressamente estimulando a utilização, pelas municipalidades, da gestão associada de serviços públicos na área da saúde há mais de década e meia atrás. Em outras palavras, encontramos na própria norma diretriz da política de saúde pública do país, fundamento jurídico legítimo para respaldar a intenção dos municípios em transferir as ações e encargos do Programa de Agentes Comunitários a um consórcio intermunicipal de saúde do qual sejam integrantes;

b)os mais recentes dados do IBGE sobre gestão municipal brasileira, colhidos em 2002 [41] e publicados em 2005, revelam que, dos 5.560 municípios brasileiros existentes em 2002, 2.169 participavam de consórcios intermunicipais de saúde, significando dizer que 39,01% das municipalidades brasileiras integravam, naquela oportunidade, um consórcio de saúde, evidenciando tratar-se de percentual revelador da grande aceitabilidade e utilidade do instituto no Brasil, o que permite inferir que a gestão associada do PACS através de um consórcio intermunicipal de saúde também venha a se constituir em mais uma iniciativa de sucesso na área da saúde, perfeitamente alinhada com as diretrizes fixadas na Constituição Federal, Lei Orgânica da Saúde e Lei Geral dos Consórcios Públicos;

c)quanto à definição do que seja processo seletivo público, expressão contida na EC n.º 51/06, diante da escassez doutrinária e da ausência de manifestação do STF acerca do instituto, é prudente considerá-la como mera variação terminológica do instituto concurso público (portanto, trata-se de concurso público), ainda que possa ser caracterizado por procedimento mais célere e simplificado, desde que isso não signifique qualquer violação ao mandamento constitucional insculpido no art. 37, inc. II, da Constituição Federal;

d)da interpretação do dispositivo constitucional inserto no artigo 241 da Carta Magna, surge a possibilidade de que o serviço público, que decorre da implementação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), seja objeto de gestão associada de um consórcio intermunicipal de saúde. Pelo mesmo regramento constitucional também configura-se a possibilidade de os encargos de seleção e contratação dos ACS serem objeto de transferência dos municípios consorciados à entidade consorcial;

e)em nível infraconstitucional, temos que o art. 10 da Lei n.º 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde – estabelece expressamente a possibilidade de os municípios constituírem consórcios para desenvolverem "em conjunto as ações e os serviços de saúde que lhes correspondam" (grifo nosso). Portanto, novamente, encontramos norma, agora em nível infraconstitucional, em nosso ordenamento jurídico a autorizar que os municípios outorguem a um consórcio público, a tarefa de selecionar e contratar ACS, bem como implementar o PACS;

f)o artigo 2º da Lei n.º 11.107/05 – Lei Geral dos Consórcios – , cujo § 1º, inciso I, estabelece que, para o cumprimento de seus objetivos, o consórcio público poderá "firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo", também conduz o operador jurídico a concluir pela possibilidade de os municípios celebrarem ajuste com o consórcio intermunicipal de saúde do qual façam parte, objetivando a transferência dos encargos de seleção e contratação dos ACS, assim como a execução do PACS;

g)a partir da publicação da Emenda n.º 51/06, de acordo com seu artigo 2º, os ACS "somente poderão ser contratados diretamente" (grifo nosso) pelos entes federativos, pelo que fica abolida a dita contratação através de terceirizadas (OS, OSCIP, cooperativas, entidades privadas, etc), o que ratifica a conveniência da utilização de contrato de consórcio público de direito público, eis que esta modalidade de consórcio é suportada por associação pública (autarquia interfederativa), entidade integrante da administração indireta dos municípios consorciados;

h)no caso dos consórcios ainda em processo de criação, vale destacar a possibilidade de os municípios consorciandos, durante os trabalhos preparatórios para a celebração do protocolo de intenções, poderem estabelecer como competência a ser transferida ao futuro consórcio, a execução do PACS, nela incluído o processo de seleção e contratação dos ditos agentes comunitários de saúde. É o que se depreende da interpretação sistemática das alíneas a e b do inciso XI do artigo 4º da Lei n.º 11.107/05;

i)no caso de a execução do PACS vir a ser transferida ao consórcio de saúde, os municípios prestarão contas à União dos recursos que ela lhes repassou para fazer frente ao custeio dos ACS, no âmbito local, nos exatos termos do preconizado no § 4º do artigo 8º da Lei Geral dos Consórcios que prevê a obrigatoriedade do consórcio "fornecer as informações necessárias para que sejam consolidadas, nas contas dos entes consorciados, todas as despesas realizadas com os recursos entregues em virtude de contrato de rateio, de forma que possam ser contabilizadas nas contas de cada ente da Federação na conformidade dos elementos econômicos e das atividades ou projetos atendidos", tudo visando a permitir o atendimento, pelos municípios consorciados, dos dispositivos da Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000 – LRF –;

j)na eventualidade de o consórcio público de saúde já ter sido criado e não tiver sido prevista, dentre suas competências, a execução do PACS, aí incluídas a seleção e contratação de ACS, lembramos que esta situação poderá ser contornada através da alteração do contrato de consórcio público, que "dependerá de instrumento aprovado pela assembléia geral, ratificado mediante lei por todos os entes consorciados", conforme disposto no artigo 12 da Lei n.º 11.107/05;

k)outra possibilidade disponibilizada pela Lei n.º 11.107/05 aos consórcios de saúde é a faculdade de a entidade consorcial celebrar convênio com a União, tendo em vista "a descentralização e a prestação de políticas adequadas em escalas adequadas" previstas no artigo 14 da Lei n.º 11.107/05, para fins de concentrar diretamente em sua pessoa, o repasse dos recursos federais para custeio dos ACS, contanto que os municípios consorciados assim o desejem, mediante deliberação em assembléia geral, desonerando dessa forma as municipalidades consorciadas da responsabilidade de gerenciamento das aludidas verbas, o que simplificaria o processo de fiscalização das verbas repassadas a este título, pois o órgão de controle externo responsável teria o seu trabalho simplificado, uma vez que teria de fiscalizar uma entidade apenas (consórcio de saúde), ao invés dos inúmeros municípios consorciados;

Assim, diante de tudo quanto foi examinado no presente trabalho, respondendo objetivamente ao questionamento proposto na introdução desse trabalho, entendemos pela existência de farto substrato jurídico, tanto no plano constitucional quanto em nível infraconstitucional, a respaldar a realização da transferência de encargos e de pessoal dos municípios consorciados ao consórcio de saúde do qual façam parte, objetivando a execução do PACS, aí incluídas as tarefas de seleção e contratação dos agentes comunitários de saúde.

Dessa forma, pensamos que a demonstração dessa sistematização normativa, evidenciando a estreita relação e compatibilidade existente entre a Constituição Federal, Lei Orgânica da Saúde e Lei Geral dos Consórcios Públicos, em termos de gestão associada de serviços públicos, possa ser útil ao Ministério da Saúde, aos Estados e Municípios nos seus respectivos planejamentos e ações em prol da política nacional de saúde pública, possibilitando-lhes usufruir efetivamente dos inúmeros benefícios trazidos pela Lei n.º 11.107/05, ferramenta poderosa na implementação de serviços públicos eficazes em nosso país, mas ainda, infelizmente, pouco conhecida e utilizada entre nós.


BIBLIOGRAFIA

FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4.ed. rev. e ampl. SãoPaulo: Malheiros, 2004.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Perfil dos municípios brasileiros: gestão pública 2002/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2005.

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira da Silva. Considerações sobre a futura regulamentação da lei geral dos consórcios públicos. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 934, 23 jan. 2006. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/7863>. Acesso em: 10 mar. 2006.

________________________________________. Lei n.º 11.107/05: marco regulatório dos consórcios públicos brasileiros". Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 705, 10 jun. 2005. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/6872>. Acesso em: 09 mar. 2006.


NOTAS

01 Nesse sentido, acerca da diferenciação entre norma federal e norma nacional, sugerimos leitura do item 4.1 de nosso artigo intitulado "Considerações sobre a futura regulamentação da lei geral dos consórcios públicos" disponível em http://jus.com.br/revista/texto/7863. Acesso em: 05 mar. 2006.

02 Art. 4º, § 2º, da Lei n.º 8.080/90.

03 Perfil dos municípios brasileiros: gestão pública 2002/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2005, p. 90-91.

04 Op. Cit., p. 90-91.

05 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4.ed. rev. e amp. SãoPaulo: Malheiros, 2004, p. 75.

Disponível em: http://www.ministerio.saude.bvs.br/html/pt/popup/leg/portarias_psf/portaria1886.pdf. Acesso em 09mar 06.

06 O Item 1.1 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97 estabelece que ao Ministério da Saúde, no âmbito do PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde) cabe "contribuir para a reorientação do modelo assistencial através do estímulo à adoção da estratégia de agentes comunitários de saúde pelos serviços municipais de saúde".

07 Segunda parte do Item 1.5 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97.

08 Item 7.5 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97.

09 Item 7.6 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97.

10 Item 8.4 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97.

11 Item 8.5 do Anexo I da Portaria MS n.º 1.886/97.

12 Enunciado n.º 331 do TST, em seu inciso IV, assim dispõe, verbis: "O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial" (artigo 71 da Lei nº 8.666/93). (Redação dada ao item pela Resolução TST nº 96, de 11.09.2000, DJU 18.09.2000)

13 Nesse sentido, sobre as características do regime especial, que se encontra em posição intermediária entre o regime estatutário e o trabalhista no estabelecimento das regras que regerão a relação do poder público com o contratado, sugerimos consulta à obra Manual de Direito Administrativo, 14 ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.487-490, de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO.

14 Art. 1º do Decreto n.º 3.189/99.

15 Art. 3º do Decreto n.º 3.189/99.

16 Art. 4º do Decreto n.º 3.189/99.

17 O art. 2º da Lei n.º 10.507/02 assim dispôs, verbis: "A profissão de Agente Comunitário de Saúde caracteriza-se pelo exercício de atividade de prevenção de doenças e promoção da saúde, mediante ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob supervisão do gestor local deste". Portanto, a referida lei em síntese, apenas ratificou as atividades atribuídas ao ACS pelo Decreto n.º 3.189/99.

18 Art. 1º, § 1º da Lei n.º 10.507/02.

19 Requisitos constantes dos incisos I a III do art. 3º da Lei n.º 10.507/02.

20 Art. 4º da Lei n.º 10.507/02.

21 O art. 7º da Instrução Normativa INSS/DC n.º 65, de 10 de maio de 2002 foi acrescido, ainda, de mais dois parágrafos que fazem alusão ao ACS, a saber, verbis: "§ 5º. Agentes comunitários de saúde são pessoas recrutadas pelo município, por intermédio de processo seletivo, entre os moradores das áreas onde serão exercidas suas atividades, para atuar em programas de saúde, mediante remuneração, sob supervisão competente e com disponibilidade de tempo integral para exercer as atividades por que foram recrutados; e § 6º. O vínculo previdenciário do agente comunitário de saúde contratado por intermédio de entidades civis de interesse público dar-se-á com essas entidades, na condição de segurado empregado do RGP".

22 Art. 198, § 4º, da Constituição Federal.

23 Art. 198, § 5º, da Constituição Federal.

24 Art. 198, § 6º, da Constituição Federal.

25 "I - residir na área da comunidade em que atuar; II - haver concluído com aproveitamento curso de qualificação básica para a formação de Agente Comunitário de Saúde; III - haver concluído o ensino fundamental."

26 Art. 2º, Parágrafo único, da EC n.º 51/06.

27 "II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 19/98)"

28 Esta decisão foi publicada em 06/06/1990, data em que o TCU, firmando entendimento pela necessidade de realização de concurso público para contratação de pessoal na Administração Indireta, passou a exigir tal conduta de seus entes jurisdicionados.

29 Nesse sentido, importa destacar, consoante bem asseverou o Município de Jundiaí nas suas razões no RE n.º 408620, que "a Constituição Federal não prevê uma forma própria ao concurso público, de sorte que a Administração deve fazê-lo no caso concreto, de acordo com a complexidade e a natureza do cargo...". Assim, em tese, pensamos que seria possível à Administração Pública realizar um concurso público, com características de maior simplicidade e celeridade do que usualmente se vem empresta ao dito certame, denominando-o de outra forma (pois é sabido que o nomen juris de um instituto não altera sua natureza jurídica), no uso de sua autonomia e discricionariedade, contanto que respeite os princípios constitucionais estabelecidos para a matéria. A celeridade e simplificação de procedimentos que se pretenda instituir no certame, é certo, jamais poderá ferir o disposto no art. 37, inc. II, da CF/88. Em suma, postulamos ser o processo seletivo meramente outra forma de denominação do concurso público, desimportando as características de celeridade e simplificação que venha a possuir, pois, ainda assim, continuará cogente ao mandamento do art. 37, inc. II, da CF/88, e, portanto, possuindo natureza jurídica de concurso público.

30 Súmula 347 do STF – "O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público."

31 Art. 19 da Lei Federal n.º 11.107/05.

32 Art. 10 da Lei n.º 8.080/90.

33 Nesse sentido, sugerimos leitura do tópico n.º 5.2. Da natureza jurídica de uma associação pública de artigo intitulado "Considerações sobre a futura regulamentação da lei geral dos consórcios públicos" de nossa autoria, publicado em Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 934, 23 jan. 2006. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/7863>. Acesso em: 10 mar. 2006.

34 "Art. 6º O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:...I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções;...§ 1º O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados."

35 Nesse sentido, sugerimos leitura do tópico "8.1.2. Dos trabalhos preparatórios à celebração do protocolo de intenções" do artigo "Lei n.º 11.107/05: marco regulatório dos consórcios públicos brasileiros", de nossa autoria, publicado no site jurídico Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 705, 10 jun. 2005. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/6872>. Acesso em: 09 mar. 2006.

36 "§ 4º Os entes da Federação consorciados, ou os com eles conveniados, poderão ceder-lhe servidores, na forma e condições da legislação de cada um."

37 "Art. 13. Deverão ser constituídas e reguladas por contrato de programa, como condição de sua validade, as obrigações que um ente da Federação constituir para com outro ente da Federação ou para com consórcio público no âmbito de gestão associada em que haja a prestação de serviços públicos ou a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal ou de bens necessários à continuidade dos serviços transferidos."

38 O artigo 17 da Lei n.º 11.107/05 acrescenta ao artigo 24 do Diploma das Licitações e Contratos, que trata dos casos de dispensa do procedimento licitatório, o inciso XXVI, cujo teor assim dispõe, verbis: "XXVI - na celebração de contrato de programa com ente da Federação ou com entidade de sua administração indireta, para a prestação de serviços públicos de forma associada nos termos do autorizado em contrato de consórcio público ou em convênio de cooperação".

39 "Art. 14. A União poderá celebrar convênios com os consórcios públicos, com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas."

40 Perfil dos municípios brasileiros: gestão pública 2002/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2005, p. 90-91.


Autor

  • Cleber Demetrio Oliveira da Silva

    Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira da. O consórcio intermunicipal de saúde e a contratação de agentes comunitários de saúde (ACS). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1004, 1 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8182. Acesso em: 13 maio 2024.