Capa da publicação Empresas estatais e imunidade tributária: releitura dos votos do ministro Ayres Britto no STF
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Empresas estatais e imunidade tributária:

uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal

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"O lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados”.

“Tem sido para mim uma questão tormentosa essa da imunidade tributária recíproca no plano da sua extensão aos Correios e Telégrafos.”

....

“Manter o serviço entregue à cura da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos cada vez mais me parece que é manter a qualquer custo, a qualquer preço, de qualquer maneira, ainda que sob retumbante, acachapante prejuízo. É uma atividade que não pode deixar de ser prestada, que não pode sofrer solução de continuidade; é uma obrigação do Poder Público manter esse tipo de atividade. Por isso que o lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados”.

(ministro Ayres Britto, RE 601.392)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O estatuto jurídico-constitucional das empresas estatais; 3 O estatuto constitucional da imunidade tributária; 4 Manifestações do ministro Ayres Britto; 5 Conclusões; 6 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar (reler) algumas das manifestações do ministro Ayres Britto por ocasião de julgamentos relativos aos temas do regime jurídico-constitucional das empresas estatais, especialmente no tocante à imunidade tributária recíproca, cujas discussões gravitavam em redor do art. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e do art. 173, § 2º, Constituição Federal. Esses dispositivos constitucionais estão assim vazados:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

.....

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

......

VI - instituir impostos sobre:           

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

......

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

......

§ 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Cuide-se que o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário n. 220.906[2], reconheceu a validade, via recepção constitucional, do art. 12 do Decreto-Lei n. 509, de 20 de março de 1969, que estende à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT as mesmas prerrogativas da Fazenda Pública. Esse citado art. 12 do DL 509/1969 tem o seguinte enunciado:

Art. 12 - A ECT gozará de isenção de direitos de importação de materiais e equipamentos destinados aos seus serviços, dos privilégios concedidos à Fazenda Pública, quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais.

No agitado RE 220.906 enfrentava-se a questão específica da utilização do instituto do precatório judiciário (art. 100[3], CF) para o pagamento de dívidas judicialmente reconhecidas da ECT. O Tribunal, como já mencionado, entendeu que a ECT fazia jus às prerrogativas da Fazenda Pública, sob a justificativa de que essa empresa não explora atividade econômica, mas presta serviço público de competência da União Federal, logo não incidiriam as ressalvas do aludido art. 173.[4]

Nesse julgamento do RE 220.906 foram interessantes os debates entre os ministros favoráveis à aplicação do ventilado art. 100 à ECT, e os contrários a essa aplicação. É que não havia em nosso ordenamento jurídico a autorização para expedição de precatório para empresas públicas ou sociedades de economia mista. Assim, seria juridicamente impossível decisão judicial que autorizasse o pagamento de dívidas judiciárias da ECT via precatórios. Ante essa realidade, o ministro Jobim aduziu a um verdadeiro “precatório informal”. Frente a esse quadro, o ministro Ilmar Galvão indagava se o Tribunal estaria a julgar por “direito natural”, visto inexistente no ordenamento esse instituto do “precatório informal”. Para rebater essa provocação, o ministro Moreira Alves defendeu que o fundamento seria a interpretação do STF.

Conquanto fossem respeitáveis e bem consistentes as objeções dos ministros divergentes, a maioria optou pelo reconhecimento do instituto dos precatórios para os Correios. É de se reconhecer que a Corte inovou positivamente o ordenamento jurídico. E, com o devido respeito, os magistrados, inclusive os ministros do STF, não têm autorização constitucional para criar normas gerais e abstratas. Eles estão autorizados a tão somente aplicar correta e coerentemente as normas juridicamente válidas. E isso não é pouca coisa.

Se no RE 220.906 o Tribunal decidiu pelo cabimento do instituto do precatório judiciário para a ECT, no julgamento do RE 601.392[5] o Tribunal confirmou a imunidade tributária da ECT forte no fundamento segundo o qual há uma distinção entre as empresas estatais prestadoras de serviço público e as exploradoras de atividade econômica. E, segundo a Corte, em sede de serviço postal, atrai-se a incidência da imunidade tributária recíproca (art. 150, inciso VI, alínea ‘a’, CF).[6]

O relator originário do RE 601.392 ministro Joaquim Barbosa assinalou:

Reafirmo meu entendimento no sentindo de que o exercício de atividade econômica pelo Estado, no Brasil, é subsidiário; ou seja, o Estado e sua longa manus - como disse o Ministro Britto -, como é o caso da ECT, os diversos braços estatais, especialmente da União Federal, só podem exercer essa atividade econômica excepcionalmente. A regra é o exercício de atividade econômica por atores privados.

O que que nós temos aqui? Nós temos uma empresa que ostenta esse privilégio em matéria postal e, ao mesmo tempo, exerce atividades bancárias, venda de títulos, em concorrência com o setor privado. E a própria Constituição diz que, quando algum ente estatal, alguma empresa estatal, quando o Estado resolve empreender nessa área econômica, ele deve fazê-lo em igualdade de condições com o particular.

Ora, eu tenho números sobre a ECT. É uma das nossas grandes estatais, com um patrimônio extraordinário - o patrimônio, no ano passado, era de cerca de doze bilhões e seiscentos milhões; lucro líquido, cerca de oitocentos e sessenta milhões. Acho que isso é irrelevante para fins de decidirmos o recurso extraordinário, mas são dados bastante eloquentes, a meu ver.

O fundamental é que insisto na necessidade de estabelecermos a distinção: quando se está diante de exercício de serviço público, imunidade absoluta; quando se trata de exercício de atividade privada, incidem as mesmas normas existentes para as empresas privadas, inclusive as tributárias, como diz a Constituição. Isso me parece muito claro.

Já no julgamento do RE 599.628[7] o Tribunal decidiu que os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas.[8] Nesse feito, o ministro Ayres Britto foi voto vencido.

Todavia, antes, nos autos do RE 580.264[9], o Tribunal assentou que as sociedades de economia mista prestadoras de ações e serviços de saúde, cujo capital social seja majoritariamente estatal, gozam da imunidade tributária prevista na alínea ‘a’ do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. Nesse feito, o voto vencedor foi emitido pelo ministro Ayres Britto que abriu divergência em face do voto do relator ministro Joaquim Barbosa, para quem o caráter de agente de mercado da sociedade de economia mista afastava a imunidade pleiteada.[10]

Esse especial tratamento dispensado pelo STF às empresas estatais, como já aludido, não se restringe apenas ao direito tributário. O Tribunal, nos autos do RE 589.998[11], aprovou a seguinte tese constitucional: “os empregados públicos das empresas públicas e sociedades de economia mista não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal, mas sua dispensa deve ser motivada.” [12]

Com efeito, à luz dos julgados do STF, é possível concluir que as “estatais” que não exploram atividade econômica e que prestam serviços públicos devem ser tratadas como se fossem entidades públicas ou pessoas jurídicas de direito público, a despeito de seu regime jurídico de direito privado. Cuide-se que o Tribunal, nos autos da Ação Cível Originária n. 503[13], decidiu por descaracterizar a natureza autárquica de um banco e, por consequência, negar o direito à imunidade recíproca. [14] Logo para a Corte não interessa a natureza em si da estatal, mas as atividades que desenvolve: se prestadora de serviços públicos pode vir a gozar dos privilégios da Fazenda Pública, inclusive a imunidade recíproca.

Nada obstante, antes de avançarmos na análise (releitura) das manifestações do ministro Ayres Britto sobre o tema da imunidade recíproca das empresas estatais, visitaremos os estatutos constitucionais dessas empresas e das imunidades tributárias, assim verificaremos se essas manifestações estavam em sintonia com o texto constitucional, harmônicas com a realidade e se guardavam coerência normativa e narrativa interna. Em suma, analisaremos a força argumentativa e a capacidade de convencimento dos votos, independentemente de serem ou não chancelados pela sempre ilustrada maioria da Corte.


2 O ESTATUTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DAS EMPRESAS ESTATAIS

A Constituição prescreve, no art. 1º, inciso IV, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um dos fundamentos da República brasileira. Nos incisos II e III do art. 3º, CF, estão enunciados que garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais constituem alguns dos objetivos fundamentais de nossa República. Nessa toada, no art. 23, inciso X, CF, está prescrito que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.  No art. 5º, inciso XIII, CF, está prescrito que, nos termos da lei, é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. Nos incisos XXII e XXIII desse art. 5º garantem-se o direito de propriedade e que essa propriedade atenderá a sua função social. Esta função social da propriedade consiste em princípio constitucional enunciado dentre outros que informam a ordem econômica (art. 170, CF).

Com efeito, a aludida ordem econômica, nos termos do citado art. 170, CF, se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. E, além da já citada função social da propriedade, possui os seguintes princípios constitucionais: soberania nacional, propriedade privada, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental  dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, redução das desigualdade sociais regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.  E, procurando viabilizar o liberal capitalismo em solo brasileiro, a Constituição, no parágrafo único do aludido art. 170, assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

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Se a Constituição assegura a todos o direito de exercer qualquer atividade econômica, salvo aquelas legalmente excepcionadas, o que revela a opção constitucional preferencial pela iniciativa privada, em relação à atividade econômica do Estado a situação é excepcional. Com efeito, está prescrito no art. 173, CF, que somente quando for necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado será autorizada. A mensagem induvidosa da Constituição consiste em determinar que o Estado não deve ser produtor de riquezas, mas indutor de sua produção. Essa indução pode ocorrer, inclusive, com o não intervencionismo. Em termos econômicos, o Estado já ajuda bastante quando não atrapalha os agentes produtivos.

Essa compreensão é reforçada pelo disposto no art. 174, CF, que prescreve que como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, que serão determinantes para o setor público e indicativa para o setor privado. Daí que a leitura da Constituição conduz a uma compreensão favorável à iniciativa privada e excepcionalmente à intervenção estatal nas atividades econômicas. Portanto, a principal atividade financiadora do Estado não está na produção direta de riquezas, mas na arrecadação tributária decorrente da produção privada das riquezas.

O fio condutor dessa opção política e econômica contida na Constituição de 1988 reside na experiência segundo a qual a liberdade política viabilizada pelos regimes democráticos requer a liberdade econômica. Sem liberdade econômica não é possível liberdade política, conquanto a recíproca não seja imediatamente verdadeira, porquanto seja possível a liberdade econômica sem a liberdade política, mas incogitável esta sem aquela. Não há democracia política sem liberdade econômica, uma vez que a independência político-ideológica se fortalece com a independência econômica em relação ao Estado. Quanto menos dependente for a economia da política e da burocracia, logo dos políticos e dos burocratas, mais livres serão os cidadãos.

Nada obstante, à luz da Constituição, o Estado, mediante empresas públicas e sociedades de economia mista, está, excepcionalmente, autorizado a explorar atividade econômica. Daí que a interpretação constitucional mais adequada, a partir das experiências passadas e das circunstâncias presentes, bem como das perspectivas de futuro, consiste naquela que desfavorece à intervenção estatal na atividade econômica.

Diante do caráter complexo envolvendo a intervenção direta do Estado na exploração das atividades econômicas, entre os §§ 1º e 5º do citado art. 173, CF, há um extenso catálogo de preceitos autorizadores dessa aludida compreensão, mormente os comandos que visam não criar privilégios fiscais para as “empresas estatais” que não foram estendidos às “empresas não-estatais”.[15]

Em atendimento aos comandos constitucionais foi editada a Lei n. 13.303, de 30 de junho de 2016. No art. 1º desta referida Lei 13.303/2016, está prescrito que “Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos”.  

No art. 2º dessa Lei 13.303/2016 está prescrito que a exploração de atividade econômica pelo Estado será exercida por meio de empresa pública, de sociedade de economia mista e de suas subsidiárias. Nos arts. 3º e 4º estão conceituados que a empresa pública é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios e que a sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta.

Tenha-se que essa mencionada Lei 13.303/2016 está com a sua validade constitucional questionada perante o STF nos autos da ADI 5.624. Em decisão cautelar e monocrática, o ministro relator Ricardo Lewandowski concedeu, parcialmente, liminar para reconhecer a necessidade de prévia autorização legislativa para a alienação do controle acionário das “empresas estatais”. [16] No mérito, ainda não há decisão definitiva do Plenário da Corte.

Em sede de regime jurídico das empresas estatais, há de se recordar o julgamento da ADPF 46[17] que enfrentou o tema do alcance do monopólio do serviço postal dos Correios. A Corte, nesse julgamento, analisou os sentidos normativos possíveis dos preceitos constitucionais relativos à intervenção estatal na atividade econômica em cotejo com os preceitos da livre iniciativa e da propriedade privada. A partir do voto divergente e vencedor do ministro Eros Grau, o Tribunal assentou que os serviços públicos prestados na forma de privilégio, como o postal, devem receber um tratamento normativo distinto das atividades econômicas não “privilegiadas”, como sucederia com as atividades bancárias ou industriais, por exemplo.[18]

O relator originário da ADPF 46, ministro Marco Aurélio, propôs uma leitura evolutiva do texto constitucional em cotejo com os avanços tecnológicos e as mudanças sociais e econômicas ocorridas no Mundo e no Brasil em particular a fim de reduzir o dirigismo econômico em favor de uma maior liberdade de iniciativa e de concorrência. Segundo o ministro Marco Aurélio, em matéria de intervenção econômica, o papel do Estado deve ser subsidiário ao invés de protagonista. Assim, segundo o ministro Marco Aurélio, deveria ser formulada uma interpretação restritiva da intervenção estatal na atividade econômica, privilegiando-se, por consequência, a livre iniciativa privada e a liberdade concorrencial. Em seu voto o ministro Marco Aurélio assinalou:

Interpretar significa apreender o conteúdo das palavras, não de modo a ignorar o passado, mas de maneira a que este sirva para uma projeção melhor do futuro. Como objeto cultural, a compreensão do Direito se faz a partir das pré-compreensões dos intérpretes. Esse foi um dos mais importantes avanços da hermenêutica moderna: a percepção de que qualquer tentativa de distinguir o sujeito do objeto da interpretação é falsa e não corresponde à verdade.  A partir da ideia do ‘Círculo Hermenêutico’ de Hans Gadamer, evidenciou-se a função co-autora do hermeneuta: na medida em que este compreende, interpreta as normas de acordo com a própria realidade e as recria, em um processo que depende sobremaneira dos valores envolvidos.

Nesse sentido, o jusfilósofo Richard Palmer assevera que a tarefa da interpretação é a de construir uma ponte sobre a distância histórica a separar o sujeito do objeto da interpretação. Assim, quando o intérprete analisa um texto do passado, não deve esvaziar a sua memória, nem abandonar o presente, mas levá-los consigo e utilizá-los para compreender e projetar um futuro.

Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita-se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando-se a realizar interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete, mas não pode levar à auto-alienação de uma consciência, funcionando como escuta à análise do presente.

Sem embargo dessa bem lançada fundamentação do ministro Marco Aurélio, prevaleceu o voto divergente inaugurado pelo ministro Eros Grau, cujo voto possui algumas passagens de grande pedagogia constitucional que merecem ser transcritas:

O direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza.

É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida – e vida é movimento. Assim, o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos.

A realidade nacional evidencia que nossos conflitos são trágicos. A sociedade civil não é capaz de solucionar esses conflitos. Não basta, portanto, a atuação meramente subsidiária do Estado. No Brasil, hoje, aqui e agora – vigente uma Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e no artigo 3º, define os objetivos do Brasil (porque quando o artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e solidária) – vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-se, muito ao contrário do que propõe o voto do Ministro relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pela sociedade civil, vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição do Brasil e certamente não nos conduzirá a um bom destino.

Respeitar, fazer cumprir a Constituição, é fundamentalmente dar eficácia, prover a eficácia dos artigos 1º e 3º.

Malgrado o profundo respeito e a imensa admiração que nutro pelo ministro Eros Grau, essa aludida compreensão merece algumas considerações. Com efeito, em seu voto o ministro Eros Grau parte da premissa de que cabe ao Estado (República composta pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e Municípios e respectivas entidades da administração direta e indireta, aqui incluídas as autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mistas e suas subsidiárias ou controladas) o dever de transformar a sociedade brasileira.

E, segundo essa pré-compreensão do ministro Eros, entre o fortalecimento da sociedade civil, por meio do mercado, e o fortalecimento da atuação estatal, por meio de suas empresas estatais, preferível esta àquela. Com o devido respeito, essas pré-compreensões não encontram eco na experiência econômica e política.

Com efeito, onde o Estado é mais forte que a sociedade (ou que o mercado, nos dizeres do ministro Eros Grau) fenecem a liberdade, a prosperidade e a democracia. Quanto mais independente do Estado for o mercado, mais livres serão os agentes produtivos, os empresários, os consumidores e os trabalhadores, tanto no plano estritamente econômico quanto no plano das liberdades civis e políticas. As liberdades civis e políticas necessitam das liberdades econômicas e profissionais. Sem estas não há aquelas.  Assim o cidadão (indivíduo político) para ser livre, autônomo e independente necessita que o empresário ou trabalhador ou o consumidor (indivíduos econômicos) não tenham grande dependência em relação à política ou à burocracia.

É que o Estado visa o equilíbrio social e utiliza como estratégia a coação e a violência, sejam as físicas ou as simbólicas. Já o mercado é o reino da liberdade de escolhas, das trocas voluntárias, sem coações, mas tão somente com a liberdade do consumidor e do fornecedor, mediante o estabelecimento de preço e de valor dos bens ou serviços.  

Em suma, o Estado tem finalidades diversas das de uma Empresa. E as lógicas e os instrumentos também são diversos. Estado visa a pacificação social e a justiça entre as pessoas por meio de normas jurídicas. Empresa visa o lucro por meio da compra e venda de mercadorias ou de serviços. A empresa trabalha com “preços”. O Estado trabalha com “tributos”. Estes são “confiscatórios”, porque são obtidos mediante coação e ameaças, aqueles devem ser “retributivos”, porque decorrem da livre negociação, mediante um “pacto”, entre o vendedor e o comprador. O consumidor pode se recusar a pagar o preço cobrado pelo vendedor ou este pode se recusar a vender se o preço oferecido não for aceitável. Mas o contribuinte não pode se recusar a pagar os tributos legalmente devidos nem o Estado pode se recusar a cobrar o tributo devido. Não há liberdade nas situações tributárias.

Nessa perspectiva, à luz do sistema constitucional tributário brasileiro, é de se ver que a opção preferencial do constituinte no processo de obtenção de ingressos ou receitas não se deu pela atuação direta do Estado, mas por sua atuação indireta, mediante a arrecadação tributária. O tributo (impostos, taxas, empréstimos e contribuições) [19] é a maior fonte de receitas da atividade financeira que viabilizará as principais atividades administrativas e públicas do Estado. Portanto, convém analisarmos o modelo tributário brasileiro, em particular o das imunidades tributárias para compreendermos adequadamente a questão da imunidade recíproca.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Empresas estatais e imunidade tributária:: uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6525, 13 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90514. Acesso em: 2 nov. 2024.

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