Instruídos com exames médicos atestando anomalia do feto, geralmente especificando malformação congênita intitulada acrania/encefalocele, patologia supostamente incompatível com a vida extra-uterina, pedidos de "autorização de aborto de feto anencéfalo" têm sido ajuizados no Judiciário brasileiro, acarretando polêmica atual no Supremo Tribunal Federal1.
Não há como negar que se encontram no Código Penal duas hipóteses de aborto em que "não se pune": por seu art. 128, portanto, a legislação penal brasileira autoriza expressamente a realização de aborto se não há outro meio de salvar a vida da gestante (inciso I) ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (inciso II).
Muito embora inquinadas de inconstitucionais por afrontarem o primado do direito à vida (art. 5º, caput, da Constituição da República), essas duas hipóteses estão postas no direito positivo.
Por outro lado, pretensões com fundamento diverso, apregoadas como solução para declamados "problemas de saúde pública", já amplamente desmascarados2, obviamente não encontram guarida no direito brasileiro.
Princípios e fundamentos constitucionais como o da dignidade do ser humano, freqüentemente3 invocados para justificar decisões contrárias ao sistema legal-constitucional brasileiro, são parte do todo que o direito compõe, não seus elementos exclusivos. Nada mais absurdo que considerar isso interpretação da Constituição à luz do Código Penal, do Código Civil ou de que lei for. O direito é um todo e possui seus caminhos de aplicação. Caso contrário, que sejam abolidas – já que supérfluas – todas as leis. Em cada pedido, em cada situação, o magistrado competente (mas quem estabeleceria a competência? os princípios?) observaria os princípios e, erigido em todo-poderoso para arbitrar (porque não seria mais julgador, senão árbitro), decidiria como andaria o processo, se haveria acolhimento ou rejeição do pedido, condenação ou absolvição etc. O devido processo legal seria então ferido de morte e as portas estariam escancaradas à tirania, seja dos juízes, seja do administrador de plantão.
Na realidade brasileira atual, merece registro o que há tempos constituiria obviedade cuja mera menção seria motivo de espanto, por desnecessária: o regramento legal, antes de consistir um óbice ao exercício pleno da judicatura, presume-se constitucional, bem como é garantia da estabilidade das relações jurídicas e, num último momento, da própria paz social. O intérprete primeiro da Constituição Federal, mormente em seu aspecto principiológico, é o legislador, salvo situações idealmente excepcionalíssimas. Não é lícito ao Poder Judiciário arrestar-lhe funções, sob pena do arbítrio e da ditadura.
Portanto, o órgão julgador que conhece e – mais do que isso – sabe admitir seus limites não está abdicando de sua responsabilidade ou meramente exercitando sua modéstia, muito pelo contrário.
O anseio – não raro inconsciente – que muitos têm de que o Estado seja um pai, tudo provenha e estabeleça, é compreensível, mas foi comprovadamente causador de indizíveis distorções. Também não raro, os que isso anseiam arvoram-se nos maiores defensores da liberdade.
Com os olhos voltados para o mundo real, é preciso que cada qual ocupe seu espaço e assuma sua responsabilidade numa sociedade democrática. Não se nega, portanto, que o Congresso Nacional4, investido de suas elevadas funções, deve debater temas como o em questão e deliberar, enquanto legítimo e constitucional representante do povo e dos Estados da Federação, iluminando a trajetória que a Nação brasileira, livre e soberanamente, entenda acertada5.
Aspectos da discussão carecem de desmascaramento, sim, mas num sentido diverso do que lhe pretendem imprimir: o jurista não tem condições, sob aspecto técnico, de averiguar se pelo atual estágio de desenvolvimento da medicina efetivamente não existe solução para a anomalia de que supostamente padecem fetos anencéfalos. Um profissional da medicina poderia em tese atestá-lo com a necessária segurança, responsabilizando-se, é claro, pelas conseqüências de um possível equívoco. Antes de tudo o óbvio: decretar "vive" ou "morre" não é poder do juiz.
Caso esteja o profissional da medicina realmente seguro de que não há solução para o caso, poderia juridicamente em tese tomar as medidas necessárias à provocação do aborto, chamando para si o respaldo de parte da doutrina e da jurisprudência6 no sentido da atipicidade material dessa conduta, desde que assuma o risco de, se assim não for entendido pelos agentes competentes, ser processado e condenado.
A existência de jurisprudência favorável, de todo modo, obviamente não é garantia de que não será processado criminalmente por sua conduta (nem o seria, como exposto ao final, a malfadada autorização), porquanto tanto o Ministério Público quanto o Poder Judiciário têm como garantias constitucionais a independência e a liberdade de agir de acordo com a lei no caso concreto.
Não é demasiado ressaltar que o risco é inerente à profissão, mormente em matéria de intervenções cirúrgicas na seara médica. A rigor, um médico que usa um bisturi num paciente para extirpar-lhe o apêndice pratica a conduta descrita no art. 129. do Código Penal (lesões corporais), ao menos em se considerando exclusivamente o aspecto da tipicidade formal. E por que, nesse caso, não se cogita de requerer previamente uma autorização judicial? A profissão médica, como qualquer outra, possui contextos temerários que lhe são inerentes, devendo o profissional saber com eles conviver e responsabilizar-se pelas decisões que toma.
Diriam outros que do contrário, interessados (ou interessadas) no aborto poderiam forjar situações ou procurar médicos desprovidos de limites éticos para agir contra legem e abortar. Mais além, poder-se-ia descobrir que o aborto deve ser o prêmio a ser concedido pelo Judiciário àquelas que o procuram para expor seus dilemas éticos. Ou ainda talvez se deduza que na verdade tal pedido se baseie no medo, sentimento tão humano, da "abortante" de ser descoberta pelos agentes da lei e processada, sofrendo censura pública por ter praticado aborto. De fato, parece mais atraente abortar e posar de ícone da "liberdade feminina".
Não se descura, por derradeiro, que fora do estupro ninguém engravida à força.
Nenhuma dessas conjecturas, entretanto, interessa à causa da Justiça, mas tão-somente àqueles que se comprazem mais com o desespero alheio do que com seu próprio sucesso (ou fracasso).
A base da convivência humana, já diriam os romanos, é que nossas existências procurem-se ater ao neminem laedere: não lesar ninguém. Essa necessidade da vida em sociedade, óbvia e elementar, aparentemente se perdeu em algum momento da agitada história dos últimos três séculos.
Na atualidade, pelo contrário, vivemos a "era da irresponsabilidade". Ninguém aceita assumir responsabilidade por seus atos. Mente-se, calunia-se, agride-se, engravida-se, opera-se e até mata-se (como neste caso, em última análise) como se atos humanos não tivessem conseqüências e devessem ser apreciados como se fossem singelas digressões do ego, semelhantes às elucubrações de um Freud, instalado no conforto de seu consultório vienense, reduzindo a personalidade humana aos mais pérfidos sentimentos. Quis a torta história que seus delírios fossem desmentidos quase imediatamente, nos guetos do horror nazista, onde ficaram consignados os exemplos mais vívidos de bondade e solidariedade, mesmo às portas da escuridão, entre aqueles judeus condenados ao frio, à fome, à desesperança e ao extremo da crueldade antes da morte.
A História ensina que os povos dificilmente alteram seus cursos, mesmo à beira do abismo, e a orgia da irresponsabilidade segue invariavelmente até a chegada do operesco "convidado de pedra" – forma imutável da morte. É preciso, no entanto, que se alerte da periculosidade de precedentes que têm surgido nos tribunais em casos como o presente, uma vez que incontáveis questionamentos têm emergido com o suposto progresso das ciências, em especial as biológicas. Parece primário não ser prudente esperar que o Judiciário se manifeste previamente quanto a todos esses dilemas, aferindo a priori sua eventual licitude. E insistem filósofos do naipe de Olavo de Carvalho: "Todos continuam se evadindo, brincando com o destino, levando o divertimento às últimas conseqüências. Mas a última das últimas conseqüências será a chegada do ‘convidado de pedra’. A leviandade obstinada e quase devota das classes falantes brasileiras é a autocondenação de toda uma cultura, de toda uma sociedade: é o prenúncio de um final macabro"7.
Que cada um arque com as conseqüências de seus atos.
As razões envolvidas, é verdade, vão muito além da letra fria da lei, mas novamente não no sentido que muitos lhe almejam dar. Os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, os direitos à saúde, à liberdade em sentido amplo, à autonomia da vontade, ao devido processo legal e, acima de tudo, à vida e à dignidade do ser humano estão por um fio, trêmulos sobre o gume de uma lâmina.
Seria justo ou razoável condenar essa vida à pena máxima? O paradoxo se mostra flagrante e assombra: se há impossibilidade de "vida extra-uterina" é porque há "vida intra-uterina". Falar em ausência de lesividade8 é de uma mendacidade ímpar. Não há dúvidas de que a concessão almejada se traduziria numa mórbida imposição corpórea, em razão do caráter satisfativo da medida.
Aliás, antes que se invoque, é de se adiantar a lembrança das "ações cautelares inominadas" (atípicas) na seara penal, figura não-existente na orbe jurídica do Brasil. O que obsta de toda sorte esse entendimento, porém, é que sua invocação ocasiona uma contradição em seus próprios termos, dado que o processo cautelar implica justamente, desde os clássicos italianos, ausência de irreversibilidade. É difícil imaginar maior irreversibilidade que a morte.
No mais, o alegado risco para a gestante, tanto físico quanto moral, se traduz não só na gestação indesejada, mas também na intervenção cirúrgica para o abortamento.
Nessas condições, é evidente que a irreversibilidade da medida impõe maior prudência, de modo que até esta altura sobejam – mais do que isso, pulam e gritam – razões para o indeferimento dos pedidos judiciais de "autorização de aborto".
Ainda que assim não fosse, e não faltarão os que o digam, não há na legislação penal ou processual penal espaço para manifestação judicial acerca do caráter criminoso ou não criminoso de determinada conduta antes que seja praticada.
O Poder Judiciário, ressalvadas as poucas exceções legais, como por exemplo na Lei de Registros Públicos, não é instância consultiva, mas decisória.
Na forma do art. 129, I, da Constituição Federal, é o Ministério Público o titular da ação penal (salvo as exceções previstas), incumbindo-lhe o exame do caráter criminoso de determinada conduta e, eventualmente, a deflagração da medida judicial cabível. Deferido o "alvará" postulado, haveria inequivocamente uma subtração das atribuições constitucionais do parquet.
Além disso, não só o Ministério Público teria suas atribuições subtraídas: haveria também afronta ao princípio do juiz natural do eventual processo, porque se estaria invadindo indevidamente um espectro de competência. Com efeito, não há o que assegure que o juízo invocado para autorizar o aborto seria o competente para a eventual ação penal contra abortista e "abortante", nem muito menos que o magistrado que deferiria o "pedido de aborto" seria o mesmo magistrado perante o qual o processo-crime tramitaria.
De mais a mais, justamente porque é do Ministério Público tal atribuição, eventual "alvará" nada representaria perante as leis do País, porquanto não obstaria o manejo da ação penal em tese cabível. A falta de interesse processual da medida, por força de sua inutilidade, é patente.
Mais inviável do que o nascituro tido como anencéfalo é a pretensão de alcançar judicialmente uma "autorização de aborto", porquanto injusta, ilegal, inconstitucional, juridicamente impossível, irrelevante e inútil.
Referências bibliográficas
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Notas
1 MARTINS, Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1239, 22 nov. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9190/a-polemica-i-legalidade-do-aborto-de-feto-anencefalico>. Acesso em: 16 jun. 2007.
2 PEREIRA, Maria José Miranda. Aborto: a quem interessa? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1090, 26 jun. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8562/aborto>. Acesso em: 16 jun. 2007.
3 SANTOS, Marília Andrade dos. A legalidade do aborto de anencéfalos sob o prisma da hermenêutica. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1412, 14 maio 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9870/a-legalidade-do-aborto-de-anencefalos-sob-o-prisma-da-hermeneutica>. Acesso em: 14 jun. 2007.
4 D´URSO, Luiz Flávio Borges. A propósito do aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 28, fev. 1999. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/982/a-proposito-do-aborto>. Acesso em: 17 maio 2007.
5 HERKENHOFF, João Baptista. Aborto: o legal e o existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4185/aborto-o-legal-e-o-existencial>. Acesso em: 3 jun. 2007.
6 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1090, 26 jun. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8561/aborto-anencefalico>. Acesso em: 26 jun. 2007.
7 CARVALHO, Olavo de. Aids, Brasil e Uganda. Diário do Comércio. São Paulo, 17 de outubro de 2005. Acesso em: 10 jun. 2007.
8 PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 859, 9 nov. 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7538/a-anencefalia-e-o-crime-de-aborto>. Acesso em: 26 jun. 2007.