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Empresas estatais e imunidade tributária

uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal

Empresas estatais e imunidade tributária: uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal

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"O lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados”.

“Tem sido para mim uma questão tormentosa essa da imunidade tributária recíproca no plano da sua extensão aos Correios e Telégrafos.”

....

“Manter o serviço entregue à cura da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos cada vez mais me parece que é manter a qualquer custo, a qualquer preço, de qualquer maneira, ainda que sob retumbante, acachapante prejuízo. É uma atividade que não pode deixar de ser prestada, que não pode sofrer solução de continuidade; é uma obrigação do Poder Público manter esse tipo de atividade. Por isso que o lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados”.

(ministro Ayres Britto, RE 601.392)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O estatuto jurídico-constitucional das empresas estatais; 3 O estatuto constitucional da imunidade tributária; 4 Manifestações do ministro Ayres Britto; 5 Conclusões; 6 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar (reler) algumas das manifestações do ministro Ayres Britto por ocasião de julgamentos relativos aos temas do regime jurídico-constitucional das empresas estatais, especialmente no tocante à imunidade tributária recíproca, cujas discussões gravitavam em redor do art. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e do art. 173, § 2º, Constituição Federal. Esses dispositivos constitucionais estão assim vazados:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

.....

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

......

VI - instituir impostos sobre:           

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

......

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

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§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Cuide-se que o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário n. 220.906[2], reconheceu a validade, via recepção constitucional, do art. 12 do Decreto-Lei n. 509, de 20 de março de 1969, que estende à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT as mesmas prerrogativas da Fazenda Pública. Esse citado art. 12 do DL 509/1969 tem o seguinte enunciado:

Art. 12 - A ECT gozará de isenção de direitos de importação de materiais e equipamentos destinados aos seus serviços, dos privilégios concedidos à Fazenda Pública, quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais.

No agitado RE 220.906 enfrentava-se a questão específica da utilização do instituto do precatório judiciário (art. 100[3], CF) para o pagamento de dívidas judicialmente reconhecidas da ECT. O Tribunal, como já mencionado, entendeu que a ECT fazia jus às prerrogativas da Fazenda Pública, sob a justificativa de que essa empresa não explora atividade econômica, mas presta serviço público de competência da União Federal, logo não incidiriam as ressalvas do aludido art. 173.[4]

Nesse julgamento do RE 220.906 foram interessantes os debates entre os ministros favoráveis à aplicação do ventilado art. 100 à ECT, e os contrários a essa aplicação. É que não havia em nosso ordenamento jurídico a autorização para expedição de precatório para empresas públicas ou sociedades de economia mista. Assim, seria juridicamente impossível decisão judicial que autorizasse o pagamento de dívidas judiciárias da ECT via precatórios. Ante essa realidade, o ministro Jobim aduziu a um verdadeiro “precatório informal”. Frente a esse quadro, o ministro Ilmar Galvão indagava se o Tribunal estaria a julgar por “direito natural”, visto inexistente no ordenamento esse instituto do “precatório informal”. Para rebater essa provocação, o ministro Moreira Alves defendeu que o fundamento seria a interpretação do STF.

Conquanto fossem respeitáveis e bem consistentes as objeções dos ministros divergentes, a maioria optou pelo reconhecimento do instituto dos precatórios para os Correios. É de se reconhecer que a Corte inovou positivamente o ordenamento jurídico. E, com o devido respeito, os magistrados, inclusive os ministros do STF, não têm autorização constitucional para criar normas gerais e abstratas. Eles estão autorizados a tão somente aplicar correta e coerentemente as normas juridicamente válidas. E isso não é pouca coisa.

Se no RE 220.906 o Tribunal decidiu pelo cabimento do instituto do precatório judiciário para a ECT, no julgamento do RE 601.392[5] o Tribunal confirmou a imunidade tributária da ECT forte no fundamento segundo o qual há uma distinção entre as empresas estatais prestadoras de serviço público e as exploradoras de atividade econômica. E, segundo a Corte, em sede de serviço postal, atrai-se a incidência da imunidade tributária recíproca (art. 150, inciso VI, alínea ‘a’, CF).[6]

O relator originário do RE 601.392 ministro Joaquim Barbosa assinalou:

Reafirmo meu entendimento no sentindo de que o exercício de atividade econômica pelo Estado, no Brasil, é subsidiário; ou seja, o Estado e sua longa manus - como disse o Ministro Britto -, como é o caso da ECT, os diversos braços estatais, especialmente da União Federal, só podem exercer essa atividade econômica excepcionalmente. A regra é o exercício de atividade econômica por atores privados.

O que que nós temos aqui? Nós temos uma empresa que ostenta esse privilégio em matéria postal e, ao mesmo tempo, exerce atividades bancárias, venda de títulos, em concorrência com o setor privado. E a própria Constituição diz que, quando algum ente estatal, alguma empresa estatal, quando o Estado resolve empreender nessa área econômica, ele deve fazê-lo em igualdade de condições com o particular.

Ora, eu tenho números sobre a ECT. É uma das nossas grandes estatais, com um patrimônio extraordinário - o patrimônio, no ano passado, era de cerca de doze bilhões e seiscentos milhões; lucro líquido, cerca de oitocentos e sessenta milhões. Acho que isso é irrelevante para fins de decidirmos o recurso extraordinário, mas são dados bastante eloquentes, a meu ver.

O fundamental é que insisto na necessidade de estabelecermos a distinção: quando se está diante de exercício de serviço público, imunidade absoluta; quando se trata de exercício de atividade privada, incidem as mesmas normas existentes para as empresas privadas, inclusive as tributárias, como diz a Constituição. Isso me parece muito claro.

Já no julgamento do RE 599.628[7] o Tribunal decidiu que os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas.[8] Nesse feito, o ministro Ayres Britto foi voto vencido.

Todavia, antes, nos autos do RE 580.264[9], o Tribunal assentou que as sociedades de economia mista prestadoras de ações e serviços de saúde, cujo capital social seja majoritariamente estatal, gozam da imunidade tributária prevista na alínea ‘a’ do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. Nesse feito, o voto vencedor foi emitido pelo ministro Ayres Britto que abriu divergência em face do voto do relator ministro Joaquim Barbosa, para quem o caráter de agente de mercado da sociedade de economia mista afastava a imunidade pleiteada.[10]

Esse especial tratamento dispensado pelo STF às empresas estatais, como já aludido, não se restringe apenas ao direito tributário. O Tribunal, nos autos do RE 589.998[11], aprovou a seguinte tese constitucional: “os empregados públicos das empresas públicas e sociedades de economia mista não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal, mas sua dispensa deve ser motivada.” [12]

Com efeito, à luz dos julgados do STF, é possível concluir que as “estatais” que não exploram atividade econômica e que prestam serviços públicos devem ser tratadas como se fossem entidades públicas ou pessoas jurídicas de direito público, a despeito de seu regime jurídico de direito privado. Cuide-se que o Tribunal, nos autos da Ação Cível Originária n. 503[13], decidiu por descaracterizar a natureza autárquica de um banco e, por consequência, negar o direito à imunidade recíproca. [14] Logo para a Corte não interessa a natureza em si da estatal, mas as atividades que desenvolve: se prestadora de serviços públicos pode vir a gozar dos privilégios da Fazenda Pública, inclusive a imunidade recíproca.

Nada obstante, antes de avançarmos na análise (releitura) das manifestações do ministro Ayres Britto sobre o tema da imunidade recíproca das empresas estatais, visitaremos os estatutos constitucionais dessas empresas e das imunidades tributárias, assim verificaremos se essas manifestações estavam em sintonia com o texto constitucional, harmônicas com a realidade e se guardavam coerência normativa e narrativa interna. Em suma, analisaremos a força argumentativa e a capacidade de convencimento dos votos, independentemente de serem ou não chancelados pela sempre ilustrada maioria da Corte.


2 O ESTATUTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DAS EMPRESAS ESTATAIS

A Constituição prescreve, no art. 1º, inciso IV, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um dos fundamentos da República brasileira. Nos incisos II e III do art. 3º, CF, estão enunciados que garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais constituem alguns dos objetivos fundamentais de nossa República. Nessa toada, no art. 23, inciso X, CF, está prescrito que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.  No art. 5º, inciso XIII, CF, está prescrito que, nos termos da lei, é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. Nos incisos XXII e XXIII desse art. 5º garantem-se o direito de propriedade e que essa propriedade atenderá a sua função social. Esta função social da propriedade consiste em princípio constitucional enunciado dentre outros que informam a ordem econômica (art. 170, CF).

Com efeito, a aludida ordem econômica, nos termos do citado art. 170, CF, se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. E, além da já citada função social da propriedade, possui os seguintes princípios constitucionais: soberania nacional, propriedade privada, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental  dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, redução das desigualdade sociais regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.  E, procurando viabilizar o liberal capitalismo em solo brasileiro, a Constituição, no parágrafo único do aludido art. 170, assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Se a Constituição assegura a todos o direito de exercer qualquer atividade econômica, salvo aquelas legalmente excepcionadas, o que revela a opção constitucional preferencial pela iniciativa privada, em relação à atividade econômica do Estado a situação é excepcional. Com efeito, está prescrito no art. 173, CF, que somente quando for necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado será autorizada. A mensagem induvidosa da Constituição consiste em determinar que o Estado não deve ser produtor de riquezas, mas indutor de sua produção. Essa indução pode ocorrer, inclusive, com o não intervencionismo. Em termos econômicos, o Estado já ajuda bastante quando não atrapalha os agentes produtivos.

Essa compreensão é reforçada pelo disposto no art. 174, CF, que prescreve que como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, que serão determinantes para o setor público e indicativa para o setor privado. Daí que a leitura da Constituição conduz a uma compreensão favorável à iniciativa privada e excepcionalmente à intervenção estatal nas atividades econômicas. Portanto, a principal atividade financiadora do Estado não está na produção direta de riquezas, mas na arrecadação tributária decorrente da produção privada das riquezas.

O fio condutor dessa opção política e econômica contida na Constituição de 1988 reside na experiência segundo a qual a liberdade política viabilizada pelos regimes democráticos requer a liberdade econômica. Sem liberdade econômica não é possível liberdade política, conquanto a recíproca não seja imediatamente verdadeira, porquanto seja possível a liberdade econômica sem a liberdade política, mas incogitável esta sem aquela. Não há democracia política sem liberdade econômica, uma vez que a independência político-ideológica se fortalece com a independência econômica em relação ao Estado. Quanto menos dependente for a economia da política e da burocracia, logo dos políticos e dos burocratas, mais livres serão os cidadãos.

Nada obstante, à luz da Constituição, o Estado, mediante empresas públicas e sociedades de economia mista, está, excepcionalmente, autorizado a explorar atividade econômica. Daí que a interpretação constitucional mais adequada, a partir das experiências passadas e das circunstâncias presentes, bem como das perspectivas de futuro, consiste naquela que desfavorece à intervenção estatal na atividade econômica.

Diante do caráter complexo envolvendo a intervenção direta do Estado na exploração das atividades econômicas, entre os §§ 1º e 5º do citado art. 173, CF, há um extenso catálogo de preceitos autorizadores dessa aludida compreensão, mormente os comandos que visam não criar privilégios fiscais para as “empresas estatais” que não foram estendidos às “empresas não-estatais”.[15]

Em atendimento aos comandos constitucionais foi editada a Lei n. 13.303, de 30 de junho de 2016. No art. 1º desta referida Lei 13.303/2016, está prescrito que “Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos”.  

No art. 2º dessa Lei 13.303/2016 está prescrito que a exploração de atividade econômica pelo Estado será exercida por meio de empresa pública, de sociedade de economia mista e de suas subsidiárias. Nos arts. 3º e 4º estão conceituados que a empresa pública é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios e que a sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta.

Tenha-se que essa mencionada Lei 13.303/2016 está com a sua validade constitucional questionada perante o STF nos autos da ADI 5.624. Em decisão cautelar e monocrática, o ministro relator Ricardo Lewandowski concedeu, parcialmente, liminar para reconhecer a necessidade de prévia autorização legislativa para a alienação do controle acionário das “empresas estatais”. [16] No mérito, ainda não há decisão definitiva do Plenário da Corte.

Em sede de regime jurídico das empresas estatais, há de se recordar o julgamento da ADPF 46[17] que enfrentou o tema do alcance do monopólio do serviço postal dos Correios. A Corte, nesse julgamento, analisou os sentidos normativos possíveis dos preceitos constitucionais relativos à intervenção estatal na atividade econômica em cotejo com os preceitos da livre iniciativa e da propriedade privada. A partir do voto divergente e vencedor do ministro Eros Grau, o Tribunal assentou que os serviços públicos prestados na forma de privilégio, como o postal, devem receber um tratamento normativo distinto das atividades econômicas não “privilegiadas”, como sucederia com as atividades bancárias ou industriais, por exemplo.[18]

O relator originário da ADPF 46, ministro Marco Aurélio, propôs uma leitura evolutiva do texto constitucional em cotejo com os avanços tecnológicos e as mudanças sociais e econômicas ocorridas no Mundo e no Brasil em particular a fim de reduzir o dirigismo econômico em favor de uma maior liberdade de iniciativa e de concorrência. Segundo o ministro Marco Aurélio, em matéria de intervenção econômica, o papel do Estado deve ser subsidiário ao invés de protagonista. Assim, segundo o ministro Marco Aurélio, deveria ser formulada uma interpretação restritiva da intervenção estatal na atividade econômica, privilegiando-se, por consequência, a livre iniciativa privada e a liberdade concorrencial. Em seu voto o ministro Marco Aurélio assinalou:

Interpretar significa apreender o conteúdo das palavras, não de modo a ignorar o passado, mas de maneira a que este sirva para uma projeção melhor do futuro. Como objeto cultural, a compreensão do Direito se faz a partir das pré-compreensões dos intérpretes. Esse foi um dos mais importantes avanços da hermenêutica moderna: a percepção de que qualquer tentativa de distinguir o sujeito do objeto da interpretação é falsa e não corresponde à verdade.  A partir da ideia do ‘Círculo Hermenêutico’ de Hans Gadamer, evidenciou-se a função co-autora do hermeneuta: na medida em que este compreende, interpreta as normas de acordo com a própria realidade e as recria, em um processo que depende sobremaneira dos valores envolvidos.

Nesse sentido, o jusfilósofo Richard Palmer assevera que a tarefa da interpretação é a de construir uma ponte sobre a distância histórica a separar o sujeito do objeto da interpretação. Assim, quando o intérprete analisa um texto do passado, não deve esvaziar a sua memória, nem abandonar o presente, mas levá-los consigo e utilizá-los para compreender e projetar um futuro.

Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita-se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando-se a realizar interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete, mas não pode levar à auto-alienação de uma consciência, funcionando como escuta à análise do presente.

Sem embargo dessa bem lançada fundamentação do ministro Marco Aurélio, prevaleceu o voto divergente inaugurado pelo ministro Eros Grau, cujo voto possui algumas passagens de grande pedagogia constitucional que merecem ser transcritas:

O direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza.

É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida – e vida é movimento. Assim, o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos.

A realidade nacional evidencia que nossos conflitos são trágicos. A sociedade civil não é capaz de solucionar esses conflitos. Não basta, portanto, a atuação meramente subsidiária do Estado. No Brasil, hoje, aqui e agora – vigente uma Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e no artigo 3º, define os objetivos do Brasil (porque quando o artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e solidária) – vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-se, muito ao contrário do que propõe o voto do Ministro relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pela sociedade civil, vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição do Brasil e certamente não nos conduzirá a um bom destino.

Respeitar, fazer cumprir a Constituição, é fundamentalmente dar eficácia, prover a eficácia dos artigos 1º e 3º.

Malgrado o profundo respeito e a imensa admiração que nutro pelo ministro Eros Grau, essa aludida compreensão merece algumas considerações. Com efeito, em seu voto o ministro Eros Grau parte da premissa de que cabe ao Estado (República composta pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e Municípios e respectivas entidades da administração direta e indireta, aqui incluídas as autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mistas e suas subsidiárias ou controladas) o dever de transformar a sociedade brasileira.

E, segundo essa pré-compreensão do ministro Eros, entre o fortalecimento da sociedade civil, por meio do mercado, e o fortalecimento da atuação estatal, por meio de suas empresas estatais, preferível esta àquela. Com o devido respeito, essas pré-compreensões não encontram eco na experiência econômica e política.

Com efeito, onde o Estado é mais forte que a sociedade (ou que o mercado, nos dizeres do ministro Eros Grau) fenecem a liberdade, a prosperidade e a democracia. Quanto mais independente do Estado for o mercado, mais livres serão os agentes produtivos, os empresários, os consumidores e os trabalhadores, tanto no plano estritamente econômico quanto no plano das liberdades civis e políticas. As liberdades civis e políticas necessitam das liberdades econômicas e profissionais. Sem estas não há aquelas.  Assim o cidadão (indivíduo político) para ser livre, autônomo e independente necessita que o empresário ou trabalhador ou o consumidor (indivíduos econômicos) não tenham grande dependência em relação à política ou à burocracia.

É que o Estado visa o equilíbrio social e utiliza como estratégia a coação e a violência, sejam as físicas ou as simbólicas. Já o mercado é o reino da liberdade de escolhas, das trocas voluntárias, sem coações, mas tão somente com a liberdade do consumidor e do fornecedor, mediante o estabelecimento de preço e de valor dos bens ou serviços.  

Em suma, o Estado tem finalidades diversas das de uma Empresa. E as lógicas e os instrumentos também são diversos. Estado visa a pacificação social e a justiça entre as pessoas por meio de normas jurídicas. Empresa visa o lucro por meio da compra e venda de mercadorias ou de serviços. A empresa trabalha com “preços”. O Estado trabalha com “tributos”. Estes são “confiscatórios”, porque são obtidos mediante coação e ameaças, aqueles devem ser “retributivos”, porque decorrem da livre negociação, mediante um “pacto”, entre o vendedor e o comprador. O consumidor pode se recusar a pagar o preço cobrado pelo vendedor ou este pode se recusar a vender se o preço oferecido não for aceitável. Mas o contribuinte não pode se recusar a pagar os tributos legalmente devidos nem o Estado pode se recusar a cobrar o tributo devido. Não há liberdade nas situações tributárias.

Nessa perspectiva, à luz do sistema constitucional tributário brasileiro, é de se ver que a opção preferencial do constituinte no processo de obtenção de ingressos ou receitas não se deu pela atuação direta do Estado, mas por sua atuação indireta, mediante a arrecadação tributária. O tributo (impostos, taxas, empréstimos e contribuições) [19] é a maior fonte de receitas da atividade financeira que viabilizará as principais atividades administrativas e públicas do Estado. Portanto, convém analisarmos o modelo tributário brasileiro, em particular o das imunidades tributárias para compreendermos adequadamente a questão da imunidade recíproca.


3 O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DAS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS

O catálogo normativo constitucional tributário revela uma dupla preocupação do legislador: de um lado, fortalecer a capacidade arrecadatória do Fisco a fim de que possa o Estado obter receitas econômicas suficientes para fazer face às gigantescas responsabilidades que assumiu, porquanto concretizar todos os direitos positivados no texto constitucional, mormente os sociais, exige muita riqueza e muito dinheiro. O “Leviatã” imanente que é o Estado brasileiro prometeu transformar o nosso País em um verdadeiro “Jardim do Éden”, uma “Canaã prometida”, que nem mesmo o “Javeh” transcende dos hebreus ousou. O “Deus artificial” criado pela mente dos brasileiros se revelou mais ambicioso que o “Deus histórico” da tradição semita. Se o “Javeh” hebraico cobrava a inquestionável fé e a inequívoca lealdade de seus adoradores, o “Leviatã” tupiniquim nos cobra tributos e é extremamente faminto.  Justamente por ser “faminto”, é que na Constituição, arts. 150 a 152, há um tópico sobre as limitações do poder de tributar. Eis a outra face daquela ventilada dupla preocupação do legislador: controlar a voracidade e a ferocidade fiscal do Estado.

Nessa perspectiva, vamos avançar na compreensão dos seguintes comandos normativos constitucionais já enunciados:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

.....

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

......

VI - instituir impostos sobre:         

a)patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

......

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

......

§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

O caput do aludido art. 150 principia com o seguinte enunciado: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte”. Isso significa que a proteção normativa ao contribuinte não se esgota no extenso rol constitucional, mas pode (ou deve) ser alargado no sentido de criar uma rede de proteção em face do Fisco.

No citado inciso II, art. 150, encontra-se a vedação ao “tratamento desigual entre contribuintes se encontrem em situação equivalente”. Esse comando decorre do postulado que todos devem ser tratados como iguais perante as leis. Com efeito, o princípio jurídico da isonomia consiste em um dos mais complexos comandos normativos, visto que parte de uma realidade fática desigual ou assimétrica e visa criar uma igualdade artificial ou normativa. Explico-me.

É fato incontornável e insuperável da realidade que todo o indivíduo, pessoa humana, consiste em uma experiência histórica irrepetível e inimitável no tempo e no espaço. Que todos são naturalmente (aqui natureza entendida como realidade) distintos, desiguais e diferentes. Logo, a igualdade normativa tem profundo senso de moralidade, ou seja, todas as pessoas são moralmente igualmente, porquanto todas são dotadas de uma essencial dignidade que lhes o direito de serem tratadas com respeito e consideração, e o lhes impõe o dever de a todos tratar reciprocamente. A igualdade normativa (isonomia) foi uma genial criação da mente humana capaz de viabilizar relações simbióticas, ao invés das relações parasitárias decorrentes das relações moralmente desiguais e, por consequência, injustas.

A grande dificuldade reside nas complexidades fáticas: em que situações o tratamento deve ser igual e em quais o tratamento não deve ser igual? Quais as circunstâncias e critérios para igualizar e quais para desigualar? E se as circunstâncias fáticas e se os critérios, seja para igualar ou para desigualar, são moralmente corretos, politicamente convenientes, economicamente viáveis, culturalmente aceitáveis, socialmente adequados e juridicamente válidos? Em que situações uma mulher deve receber um tratamento distinto de um homem? Ou uma criança em relação a um adulto? Ou um jovem em relação a um idoso? Ou uma pessoa sã em relação a uma pessoa com alguma doença ou enfermidade? Ou um pobre em relação a um rico etc.? O drama reside em verificar se as circunstâncias e os critérios, seja para igualar ou para desigualar, são convincentes e capazes de equilibrarem as relações humanas e de pacificarem os conflitos sociais.

A ideia de que todos devem ser tratados com igualdade perante as leis consiste em poderoso avanço civilizatório. E esse avanço civilizatório tem no campo dos tributos um relevante papel no equilíbrio social.

Com efeito, é postulado civilizatório que todos devem contribuir para financiar as atividades públicas do Estado. A questão é: quanto de cada um? Quais as razões para se cobrar os mesmos valores ou para se cobrar valores distintos? E quais as razões para se cobrar de alguns e não se cobrar de outros? Encontrar o ponto de equilíbrio exige uma refinada arquitetura normativa, pois a arrecadação tributária não deve sufocar a atividades privada produtora de riquezas. E ao mesmo tempo deve arrecadar o suficiente para que o Estado cumpra com os seus deveres públicos e administrativos.

Esse é um dos sentidos possíveis dos comandos relativos à isonomia tributária (art. 150, II, CF) e o relativo à vedação de privilégios fiscais às empresas estatais não extensíveis às empresas privadas (art. 173, § 2º, CF). Essa diretiva calha com o papel subsidiário da intervenção estatal nas atividades econômicas. Com efeito, como as empresas estatais exploradoras de atividades econômicas devem atuar somente se for necessário aos imperativos de segurança pública ou a relevante interesse coletivo, mas não devem ter qualquer tipo de situação privilegiada, sob pena de se instalar uma concorrência desleal com aquelas empresas que ou exploram as mesmas atividades econômicas ou prestam serviços similares ou que estejam em situações equivalentes.

Portanto, se a empresa estatal não se encontra em situação equivalente às empresas privadas, e, no rastro da jurisprudência do STF, tem como atividade econômica a prestação de serviços públicos, sobre ela incidiria a cláusula constitucional da imunidade recíproca, independentemente da natureza ou regime jurídico. Essa tem sido a orientação da Corte nesse tema (RREE 407.099, 601.392, 598.322, 607.535, 577.511, 638.345).

Segundo o ministro Joaquim Barbosa, nos autos do RE 601.392, para o Tribunal a imunidade recíproca possui três funções: a) a imunidade recíproca opera como salvaguarda do pacto federativo, para evitar que a tributação funcione como instrumento de coerção ou indução de entes federados; b) a imunidade recíproca deve proteger atividade desprovida de capacidade contributiva, isto é, atividades públicas em sentido estrito, executadas sem intuito lucrativo; e c) a imunidade recíproca não deve beneficiar a expressão econômica de interesses particulares, sejam eles públicos ou privados, nem afetar intensamente a livre iniciativa e a livre concorrência (excetuadas as permissões constitucionais).

Nada obstante essa pedagógica explicação do ministro Joaquim Barbosa, a orientação da Corte tem sido firme no sentido de blindar as empresas estatais que são percebidas como “longa manus” do Estado e prestadoras de serviços públicos. Para o Tribunal, a empresa estatal prestadora de serviços públicos deve receber um tratamento diferenciado e privilegiado, a fim de que, segundo o próprio Tribunal, possa bem desenvolver suas atividades. No julgamento do citado RE 601.392 esse foi o fio condutor da decisão.

Esse agitado julgamento do RE 601.392 enfrentou, em relação à ECT, as seguintes controvérsias normativas: a) a imunidade tributária restringe-se aos serviços tipicamente postais? b) é lícito cobrar imposto relativos aos serviços não abarcados pelo monopólio concedido pela União?

O relator originário, ministro Joaquim Barbosa, assinalou:

A Constituição conferiu a cada ente federado competência para instituir e arrecadar tributos próprios, de modo a preservar-lhes meios para prover efetiva autonomia e liberdade política, nos respectivos limites. Sem prejuízo da importância de todas as imunidades tributárias, a proibição constitucional para tributação de algumas grandezas está em constante tensão com o direito constitucional ao exercício local do poder legislativo. De fato, o benefício sempre implica perda parcial do direito de tributar de um ou mais entes federados e, assim, de obter meios para alcançar seus objetivos políticos. A tensão se resolve pela relevância conferida pela própria Constituição ao valor que se quer proteger, isto é, manter a autonomia dos entes federados pressupõe alguma limitação da competência de cada um para cobrar reciprocamente impostos. Assim, a imunidade recíproca não se presta a assegurar ao ente federado vantagens contratuais ou de mercado, para, pura e simplesmente, permitir-lhe contratar e remunerar em condições mais vantajosas. Se o Poder Público age com intuito preponderantemente lucrativo, em favor próprio ou de terceiro, a imunidade recíproca não se lhe aplicará. Afinal, a atividade lucrativa em si mesma constitui signo de capacidade contributiva, ao mesmo tempo em que afasta o risco de pressão econômica. Por outro lado, a imunidade recíproca também não deve ter como função auxiliar particulares em seus empreendimentos econômicos. Lembro, a propósito, que estamos a discutir em outro recurso o alcance da imunidade conferida à Infraero. Inúmeras entidades privadas aproveitam-se dos abundantes e bem localizados terrenos cedidos àquela empresa pública para desenvolver suas atividades empresariais. Trata-se de academias de ginástica, concessionárias de veículos, hospitais particulares caríssimos, hotéis, residências particulares, entre outros. E não me refiro ao espaço interno das instalações aeroportuárias, nos quais há prestação de serviços lucrativos, como as lojas francas, os restaurantes, as lanchonetes, as casas de câmbio e as lojas. Refiro-me a empreendimentos de porte e separados dos prédios aeroportuários. Para termos a proporção das vantagens, basta observar os terrenos no entorno e imediações do aeroporto de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Já a questão que se discute aqui é se a exoneração integral e incondicionada à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos desvia-se dos objetivos justificadores da proteção constitucional. E a resposta a essa questão, sem dúvida, é positiva. E isto porque a ECT desempenha algumas atividades de intenso e primário interesse privado-particular, ou seja, não-público. Por exemplo, é notório que os Correios cedem sua estrutura e serviços para a “venda” de títulos de capitalização. As operações com tais títulos têm como objetivo o lucro das entidades públicas ou privadas que os disponibilizam, sem qualquer vinculação com a função institucional da ECT. Nesta perspectiva, a exoneração tributária teria como conseqüência a diminuição do preço a ser cobrado do interessado em distribuir os títulos, dado ser possível calcular a carga tributária e repassá-la àquele que terá o maior benefício com a exploração da atividade. Sabe-se também que as agências dos Correios são utilizadas para operações do chamado “Banco Postal”. Atualmente, uma grande instituição financeira privada é responsável pelo Banco Postal, e é lícito supor que uma parceria desta natureza não tenha motivação filantrópica. Não causa qualquer perplexidade a tributação de instituições financeiras quando estas atuarem com base em agências próprias. Dada a capacidade contributiva da atividade e a inexistência de risco de desequilíbrio entre empresa da União e outros entes federados, não há razão para aplicar a imunidade tributária ao produto obtido com este tipo de parceria. Por fim, trago um terceiro exemplo. Recentemente, empresa privada firmou acordo com os Correios para produção e venda de lingotes banhados a ouro, no formato de selos históricos. Sem prejuízo da importância cultural da iniciativa filatélica, a venda de cada conjunto de lingotes por R$ 9.875,00 visa evidentemente à obtenção de acréscimo patrimonial das partes envolvidas. Está, pois, presente a capacidade contributiva e não há como fazer aproximação entre a atividade inerente ao serviço postal e a produção e venda de obras de arte ou jóias.

Nessa toada, segundo o relator originário ministro Joaquim Barbosa, a extensão desmesurada da imunidade tributária recíproca criaria uma situação de desequilíbrio social e econômico, porquanto abriria margem ao abuso e à desconsideração do equilíbrio concorrencial. Essa linha foi acompanhada pelos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Cezar Peluso.

Conquanto respeitáveis os argumentos jurídicos e os fundamentos normativos daqueles que entendiam restringir a imunidade tributária dos Correios, mormente em relação às circunstâncias fáticas e ao contexto social e econômico, prevaleceu o entendimento segundo o qual, no caso específico da ECT, tendo em vista as suas missões sociais, além dos serviços públicos propriamente ditos, a imunidade tributária recíproca deve ser reconhecida. O ministro Ricardo Lewandowski assinalou:

Primeiramente, eu queria assentar, Senhor Presidente, que os Correios existem há trezentos e cinquenta anos neste País. É uma instituição respeitável, antiga, é um fator de integração nacional. Eu creio que se não tivéssemos os Correios no Brasil - agora é uma empresa pública -, talvez nós não teríamos um país continental como temos hoje, atualmente. Poucas instituições podem se gabar de ter esta longevidade, trezentos e cinquenta anos. Em todos os países do mundo, os Correios são uma atividade estatal ou protegidas pelo Estado, exatamente por esse aspecto, porque constituem um fator de integração nacional. Nos Estados Unidos, historicamente, isso ficou muito claro, muito patente, e hoje é uma empresa deficitária, mas que é subsidiada pelo Estado norte-americano. Então, eu creio que os Correios prestam um serviço público de natureza essencial em cumprimento ao que dispõe o artigo 21, inciso X da Constituição, que diz que compete à União manter os serviços postais. Um dos argumentos que foi ferido aqui, ao longo dos debates, é justamente que se cria, com essa imunidade, uma espécie de desigualdade de condições fiscais. Mas isso, na realidade, não ocorre, porque nós todos sabemos - e ficou demonstrado aqui, ao longo dos debates, a meu ver, mas isso é algo tão notório - que os Correios prestam serviços onde a iniciativa privada não presta ou não quer prestar ou entende que é deficitária. A iniciativa privada não vai para os mais longíquos rincões do País, para o interior da Amazônia, mas os Correios estão presentes lá, mesmo sofrendo prejuízo estão prestando serviços. E, ademais, o que é interessante, as próprias empresas privadas de courier, aquelas que são responsáveis pela entrega de encomendas e pacotes, valem-se dos serviços dos Correios, porque, do ponto de vista econômico financeiro, isso é desinteressante. Então, não há nenhuma concorrência, nenhuma desigualdade, nenhuma vantagem para os Correios, com relação à iniciativa privada, que possa afastar justamente essa imunidade. De outro lado, nós sabemos, isso está na Lei, os Correios são obrigados a prestar o seu serviço, contrariamente à iniciativa privada que pode dizer: aqui eu não quero prestar esse serviço, porque isso não é interessante, é anti-econômico. Qualquer cartinha, qualquer serviço postal de responsabilidade dos Correios tem que ser prestado compulsoriamente como empresa pública que presta o serviço público. Os Correios não podem dizer: não, não quero prestar esse serviço. E há, como salientou o Ministro Dias Toffoli, muito bem, um aspecto social importantíssimo dos serviços disponibilizados por essa Empresa de Correios e Telégrafos, que prestam serviço público, repito, de natureza absolutamente essencial. Há um outro aspecto que foi ventilado nos memoriais: a questão do subsídio cruzado - é um fenômeno jurídico ou fiscal ou econômico chamado subsídio cruzado. Para manter o serviço postal, o que faz a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos? Ela reinveste os "lucros", que são o resultado positivo dos serviços que ela presta e que não estão sujeitos ao regime de exclusividade. Portanto, naquilo que ela tem o resultado positivo, ela não aufere lucros, como numa empresa pública. Ela reinveste nos serviços. Ela não tem, a meu ver, a capacidade contributiva, tal como as empresas privadas, exatamente por esse aspecto, porque ela é deficitária na grande parte dos serviços que presta.

Tendo em vista esses aspectos recordados pelo ministro Ricardo Lewandowski, que também restaram encampados pela ilustrada maioria do colegiado pleno, a Corte reconheceu a imunidade recíproca da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Há de se registrar que a dissidência, nesse RE 601.392, foi inaugurada pelo ministro Ayres Britto. E o nosso próximo passo será analisar as suas manifestações nesses feitos relativos ao regime jurídico tributário das empresas estatais.


4 MANIFESTAÇÕES DO MINISTRO AYRES BRITTO

Principio pelo julgamento do citado RE 601.392, cuja dissidência vencedora foi inaugurada pelo ministro Ayres Britto, conforme aludido. Nesse feito, o ministro Ayres revela a sua extrema dificuldade para equacionar o tema da imunidade recíproca no que envolve empresa estatal, mormente a ECT. O voto que proferiu, nada obstante curto, é preciso e revelador de sua compreensão sobre esse tema. Seguem algumas passagens dilucidadoras:

Paro para refletir sobre o conteúdo significante, a extensão eficacial dessa expressão constitucional "manter" o correio aéreo nacional e os serviços postais e telegráficos - manter. Quando a Constituição usa esse verbo "manter", o faz num contexto de grande importância institucional. Por exemplo: manter a polícia civil aqui no Distrito Federal; manter o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública; manter as atividades de diplomacia. Manter o serviço entregue à cura da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos cada vez mais me parece que é manter a qualquer custo, a qualquer preço, de qualquer maneira, ainda que sob retumbante, acachapante prejuízo. É uma atividade que não pode deixar de ser prestada, que não pode sofrer solução de continuidade; é obrigação do Poder Público manter esse tipo de atividade. Por isso que o lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados.

De outra parte, sabemos que os Correios - o Ministro Nelson Jobim lembrava isso - são destinados a um atendimento de modo a alcançar todos os municípios brasileiros, distritos, as subdivisões geográficas-territoriais desses municípios, em busca desse valor mais alto da integração nacional - que Vossa Excelência, Ministro César Peluso, chamou de "coesão nacional" em uma das nossas discussões. Isso tudo obriga os Correios e Telégrafos a adotar uma política tarifária de subsídios cruzados, ou seja, buscar obter lucro aqui para cobrir prejuízo certo ali. E como os Correios realizam também direitos fundamentais da pessoa humana, como a comunicação telegráfica e telefônica e o sigilo dessas comunicações, praticando uma política de modicidade tarifária, eles alcançam a maior parte da população carente, da população economicamente débil. Assim, nesta oportunidade, com um pouco mais de clareza ou menos dubiedade, parece-me que os Correios são como uma longa manus, uma mão alongada das atividades da União, um apêndice da União absolutamente necessário. Estender aos Correios o regime de imunidade tributária de que fala a Constituição está me parecendo uma coisa natural, necessária, que não pode deixar de ser, independentemente se a atividade é exclusiva ou não. No caso, parece-me que os fins a que se destinam essas atividades são mais importantes do que a própria compostura jurídica ou a estrutura jurídico-formal da empresa. O conteúdo de suas atividades é que me parece relevar sobremodo, à luz da Constituição.

Como se vê, para o ministro Ayres Britto, as obrigações sociais da ECT, e de quaisquer outras estatais, podem justificar a extensão da imunidade ou de eventuais privilégios a elas. Esse entendimento já tinha sido manifestado por ocasião do julgamento paradigmático da ACO 765.

Essa linha já tinha sido adotada no julgamento do RE 582.264, que discutiu a imunidade de Hospital que era uma sociedade de economia mista. Também nesse julgamento, o relator originário, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo não conhecimento da imunidade tributária recíproca, forte no argumento segundo o qual  “sempre que os serviços forem prestados por particulares ou por entidades públicas, com vistas ao acúmulo patrimonial (art. 199 da Constituição) ou estatal em interesse secundário, não haverá a extensão da salvaguarda constitucional, pois a imunidade recíproca não opera como garantia de agentes de mercado”.

A divergência também foi inaugurada pelo ministro Ayres Britto. Segundo o ministro o direito à saúde é de todos e é dever do Estado, e são de relevância pública as ações e serviços públicos de saúde e, por consequência, se cuida de um dever de natureza pública. E a prestação de ações e serviços de saúde por sociedades de economia mista corresponde à própria atuação do Estado, desde que a empresa estatal não tenha por finalidade a obtenção de lucro.

Cuide-se que no julgamento do RE 599.628, o ministro Ayres Britto votou pelo reconhecimento do direito a pagar suas dívidas mediante precatórios judiciários a sociedade de economia mista, com ações negociadas em bolsa de valores, delegatária de serviço público, forte na tese de que no paradigma do constitucionalismo social a atividade é que deve ser protegida, não necessariamente a pessoa jurídica. Assinalou Ayres Britto:

15. Muito bem. Pergunto: em que se traduz o precatório, como instituto de direito constitucional? Qual a sua natureza jurídica e base de inspiração como categoria de direito positivo? Essa base de inspiração faz-se presente na figura do Estado enquanto prestador de serviços públicos?

16. Eis as respostas que me parecem hermeneuticamente corretas, à luz do caput e dos §§ 5º, 6º e 7º do art. 100 da CF:

I – precatórios, em linhas gerais, são ofícios de requisição de verba orçamentária para pagamento de débitos estatais formalmente reconhecidos e impostos em decisão judicial com trânsito em julgado. Ofícios expedidos: a) pelo presidente do tribunal judiciário ‘que proferir a decisão exequenda’, apresentados ‘até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão os seus valores atualizados monetariamente’; b) ofícios requisitórios, enfim, que já convertidos em verbas orçamentárias, serão pagos exclusivamente na sua ordem de apresentação e à conta dos seus créditos respectivos’;

II – assim positivado como ofício ou mandado requisitório, o instituto em causa tem a natureza jurídica de prerrogativa processual do Estado, pois, do ângulo dele, Estado, o precatório se traduz no direito de não ser financeiramente executado senão por um procedimento bem mais vantajoso. Um procedimento ou regime de execução especial da dívida por ficar a salvo, em regra, das constritivas e até vexatórias medidas da penhora, do arresto, do sequestro e assim avante. Prerrogativa que ainda opera pela possibilidade de solver os respectivos débitos até o final do exercício financeiro subsequente àquele da precitada inclusão orçamentária (o que implica alargamento temporal de pelo menos 18 meses);

III – tal regime especial de execução de dívidas já definitivamente constituídas em sede judiciária tem a sua razão de ser. Ele responde à necessidade maior, para não dizer absoluta, de impedir o risco de uma súbita paralisia nas atividades de senhorio estatal. Que são atividades de que dependem a qualidade de vida e até mesmo a sobrevivência física de toda uma população geograficamente situada e juridicamente personalizada. Atividades públicas, então, porque respeitantes aos mais encarecidos interesses do conjunto da sociedade. Por isso que marcadas pelo signo da irrestrita continuidade, devido a que seu abrupto estancamento não pode ser de pronto suprido pelos seus próprios destinatários. É dizer, faltando o Estado na prestação das atividades que lhes são inerentes, tudo o mais vai faltar à população. Notadamente aquela parcela populacional sacrificada em renda e patrimônio, que tem na ininterrupta e qualificada atuação estatal a sua própria tábua de salvação. O seu único e verdadeiro arrimo, em especial no campo das atividades de que falam os arts. 6º, 144 e 225 da CF, a compreender os setores de saúde e segurança públicas, educação, trabalho, assistência social, lazer, previdência social, assistência à maternidade e à infância, moradia, meio ambiente e recebimento contínuo de serviços públicos essenciais, como transporte coletivo, energia elétrica, água potável e tratamento de esgotos sanitários. Avultando a compreensão de que sem o regime de precatório seria absolutamente impossível o Estado se reprogramar para prosseguir sem trégua no desempenho de misteres que dão substância e propósito à sua concepção como realidade jurídica universalmente consagrada. Verdadeiro ponto de arremate e condição mesma da aventura humana enquanto projeto de vida civilizada, que é a vida rousseaunianamente em sociedade.

IV – agora já se percebe, sem o menor esforço mental, que toda essa base de inspiração do precatório como figura de direito comparece no âmbito do Estado enquanto prestador de serviços públicos. Ao menos quanto aos serviços públicos de nominação constitucional, que são de caráter objetivamente essencial (se não o fossem deixariam de ter na própria Constituição o seu qualificado locus de positividade) e também titularizados pelo Estado. E titularizado pelo Estado em razão do seu necessário vínculo de atendimento a necessidades coletivamente sentidas, nomeadamente junto àqueles que não têm outro patrimônio que não sejam os serviços públicos mesmos [...];

17. Sob essas coordenadas mentais, voto pela extensão do regime de precatórios à parte recorrente. Não sem antes enfatizar que os serviços públicos se inscrevem nos quadros do moderno constitucionalismo social, pela sua peculiaridade de implicar postura prestacional onerosa do Estado, sobretudo em favor dos indivíduos e da cidadania. Por eles é que o Poder Público dá concretizadora vazão aos direitos sociais, transformando-os em cotidianas políticas públicas de afirmação e promoção humana. Donde sua definição como específica atividade material com que o Estado-administração busca instituir e elevar continuamente os padrões de bem-estar da coletividade, fazendo-o pela oferta de préstimos ou comodidades que, do ângulo dos seus beneficiários, têm a peculiadridade do desfrute direto, individual e contínuo.

Nada obstante essa fundamentação, a Corte acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Joaquim Barbosa, no sentido de que os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas.

E, para finalizar, o julgamento paradigmático da sempre recordada ADPF 46. Nesse feito, o ministro Ayres Britto reafirma a convicção segundo a qual a compulsoriedade da prestação do serviço público, que deve ser mantido pela União, influencia o regime jurídico e não autorizaria a intervenção da iniciativa privada. Nessa perspectiva, essa peculiaridade, o caráter eminentemente público e social da prestação do serviço, reclamaria um tratamento normativo distinto.


5 CONCLUSÕES

À luz dos feitos analisados, podemos concluir que para o ministro Ayres Britto o regime normativo diferenciado para as empresas estatais, seja no plano tributário ou não, estava vinculado ao caráter social da atividade econômica desenvolvida pela estatal, independentemente de seu regime constitutivo, se empresa pública ou se sociedade de economia mista.

É que para o ministro Ayres Britto, à luz do constitucionalismo social, à Administração Pública, em sentido amplo, compete concretizar as promessas normativas dispostas na Constituição, especialmente as positivas de caráter social. E, segundo o ministro, para que a Administração Pública, aqui incluída a direta e a indireta, nesta entendida as empresas públicas e as sociedades de economia mista, possa viabilizar as suas finalidades, se faz necessário tratá-la distintamente em relação à iniciativa privada.

Para o ministro Ayres Britto, a Administração Pública não se revela como um “Leviatã faminto e voraz”, devorador de parcela das riquezas produzidas pela iniciativa privada. Da leitura de seus votos, vê-se que para ele, a Administração Pública deveria se apresentar como um conjunto de órgãos e entidades vocacionado para a prestação de serviços públicos de caráter eminentemente social e emancipatório.


6 REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 220.906. Relator ministro Maurício Corrêa. Julgamento em 16.11.2000. Publicação no Diário de Justiça de 14.11.2002. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 601.392. Relator ministro Joaquim Barbosa. Redator do acórdão ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 28.2.2013. Publicação no Diário de Justiça de 5.6.2013. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 599.628. Relator originário ministro Ayres Britto. Redator do acórdão ministro Joaquim Barbosa. Julgamento em 25.5.2011. Publicação no Diário de Justiça de 14.10.2011. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 580.264. Relator originário ministro Joaquim Barbosa. Redator do acórdão ministro Ayres Britto. Julgamento em 16.12.2010. Publicação no Diário de Justiça de 6.10.2011. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 589.998. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Julgamento em 20.3.2013. Publicação no Diário de Justiça de 12.9.2013. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Cível Originária n. 503. Relator ministro Moreira Alves. Julgamento em 25.10.2001. Publicação no Diário de Justiça de 5.9.2003. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação direta de inconstitucionalidade n. 5.624. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Disponível: www.stf.jus.br.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 46. Relator originário ministro Marco Aurélio. Redator do acórdão ministro Eros Grau. Julgamento em 5.8.2009. Publicação no Diário de Justiça de 26.2.2010. Disponível: www.stf.jus.br.


[1] Texto escrito em justa e merecida homenagem ao ministro Ayres Britto em comemoração aos 30 anos de vigência da “Constituição Tributária”. Com efeito, poucas Constituições no mundo possuem tantos preceitos relativos à matéria tributária como a brasileira de 1988. Na Constituição italiana, por exemplo, só há um dispositivo, o art. 23, que prescreve que nenhum tributo será cobrado sem base legal. Na Constituição portuguesa apenas os arts. 103 e 104 cuidam de matéria tributária. Já na brasileira a matéria tributária está entre os arts. 145 e 163, e parcialmente dispersa em vários outros dispositivos.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 220.906. Relator ministro Maurício Corrêa. Julgamento em 16.11.2000. Publicação no Diário de Justiça de 14.11.2002. Disponível: www.stf.jus.br.

[3] Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009). 

[4] Eis a ementa do acórdão do RE 220.906: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO.OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.  1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias.  2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 601.392. Relator ministro Joaquim Barbosa. Redator do acórdão ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 28.2.2013. Publicação no Diário de Justiça de 5.6.2013. Disponível: www.stf.jus.br.

[6] Eis a ementa do acórdão do RE 601.392: Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. 3. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade. Precedentes. 4. Exercício simultâneo de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com a iniciativa privada. Irrelevância. Existência de peculiaridades no serviço postal. Incidência da imunidade prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 599.628. Relator originário ministro Ayres Britto. Redator do acórdão ministro Joaquim Barbosa. Julgamento em 25.5.2011. Publicação no Diário de Justiça de 14.10.2011. Disponível: www.stf.jus.br.

No julgamento desse feito, o ministro Ayres Britto, com a sua costumeira sensibilidade, assinalou uma efemeridade da Corte: Senhor Presidente, peço vênia para registrar um fato que, do ponto de vista humano, me parece peculiar, curioso: o Ministro Aldir Passarinho, advogado da parte recorrida, foi substituído nesta Casa pelo Ministro Ilmar Galvão, advogado da parte recorrente. E eu, Juiz Relator, fui substituto do Ministro Ilmar Galvão, aqui, nesta mesma cadeira. De sorte que nós três juntos somamos, em idade, 231 anos, muito mais do que a Independência do Brasil, que é de 188 anos. Espero que todo esse tempo somado contribua para jorrar um pouco de luz na compreensão desta causa que desafia uma decisão justa.

[8] Eis a ementa do acórdão do RE 599.628:  FINANCEIRO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PAGAMENTO DE VALORES POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL CUJA REPERCUSSÃO GERAL FOI RECONHECIDA. Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. - Eletronorte não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição). Recurso extraordinário ao qual se nega provimento.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 580.264. Relator originário ministro Joaquim Barbosa. Redator do acórdão ministro Ayres Britto. Julgamento em 16.12.2010. Publicação no Diário de Justiça de 6.10.2011. Disponível: www.stf.jus.br.

[10] Eis a ementa do acórdão do RE 580.264: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. SERVIÇOS DE SAÚDE. 1. A saúde é direito fundamental de todos e dever do Estado (arts. 6º e 196 da Constituição Federal). Dever que é cumprido por meio de ações e serviços que, em face de sua prestação pelo Estado mesmo, se definem como de natureza pública (art. 197 da Lei das leis). 2. A prestação de ações e serviços de saúde por sociedades de economia mista corresponde à própria atuação do Estado, desde que a empresa estatal não tenha por finalidade a obtenção de lucro. 3. As sociedades de economia mista prestadoras de ações e serviços de saúde, cujo capital social seja majoritariamente estatal, gozam da imunidade tributária prevista na alínea “a” do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. 3. Recurso extraordinário a que se dá provimento, com repercussão geral.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 589.998. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Julgamento em 20.3.2013. Publicação no Diário de Justiça de 12.9.2013. Disponível: www.stf.jus.br.

[12] Eis a ementa do acórdão do RE 589.998:  EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT. DEMISSÃO IMOTIVADA DE SEUS EMPREGADOS. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA DISPENSA. RE PARCIALEMENTE PROVIDO. I - Os empregados públicos não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo aqueles admitidos em período anterior ao advento da EC nº 19/1998. Precedentes. II - Em atenção, no entanto, aos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa. III – A motivação do ato de dispensa, assim, visa a resguardar o empregado de uma possível quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. IV - Recurso extraordinário parcialmente provido para afastar a aplicação, ao caso, do art. 41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação para legitimar a rescisão unilateral do contrato de trabalho.

[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Cível Originária n. 503. Relator ministro Moreira Alves. Julgamento em 25.10.2001. Publicação no Diário de Justiça de 5.9.2003. Disponível: www.stf.jus.br.

[14] Eis a ementa do acórdão da ACO 503: Ação Cível originária. Imunidade fiscal com base no disposto no artigo 150, VI, "a", e seu parágrafo 2º. Natureza jurídica do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul - BRDE. - Rejeição da preliminar de ilegitimidade ativa "ad causam" dos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Em conseqüência, fica prejudicada a alegação de incompetência residual desta Corte. Aliás, ainda quando os Estados-membros não tivessem legitimidade ativa "ad causam", haveria conflito federativo entre o Banco-autor, criado como autarquia interestadual por eles, e a União Federal que lhe nega essa natureza jurídica para efeito de negar-lhe a imunidade fiscal pretendida. - No mérito, esta Corte já firmou o entendimento (assim, no RE 120932 e na ADI 175) de que o Banco-autor não tem a natureza jurídica de autarquia, mas é, sim, empresa com personalidade jurídica de direito privado. Conseqüentemente, não goza ele da imunidade tributária prevista no artigo 150, VI, "a", e seu parágrafo 2º, da atual Constituição, não fazendo jus, portanto, à pretendida declaração de inexistência de relação jurídico-tributária resultante dessa imunidade. Ação que se julga improcedente.

[15] Art. 173, CF.... §1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;  III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;  IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;  V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 3º A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação direta de inconstitucionalidade n. 5.624. Relator ministro Ricardo Lewandowski. Disponível: www.stf.jus.br.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 46. Relator originário ministro Marco Aurélio. Redator do acórdão ministro Eros Grau. Julgamento em 5.8.2009. Publicação no Diário de Justiça de 26.2.2010. Disponível: www.stf.jus.br.

[18] Ementa do acórdão da ADPF 46:

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI. 1. O serviço postal --- conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado --- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar. 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X]. 4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969. 5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. 6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo.

[19] À luz da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, as espécies tributárias são as seguintes: impostos, taxas, empréstimos compulsórios e contribuições (de melhoria, sociais e especiais). Essa classificação foi defendida pelo ministro Carlos Velloso, nos autos do RE 138.284, e pelo professor Ricardo Lobo Torres, em seu Curso de Direito Financeiro e Tributário.


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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ALVES JR., Luís Carlos Martins. Empresas estatais e imunidade tributária: uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6525, 13 maio 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90514. Acesso em: 9 maio 2024.