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Do direito ao contraditório e à ampla defesa na aplicação de penalidades na relação de emprego

Do direito ao contraditório e à ampla defesa na aplicação de penalidades na relação de emprego

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Não se nega o direito do empregador a dirigir a prestação pessoal dos serviços e exercer os poderes daí inerentes, mas se defende a limitação a esses poderes, buscando-se evitar o abuso de direito.

RESUMO: Em linhas gerais, a presente pesquisa científica visa a expor, ainda que sucintamente, a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações de emprego: do direito ao contraditório e à ampla defesa na aplicação de penalidades. Com este propósito, consignaram-se os aspectos concernentes aos direitos fundamentais, defendendo-se a máxima efetividade das normas constitucionais. Constituiu, também, objeto de análise a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais com destaque para a eficácia irradiante dos direitos fundamentais e a teoria dos deveres de proteção, tendo-se também fixado a atenção acerca dos poderes do empregador, notadamente no poder disciplinar. Abordou-se, ainda, a crescente concentração do poder com grupo privados, e tratou-se da ampla defesa e do contraditório, com aplicação nas relações privadas, admitida pelo STF em certos casos. Buscou-se, por fim, defender a aplicação direta do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa na hipótese de aplicação de penalidades, pelo empregador, ao empregado, com substrato nos fundamentos da República Federativa do Brasil (dignidade da pessoa humana e valorização do trabalho), na jurisprudência citada do STF e nos ensinamentos da doutrina, que permeiam toda a obra.


PALAVRAS-CHAVES: 1) Direitos fundamentais; 2) Direito ao contraditório e à ampla defesa; 3) Dignidade da pessoa humana; 4) Poder disciplinar; 5) Valorização do trabalho.


Introdução

Há décadas, na Alemanha, a preocupação com a efetiva aplicação da Constituição revela-se como tema de forte expressão — devido, principalmente, às atrocidades do nacional-socialismo — porém, no Brasil, somente nos últimos anos, os primeiros passos vêm sendo efetivamente observados.

A doutrina é uníssona em afirmar a Constituição como a lei maior do país, mas, por muito tempo, foi omissa em encontrar caminhos para torná-la efetivamente aplicável. Com efeito, durante largo lapso de tempo, considerava-se que existiam normas constitucionais despidas de aplicabilidade imediata, a necessitar de lei inferior para se tornar plena. Isso, porém, constitui forte contradição, haja vista que a Lei Maior não precisa de qualquer lei inferior para alcançar seus desideratos. Apenas uma interpretação conservadora, preocupada em manter o status quo — isto é, em perpetuar as injustiças reinantes no país — pretende limitar a eficácia das normas constitucionais e, para isso, utiliza-se de subterfúgios pseudocientíficos.

Em verdade, deve-se dar à Constituição a máxima efetividade, para que os direitos sejam respeitados e se alcance a plenitude da cidadania. Todavia, os direitos previstos na Constituição, notadamente os fundamentais, para sua plena aplicabilidade, não podem se restringir à relação indivíduo-Estado.

Nisto consiste a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas: compreender que os direitos fundamentais também são oponíveis a outros sujeitos, além do Estado. De fato, se na época da Revolução Francesa buscava-se proteger os indivíduos do arbítrio e opressão do Estado, hoje, as preocupações se voltam para assegurar o indivíduo contra a opressão exercida por grandes grupos, muitos dos quais são economicamente mais fortes do que a maiores dos Estados.

Mas é dispensável que o ator privado em relação ao qual o direito fundamental deva ser observado seja uma multinacional ou uma empresa de grande porte. Em certas relações, dado a hipossuficiência de uma das partes, a necessidade de proteção do mais fraco impõe a observância dos direitos fundamentais.

Isso se manifesta com freqüência na relação de emprego, em que o empregado assume posição de subordinação jurídica — e, também, como regra, não há como negar, inferioridade econômica. A doutrina tradicional entende o empregador como possuidor de poderes, como o de punir o empregado faltoso. Entretanto, quais são os limites para a aplicação de sanções disciplinares?

Não se buscará esgotar o tema, de grande complexidade, diga-se, mas se almeja lograr êxito de fomentar discussões envolvendo a obrigatoriedade de garantir o contraditório e a ampla defesa aos empregados sujeitos a aplicação de penalidades.


1 – A eficácia normativa da Constituição

No liberalismo, o Direito Civil era o centro do sistema jurídico; em torno dele, orbitavam os demais ramos do direito. Por certo, no contexto em que a autonomia privada era um dogma inquebrantável, nada mais coerente. Justificava-se essa visão ainda no fato de que as codificações de direito privado eram feitas para durar. Em contrapartida, as Constituições estavam sempre mudando, o que, para os prosélitos do direito privado, gerava insegurança jurídica.

Havia forte separação entre o que se entendia por Direito Público e por Direito Privado. Aquele era a área de atuação da Constituição, disciplinando a relação entre o cidadão e o Estado. Por sua vez, no Direito Privado, que virtualmente regia as relações entre iguais, o Código Civil era aplicado sem concorrência com a Lei Maior.

Nessa época, entendiam a Constituição como mero documento político, destinado apenas a tratar das liberdades individuais, da organização do Estado e dos direitos políticos. Daí a superada classificação de normas materialmente constitucionais e normas formalmente constitucionais: estas despida do conteúdo normalmente conferido ao Estatuto maior de um Estado, mas presentes em seu texto; aquelas, substancialmente constitucionais.

Ao considerarem a Constituição apenas como projeto político, dependeria da interveniência do legislador para ter eficácia, salvo os direitos individuais, cuja eficácia seria imediata frente ao Estado.

A passagem do Estado Liberal para o Estado Social, entretanto, provocou a ruína da preponderância do Direito Privado. Nesse contexto, o Direito do Trabalho ganhou autonomia e se desgarrou do Direito Civil, por aquele ser regido por principiologia diversa.

O intervencionismo estatal, em outras áreas, acelerou a ruptura do ideário do Estado Liberal e seu credo no Direito Privado. Surgiram os microssistemas com axiologia bastante distinta do tradicional Direito Civil.

Ganharam espaço, no próprio Direito Civil, as cláusulas gerais, abrindo o direito à interpretação, atribuindo ao intérprete o papel de definir os conceitos jurídicos indeterminados, adequando a norma à época e ao caso concreto. Como conseqüência, a legislação estatal deixa a neutralidade e busca conseguir o bem-comum. Ocorre, então, a descodificação do Direito Civil. Exsurge a Constituição como centro do ordenamento jurídico.

A doutrina atentou-se para o fato de que todos os dispositivos constitucionais apresentam eficácia normativa, ainda que mínima, consistente em nortear a interpretação e integração do ordenamento jurídico. Dessarte, tais dispositivos impedem que o legislador legisle de forma contrária à Constituição, revoga as normas legais com eles incompatíveis, determinam aos órgãos da Administração Pública que não violem o preceito e, ainda, guiam a interpretação a ser dada pelos órgãos jurisdicionais.

No esforço de demonstrar a eficácia normativa, Konrad Hesse desenvolveu sua teoria sobre a força normativa da Constituição. Sobre tal tese, discorre Daniel Sarmento:

"Para ele, a Constituição opera a síntese dialética entre o mundo do ser e do dever ser, que não podem ser vislumbrados isoladamente. A realidade social influencia a Constituição, até porque quem a aplica não é uma maquina, mas um ser humano, que vive imerso numa comunidade partilhando dos seus valores e tradições. Mas a Constituição tem uma pretensão de eficácia, pois aspira ordenar o fato social e a influir sobre ele. Ela não se contenta em ser um mero espelho das relações de poder" (SARMENTO, 2004, pp. 75-76).

Nesse contexto de garantir aplicabilidade às normas constitucionais, a doutrina dos Estados Unidos traz a seguinte classificação dessas normas:

"a) Auto-executáveis (self-executing; self-enforcing; self-acting), se puderem executar o dever imposto, por fornecerem uma norma que possibilite a fruição e proteção do direito outorgado. Tratam-se de preceitos constitucionais completos, que não requerem nenhuma complementação por lei infraconstitucional. São preceitos constitucionais para os quais não será necessário designar uma autoridade, nem indicar processo especial. São disposições onde o direito instituído já contém em si os meios de execução. Daí advém a sua denominação de auto-executável. Por dispensarem quaisquer leis suplementares, têm aplicação imediata aos casos concretos.

b) Não auto-executáveis (not self-executing; not self-enforcing provisions ou not self-acting), se somente indicarem princípios, sem, contudo, estabelecerem normas que lhes dêem eficácia. Requerem, portanto, ação legislativa ulterior para sua efetivação; dependem de lei que as complementem, pois só depois dessa complementação legislativa podem ser executadas.

Nos Estados Unidos há, ainda, quem apresente as normas constitucionais como:

a) prescrições mandatárias (mandatory provisions), por serem normas constitucionais materiais e essenciais, de cumprimento irrecusável;

b) prescrições diretórias (directory provisions), se tiverem conteúdo regulamentar, permitindo ao legislador dispor diferentemente.

Pontes de Miranda divergiu de Ruy Barbosa quanto a uma denominação em especial: preferiu a denominação normas bastantes em si, normas não bastantes em si, conforme dispensassem, ou não, regulamentação para sua aplicação" (SANTOS, 1998).

No Brasil, cumpre citar a já clássica lição de José Afonso da Silva, para quem:

"A. Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata;

B. Normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição;

C. Normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. (que compreendem as normas definidoras de princípio institutivo e as definidoras de princípio programático), em geral dependentes de integração infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos.

De acordo com essa formulação, normas de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata e independem de providência normativa ulterior para sua aplicação. Normas de eficácia contida são as que receberam igualmente normatividade suficiente para reger os interesses pertinentes, prevendo, porém meios normativos que lhe reduzam a eficácia e aplicabilidade. E as de eficácia limitada são as que não receberam do constituinte normatividade suficiente para sua aplicação, tarefa essa do legislador ordinário" (SANTOS, 1998).

Hodiernamente, entretanto, os princípios despontam com alta densidade normativa, obrigando sua aplicação direta e a leitura da Constituição como carta de valores que devem ser respeitados e aplicados.

Essa ascensão dos princípios é contemporânea à crise do positivismo jurídico. De fato, essa escola do pensamento atribuía aos princípios papel secundário na ordem jurídica, como meio de integração do direto. Ademais, sua parca aplicação ainda se restringia ao campo do Direito Privado.

Os princípios, tais como as regras, são espécies do gênero normas. A distinção feita entre eles atualmente é fruto da obra da Ronald Dworkin.

"Neste estudo (Taking Rights Seriously), o autor (Ronald Dworkin) critica o positivismo jurídico, por ignorar o papel dos princípios jurídicos, que segundo ele são pontos de aproximação entre o direito e a moral. Fundado nesta premissa, Dworkin traça uma diferença qualitativa entre os princípios e regras, ligada a seu modo de incidência. Para ele, as regras são comandos disjuntivos, pois incidem sob a forma do ‘tudo ou nada’, o que não acontece com os princípios. Em outras palavras, presentes seus pressupostos, ou a regra jurídica é aplicada ao caso, ou é completamente afastada dele, em razão da incidência de outra regra. (...)

Já com os princípios, isto não ocorre, em razão da dimensão de peso que possuem, completamente ausente entre as regras. (...) esta dimensão de peso ‘(...) revela-se quando dois princípios diferentes incidem sobre determinado caso concreto entrando em colisão. Nesta hipótese, o conflito é solucionado levando em consideração o peso relativo assumido por cada princípio dentro das circunstâncias concretas presentes no caso, a fim de que se possa precisar em que medida cada um cederá espaço ao outro’" (SARMENTO, 2004, pp. 83-84).

Ainda sobre o princípio, assim o conceitua Dworkin: é "um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade. (DWORKIN, 2002, p. 36)" (MEYER, 2006).

Sob essa perspectiva, tem-se que a Constituição

"não é uma ‘ordem concreta de valores’, mas um conjunto coerente de princípios e regras (os princípios são abertos e precisam ser densificados com os elementos do discurso de aplicação; as regras contêm em si, na maioria das vezes, os elementos suficientes de sua aplicação, trabalhando em uma lógica de sim/não) constituído num processo discursivo de formação da opinião e da vontade que garanta a autonomia pública (soberania popular) e privada (direitos fundamentais) do cidadão" (MEYER, 2006).

Assunto que ganhou destaque refere-se à colisão de princípios e a solução a ser dada a esse caso. Robert Alexy compreende que a solução de conflito entre princípios é diferente daqueles que envolvem regras. Nestas, uma é válida e outra não; é a regra do "tudo ou nada" de Dworkin. Em relação aos princípios, isso não ocorre.

Conflito de princípios resolve-se pela ponderação, avaliando o peso de cada um na situação concreta, dando-se preponderância a um deles, com concessões recíprocas, sem se afastar completamente a aplicação de qualquer deles.


2 – A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais

Tratando da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, ao mencionar a decisão proferida no caso Lüth, na Alemanha, esclarece Ingo Wolfgang Sarlet:

"(...) os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Pérez Luño, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos clássicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol praticamente desde sua primeira judicatura" (SARLET, 2006, p. 167).

Observa-se, portanto, que os direitos fundamentais não se restringem a garantir ao indivíduo a abstenção do Estado no que se refere à sua liberdade. Seus efeitos são mais amplos, norteando toda a interpretação do ordenamento jurídico.

Acerca do mesmo tema, mas usando nomenclatura diferente — dimensão objetiva em vez de perspectiva objetiva — Daniel Sarmento ensina:

"A dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política, constituindo, como afirmou Konrad Hesse, ‘as bases da ordem jurídica da coletividade’. Nesta linha, quando se afirma a existência desta dimensão objetiva pretende-se, como registrou Vieira de Andrade ‘fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a prosseguir" (SARMENTO, 2004, p. 134).

Essa concepção induz à irradiação dos direitos fundamentais a todo o ordenamento jurídico, deixando de se confinar ao campo das prestações puramente negativas do Estado. Nessa perspectiva, a proteção dos direitos humanos passa a ser encarada como dever de toda a sociedade, não apenas do Estado.

Dessarte, mesmo os direitos fundamentais cujo exercício pleno dependa de regulamentação infraconstitucional surtirão efeitos de fato. A perspectiva objetiva tem o condão de revogar os dispositivos legais que afrontem os direitos fundamentais. E mais: norteiam a interpretação e integração do ordenamento jurídico e determinam o caminho que deve ser seguido pelo legislador ordinário.

Nesse aspecto, como já se destacou alhures, os princípios são os comandos que permitem essa abertura constitucional ao mundo dos valores, norteando-a pela eticidade.

Na dimensão objetiva, identifica-se a eficácia irradiante dos valores fundamentais e a teoria dos deveres de proteção por parte do Estado.

Em suas lições, Ingo Wolfgang Sarlet trata da concepção da eficácia irradiante dos direitos fundamentais, in verbis:

"Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada - ainda que com restrições - como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição. Associada a este efeito irradiante dos direitos fundamentais, encontra-se a problemática da sua eficácia na esfera privada, também abordada sob a denominação de eficácia horizontal, ou Drittwirkung, se preferirmos a expressão paradigmática oriunda da doutrina alemã. Na medida em que este tema será objeto de análise mais detida quando tratarmos da eficácia vinculante dos direitos fundamentais, cumpre-nos assinalar, por ora, apenas a circunstância - diga-se, de passagem, ela própria já sujeita a controvérsias - de que a idéia de os direitos fundamentais irradiarem efeitos também nas relações privadas e não constituírem apenas direitos oponíveis aos poderes públicos vem sendo considerada um dos mais relevantes desdobramentos da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais" (SARLET, 2006, pp. 172-173).

Assim, os valores que emanam dos direitos fundamentais permeiam todo o ordenamento jurídico, impondo interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais conforme tais valores. Ademais, impõe não apenas ao Poder Judiciário a observância de uma interpretação adequada, mas norteiam a atividade do legislador. Realmente, este está vinculado àquelas normas, devendo legislar para permitir-lhes a máxima efetividade e sem contrariá-las.

A propósito, ensina a doutrina:

"A eficácia irradiante tem na interpretação conforme à Constituição um dos seus mais férteis instrumentos. Esta técnica, segundo a doutrina mais autorizada, desempenha concomitantemente os papéis de princípio hermenêutico e mecanismo de controle de constitucionalidade. Como princípio hermenêutico, ela impõe ao operador do direito que, diante da ambigüidade de determinada disposição legal, opte pela exegese que torne esta norma compatível com a Constituição, mesmo que não seja a resultante da exegese mais óbvia do preceito. Com isso, ela permite que, por um lado, se mantenha a norma jurídica no ordenamento, em reverência à presunção de constitucionalidade das leis haurida da legitimidade democrática do legislador, mas que, por outro, se elimine a sua potencial desarmonia com o texto magno. E, como mecanismo do controle de constitucionalidade, a interpretação conforme à Constituição - hoje expressamente prevista em lei (art. 28, Parágrafo único, da Lei 9.868/99) - possibilita que o Supremo Tribunal Federal, na fiscalização abstrata dos atos normativos, elimine, por contrariedade à Lei Maior, possibilidades exegéticas de determinada norma, sem redução do seu texto. Sem embargo, não se trata de um recurso acessível apenas ao STF no controle abstrato de constitucionalidade. Pelo contrário, cada juiz e operador do direito, nos casos concretos com que se defrontarem, têm a obrigação de interpretar as normas jurídicas do modo mais consentâneo com a Lei Fundamental" (SARMENTO, 2004, p. 155).

Portanto, a legislação nacional expressamente reconhece a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, consagrando a fórmula da interpretação conforme à Constituição.

Outra fonte de manifestação da eficácia irradiante dos direitos fundamentais refere-se às cláusulas gerais e aos conceitos jurídicos indeterminados. A respeito das cláusulas gerais, discorre-se na doutrina:

"As cláusulas gerais, mais do que um ‘caso’ da teoria do direito --- pois revolucionam a tradicional teoria das fontes (11) --- constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo" (COSTA, 2000).

Assim, exercem importante função a dignidade da pessoa humana, boa-fé, função social do contrato, bons costumes etc. Estes conceitos abrem ampla margem para o intérprete preenchê-los com os valores vigentes na sociedade em que vive, tornando a lei maleável, adaptável às mudanças de tempo e de lugar.

O outro aspecto de destaque no que se refere à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais é a teoria dos deveres estatais de proteção. Acerca do tema, ensina a doutrina:

"Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado, por sua vez agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, diz com o reconhecimento de deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros Estados. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais. No âmbito da doutrina germânica, a existência de deveres de proteção encontra-se associada principalmente - mas não exclusivamente - aos direitos fundamentais à vida e à integridade física (saúde), tendo sido desenvolvidos com base no art. 2°, inc. II, da Lei Fundamental, além da previsão expressa encontrada em outros dispositivos. Se passarmos os olhos pelo catálogo dos direitos fundamentais de nossa Constituição, será possível encontrarmos também alguns exemplos que poderiam, em princípio, enquadrar-se nesta categoria" (SARLET, 2006, p. 174).

Nessa acepção, ao Estado não incumbe apenas a abstenção (não lesar os direitos fundamentais), mas também o dever de agir, impedindo que terceiros agridam os direitos fundamentais do ser humano. "Este dever de proteção envolve a atividade legislativa, administrativa e jurisdicional do Estado, que devem guiar-se para a promoção dos direitos da pessoa humana" (SARMENTO, 2004, pp. 160-161).

Por fim, na lição de Ingo W. Sarlet, há outro desdobramento da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, in verbis:

Por derradeiro, não poderíamos deixar de mencionar - como último importante desdobramento da perspectiva objetiva - a função outorgada aos direitos fundamentais sob o aspecto de parâmetros para a criação e constituição de organizações (ou instituições) estatais e para o procedimento. Neste sentido, sustenta-se que com base no conteúdo das normas de direitos fundamentais é possível se extrair conseqüências para a aplicação e interpretação das normas procedimentais, mas também para uma formatação do direito organizacional e procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos fundamentais, de modo a se evitarem os riscos de uma redução do significado do conteúdo material deles. Neste contexto, há que considerar a íntima vinculação entre direitos fundamentais, organização e procedimento, no sentido de que os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento (no mínimo, sofrem uma influência da parte destes), mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e as estruturas organizacionais.

Tendo em vista que os deveres de proteção do Estado podem, por vezes, concretizar-se por meio de normas dispondo sobre o procedimento administrativo ou judicial, bem como pela da criação de órgãos, constata-se, desde já, a conexão que pode existir entre estas duas facetas da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais. Para além desta constatação, foi feita oportuna referência na doutrina para a necessidade de um procedimento ordenado e justo para a efetivação ou garantia eficaz dos direitos fundamentais. Por fim, agregada à perspectiva subjetiva e à teoria dos direitos a prestações, esta concepção levou ao reconhecimento de direitos subjetivos fundamentais à proteção mediante a organização e o procedimento (...)" (SARLET, 2006, p. 175)(grifou-se).

Depreende-se, portanto, que as normas de procedimento podem ser aliadas na efetiva observância dos direitos fundamentais, como aquelas que determinassem a instauração de processo que observasse o contraditório e ampla defesa na aplicação de sanções disciplinares pelo empregador, tema explorado a seguir.


3 – Direitos fundamentais e poder disciplinar

3.1 – Poderes do empregador

A Consolidação das Leis do Trabalho traz em seu art. 2°, caput, a definição de empregador, in verbis:

"Art. 2°. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal dos serviços."

Partindo do dispositivo transcrito acima, verifica-se que o desempenho da direção da atividade econômica pelo empregador depende do exercício de certas prerrogativas. Acerca do tema, leciona Maurício Godinho Delgado:

"Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços" (DELGADO, 2005, p. 628).

Os poderes do empregador se dividem em poder diretivo, poder regulamentar, poder fiscalizatório e poder disciplinar.

O poder disciplinar envolve o direito do empregador de aplicar sanções ao empregado motivado pelo descumprimento das obrigações pactuadas.

Em que se funda o poder disciplinar? Três correntes buscam expor os fundamentos do poder disciplinar, segundo a doutrina.

A primeira delas é a posição negativista, que:

"... contesta a possibilidade de se encontrar fundamentação jurídica para o poder disciplinar. Noutras palavras, seria inviável aferir-se validade legal a um poder efetivamente disciplinar no contexto da relação de emprego. Funda-se essa posição principalmente no argumento de que o poder de punir constituiria prerrogativa estatal, o que tornaria inconcebível o acatamento de tal prerrogativa no universo das relações privadas" (DELGADO, 2005, p. 660).

Em contrapartida, a teoria autonomista vislumbra

"... nesse poder tamanha concentração de institutos e particularidades que seria hábil a dar origem até mesmo a um ramo próprio e distintivo do Direito. Em vez de negar validade ao poder disciplinar (como a vertente anterior), exacerba e extrema sua validade, estruturação e abrangência, enxergando em torno do fenômeno do poder disciplinar um verdadeiro Direito Disciplinar do Trabalho" (DELGADO, 2005, p. 661).

Entretanto, a corrente que prevalece é a intermediária, pois

"Em meio às duas posições polarizantes, firmou-se a compreensão do poder disciplinar como segmento fático-jurídico reconhecido pelo Direito, dotado de grande importância, inclusive, sendo, desse modo, lícito; porém, ao mesmo tempo, trata-se de segmento absolutamente subordinado às regras, princípios e institutos centrais dominantes do conjunto do Direito do Trabalho, o que lhe suprime qualquer traço de autonomia" (DELGADO, 2005, p. 662).

Dessarte, o poder disciplinar é acobertado pelo manto da licitude, a par de ser subordinado ao Direito do Trabalho, mas não só a esse ramo jurídico, como se verá adiante.

A aplicação de penalidades disciplinares, segundo a corrente doutrina, deve preencher certos requisitos para que se considere válida. Esses requisitos são de ordem objetiva, subjetiva e circunstancial.

Os requisitos de ordem objetiva compreendem a tipicidade da conduta e a gravidade do ato do empregado. No Brasil, deve-se aplicar punição apenas para condutas tipificadas por lei, observando-se o mesmo princípio do direito penal, nullum crimen, nulla poena sine praevia lege (não há crime nem pena sem lei anterior que os defina).

A gravidade da conduta delimita qual a penalidade deve ser aplicada, visto que esta deve ser proporcional à falta.

Por sua vez, os requisitos subjetivos concernem à autoria e à culpa, em sentido amplo.

Só se pode cogitar de aplicação de penalidade caso se saiba, de antemão, o autor do ato faltoso. No que concerne à culpa, o empregado deve ter praticado o ato com a intenção ou, pelo menos, ter sido negligente, agido com imperícia ou imprudência. Tudo isso só pode ser constatado com a análise do caso concreto.

Em contrapartida, os requisitos circunstanciais relacionam-se a:

"(...) nexo causal entre a falta e a penalidade; adequação entre a falta e a pena aplicada; proporcional idade entre elas; imediaticidade da punição; ausência de perdão tácito; singularidade da punição (non bis in idem); inalteração da punição; ausência de discriminação; caráter pedagógico do exercício do poder disciplinar, com a correspondente gradação de penalidades" (DELGADO, 2005, p. 673).

3.2 – Eficácia direta do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa e a aplicação de penalidades pelo empregador

A aplicação de penalidades, emanadas do poder disciplinar, ainda hoje é encarada com certo ar de poder absoluto. Efetivamente, o empregador encarna o poder de apontar a falta e de julgá-la, sem, na maioria dos casos, sequer permitir um esboço de defesa ao empregado.

Essa prática é a corriqueira, e assim o é devido ao fato de se admitir no Brasil a dispensa sem justa causa, o que afasta possibilidade de defesa, vez que ao alvedrio do empregador o trabalhador pode ser dispensado, desde que paga a indenização devida.

Entretanto, hodiernamente, tem-se entendido que a garantia constitucional à ampla defesa e ao contraditório não se limita a salvaguardar o indivíduo contra o Estado, mas também a resguardá-lo de outros particulares. Sem dúvida, o Estado não é mais o único centro poderoso que oprime o cidadão. Certos atores privados, como as multinacionais, possuem economias maiores do que a de muitos Estados e fazem valer seu poder sobre indivíduos de diversos países.

A propósito, lição de Daniel Sarmento é bastante elucidativa:

"Desnecessário frisar que, no caso brasileiro, diante da nossa gritante desigualdade social, esta questão assume um relevo ímpar. Aqui, a enorme vulnerabilidade de amplos setores da população justifica, com sobras de razão, um reforço à proteção dos seus direitos fundamentais, no âmbito das relações travadas com outros particulares mais poderosos, como os empregadores e os fornecedores de bens e serviços. É por isso também que em certos domínios normativos, como o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor, que têm como premissa a desigualdade fática entre as partes, a vinculação aos direitos fundamentais deve mostrar-se especialmente enérgica, enquanto a argumentação ligada à autonomia da vontade dos contratantes assume um peso inferior" (SARMENTO, 2004, p. 305).

Cumpre, então, trazer à baila a definição de ampla defesa e de contraditório. Para isso, faz-se uso das lições de Alexandre de Moraes (2005), in verbis:

"Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor. Salienta Nelson Nery Júnior que

‘o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório’ "(MORAES, 2005, p. 93).

A despeito das considerações transcritas acima ainda se restringirem ao contraditório e à ampla defesa como garantias frente ao Estado, essa concepção tem mudado com o tempo e até mesmo a jurisprudência tem admitido sua aplicação em relação aos particulares.

Em casos envolvendo particulares, o Supremo Tribunal Federal, mais de uma vez, já deixou claro sua tendência em admitir a eficácia direta do direito fundamental do contraditório e da ampla defesa. A ementa do Recurso Extraordinário n° 158215-4/RS, relator Ministro Marco Aurélio, deixa-se bem evidente tal assertiva, in verbis:

"DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora se torne necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais.

COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa."

Em seu voto, consignou o Relator:

"Exsurge, na espécie, a alegada contrariedade ao inciso LV do rol das garantias constitucionais. Conforme ressaltado pela Procuradoria Geral da República, os Recorrentes foram excluídos do quadro de associados da Cooperativa em caráter punitivo, tal como depreende-se do acórdão atacado (folhas 245 a 249). O Colegiado de origem acabou por mitigar a garantia da ampla defesa, levando em conta o desafio lançado pelos Recorrentes no sentido de serem julgados pela Assembléia da Cooperativa. A exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. Mais do que nunca, diante do clima reinante, incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-Ias sumariamente do quadro de associados. Uma coisa é a viabilização da defesa e o silêncio pela parte interessada, algo diverso é o atropelo das normas próprias à espécie, julgando-se o processo sem a abertura de prazo para produção da defesa e feitura de prova. Na esteira do pronunciamento da Procuradoria Geral da República, tenho que o recurso extraordinário interposto está a merecer conhecimento e provimento. Provejo-o para, reformando o acórdão de folhas 246 a 249, julgar procedente o pedido formulado na demanda anulatória. Fulmino o ato da assembléia da Recorrida que implicou a exclusão dos Recorrentes do respectivo quadro social, reintegrando-os, assim, com os consectários pertinentes e que estão previstos no Estatuto da Recorrida" (grifou-se).

Malgrado o caso citado não se refira expressamente à relação empregado-empregador, é plenamente razoável entender que a ampla defesa e o contraditório também se aplicam na hipótese de imposição de sanções disciplinares.

É dispensável que o regulamento da empresa preveja a necessidade de oportunidade de defesa para o empregado. É do texto constitucional que se extrai a observância obrigatória do contraditório e da ampla defesa.

De fato, o que justifica o empregador aplicar uma penalidade sumariamente? Isso é compatível com os fundamentos da República Federativa do Brasil, que tem como um de seus pilares a valorização do trabalho. Valoriza-se o trabalho ao se permitir a aplicação de sanções sem a observância dos preceitos constitucionais? Como fica a dignidade da pessoa humana, se o empregado é despojado de sua fonte de subsistência sem qualquer meio de defesa?

Na lição de Maurício Godinho Delgado,

"O princípio da dignidade da pessoa humana traduz a idéia de que o valor central das sociedades, do Direito e do Estado contemporâneos é a pessoa humana, em sua singeleza, independentemente de seu status econômico, social ou intelectual. O princípio defende a centralidade da ordem juspolítica e social em torno do ser humano, subordinante dos demais princípios, regras, medidas e condutas práticas" (DELGADO, 2006, p. 661).

Por sua vez, ensina Geórgia Ribas:

"O princípio da dignidade da pessoa humana é o verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais, sendo que não pode este princípio ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas. Portanto, não pode ser desconsiderado nas relações de trabalho também" (RIBAS, 2006, p. 1095).

Dessa forma, não existe respeito à pessoa humana se sua fonte de renda lhe pode ser subtraída ao alvedrio de alguém apenas porque este assim o quis. Aliás, mesmo que não se trate de dispensa como punição, mas simples sanção que resulte em penalidade mais branda, ainda assim o empregado tem direito a apresentar sua defesa — podendo quedar-se inerte, se assim o desejar.

Com efeito, a democracia não deve apenas permear a atuação do cidadão perante o Estado (e vice-versa), mas também se estender para os campos mais restritos da vida, como a família e o trabalho. E como ensina Daniel Sarmento, "... a democracia exige inclusão social, não se resumindo à garantia dos direitos políticos e das liberdades públicas" (SARMENTO, 2004, p. 351).

De fato,

"... ao confinar o ideário democrático ao espaço das relações públicas entre governantes e governados, o pensamento hegemônico esterilizou, em boa parte, as virtualidades emancipatórias da democracia, legitimando, com seu silêncio, o autoritarismo exercido em outras esferas sociais, que podem ser tão ou mais opressivas do que a estatal. E esta restrição torna-se ainda mais perniciosa e injustificável num cenário em que se assiste ao fortalecimento de instâncias não estatais de poder, à montante e à jusante do Estado, num fenômeno que alguns já compararam com o feudalismo" (SARMENTO, 2004, p. 354).

Assim, não se pode assistir inerte à proclamação da democracia frente ao Estado e a desconsideração desse regime dentro das empresas. Essas organizações, cada vez mais, têm aumentado seu poder, oprimindo cada vez mais os hipossuficientes.

Dessarte, como decorrência da consagração da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho, observa-se que ao empregado deve se dar oportunidade de defesa quando se tratar da aplicação de sanção disciplinar, ainda que seja para aplicar uma pena branda, e, como mais razão, quando se tratar de dispensa do obreiro.

Conclui que a aplicação de penalidades deve seguir um processo singelo, no âmbito da empresa, mas sem olvidar a manifestação do empregado quanto à penalidade a ser aplicada.


Conclusão

No presente estudo científico, destacou-se que, tradicionalmente, os direitos fundamentais eram vistos com oponíveis apenas contra o Estado. Entretanto, hodiernamente, fruto do pensamento germânico (Drittwirkung), tem-se entendido que os direitos fundamentais também vinculam os particulares entre si e diretamente, sem necessidade de intermediação de lei (desde que previstos na Constituição): é a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Destarte, enfatizou-se que essa avançada concepção entende que os particulares também devem respeitar os direitos fundamentais uns dos outros, não apenas o Estado. Nesta perspectiva, vislumbra-se a aplicação da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao empregado sujeito à aplicação de penalidades disciplinares.

Com efeito, a dignidade da pessoa humana, um dos substratos da República Federativa do Brasil, constitui um legítimo repúdio à aplicação de penalidade sem a garantia de defesa para o acusado. É flagrante a humilhação e o desapreço pela pessoa humana na aplicação sumária de penas. Restringir o direito de defesa apenas ao processo penal ou somente a este, aos processos judiciais em geral e ao processo administrativo é negar ao empregado, já subordinado juridicamente (e economicamente mais fraco, em regra), o direito de se escusar perante uma acusação injusta.

Evidenciou-se que, a par disso, é a negação à eficácia do direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa nas relações privadas. É marchar contra a evolução do direito, que visa, hoje mais do que nunca, a equilibrar as gritantes desigualdades sociais.

Inferiu-se que não há fundamento para o empregador, ao seu alvedrio, impor uma sanção ao empregado, sem qualquer oportunidade de defesa. Não se nega o direito do empregador de dirigir a prestação pessoal dos serviços e exercer os poderes daí inerentes, mas se defende a limitação a esses poderes, buscando-se evitar o abuso de direito.

Em suma, a aplicação de penalidade deve obedecer a certos requisitos de ordem objetiva, subjetiva e circunstancial, segundo a doutrina. A oportunidade de defesa ao empregado configura-se apenas mais um requisito de ordem objetiva, compatível com a Constituição Federal.

Entende-se, em sede de conclusão, que se o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o membro de uma cooperativa tem o direito de defesa em caso dos demais pretenderem a sua exclusão, há que se avançar mais, conferindo-se máxima eficácia à Constituição e permitindo que o empregado possa exercer o direito de defesa.

Portanto, somente uma visão deveras conservadora, alheia à realidade social — em que cada vez mais o poder do Estado se esmaece e aumenta o poder dos atores privados — e comprometida em perpetuar a injustiça e miséria reinantes pode pretender justificar o injustificável, limitando os direitos fundamentais às relações entre indivíduos e Estado.

Numa apreciação final, após reflexão sobre esta pesquisa científica, como manifestação de respeito à dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho, sem ferir a livre iniciativa (que não pode ser encarada de forma absoluta), depreendeu-se que ao empregado deve ser conferido o direito de defesa quando se tratar da aplicação de sanção disciplinar, ainda que seja para impor uma pena branda, e, com mais razão, quando se tratar de dispensa do obreiro.


Notas

(1)Essa assertiva é corroborada por estudo, 1996 Policy Studies Report, que aponta que das 100 maiores economias do mundo, só 49 eram Estados, enquanto 51 eram empresas multinacionais. Isso há cerca de 10 anos. A tendência é que a vantagem das empresas multinacionais tenha aumentado nos últimos anos! Cf. SARMENTO, Daniel, op. cit., p. 53.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Marcos Duanne Barbosa de. Do direito ao contraditório e à ampla defesa na aplicação de penalidades na relação de emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1364, 27 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9656. Acesso em: 19 abr. 2024.