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Consequências da pré-morte da herdeira testamentária

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10/03/2011 às 15:36
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6. Conceito de legítima e sua intangibilidade na sucessão testamentária

A essa altura do parecer não tenho dúvida em afirmar que a sucessão testamentária, diante da existência de herdeiros necessários (ou legítimos), é regida, dentre outros, pelo princípio da intangibilidade da legítima. Isso decorre da simples análise gramatical dos arts. 1.784 [09], 1.789 [10], 1.846 [11] e 1.857, § 1º [12], todos do Código Civil, com final coroamento pela disposição prevista no art. 5º, inc. XXX [13], da Constituição da República. E isso é assim por uma opção histórica do Direito dos povos ocidentais, que prevendo a intangibilidade da legítima dos herdeiros necessários garante que o patrimônio da pessoa física permaneça com sua família após sua morte. Portanto, mesmo que a pessoa natural faleça ab intestato [14], seu patrimônio será repartido entre seus herdeiros necessários por força da lei, através da sucessão legítima.

O conceito do que deve ser entendido por legítima, bem como a fórmula para que seja calculada sua totalidade, nos é claramente fornecido pelo Código Civil.

Logo após afirmar que os herdeiros necessários são os descendentes, o ascendente e o cônjuge, o Código Civil é claro no sentido de que "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima" (CC, art. 1.846). Após conceituar o que vem a ser a legítima – frisa-se: "a METADE dos bens que compõe a herança" –, o Código Civil nos dá os parâmetros para quantificá-la, sendo expresso que "Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dividias e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação" (CC, art. 1.847).

Da análise dos arts. 1.846 e 1.847, conclui-se que a legítima é formada por METADE dos bens da herança e que sempre pertencerá e será repartida entre herdeiros necessários. Seu cálculo é feito a partir do abatimento, de todo o acervo hereditário, das dívidas deixadas pelo falecido e das despesas com seu funeral, adicionando-se em seguida o valor dos bens sujeitos a colação, que são os bens que foram doados em vida pelo autor da herança a algum de seus descendentes (CC, art. 2.002).

Portanto, após os respectivos abatimentos chegar-se-á à apuração da legítima pertencente aos herdeiros necessários, que nada mais é do que a METADE de todo o acervo hereditário! É somente sobre a outra METADE, caso o falecido tenha deixado testamento, que será possível ato de última vontade referente à disposição dos bens, é essa outra METADE que se chama parte disponível.

Ou seja, sob a perspectiva do direito das sucessões, o patrimônio da pessoa física é composto por duas partes: a legítima e a parte disponível.

Caso a respectiva pessoa queira direcionar parte de seus bens para após a sua morte, poderá fazê-lo através de disposição de última vontade representada pelo testamento. Nesse caso, poderá instituir como herdeiro(s) testamentário(s) quem melhor lhe convier, como por exemplo, um amigo, um primo, um filho que sempre lhe esteve mais próximo ou um mais necessitado, um irmão, uma instituição filantrópica etc. Para ser instituído como herdeiro testamentário, e conseqüentemente fazer jus ao respectivo quinhão, basta que beneficiário tenha capacidade testamentária passiva quando da abertura da sucessão. Vale dizer, os bens deixados por testamento estão circunscritos na parte disponível, que como já foi afirmado é uma das METADES do patrimônio da pessoa física.

O testador jamais poderá dispor sobre a outra METADE, já que compõe a legítima dos herdeiros necessários. Só não se fala em legítima, a aí poderá o testador dispor da totalidade de seus bens, na hipótese de não haver herdeiros necessários, do contrário a legítima a eles pertence de pleno direito.


7. A chamada capacidade testamentária passiva: enfoque à luz do caso examinado

Grosso modo, ter capacidade testamentária passiva significa a possibilidade de ser instituído como herdeiro testamentário e, conseqüentemente, adquirir por testamento. Exemplo clássico de quem NÃO tem capacidade testamentária passiva é a pessoa que figurou como "testemunha do testamento" (CC, art. 1.801, II).

De qualquer forma, só estão legitimadas a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, e também, no caso da sucessão testamentária, as pessoas jurídicas (CC, art. 1.798; 1.799, II e III). Ou seja, antes de qualquer outra análise quanto à capacidade testamentária passiva é preciso saber se o herdeiro testamentário é pessoa.

Enfoquemos a situação à luz das circunstâncias do caso que está sendo examinado, tendo em vista a pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L.

O tema da capacidade testamentária passiva, não tenho dúvida, é um aspecto específico da capacidade jurídica das pessoas para os atos e negócios da vida civil. Não é por outra razão que o Código Civil brasileiro, logo em seu art. 1º, afirma que "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil".

A capacidade jurídica, por sua vez, é fator a ser analisado em conjunto com a aquilo que o Direito conhece por personalidade jurídica ou, nos termos do Código Civil, personalidade civil. Numa conceituação doutrinária geralmente aceita, a personalidade jurídica é a aptidão que o Direito confere à pessoa natural ou jurídica para se tornar titular de direitos e deveres, sendo que os limites dessa aptidão são traçados pela capacidade jurídica. Personalidade e capacidade, embora ligadas juridicamente, são coisas distintas: a personalidade é a aptidão para exercer direitos; a capacidade é o limite do exercício daquela aptidão.

Em se tratando de pessoa natural (pessoa física), o início da personalidade jurídica começa do nascimento com vida [15] (CC, art. 2º) [16]. Mas vem a pergunta: - até qual momento permanece a personalidade jurídica da pessoa humana? Vale dizer, até quando a pessoa natural é capaz de adquirir direitos e assumir obrigações? A resposta é contundente e nos é dada pelo próprio Código Civil: "A existência da pessoa natural termina com a morte" (CC, art. 6º).

Portanto, a personalidade jurídica, que confere a capacidade jurídica à pessoa natural, termina com a morte. A morte, em miúdos, é o termo final da personalidade jurídica iniciada a partir do nascimento com vida. Com o falecimento, a pessoa natural (ou física) não é mais pessoa, não tem mais personalidade jurídica, nem tampouco é dotada de capacidade jurídica. Isso não quer dizer que a memória do morto e o respeito que lhe deve ser tributado mesmo após a morte, não sejam tutelados pelo Direito, em absoluto. Tanto é assim que o próprio Código Civil garante a tutela dos chamados direitos da personalidade do morto, o que poderá ser feito, em juízo ou não, pelo cônjuge supérstite, por qualquer parente em linha reta ou mesmo por colateral até o quarto grau (CC, art. 12, parágrafo único).

No caso examinado, muito embora a herdeira S.R.O.N.L. tivesse plena capacidade testamentária passiva quando da elaboração do testamento, hoje, em razão de seu falecimento, já não a tem mais, e isso por uma razão bem simples: a morte faz terminar a existência da pessoa natural, e se a pessoa não mais existe, não há que se falar em personalidade jurídica, nem em capacidade jurídica, nem tampouco em capacidade testamentária passiva.

É pressuposto fundamental básico da capacidade testamentária passiva da pessoa natural a personalidade jurídica. Vale dizer, só adquiri por testamento o herdeiro testamentário que estiver vivo – que tenha personalidade jurídica, portanto – quando da abertura da sucessão. A pré-morte de S.R.O.N.L. retirou-lhe, por completo, a capacidade testamentária passiva. Ou seja, "a capacidade passiva de adquirir por testamento tem como regra fundamental a existência do legatário, ou herdeiro, na ocasião do falecimento do testador", conforme já decidiu o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira em acórdão relatado no Superior Tribunal de Justiça. [17]

Quanto às filhas de S.R.O.N.L., e caso não seja revogado o testamento sob exame, é importante notar que elas NÃO receberão o quinhão disposto na cédula testamentária da herdeira pré-morta. A lógica é esta: os herdeiros do herdeiro testamentário pré-morto não adquirem o quinhão testamentário de seu ascendente, já que na sucessão testamentária não existe direito de representação, o que só ocorre na sucessão legítima (CC, art. 1.851 a 1.856).

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8. Ineficácia total ou parcial do testamento: nulidade, anulabilidade, revogação, rompimento, caducidade

Há hipóteses em que o testamento perderá, total ou parcialmente, sua eficácia.

Isso é assim porque as disposições legais sobre testamento são clausuladas numa necessária rigidez. Essa sistemática se justifica pela simples razão de que após sua morte, obviamente o testador não mais estará presente para elucidar ou esclarecer as intenções contidas nas suas declarações de última vontade. Esse sistema rígido imposto pelo Direito ao funcionamento da sucessão testamentária tende a preservar as disposições pós-morte tal como foram lançadas pelo testador. Havendo dúvidas ou irregularidades, ter-se-á a ineficácia total ou parcial de testamento e aí então o repartimento dos bens será feito com base nas regras da sucessão legítima.

As hipóteses que poderão afetar a eficácia do testamento são: nulidade, anulabilidade, revogação, rompimento, caducidade. Vejamos cada uma delas.

Nulidade. A nulidade do ato ou negócio jurídico implica na própria invalidade, ab initio, de determinado ajuste que se pretenda tenha juridicidade. O sistema jurídico prescreve certas regras que devem ser obedecidas para que a declaração de vontade possa gerar os efeitos garantidos pelo Direito. Violadas ou não observadas essas regras, de nada valerá aquilo que se celebrou. São regras firmes, impositivas, cujo desrespeito fará com que o pretendido ajuste jurídico seja um verdadeiro natimorto sob a perspectiva do Direito.

Nas relações jurídicas inter vivos, por pior que seja o defeito a gerar a nulidade do ato ou negócio jurídico, sempre será possível o concerto da falha, bastando que os sujeitos interessados na avença tornem a ajustar, nos termos da lei, as manifestações de vontade que pretendam tenha validade jurídica.

No tocante à elaboração do testamento e às respectivas disposições testamentárias, a inobservância de certas às regras rígidas fará com que as disposições de última vontade sejam totalmente ineficazes. A finalidade não é outra senão preservar aquilo e exatamente aquilo que pretendeu o testador.

Anulabilidade. Os defeitos jurídicos que consubstanciam a anulabilidade, muito embora sejam graves e não impliquem na invalidade daquilo que se ajustou, são passíveis de serem convalidados e de permitir a preservação daquilo que se avençou. A convalidação do ato ou negócio jurídico anulável poderá ser feita através da iniciativa do próprio declarante da vontade, ou até mesmo pelo decurso do tempo, já que nessas hipóteses a lei confere ao interessado um prazo para que ingresse em juízo para pleitear a declaração da anulabilidade, o que afinal fará com que o reconhecimento da anulabilidade torne sem efeito determinado ajuste de vontade, tendo em vista o defeito jurídico detectado.

Exemplo de anulabilidade em matéria de testamento pode ser extraído do art. 1.909 do Código Civil: "São anuláveis as disposições testamentárias inquinadas de erro, dolo ou coação. Parágrafo único: Extingue-se em 4 (quatro) anos o direito de anular a disposição, contados de quando o interessado tiver conhecimento do vício".

Revogação. Revogar significa tornar sem efeito, por vontade própria, aquilo que até então era válido. É um ato expresso e inequívoco do sujeito que tenha a possibilidade fazê-lo, ou seja, de provocar a revogação.

No tocante ao testamento, a revogação é um ato personalíssimo do testador que poderá, desde que o faça através das mesmas formalidades em que testou, tornar ineficaz – revogar, portanto– todo o testamento ou algumas de suas disposições.

No testamento que ora se examina, observa-se que a última das disposições da testadora foi no sentido de REVOGAR expressa e totalmente o testamento anterior que havia sido lavrado em 14 de novembro de 1.973. A revogação, como já dito, é um ato personalíssimo, e por isso somente quem "fez" é que poderá revogar aquilo que "fez", tal como foi feito pela testadora ao expressamente revogar o testamento anterior.

Rompimento. O rompimento é uma causa de ineficácia específica da figura jurídica do testamento. Exatamente porque a legítima do(s) herdeiro(s) necessário(s) é legalmente preservada, o Código Civil declara que caso o testador venha a ter descendentes sucessíveis (filhos, netos, etc.) que não tinha ou não os conhecia quando testou, o testamento será "rompido" em todas as suas disposições, caso esse descendente sobreviva ao testador. [18]

Também se considera rompido o testamento quando, no momento de sua elaboração, o testador ignorava que tinha outros herdeiros necessários, que nesse caso seriam seus ascendentes e/ou cônjuge. [19]

Grosso modo, deve ser entendido por rompimento a ineficácia do testamento gerada pela existência de herdeiro(s) necessário(s) de que o testador não tinha conhecimento no momento em que testou.

Caducidade. O fenômeno da caducidade como gerador da ineficácia total ou parcial do testamento é de particular interesse no caso examinado, já que é de caducidade que se trata uma das principais dúvidas que estão à base das indagações do consulente, e que diz respeito à cláusula que instituiu como herdeira testamentária a pré-falecida S.R.O.N.L.

Por caducidade deve ser entendido que alguma disposição testamentária, ou até mesmo todo o testamento, perdeu a eficácia pela ocorrência de um evento posterior ao momento da válida e regular declaração de última vontade firmada pelo testador. Vale dizer, tudo o que constou no testamento, no momento de sua elaboração, era plenamente eficaz; porém, em razão de um evento posterior, aquilo que foi estabelecido pelo testador perdeu total ou parcialmente a eficácia. Em miúdos: em matéria de testamento, a caducidade implica na posterior ineficácia daquilo que na sua origem era plenamente eficaz!

É exatamente a caducidade que fulmina de ineficácia a disposição testamentária que contempla S.R.O.N.L., que como já se sabe pré-morreu à testadora.

Tudo o que consta no testamento público que nos foi apresentado pelo consulente – e que obviamente diz respeito apenas à parte disponível da testadora – é plenamente válido e eficaz, já que inconteste a capacidade testamentária ativa [20] de M.F.R.O. Por outro lado, tendo em vista a pré-morte de S.R.O.N.L., a disposição testamentária que a contemplou tornou-se totalmente ineficaz, ou seja, foi atingida pela caducidade.

8.1 Conclusão parcial: possibilidade de prevalência das disposições testamentárias hígidas

Não sendo qualquer das hipóteses em que os defeitos jurídicos tornam absolutamente ineficazes todas as disposições testamentárias, então será plenamente possível a prevalência do testamento quanto às disposições que não foram afetadas. É possível, portanto, a prevalência das disposições testamentárias hígidas!

À luz das circunstâncias do caso examinado, observa-se que o testamento deixado por M.F.R.O. permanece parcialmente eficaz. A eficácia só não é total em razão da pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L. Esse fato – morte do herdeiro antes do testador – faz com que a respectiva cláusula testamentária tenha caducado, já que a existência do beneficiado é o "pressuposto essencial e primeiro da capacidade para adquirir por testamento" [21], conforme já apreciado pela jurisprudência.

A caducidade de uma ou de algumas cláusulas testamentárias, desde que o defeito não recaia em todo o testamento, não faz com que as demais disposições percam eficácia. Ao contrário, o testamento permanecerá eficaz em relação às disposições não afetadas.

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Sobre o autor
Glauco Gumerato Ramos

Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Consequências da pré-morte da herdeira testamentária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2808, 10 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/18629. Acesso em: 19 abr. 2024.

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