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Efeitos da revelia contra pessoa jurídica de direito público

Efeitos da revelia contra pessoa jurídica de direito público

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A Seção de Dissidios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho editou recentemente o Precedente Jurisprudencial de n. 152, adotando orientação no sentido de que é aplicável o art. 844 da CLT em relação às pessoas jurídicas de direito público. O "leading case" que dirigiu a jurisprudência da Corte nesse sentido restou assim ementado:

          "Revelia e confissão. Pessoa jurídica de direito público. Autarquia estadual. 1. O juiz, ao dirigir o processo, deverá assegurar às partes igualdade de tratamento. Nenhuma prerrogativa processual poderá ser concedida senão as expressamente previstas em lei. Na Justiça do Trabalho, as pessoas jurídicas de direito público são beneficiadas pelos privilégios especificados no Decreto-lei n. 779/69, que de modo algum podem ser ampliados ao livre arbítrio do julgador. Assim, dizer que a aplicação das penas de revelia e confissão não é compatível, na hipótese de entidade de direito público demandada não comparecer quando chamada em juízo para contestar ação contra ela proposta, é o mesmo que ignorar os princípios da igualdade processual, do contraditório e da ampla defesa, além de elastecer seus privilégios. Embargos acolhidos" (E-RR 78.223/93-RS - Rel. Min. Francisco Fausto, maioria de votos, DJ 19.12.96, publicado in Jurisprudência Uniformizada do TST, 27/152, Ed. Decisório Trabalhista, fevereiro/99)

Desde logo, gostaríamos de antecipar ao leitor nosso entendimento, no sentido de que se trata de precedente equivocado, calcado em premissas errôneas e que maltrata uma série de princípios que se interrelacionam com o assunto. As prerrogativas de que gozam os entes públicos não devem ser encaradas como privilégios, mas sim como meios ao alcance do interesse público indisponível da coletividade administrada.

Segundo o artigo 319 do Código de Processo Civil, "se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor". No mesmo sentido dispõe a Consolidação das Leis do Trabalho, na 2ª parte do seu artigo 844, verbi: "O não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não-comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato".

Verifica-se, nessas situações, a penalização da parte que age com contumácia, deixando de impugnar as pretensões formuladas no momento oportuno que a lei lhe confere. A garantia de ampla defesa não se constitui num dever de contestar o feito, mas apenas numa faculdade de fazê-lo. Logo, trata-se de verdadeiro ônus processual, que, descumprido, leva à caracterização da revelia.

Os princípais efeitos da revelia são a fluência dos prazos, independentemente de intimação, e a aplicação da pena de confissão ficta, presumindo-se verdadeiros todos os fatos alegados pela parte autora. Desde logo, é importante deixar claro que se trata de presunção relativa, que não desagua, contudo, no automático julgamento procedente da demanda. Em certos casos, mesmo diante da revelia, os fatos alegados não conduzem às consequências jurídicas pretendidas ou os demais elementos de prova levam à improcedência do pleito(1).

No que diz respeito às pessoas jurídicas de direito público, o tema revelia deve ser apreciado com especiais cuidados. Reza o art. 320 do CPC, em seu inciso II, que a revelia não induz a aplicação da pena de confissão quando o litígio versar direitos indisponíveis. Na mesma linha, e em complemento, prevê o art. 351, do mesmo Codex, que não vale como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis.

Ensina a melhor doutrina que indisponíveis são aqueles direitos não renunciáveis ou a respeito dos quais a vontade do titular só pode se manifestar, de forma eficaz, se satisfeitos determinados requisitos. Tais caracteres, sem dúvida, encontram-se presentes e guiam a atividade de qualquer administrador nas sociedades contemporâneas. A administração da coisa pública, conforme brilhantes lições do mestre Celso Antonio Bandeira de Mello, está atrelada à indisponibilidade do interesse público pelo agente-administrador. Mais precisamente, diz o mestre que "todo o sistema de direito administratito, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela administração" (in Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 9ª edição, p. 28).

Fundando-se a atividade estatal nesses princípios maiores, parece-nos evidente que os bens e interesses não se colocam à livre disposição da vontade do administrador. Pelo contrário, existe verdadeira obrigação para este de curá-los nos termos e finalidades a que estão adstritos.

Por isso, o agente público não está autorizado a dispor do patrimônio público gerido, sendo imprescindível a autorização legal para que possa transigir, acordar, desistir ou confessar em juízo(2). Nesse sentido, aliás, o cânon específico da estrita reserva legal contido no caput do art. 37 da Carta da República(3).

Logo, afigura-se de todo equivocada a exegese conferida ao tema no precedente jurisprudencial examinado. Primeiro, porque as pessoas jurídicas de direito público, repita-se sempre, não têm privilégios, mas sim prerrogativas de atuação, que lhes propiciam os meios meios indispensáveis à consecução do interesse público almejado. De outro lado, porque o Decreto-lei 779/69 não constitui um rol exaustivos das prerrogativas processuais dos entes públicos na justiça laboral, devendo-se respeitar todos os demais mandamentos que tutelam a atividade estatal. Ademais, a igualdade de tratamento, na magnífica lição de Rui Barbosa, consiste em tratar desigualmente os desiguais, na exata proporção de suas desigualdades; e as pessoas jurídicas de direito público não podem ser equiparadas, jamais, às pessoas naturais, mesmo em se considerando o princípio protetivo que norteia o direito do trabalho. Saliente-se, ainda, que não há como cogitar de interpretação elástica, quando a mesma decorre, logicamente, da pura e simples leitura e compreensão dos artigos 320, II, e 351 do CPC.

Não bastasse tudo isso, é preciso considerar que a superioridade do interesse público sobre o particular é pressuposto de uma ordem social estável, funcionando como verdadeira salvaguarda dos administrados contra eventuais abusos individualistas. A supremacia do interesse público não é um privilégio da administração, mas sim uma garantia dos administrados de que o seu patrimônio comum será gerido de acordo com as finalidades eleitas pela coletividade. Decorre disso a impossibilidade de reconhecer direitos contra pessoas jurídicas de direito público, com base em meras alegações, sem que se comprove robustamente os fatos constitutivos que lhe possibilitem o exercício(4).

Nesse contexto, merece nosso aplauso a justificativa de voto vencido da Exma. Sra. Ministra Cnéa Moreira, que divergiu da Egrégia SDI, fazendo constar sua posição na assentada do julgamento do "leading case" anteriormente mencionado. Infelizmente, contudo, é bom que se mencione que a edição do precedente tem força suficiente para obstaculizar o conhecimento do recurso de revista, nos termos do En. 333/TST e do §4º do art. 896, na redação conferida pela L. 9.756, de 17.12.98, representando, pois, verdadeira estratificação do tema. E pior ainda, dificilmente a controvérsia ganhará as prateleiras do Supremo Tribunal Federal, pois se trata de questão de índole nitidamente infraconstitucional, refugindo das hipóteses de cabimento do apelo extremo, elencadas no inciso III do art. 102 da Carta da República.

Resta-nos, pois, confiar na prudência e ponderação dos eminentes Ministros que compõe o Egrégio Tribunal Superior do Trabalho, esperando que o temerário precedente seja superado pela melhor reflexão em relação à matéria.


NOTAS

          1. "A falta de contestação conduz a que se tenham como verdadeiros os fatos alegados pelo autor. Não, entretanto, a que necessariamente deva ser julgada procedente a ação. Isso pode não ocorrer, sejam em virtude de os fatos não conduzirem às consequências jurídicas pretendidas, seja por evidenciar-se existir algum, não cogitado na inicial, a obstar que aquelas se verifiquem" (STJ - REsp 14.987-CE - Rel. Min. Eduardo Ribeiro - DJ 17.02.92, p. 1.377);

          2. "CONFISSÃO E REVELIA – PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO – A pena de confissão e revelia não é aplicada à pessoa jurídica de direito público, porque seus direitos são indisponíveis, necessitando de tutela legal para transigi-los, remunerá-los, confessá-los e outras atividades inerentes à Administração Pública." (TST – RR 78.223/93.0 – Ac. 5ª T. 324/94 – Rel. Min. Wagner Pimenta – DOU 15.04.94);

          3. "A vinculação à legalidade é imperativo condicionado ao sistema jurídico e, de conseguinte, muito mais forte e profundo do que supõem os defensores da vinculação como mero extrato da legalidade. Há uma porção de vinculação que precisa acompanhar toda e qualquer discricionariedade, no sistema pátrio, a qual não se descaracteriza por esta presença (senão que legitima, ao não se auto-referenciar), nem corre o risco de fixar domicílio no espaço fluido das vontades meramente particulares, que não se coadunam com a índole do Direito, mormente sua vertente publicista" (Juarez de Freitas, O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais, Malheiros, p. 64);

          4. "PROCESSUAL CIVIL. AUSENCIA DE CONTESTAÇÃO. PESSOA JURIDICA DE DIREITO PUBLICO. INOCORRENCIA DE REVELIA: ARTS. 320, II E 333, I, CPC. PROVA, ADEMAIS, DESFAVORAVEL AO AUTOR. APELAÇÃO DESPROVIDA.

          A AUSENCIA DE CONTESTAÇÃO DO REU PESSOA JURIDICA NÃO INDUZ REVELIA PORQUE SEUS DIREITOS SÃO INDISPENSAVEIS (ART. 320, II, CPC). EM CASOS TAIS, FICA O AUTOR COM O ONUS DA PROVA QUANTO AO FATO CONSTITUTIVO DO SEU DIREITO (ART. 333, I, CPC). NÃO PROVADO O FATO, DEVE O PEDIDO SER JULGADO IMPROCEDENTE. APELAÇÃO DESPROVIDA." (TRF 1ª Reg. - AC 89.01.23976-MG - Rel. Juiz HERCULES QUASIMODO - DJ 29.09.94, p. 55.220);


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Luiz Claudio Portinho. Efeitos da revelia contra pessoa jurídica de direito público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/849. Acesso em: 18 abr. 2024.