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O contrato de parceria em aplicativos de transporte urbano.

Análise dos pressupostos da relação de emprego e consumo

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12/04/2019 às 15:00
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4 – TRABALHO AUTÔNOMO / TRABALHO INTERMITENTE

Segundo BARROS (2006, p.221.), ao trabalho autônomo, falta o pressuposto da subordinação jurídica, portanto, está fora da égide da relação de emprego. Entende-se que o trabalhador autônomo não está inserido no círculo diretivo e disciplinar de uma organização empresarial, ao exercer sua atividade de modo totalmente autossuficiente, para DELGADO (2011, p. 571):

[...], em geral, um profissional no tocante às tarefas para as quais foi contratado. Nesse sentido, tende a ter razoável conhecimento técnico-profissional para cumprir suas tarefas de modo autossuficiente.

Neste caso, então, o aplicativo seria, hipoteticamente, desprovido de poder jurídico para organizar e dirigir o serviço alheio, uma vez que se espera uma postura passiva no que tange ao modus operandi. Todavia, independentemente da forma de atendimento ao cliente a qual o motorista é compelido a adotar, o que não caracteriza a subordinação, conforme entendimento majoritário do Egrégio TRT da 3ª Região, o fato de a empresa determinar o preço a ser cobrado pelo serviço, bem como a tarifa para utilização a plataforma digital, representa embaraço para a concepção clássica do trabalho autônomo. Oportuna a compreensão de MAIOR (2008 p.178.):

Do ponto de vista de uma avaliação técnico-jurídica, deve-se lembrar de que trabalhador autônomo é apenas aquele que ostenta os meios de produção e trabalha para si, sem intermediários, junto ao mercado de consumo, usufruindo, integral e livremente, do fruto de seu trabalho.

Conforme mencionado, há uma linha tênue que separa a atividade econômica da empresa em prestar serviços de transporte ou intermediação de usuários. Atenta-se que a estipulação do preço visa a fornecer aos usuários-passageiros maior previsibilidade, praticidade e segurança na contratação dos serviços perante o aplicativo, uma vez que qualquer motorista próximo ao local pode se habilitar para “aceitar a corrida”, o que prejudicaria o consumidor final caso fossem cobrados valores diferentes. Isto, entretanto, poderia atrair a interpretação de que a atividade-fim da empresa fosse, então, a prestação de serviços de transporte.

Sob a ótica da reforma trabalhista, a contratação de autônomo, de forma contínua ou não, afasta a relação de emprego desde que satisfeitas as formalidades legais. Inclusive, insta pontuar que ainda que houvesse cláusula de exclusividade, não afastar-se-ia o caráter autônomo da relação em tela.

De toda forma, os motoristas não possuem exclusividade, mas, pelo contrário, costumam prestar serviços para todas as empresas do ramo, concorrentes entre si, simultaneamente. O prestador fica disponível em todas as plataformas, aguardando solicitação de clientes, tornando-se forte indício de prestação autônoma de serviços, nos moldes do art. 442-B, da CLT. Ainda, é facultado ao motorista recusar corridas e até mesmo desistir de algumas sem qualquer prejuízo, desde que o cliente não tenha adentrado o veículo.

Quanto à tese de trabalho intermitente (art. 452-A/CLT), inovação da Reforma Trabalhista, existe a necessidade da empresa na prestação de serviços do condutor, que o convocaria com três dias de antecedência para cumprir determinada jornada. No caso em apreço, a dinâmica do aplicativo não pretende subordinar o motorista de forma a requisitar a prestação do serviço por determinado período, razão pela qual não há que se sustentar a hipótese de trabalho intermitente.

 É possível constatar a existência de uma relação típica de trabalho que necessita regulação própria, a fim de se evitar a própria precarização. O Código Civil, no art. 593, aduz é regida pelo próprio ordenamento a prestação de serviço que não está sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial. Compreende-se que, diante dos fatos expostos, não se deve afastar a competência da Justiça do Trabalho, porém, tampouco, reconhecer suposta relação de emprego.

Dessa forma, o caminho mais viável para essa nova categoria de trabalho é a regulamentação por lei especial. Por exemplo, o exercício da atividade de representação comercial, que também diz respeito à intermediação de negócios, é regida pela Lei nº 4.886/65, afastando a existência da relação de emprego pela constatação de insubordinação e autonomia do trabalhador. Em que pese a criação da Lei 13.640/18, que estabelece obrigações recíprocas para aplicativos e motoristas, ainda se poderia incrementar aspectos específicos da relação de trabalho em comento, como, v.g, a limitação da jornada além do máximo legal, possibilidade de acordos individuais/ coletivos e afins.

Assim como ocorre com todo empreendedor, o ordenamento jurídico deve respeitar a autonomia privada do cidadão que opta por não trabalhar em uma relação típica de emprego – mediante subordinação, controle de jornada, etc. – mas prestar serviços de forma independente, que o possibilitem auferir lucro e gerir o próprio negócio.


5 – RELAÇÃO DE CONSUMO

As empresas afirmam prestarem serviços de intermediação digital sob demanda, por meio de plataformas tecnológicas, “que permitem que prestadores de transporte busquem, recebam e atendam solicitações de serviços de transporte feitas por usuários que procurarem por tais serviços (...)”. Por conseguinte, tanto o passageiro, que utiliza o aplicativo a fim de conseguir o meio de transporte, quanto  o  motorista, que o utiliza a fim de localizar passageiros, sob a perspectiva jurídica, são considerados consumidores, pois utilizam o produto (plataforma digital) e o serviço (intermediação sob demanda) enquanto destinatários finais.

Além disso, os aplicativos ressaltam, nos documentos disponibilizados aos motoristas, não atuarem no ramo de prestação de serviços de transporte, o que, também, corrobora com a configuração da cadeia de consumo, nos termos dos artigos 12 e 14 do CDC. Os motoristas utilizam o sistema dessas empresas para o próprio trabalho, cumprindo, assim, os requisitos da Teoria Finalista Mitigada, segundo entendimento do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em consonância com o E. Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - PESSOA FÍSICA - VULNERABILIDADE - TEORIA FINALISTA MITIGADA - CDC - APLICAÇÃO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - POSSIBILIDADE. - A atual jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, tem se assentado no sentido de ser aplicável a denominada Teoria Finalista Aprofundada ou Mitigada, que alarga o conceito de consumidor abarcando todo àquele que possua vulnerabilidade em face ao fornecedor, seja ela técnica, jurídica ou econômica. - Presente o requisito da vulnerabilidade do consumidor, imperiosa se faz a inversão do ônus da prova. - Recurso provido.  Decisão reformada. (TJ-MG - AI: 10056092029034001 MG, Relator: Mariângela Meyer, Data de Julgamento:  22/04/2014,  Câmaras  Cíveis  /  10ª  CÂMARA  CÍVEL, Data de Publicação: 30/04/2014)

Conclui-se que, ao passo em que a intermediação de pessoas para prestação de serviços de transporte é a atividade-fim das empresas e que cobram um percentual do motorista por utilizar a plataforma, verifica-se a relação de consumo. A partir dessa constatação, há a responsabilidade objetiva dos aplicativos para com os condutores e, solidariamente a estes, para com os passageiros (art. 18/CDC).

Entende-se, portanto, existir clara parceria entre os sujeitos, a qual deveria ser melhor estruturada por meio de lei especial, tal como ocorreu com a “Lei do Salão Parceiro”, em 2016, que reconhece a existência de relação de trabalho atípica, passível de ser regulamentada de forma específica, e não  pela generalidade da CLT.


6 – CONTRATO DE PARCERIA

O contrato de parceria foi concebido a partir do Decreto n°. 59.566/66, de natureza agrária, em que o proprietário detentor de determinado imóvel rural cede seu uso a outra pessoa para que nele seja exercida atividade mediante partilha de riscos e divisão de lucros nas proporções que estipularem. No século XXI, as plataformas digitais se tornaram o meio pelo qual é possível realizar diversos negócios (compras, vendas, locações, serviços, etc). Cada vez mais, captar usuários é uma atividade-econômica, possibilitando a mediação entre quem pretende contratar e ser contratado, vender e comprar.

No caso do prestador de serviços individual, por muitas vezes não há capacidade econômica para manter um site, quiçá um aplicativo que disponibilize mapas, trajetos e preços ao cliente. Se unir à uma empresa com a capacidade de captar usuários que, ao longo do dia, solicitam inúmeras corridas, se beneficiando diretamente da gestão, manutenção da plataforma, além da facilidade de pagamento e segurança, é uma forma de estender o alcance do próprio negócio.

 Permeada por estes conceitos, em 2016 surge a Lei 13.352/16, que visa a regular a profissão de barbeiros, cabelereiros, maquiadores e etc., que se utilizam do ponto comercial, marca e clientela de determinado estabelecimento para exercerem suas atividades. Percebe-se que a atividade-fim dos salões de beleza é a mesma dos profissionais autônomos e, ainda, há fortes elementos da relação de emprego a partir da tese de subordinação estrutural, além de preenchidos todos os pressupostos do art. 3°/CLT, tendo em vista haver jornada estabelecida, preço tabelado, etc.

Em face da divisão do faturamento, proporcional à prestação dos serviços, da fidelização dos clientes pessoais do cabelereiro, mas, principalmente, da interdependência existente, o legislador optou por adequar a relação ao regime de parceria. Neste caso, a empresa é responsável pela centralização dos pagamentos decorrentes da prestação de serviços, retém a sua cota-parte percentual fixada em contrato, bem como recolhem tributos, contribuições sociais e previdenciárias incidente sobre a cota-parte deste na parceria.

Ao trabalhador é oferecida toda a estrutura do estabelecimento, além da parte administrativa e operacional, o que justifica o percentual retido pelo salão, além da clientela (muitas vezes pelo ponto comercial) – tal como nos aplicativos de transporte. Só haveria o vínculo empregatício caso não exista contrato formal de parceria, nos moldes da lei específica, ou o desempenho de funções estranhas a ele:

CABELEIREIRO. REGIME DE PARCERIA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. Inadmissível o reconhecimento do vínculo de emprego entre o cabeleireiro e o salão de beleza quando há entre as partes contrato sob regime de parceria válido mediante o qual o profissional recebe parcela significativa do produto auferido com o seu trabalho e em troca utiliza a estrutura fornecida pelo salão. (TRT-3 - RO: 00104810920165030113 0010481- 09.2016.5.03.0113, Relator: Camilla G.Pereira Zeidler, Terceira Turma)

Com várias semelhanças aos serviços dos aplicativos de transporte urbano, os motoristas se utilizam da empresa pela credibilidade da marca, ampliação na captação de clientes e segurança para o prestador de serviço e para o consumidor final. Os passageiros que precisam do transporte urbano buscam pelo aplicativo, e não pelo motorista individual, o que demonstra que a empresa é que possue a clientela.  Constata-se que a relação é positiva para ambos os polos, existindo, inclusive, o recolhimento previdenciário e de contribuições sociais pelo trabalho, conforme preconiza a nova Lei 13.640/18.

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O sistema capitalista afirma a preponderância da economia de mercado ao passo em que cada indivíduo deve empenhar-se por seus próprios interesses, celebrar seus próprios contratos, em meio social que seja competitivo, sem intervenção estatal nas relações privadas, conforme lição de DELGADO (2006, p. 75.):

[...] a perspectiva individualista de análise da economia e da sociedade, a defesa da propriedade privada, do lucro e do capitalismo como valores naturais e prevalentes de organização socioeconômica; a censura ao intervencionismo e dirigismo estatais, por serem considerados tendentes a produzir restrições ao livre interesse das forças do capital; a concepção de equidade e justiça com base no estrito esforço individual, em harmonia com a ideia da imanente racionalidade do funcionamento do sistema capitalista.

É possível analisar a relação jurídica objeto do presente artigo sob o prisma da convergência de interesse entre particulares, uma vez que a empresa fornece o meio pelo qual o trabalhador independente possa ampliar seu alcance de mercado, sendo-lhe, inclusive, facultado a qual(is) aplicativo(s) se vincular para captação de clientes. A Des. Maria Stela assim esclarece:

“Havendo novas possibilidades de negócios e de atividades pelo desenvolvimento da tecnologia, das comunicações, das transferências de dados e informações, haverá uso delas, que servirão como ferramentas, inclusive em oferta de bens e serviços de natureza antes impensáveis ou inviáveis de serem colocados em prática, gerando novo conceito de negócio ou novo objeto de negócio. Neste cenário é que surgem novos objetos de negócios e uso e ampliação de utilização de aplicativos como o Uber e o Airbnb (na área de hospedagem), por exemplo, que estabelecem contato direto entre consumidores e fornecedores. E, também, não se pode olvidar que conseguem fomentar ganhos expressivos em eficiência, custo e comodidade nas transações para seus usuários.”

Trata-se de relação flexível, em que o detentor da mão-de-obra possui a faculdade de laborar quando quiser, é remunerado na proporção de seu trabalho, e utiliza-se da plataforma digital para facilitar a prestação de serviço e captação de clientela. A opção do profissional liberal de se vincular aos aplicativos é fruto da livre iniciativa, que é fundamento da ordem econômica constitucional. Nesse sentido, oportuno mencionar que “a livre-iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pelo capital, mas pelo trabalho” (GRAU, 2008, p. 213-214.).

Ademais, há de se considerar que esses aplicativos viabilizaram uma forma de renda para milhares de brasileiros[3] e que o avanço tecnológico, que usualmente têm retirado diversos postos de trabalho - principalmente com a robotização da produção industrial - desta vez, criou oportunidade de trabalho e receita para milhares de cidadãos.


7 - CONCLUSÃO

Nos dias atuais, conectar pessoas é uma atividade econômica per si, como se verifica das inúmeras, rentáveis e populares redes sociais: Facebook, Instagram, Linkedin, Whatsapp, Snapchat, etc. A gestão de uma plataforma digital, seja por meio de sites ou aplicativos, é uma atividade empresarial, de forma que é benéfico para a economia que hajam empresas dispostas a realizarem essa intermediação de usuários. No caso de profissionais autônomos, prestadores de serviços, tais empresas possibilitam a captação de clientes de forma extremamente mais eficiente do que a mera indicação, distribuição de panfletos e cartões comerciais. Ademais, elas atraem para si, por meio da cadeia de consumo, a responsabilidade por essa prestação de serviços, o que torna a negociação mais confiável para o consumidor final, gerando, assim, credibilidade ao prestador de serviço - haja vista a necessidade de cadastro prévio.

Após o estudo realizado, não há relação de emprego entre motoristas e aplicativos, uma vez que restam ausentes diversos pressupostos do art. 3° da CLT, com destaques para a ‘não-eventualidade’ e a ‘subordinação jurídica’, adotada pela Lei 13.467/17. Trata-se de trabalho autônomo, pela literalidade do art. 442-B da CLT, assemelhando-se ao contrato de parceria, tal como na Lei 13.352/2016.

O profissional possui a liberdade de contratar com diversas empresas, disponibilizando seus serviços de forma simultânea e atendendo a demanda de concorrentes entre si. Ainda assim, a parceria entre as partes é positiva para ambas, retrato de um novo conceito de negócio, que possibilita o fomento econômico de forma eficiente, sem lesar o trabalhador. O Direito deve manter-se sempre atento a essas mudanças, para que se resguarde os indivíduos, porém, jamais tornar-se óbice à livre iniciativa, que é fundamento da ordem econômica constitucional, expressão de liberdade por meio do trabalho.


Notas

[1]“[...] significa que as relações jurídico-trabalhistas se definem pela situação de fato [...]” BARROS (2010, p. 186.)

[2] “[...] a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas [...]” BARROSO (2002, p.49.) apud PENARIOL (2012)

[3] IBGE, Desemprego recua em dezembro, mas taxa média do ano é a maior desde 2012. (Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/19759-desemprego-recua-em-dezembro-mas-taxa-media-do-ano-e-a-maior-desde-2012.html. Acesso em 28/03/2018).

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Sobre o autor
Victor Penchel Balthar

Advogado do escritório Tostes & De Paula Advocacia Empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BALTHAR, Victor Penchel. O contrato de parceria em aplicativos de transporte urbano.: Análise dos pressupostos da relação de emprego e consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5763, 12 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/72150. Acesso em: 8 mai. 2024.

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