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Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a cooperativa prestadora de serviços

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14/10/2008 às 00:00
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6. Excerto doutrinário trazido pela ré – comentários

            Habilmente, a contestante traz excerto doutrinário e precedentes jurisprudenciais que aparentemente resolvem a questão de modo diferente do que o até aqui proposto pelo Ministério Público.

            Da doutrina, traz o entendimento retratado em artigo escrito por Fátima Nancy Andrighi, atualmente ministra do Superior Tribunal de Justiça. Para a autora, "as relações jurídicas decorrentes do ato cooperativo não encontram guarida nas relações de consumo, porque o associado não é consumidor, mas sim um dos titulares da sociedade, com quotas de capital e direito a voto" (fl. 143).

            No entanto, olvida-se a Ceraçá de que a mesma Ministra Fátima Andrighi, certamente por conta de realidade semelhante à dos autos, no exercício da judicatura e, portanto, diante de caso concreto, decidiu pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à relação cooperativa. E justamente porque, como no caso aqui posto em julgamento, o cooperado apesar de teoricamente ter voto, na prática não tinha qualquer controle sobre o serviço prestado pela cooperativa.

            Trata-se, do Recurso Especial nº 436.815-DF, em que no voto condutor a Ministra Fátima Andrighi reconheceu a existência de relação de consumo entre associado e a cooperativa Poupex, que tem por objeto a aquisição de imóveis financiados pelo SFH.

            No caso, diante da natureza da Cooperativa, que como a Ceraçá é aberta ao público [vide Estatuto, art. 3º], decidiu a Terceira Turma do STJ que "o fato de o associado formar a pessoa jurídica associação não impede que também se caracterize como consumidor dos serviços prestados por esta". "Com efeito, nem mesmo o direito de voto do associado na Assembléia Geral retira a possibilidade de ser consumidor, uma vez que, em grandes associações, abertas ao público, como a que ora se examina, o fato de votar não dá ao associado qualquer controle sobre o serviço prestado pela associação". Na ementa fez a Ministra constar que "[...] a associação age na posição de fornecedora de serviços aos seus associados, então caracterizados como consumidores". [íntegra anexa].

            A Ministra Fátima Andrighi cita ainda dois precedentes do próprio STJ sobre o assunto, o REsp nº 254.467/SP e o REsp nº 267.530/SP. Do último deles, que trata de cooperativa de serviços de saúde, transcreve a Ministra a seguinte passagem: "O Centro é uma empresa que presta serviços de saúde, definida como operadora de serviço de assistência à saúde, e o seu associado é um consumidor desses serviços, pelos quais paga uma taxa mensal e o que mais vier a ser cobrado, na forma do contrato. Faz publicidade disso, como aparece no painel localizado ao lado do prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo, e deve, portanto, se comportar no mercado de acordo com as regras que garantem a leal concorrência".

            Como se observa, a mesma Ministra que doutrinariamente entende que em tese na relação entre associados e cooperativa não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, diante de casos concretos e análogos ao dos autos, em que o direito de voto pouco ou nada significa na gestão da cooperativa, mantém o entendimento do STJ de que é plenamente aplicável o Código de Defesa do Consumidor.


7. Jurisprudência trazida pela ré – comentários

            Em seguida, traz a Ceraçá trecho do voto de desempate do Ministro Jorge Scartezzini no Recurso Especial nº 93.291, julgado em maio de 2005, em que por maioria considerou-se que às cooperativas de crédito não se aplica o Código de Defesa do Consumidor.

            No entanto, tal precedente não resiste a exame mais aprofundado da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. É que a mesma Quarta Turma, inclusive com voto do mesmo Ministro Jorge Scartezzini, reformulou seu entendimento para, em 22 de agosto de 2006, declarar expressamente que as normas do Código de Defesa do Consumidor se aplicam sim às cooperativas de crédito. A ementa foi assim redigida:

            CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. CONTRATO. REVISÃO. ABERTURA DE CRÉDITO FIXO. COOPERATIVA DE CRÉDITO. APLICAÇÃO DO CDC. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO [03].

            Igual entendimento já vinha sendo adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça quanto às cooperativas habitacionais, que igualmente oferecem teoricamente direito a voto aos cooperados, direito que na prática não é exercido justamente pela falta de cooperativismo de fato. Eis a ementa do julgado:

            CIVIL E PROCESSUAL. COOPERATIVA HABITACIONAL. TERMO DE ADESÃO PARA COMPRA DE IMÓVEL. DESISTÊNCIA. AÇÃO PRETENDENDO O RESSARCIMENTO DAS IMPORTÂNCIAS PAGAS. RETENÇÃO SOBRE PARTE DAS PARCELAS DETERMINADA EM PERCENTUAL INFERIOR AO PREVISTO CONTRATUALMENTE. CLÁUSULA ABUSIVA. SITUAÇÃO PECULIAR. OBRA SEQUER INICIADA. DESPESAS ADMINISTRATIVAS IRRELEVANTES. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, ARTS. 51, II, 53 E 54. CÓDIGO CIVIL, ART. 924 [04].

            Tal entendimento está de acordo com o que vem adotando o Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Uniformemente, as Câmaras de Direito Civil vêm reconhecendo relação de consumo entre cooperado e cooperativa, quer por aplicação direta dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, quer por aplicação do art. 29, supracitado, do Código.

            CONTRATO - AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL C/C RESTITUIÇÃO DE PARCELAS PAGAS - COOPERATIVA - POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE OFÍCIO DE MULTA CONTRATUAL EXCESSIVA - ART. 924 DO CC DE 1916 - TERMO INICIAL DA RESTITUIÇÃO - TÉRMINO DAS OBRAS - CLÁUSULA QUE IMPÕE ÔNUS DESPROPORCIONAL AO DESISTENTE - ABUSIVIDADE VERIFICADA - APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - COOPERATIVA E COOPERADO QUE SE ENQUADRAM NOS CONCEITOS DE FORNECEDOR E CONSUMIDOR - APLICABILIDADE, ADEMAIS, AUTORIZADA PELO ART. 29 DO CDC - ANULAÇÃO DA CLÁUSULA - NOVO TERMO INICIAL DA DEVOLUÇÃO - TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA - DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU MANTIDA - APELO DESPROVIDO [05].

            Deste acórdão pode-se colher novamente o ensinamento do autor da revolucionária obra de Direito das Obrigações, publicada recentemente pela Editora Saraiva, o eminente Professor Fernando Noronha:

            "Ainda que visem atender necessidades dos cooperados (...) e não visem lucro (...), não é possível negar-lhes a qualidade de fornecedoras, quanto aos produtos que distribuam ou aos serviços que prestem aos cooperados; estes, quanto a tais produtos ou serviços, apresentam-se como clientes da cooperativa. Mesmo que o parágrafo único do art. 79 da Lei 5.764/71 estabeleça que ´o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria´, ele não deixa de ser um fornecimento de produto ou uma prestação de serviço, para efeito do disposto na lei especial de defesa do consumidor. Esse fornecimento só deixaria de estar sujeito ao Código de Defesa do Consumidor se o cooperado não pudesse ser considerado consumidor, nas relações com a própria cooperativa. [...]

            "A nosso ver, os cooperados devem ser considerados consumidores sempre que em relação a eles estiverem reunidos os dois requisitos, destinação final e vulnerabilidade, que caracterizam os consumidores em geral e que veremos melhor adiante. A condição de destinatários finais quanto ao bem ou ao serviço que é finalidade da cooperativa, eles sempre têm. E quanto não tiverem como influir nas deliberações dos órgão da administração, não vemos razão para se recusar reconhecer-lhes eventual situação de vulnerabilidade" [06].

            Outro importante precedente é encontrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. No caso, cooperativa habitacional defendia a inaplicabilidade das normas do Código de Defesa do Consumidor à sua relação com o cooperado, por conta das normas da Lei das Cooperativas (Lei nº 5.764/71). A decisão, como não poderia ser diferente, entendeu existente relação de consumo:

            À relação entre cooperativa habitacional e cooperado aplicam-se as normas do CDC, seja porque as partes contratantes se enquadram nos conceitos de consumidor e fornecedor, seja por força do disposto em seu art. 29. 

            Considerando que o princípio da autonomia da vontade não mais admite aplicação cega e absoluta, a anulação de cláusulas abusivas se afigura perfeitamente possível (mesmo na esfera do direito civil comum e, com maior ênfase, nas relações consumeristas, como é o caso) revelando-se, ademais, como importante instrumento assecuratório da efetiva igualdade entre as partes contratantes [07].

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            Especificamente no que tange às Cooperativas de Eletrificação Rural, como a ré Ceraçá, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem decidido aplicar-se o Código de Defesa do Consumidor.

            Em caso ocorrido na Comarca de Palhoça, determinado cooperado teve irregularmente suspenso o fornecimento de energia pela Cooperativa de Eletrificação Rural de Paulo Lopes, sob o argumento de furto de energia elétrica.

            Aplicando expressamente o Código de Defesa do Consumidor ao caso, a Primeira Câmara de Direito Civil condenou a Cooperativa ao pagamento de vinte salários mínimos de danos morais, em acórdão que teve a seguinte ementa:

            APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - CORTE INDEVIDO DE ENERGIA ELÉTRICA - DANOS MATERIAIS E MORAIS CARACTERIZADOS - RECURSO DESPROVIDO.

            O Código de Defesa do Consumidor, composto por normas de ordem pública, adota como regra o que no Código Civil é exceção: a responsabilidade objetiva, dispensando, assim, a comprovação da culpa para atribuir ao fornecedor a responsabilidade pelo dano, bastando a presença da ação ou omissão, do dano e do nexo causal entre ambos.

            Não há como subsistir a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos usuários, sob o fundamento de existirem débitos tarifários, eis que, assim agindo, estão as concessionárias com o único objetivo de constranger os devedores ao pagamento do débito.

                Cortar o fornecimento de energia elétrica, serviço essencial, sem que o consumidor tenha sido formalmente comunicado, constitui prática abusiva na cobrança do débito, interrompendo o fornecimento de serviço público primordial. O incômodo, o desgaste, enfim, o constrangimento de ver a energia elétrica ser cortada caracterizam o dano moral.

            APELAÇÃO CÍVEL - DANO MORAL - QUANTUM INDENIZATÓRIO - FIXAÇÃO DE ACORDO COM O PRUDENTE ARBÍTRIO DO MAGISTRADO - MAJORAÇÃO - POSSIBILIDADE - ADESIVO PROVIDO.

            A indenização por dano moral possui dupla função. A primeira é a reparadora ou compensatória, por intermédio da qual o julgador pretende reconstituir no patrimônio do lesado aquela parte que ficou desfalcada, procurando restabelecer o status quo anterior à ocorrência da lesão, devendo ser fixada, ainda que impossível a reconstituição da integridade psíquica e moral violada. A segunda é a chamada função punitiva, através da qual se objetiva castigar o causador do dano, como forma de atuar no ânimo do agente, impedindo que prossiga na sua conduta danosa.

            Atenta a essa realidade, a indenização deve considerar todas as circunstâncias envolvidas no evento, mantendo-se a proporcionalidade ao agravo sofrido (art. 5°, V, CRFB) [08].

            O que se observa, portanto, é que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e a do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de forma unânime, admitem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação jurídica mantida com a cooperativa, única forma de equacionar de forma justa questões como a dos autos.


8. Conclusões

            Espera-se ter ficado claro o seguinte:

            a) a Ceraçá não se pauta efetivamente pelo princípio democrático; suas deliberações mais importantes são tomadas pela diretoria, como o foram as que fixaram e reduziram as multas moratórias; nas assembléias gerais, demonstrando a impessoalidade da relação cooperativista, participam menos de dois por cento dos "associados";

            b) a relação entre a Ceraçá e os consumidores de energia elétrica é de consumo, porque se verifica concomitantemente a presença dos seguintes pressupostos: a) prestação remunerada de serviços; b) prestação de serviços no mercado de consumo; c) vulnerabilidade do cooperado; d) habitualidade e profissionalismos na prestação de serviços;

            c) ainda que não se tratasse de relação de consumo propriamente dita, por força da regra do art. 29 do Código de Defesa do Consumidor aplicar-se-iam as normas protetivas do CDC, porque os cooperados estiveram sujeitos à prática abusiva da Ceraçá, que cobrou multa moratória de 10% quando o correto seria 2%;

            d) o texto doutrinário trazido pela Ceraçá (Min. Fátima Andrighi) não resistiu ao exame de caso concreto realizado pela própria ministra, que no julgamento do REsp nº 436.815-DF entendeu por aplicável o Código de Defesa do Consumidor às cooperativas;

            e) a jurisprudência atual do STJ (não aquela antiga trazida pela contestante) e a jurisprudência do TJSC entendem aplicável o Código de Defesa do Consumidor às relações existentes entre cooperativas e cooperados, sendo emblemático, a este respeito, o julgamento da Apelação Cível nº 2002.015216-7.

            Diante destes argumentos, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina requer a total procedência do pedido formulado na inicial, excluída apenas a evidente prescrição.

            Modelo, 4 de setembro de 2007

            Eduardo Sens dos Santos

            Promotor de Justiça


Notas

  1. www.ceraca.com.br
  2. Apelação Cível nº 00.018579-5, de Blumenau, Des. Orli Rodrigues.
  3. Agravo Regimental nº 499.807/MG, rel. Min. Aldir Passarinho, j. 22 de agosto de 2006.
  4. REsp nº 403.189/DF, rel. Min. Aldir Passarinho, j. 26 de maio de 2003.
  5. Apelação cível n. 00.018579-5, de Blumenau. Relator: Des. Orli Rodrigues.
  6. NORONHA, Fernando. Direito do Consumidor: Contratos de Consumo, Cláusulas Abusivas e Responsabilidade do Fornecedor. Apostila utilizada nas aulas de Direito do Consumidor ministradas pelo professor.
  7. Apelação Cível nº 2001.013463-2, de Blumenau, relator Des. Jorge Schaefer Martins.
  8. Apelação Cível n. 2002.015216-7, de Palhoça. Relatora: Desª. Salete Silva Sommariva.
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Sobre o autor
Eduardo Sens dos Santos

Promotor de Justiça em Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Eduardo Sens. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a cooperativa prestadora de serviços. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1931, 14 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16868. Acesso em: 20 abr. 2024.

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