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A Constituição democrática

A Constituição democrática

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O Estudo da estrutura constitucional é de extrema importância, especialmente no atual momento, quando se discute o futuro do Estado Constitucional, que nas suas formas liberal, social ou socialista, se encontra em crise.

Importante notar que não é o Estado constitucional que está em crise, mas sim os modelos socio-econômicos consagrados nos textos constitucionais. Entretanto, a crise destes modelos faz com que propositalmente ou não, se identifique a crise como sendo do próprio Estado Constitucional na sua essência, fazendo com que sua existência esteja ameaçada.

Neste estudo, que desenvolvemos de forma mais aprofundada em livro, analisamos as principais características que uma Constituição efetivamente democrática, que cumpra um papel essencialmente processual, deve ter, a partir de uma classificação tradicional das Constituições.


1 - Constituição Sintética ou Analítica?

Ao se propor uma Constituição de princípios, onde a democracia como processo irá permitir as mudanças que as comunidades locais, regionais e nacionais desejam, devemos questionar, além do importante papel da interpretação normativa e o processo de mutação constitucional (1), qual a estrutura ideal dessa nova Constituição (2).

O primeiro ponto desta nova estrutura constitucional será a extensão do texto, discussão que em geral é tratada com a simplicidade que o debate não permite, pois não se trata apenas de adotar uma Constituição pequena ou longa, uma vez que o debate da extensão do texto constitucional está relacionado, necessariamente, com a questão da interpretação do mesmo, e visto que a lei é a interpretação que se faz dela, em um determinado contexto histórico, político, social e econômico, através de leitura sistemática do texto constitucional e das normas infraconstitucionais, em relação a esse.

Dessa forma, além de sabermos, ao final deste trabalho, até que ponto podemos, através do processo de interpretação da Constituição, com a sua necessária inserção dentro da situação histórica sócio econômica, possibilitar evolução interpretativa, que permita o rompimento com leituras clientelistas e neoliberais deste texto, poderemos indicar, também, modelo ideal de Constituição democrática, em um texto que possibilite a consagração de um novo paradigma constitucional, que ao mesmo tempo que permita seguro processo de mutação, evite o retorno a modelos anteriores, menos democráticos.

Tradicionalmente tem-se dividido as Constituições em sintéticas e analíticas, no que se refere a extensão do texto. Desta forma, texto sintético é aquele que se reduz às normas essenciais de organização e funcionamento do Estado, e ainda a declaração e garantia de alguns direitos fundamentais.

Ao contrário, Constituição analítica é aquela que, além das matérias que nos referimos anteriormente, desenvolvidas com maior detalhamento que no caso anterior, traz no seu texto regras que poderiam ser deixadas para serem tratadas em normas infraconstitucionais, pois a perspectiva de permanência destas normas, é inferior à da norma tipicamente constitucional, que não pode nunca ser considerada imutável, uma vez que muda através de um processo apenas interpretativo, não passando pelo processo formal de alteração do texto constitucional, por emenda ou revisão, mas que de qualquer forma tem uma expectativa maior de sobrevivência, do que uma norma que desce a um grau de especificidade muito grande, desaconselhando-se a sua inclusão no texto constitucional, principalmente em um texto onde o processo de alteração, seja mais complexo, caracterizando-se uma constituição rígida.

Portanto, alguns pontos específicos irão marcar a diferença entre um texto sintético e um analítico, sendo característica deste último:

a) maior detalhamento das normas referentes à organização e funcionamento do Estado, presentes em todos os textos constitucionais contemporâneos;

b) maior relação de direitos fundamentais ou de direitos humanos, com um maior detalhamento de suas garantias processuais, constitucionais e sócio-econômicas;

c) inclusão de regras que devido ao menor grau de abrangência de seus efeitos, e conseqüentemente maior especificidade, tendem a uma menor permanência, exigindo o funcionamento dos mecanismos formais de reforma da Constituição, uma vez que a mutação interpretativa, pode encontrar maiores problemas para evoluir nos tribunais pelo grande detalhamento do texto.

d) maior número de regras em sentido restrito (que regulam situações específicas), em relação a regras em sentido amplo (que se aplicam a várias situações diferentes), em uma Constituição analítica.

Não é correto afirmar que as Constituições liberais eram sintéticas e que as Constituições Sociais são analíticas. Sem dúvida alguma, com o surgimento, no início do século, de Constituições que representam novo tipo de Estado, agora interventor no domínio econômico e assistencial, perante questões sociais (o modelo neoliberal em sentido amplo, pois mantém o núcleo do pensamento liberal de liberdade econômica, passando a intervir na economia, para assegurar sua sobrevivência, assistindo ainda aos excluídos do modelo econômico, através de diversos direitos sociais, em graus diferentes de intervenção e de preocupação social), o conteúdo dessas Constituições foi ampliado, com um maior número de direitos fundamentais, com a inclusão de direitos sociais e econômicos, ao lado dos direitos individuais e políticos. Entretanto, é possível encontrar Constituições Sociais (neoliberais em sentido amplo), bastante sintéticas assim como Constituições Liberais, no passado, bastante detalhadas.

Outro ponto fundamental, é a compreensão de que texto menor não significa uma Constituição com conteúdo restrito, assim como texto grande não significa uma Constituição dotada de maior número temático. A preocupação que deve fundamentar a adoção de uma Constituição, analítica ou sintética, será o grau de importância que se quer oferecer aos processos informais de mudança dos textos constitucionais e aos processos formais de reforma.

Ao se adotar um texto constitucional, com número maior de regras em sentido amplo (os princípios), mantendo-se número pequeno de normas em sentido restrito, isto deverá significar maior valorização dos processos informais de mudança do texto constitucional, permitindo, com isto, que a doutrina, e principalmente a jurisprudência, dinamizada por uma população participativa e um judiciário, obrigatoriamente, sensível à realidade sócio-econômica e as indicações democráticas dos cidadãos, faça a Constituição estar em constante processo de evolução. (3) Dessa forma, a Constituição sintética, ao permitir uma maior participação do judiciário e dos cidadãos na construção do texto constitucional, cria uma Constituição dinâmica, pois esta será composta do texto escrito e da interpretação que se faz dos princípios e regras, em determinado momento histórico. Conclui-se que não se pode conhecer a Constituição de um país, apenas pela leitura de seu texto, mas é necessário, sempre, procurar na jurisprudência e na doutrina, influência da vontade popular em um Estado democrático, apreendendo significado de seus princípios e regras, em um dado momento histórico. Exemplo elucidativo do que viemos de analisar, será a Constituição norte-americana de 1787, em vigor até hoje, com apenas vinte e sete emendas, mas que recebeu leituras bastante variadas, em momentos históricos diferentes, fazendo que determinados autores afirmem a existência de múltiplas interpretações constitucionais nos Estados Unidos, construídas em momentos históricos diferentes, através da sua compreensão flexibilizada e a necessária inserção de seus princípios, em situações históricas diferentes.

Uma Constituição analítica, quanto maior e mais detalhado for seu texto, menor será o espaço para os processos informais de mudança constitucional, valorizando os processos formais de reforma constitucional, e conseqüentemente, de uma certa maneira, a mudança constitucional, através da democracia representativa, em processos lentos e difíceis (no caso de uma Constituição rígida).

O Brasil adotou uma Constituição analítica, que representou um passo significativo, no início da construção de uma democracia no país. A Constituição de 1988 traz um amplo leque de direitos fundamentais e de garantias de varias espécies, representando modelo de Constituição Social, que pode permitir a construção de um Estado efetivamente democrático.

Embora, a interpretação do texto de 1988, permita o estabelecimento das bases de um novo modelo de Estado democrático, onde os direitos sociais e econômicos ganham uma perspectiva de garantia sócio-econômica, de exercício dos direitos individuais e políticos, portanto enquanto pressupostos de implementação dos direitos individuais e de uma democracia política, social e econômica, dentro da perspectiva de indivisibilidade dos grupos de direitos individuais, sociais, políticos e econômicos, o caminho para a implementação desses pressupostos é longo, não passa apenas pela construção de uma interpretação do texto, mas efetivamente de mudança profunda na sociedade brasileira. (4)

Por este motivo, não devemos apenas discutir o modelo atual, mas, estudar alternativas estruturais de organização estatal, que incentivem uma mudança de postura na sociedade, criando-se mecanismos que envolvam a população na construção de seu futuro, chamando a população, constantemente, a opinar na transformação social, política e econômica do espaço público.

Obviamente, o caminho de mudança da estrutura constitucional, adotando-se modelo descentralizado de exercício de poder, e nova perspectiva de tratamento constitucional dos direitos fundamentais, não é, também, caminho fácil, mas resta como opção a construção gradual de novas realidades estatais, através de processos formais e informais de reforma na Constituição, não se descartando, obviamente, nova ruptura com o ordenamento constitucional para a elaboração de uma nova constituição que permita a consagração definitiva de um novo modelo.

Em tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da UFMG, defendemos varias mudanças na Constituição que necessitam de processos formais de reforma da Constituição, enquanto outras podem, efetivamente, ocorrer através de processos informais de mutação do texto. O ponto central da nossa tese, que defende a desconstitucionalização da ordem econômica e social, incluindo necessariamente a desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção, coloca-nos um desafio, no sentido de sabermos se, para a consagração deste novo modelo, seria necessário rompimento com a Constituição, o que implicaria não apenas na atuação do poder constituinte derivado(o poder de reforma), mas na necessidade de um novo poder constituinte originário (capaz de elaborar nova ordem constitucional de forma soberana).

No momento, concluímos, que pelo exposto neste tópico, uma constituição sintética, que privilegie os princípios sobre as regras, em sentido restrito, possibilitando processos de construção informal e democrática do texto constitucional, seria o modelo ideal para o Estado democrático que defendemos, reduzindo-se as normas em sentido restrito, na Constituição Federal àquelas que estabelecem o funcionamento e a competência dos órgãos e dos canais de participação democrática.


2 - Constituição rígida ou flexível?

Outra classificação utilizada, com freqüência, é a divisão das Constituições em rígidas e flexíveis. (5)

As Constituições rígidas são aquelas que necessitam de um processo formal, que dificulta a alteração de seu texto, estabelecendo mecanismos parlamentares específicos, quorum para a aprovação com maiorias especiais, competência restrita para propor a sua alteração, além de limites temporais, circunstanciais e materiais para o funcionamento do poder de reforma.

A Constituição de 1988 segue a tradição dos textos brasileiros, que adotam o modelo de Constituições rígidas, com exceção da Constituição de 1824, que continha dispositivos que só poderiam ser alterados, através de processos mais complexos, ao lado de dispositivos que poderiam ser modificados, através de quorum de lei infra constitucional, caracterizando uma Constituição semi-rígida, ou seja, parte rígida, parte flexível.

Os elementos principais, que caracterizam a rigidez da Constituição de 1988, são:

a) a existência de quorum de 3/5 para a alteração do texto através de emenda à Constituição, em dois turnos de votação em cada casa legislativa.

b) a proposta de emenda só poderá partir de 1/3, dos membros da Câmara de Deputados ou Senado, do Presidente da República ou de mais da metade das Assembléias Legislativas, que encaminharão a proposta aprovada por maioria relativa de seus membros.

c) a existência de limites materiais, estabelecidos pelo artigo 60, parágrafo 4º, incisos I a IV, onde se proíbe emendas tendentes a abolir a forma federal, a democracia, os direitos individuais e suas garantias e a separação de poderes.

d) a existência de limites circunstanciais, consubstanciados na proibição do funcionamento do poder constituinte derivado (o poder de reforma), durante a vigência do Estado de Sítio, Estado de Defesa e Intervenção Federal.

Além da reforma constitucional através de emendas, que visa alterações pontuais do texto, através de emendas supressivas, aditivas ou modificativas, a Constituição de 1988 previu, ainda, o poder de reforma através de revisão do texto, o que implica em alteração de todo o texto, obviamente sem comprometer ou modificar os princípios constitucionais, alterando o fundamento da Constituição, visto que o Poder de reforma, enquanto Poder Constituinte derivado, de segundo grau e subordinado, não pode alterar a obra do seu criador que é o Poder Constituinte Originário, este sim, soberano e inicial, portanto de primeiro grau. (6)

Tendo sido previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o Poder revisional recebeu flexibilização, no que diz respeito ao processo legislativo, estabelecendo-se quorum de maioria absoluta em votação unicameral, para a aprovação do projeto de revisão. Entretanto, em contrapartida, além dos limites materiais e circunstanciais já mencionados, sofreu esse poder de reforma através de revisão, limite temporal de cinco anos, podendo ser exercido apenas uma vez, pelo Congresso, com poderes constituintes derivados de revisão, pois com a implementação do texto provisório, o dispositivo transitório desaparece.

As cláusulas pétreas no texto ou as cláusulas imodificáveis, são elementos importantes, no estabelecimento da rigidez do texto, uma vez que estas cláusulas não poderão ser modificadas, nem mesmo através dos processos de reforma. Além das cláusulas pétreas expressamente enumeradas na Constituição, não pode um Poder Constituinte Derivado (o poder de reforma), alterar a estrutura fundamental da Constituição, compromentendo os seu princípios fundamentais. (7)

As Constituições flexíveis perderam importância, pois não respondem à necessidade de supremacia e segurança que o texto constitucional, deve oferecer aos cidadãos, em relação às garantias de seus direitos fundamentais e a organização do Estado.

Ao contrário das Constituições rígidas, as Constituições flexíveis podem ser alteradas através de procedimentos simplificados, perdendo com isto o caráter de supremacia que devem ter. Torna-se difícil falar em controle de constitucionalidade, elemento fundamental na caracterização da supremacia constitucional, uma vez que, pelo mesmo processo que se elabora uma lei, pode-se alterar o texto constitucional.

Os textos flexíveis se mostraram inadequados para permitirem a garantia que a Constituição deve oferecer enquanto norma suprema, que se impõe como limite a atuação dos poderes, sejam públicos ou privados, que atuam no território estatal.

A Constituição democrática deve combinar texto sintético, que permita processos de mutação democrática, ao lado de garantias eficazes de rigidez constitucional e controle de constitucionalidade, para possibilitar os processos e mecanismos de exercício de democracia nela estabelecidos, assim como estabelecer como cláusulas pétreas, os princípios universais de direitos humanos nela consagrados.


3 - Constituição Escrita ou Costumeira?

Classificação tradicional, que a doutrina de Direito Constitucional adota, é a divisão dos textos constitucionais entre escritos e não escritos.

Exemplo típico de texto não escrito, ou de Constituição costumeira, é a da Grã-Bretanha. Foi na Inglaterra que se fortaleceu, inicialmente, o processo de construção do constitucionalismo moderno, consagrando a idéia de limitação do poder do Estado, por texto legal criador do Estado, de seus poderes e órgãos, distribuindo competências, garantindo direitos e estabelecendo limites para a atuação do mesmo. (7)

Desta forma, a Magna Carta de 1215 é um texto referencial e embrionário do processo de formação do Estado Constitucional moderno, sendo norma constitucional que, ainda hoje, é referencia para a construção do sistema de princípios, valores e normas costumeiras, em que se transformou a Constituição inglesa.

O sistema constitucional britânico, hoje, está alicerçado sobre varias leis constitucionais, como a Magna Carta, o Habeas Corpus Act e a Bill of Rights, não sendo correta a afirmação de que não existem leis constitucionais escritas naquele país. O que ocorre, é que neste sistema além das leis constitucionais sobre as quais se construíram todo o sistema, de princípios, valores e regras, convivem normas não escritas, que estabelecem procedimentos construídos historicamente e repetidos durante séculos.

Não se pode esquecer que originou-se, também, na Inglaterra de Cromwell, no século dezessete, a idéia de instrumento de governo escrito, que estabeleceria as regras para o exercício do poder estatal. Portanto, se do ciclo constitucional inglês, pode-se extrair a idéia de uma monarquia parlamentarista, da curta experiência republicana, no período de Cromwell, surgiu o ideal de uma república constitucional, mais tarde levada para as colônias da América do Norte, pelos puritanos que se viram obrigados a sair da Inglaterra, após a restauração da Monarquia com a morte do Lorde Protetor, Cromwell.

Os Estados Unidos da América do Norte, com sua primeira constituição escrita e codificada, incorpora a idéia de uma República Federal, pela sua formação histórica, a partir de colônias, que inicialmente, se fazem independentes da Inglaterra, tornando-se Estados soberanos.

O sistema constitucional norte americano combina parte da experiência inglesa, no momento em que adota texto sintético, que permite mutações interpretativas, adotando a idéia de precedentes constitucionais, em um direito escrito, porém não muito codificado, partindo de uma Constituição escrita e rígida.

Pode-se concluir que o modelo de Constituição costumeira, não se copia, pois é essencialmente histórica, criada a partir de varias contingências históricas e culturais, que influenciaram decididamente na sua evolução e afirmação.

No mundo proliferou o modelo de Constituição escrita, rígida e codificada. Esta constatação não contraria, mas confirma idéia anteriormente já discutida, da adoção de uma Constituição sintética, rígida e escrita, que permita processos de evolução e adequação democrática, de seus princípios a realidades históricas diferentes e mutáveis, aprendendo com a experiência inglesa e norte americana, pois não se pode adotar classificações estanques, uma vez que os pontos de contatos entre os dois modelos de tradição legislativa escrita e não escrita, podem se fundir em uma resultante completamente nova, de um direito dinâmico, popular e democrático, com bases em uma Constituição rígida, que dê respaldo aos processo dinâmicos de evolução democrática do Direito.


4 - Constituição codificada ou não codificada?

Da mesma forma, que optou-se por constituições rígidas e escritas, às Constituições codificadas demonstram maior vantagem na sistematização, possibilitando construção adequada de sua interpretação sistemática.

As Constituições não codificadas caracterizam-se pela existência de leis constitucionais esparsas, ao lado do texto base. A Constituição encontra-se fragmentada, sem organização sistemática de seu texto, que permita a manutenção de sua lógica interna, sobre a qual irá construir-se toda a interpretação.

Importante, neste momento, mais uma vez, ressaltar a idéia de que a Constituição não é apenas o seu texto escrito, uma vez que a lei comporta a interpretação que se faz dela, em um dado momento histórico. Impossível aplicar a lei, sem antes interpreta-la. Estas classificações estudadas até aqui, referem-se, portanto, a uma classificação do texto escrito, sobre o qual se construirá a constituição democrática, que será a interpretação que se oferecerá ao texto básico, construída de forma participativa e democrática pelos cidadãos e adequada ao momento histórico vivido.

Um texto codificado, estruturado de forma lógica em um único documento, permite a manutenção de um sistema normativo, que facilita o conhecimento e interpretação da Constituição.

As alterações, acréscimos e supressões que venham ocorrer, através do funcionamento do poder constituinte derivado de reforma, capaz de elaborar leis constitucionais, devem sempre se integrar ao texto sistematizado, mantendo-se assim a organização lógica do mesmo, o que facilita sua compreensão e interpretação.


5 - Constituição ortodoxa ou eclética?

Alguns autores adotaram essa classificação, para identificar constituições que se alinhavam a uma ideologia sócio-econômica específica, negando outras influências, como as Constituições socialistas e liberais, que podem ser consideradas ortodoxas, e as Constituições que sofrem influências de mais de uma ideologia ou programa político, social e econômico, as quais são consideradas ecléticas. (9)

Deve-se entender essa classificação, dentro de uma perspectiva histórica, de formação das Constituições Sociais. Essas constituições surgem no início do século, mais precisamente em 1917 no México e 1919 na Alemanha, fruto de processo histórico, onde, no século dezenove, construiu-se e desenvolveu-se de forma marcante e ameaçadora, para a proposta liberal e o capitalismo, uma teoria antagônica, que construída sobre bases cientificas e uma crítica contundente ao capitalismo, foi capaz de arrebatar a classe trabalhadora de vários países.

A existência de duas propostas de Estado, radicalmente opostas, faziam sugerir um ortodoxismo, onde de um lado se colocava o liberalismo, ou mais precisamente o capitalismo, e de outro o socialismo real, que visava a construção de uma sociedade comunista.

Pouco a pouco o mundo capitalista sentiu a necessidade de se adaptar a nova realidade histórica, para garantir sua sobrevivência, passando o Estado Liberal a incorporar, na sua legislação infra constitucional, parte das reivindicações socialistas, criando uma legislação previdenciária e trabalhista, admitindo, ainda, a intervenção do Estado no domínio econômico. Exemplo clássico é a lei Sherman de 1890, nos Estados Unidos da América do Norte. (10)

O liberalismo mostrava contradições, que só seriam superadas através da aceitação das mesmas. O liberalismo que defendia a não intervenção do Estado, nas questões sociais e econômicas, só seria salvo a partir da intervenção estatal na economia e do oferecimento de direitos sociais, através de um assistencialismo estatal, que não era efetivamente a proposta socialista, mas subtraía desta elementos que atenuassem a tensão social.

Do ortodoxismo liberal, o Estado Liberal transforma-se em modelos que podemos classificar de neoliberais, em sentido amplo, dando origem ao Estado Social ou Social-Liberal, que em graus diferentes, irá intervir no domínio econômico e na questão social. A este novo modelo de Estado Social, pode-se atribuir caráter eclético, pois sua Constituição irá conter elementos, de cada um dos dois sistemas que se contrapunham neste momento.

Uma Constituição eclética representa, portanto, texto que será fruto das reivindicações e pressões de grupos com interesses diferentes e muitas vezes opostos, dentro do Estado, interesses antagônicos que irão manifestar-se, com mais intensidade, quanto maior for o grau de participação da sociedade civil, na elaboração constitucional.

Esse conflito de interesses reflete-se nas constituições ecléticas, dando origem ao que podemos classificar como "aparentes antagonismos", no texto constitucional. Referimo-nos a aparentes antagonismos, pois o texto constitucional após sua elaboração, têm vida própria, no sentido que não estará sempre vinculado à vontade dos constituintes, pois receberá leitura sistemática que irá, necessariamente, evoluir juntamente com a sociedade, suas necessidades e expectativas, dentro de um contexto histórico, buscando sempre, uma síntese através de sua interpretação, diante de situações concretas, que permitirá o desaparecimento de antagonismos que, afirmativamente, entre princípios e regras não pode existir.

Leitura obrigatória para a compreensão do que afirmamos, é a obra do professor Washington Peluso Albino de Souza, especialmente quando o autor trabalha a importante idéia de ideologia constitucionalmente adotada, já mencionada nesse trabalho, e do princípio da economicidade. (11) Pelos ensinamentos do Mestre do direito econômico brasileiro, a Constituição têm ideologia própria, representada por valor síntese, que irá apontar qual o correto equilíbrio valorativo que apontará a aplicação dos princípios e regras constitucionais em situações diferentes. Com isto queremos dizer que em situações diversas, os princípios terão valor e importância também múltiplas, sendo que esta correta ponderação, sobre qual princípio aplicar, em determinada situação, será apontada pela ideologia constitucional. Estes ensinamentos são de extrema importância e atualidade.

Quando defendemos em outros trabalhos a idéia de uma Constituição democrática, sintética, rígida, escrita, codificada, onde seus princípios serão àqueles considerados universais, não existindo nenhuma vinculação com algum modelo sócio-econômico, o que implica na desconstitucionalização da propriedade privada dos meios de produção, podemos perguntar se estaríamos, diante de uma constituição eclética ou ortodoxa.

A resposta a esta questão aponta-nos situação completamente nova, pois todas a constituições, sejam ecléticas como os textos sociais, neoliberais, ou ortodoxas como os textos liberais e socialistas, estabelecem modelo constitucional de organização econômica e social.

Ao se retirar da Constituição a vinculação ao modelo presentemente existente, estamos sem dúvida criando texto ortodoxo, extinguindo o ecletismo existente, que se manifesta, justamente, na convivência de princípios com origem em ideologias antagônicas e no próprio conflito social existente, presentes nas suas normas de conteúdo político-econômico e social, que vêm recebendo interpretações diferentes, pela doutrina e pelos tribunais.

Entretanto, a ortodoxia do texto caracterizar-se-ia não pela fidelidade a uma ideologia política, social e econômica específica, mas sim pela não vinculação a nenhuma, e nem mesmo a modelos sincréticos, mantendo a ortodoxia na opção por um sistema democrático, capaz, de criar procedimentos, mecanismos de garantia e variados canais de comunicação, entre sociedade e Estado, fazendo aos poucos, desaparecer a dicotomia Estado versus Sociedade.

Desta forma, o texto ortodoxo, ao garantir uma democracia que se materializa em processos legitimadores de mudanças, e na própria ação da sociedade, através da estrutura estatal, condicionados por princípios universais de direitos humanos, irá consagrar, incentivar e mesmo possibilitar, através dos seus processos participativos, o ecletismo na sociedade civil e no próprio Estado, como forma de promover a criação de resultantes inovadoras e construídas no embate democrático diário. (12)


NOTAS

(1) A questão da interpretação constitucional é tratada em outro artigo.

(2) BADIA, Juan Ferrando. Estrutura Interna de la Constitución. Valencia, Tirand le Blanch, 1988. SORLI, Juan-Sebastian Piniella. Sistema de Fuentes y Bloque da Constitucionalidad - Encrucijada de competências, Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1994. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição, São Paulo, Saraiva, 1988. MACHADO JÚNIOR, Batista. Participação e Descentralização, Democratização e Neutralidade na Constituição de 76. Coimbra, Livraria Almedina, 1982.

(3) SEGADO, Francisco Fernandez. La Jurisdición Constitucional en España, Madrid, Dykinson, 1984. FOIX, Moncerrat Cuchillo. Jueces y Administración en el Federalismo Norteamericano (El control jurisdicional de la actuación administrativa, Madrid, Editorial Cívitas, 1996. CHEVALIER, Jacques. L’Etat de Droit. 2ª edition, Paris, Montchrestien, 1994. ROYO, Javier Peres. Tribunal Constitucional y Division de Poderes - Madrid, Tecnos, 1988. PEREIRA, Antônio Celso Alves, Acesso a Justiça e Direitos Humanos: O Problema no Brasil. in Revista da Faculdade de Direito, número 2, 1994, Rio de Janeiro, Renovar, Universidade do Rio de Janeiro, pp. 123-134.

(4) MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Interna, ob. cit.

(5) BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha.. A Teoria das Constituições Rígidas, São Paulo, José Bushatsky Editor, 1980. VEGA, Pedro de. La Reforma Constitucional, Madrid, Tecnos, 1995. VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Vol. IV, Constitución de 1978 y transformación política social española, Madrid, Tecnos, 1984.

(6) DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Rio de Janeiro, Ed. Rio Sociedade Cultural Ltda., 1978. ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1979. MALUF, Sahid. Direito Constitucional, 15ª edição, São Paulo, Sugestões Literárias, 1983. SIEYES, Emanuel Joseph. A Constituição Burguesa (Qui est-ce que le tiers Etat?) Organização e Introdução de Aurélio Wander Bastos, trad. de Norma Azevedo, Rio de Janeiro, Liber Juris,

(7) BARACHO, José Alfredo de Oliveira.Teoria Geral do Poder Constituinte, Separata do n. 52 da Revista Brasileira deEstudos Políticos, Belo Horizonte, 1981. HAURIOU, André. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Editions Montchrestien, Paris, 1978.

(8) LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion, Barcelona, Ediciones Ariel, 1970.

(9) RUSSOMANO, Rosah. Curso de Direito Constitucional, 3ª ed. rev. ampl., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978. BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. Forense, Rio de Janeiro, 1980. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, ob. cit.

(10) GELLHORN, Ernest. Antitrust Law and Economics, ob. cit. COTTELY, Esteban. Teoria del Derecho Economico, Frigerio Artes Gráficas, Buenos Aires, 1971. CHENGT, Bernard. Organizatión Economique de L’Etat, Paris, 1951. CHAMPAUD, Claude. Contribution à la definition du Droit Economique.Recueil Dalloz, Paris, 1967. MONCADA, Luis S. Cabral de. Direito Econômico, Coimbra Editora, Coimbra, 1986. SOUZA, Washington Peluso Albino de. "O Discurso Internacionalista nas Constituições Brasileiras", in Revista Brasileira de Informação Legislativa, A. 21, n. 81, jan./mar., Brasília, 1984, pp. 139 - 201.

(11) SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico, ob. cit.

(12) ZAMPETTI, Pier Luiz. La Participación Popular en el Poder. ob. cit.


Autor

  • José Luiz Quadros de Magalhães

    Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Constituição democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 13, 18 maio 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84. Acesso em: 19 mar. 2024.