Introdução
O presente trabalho tem como escopo analisar a divergência doutrinária e, conseqüentemente, jurisprudencial, acerca do momento em que se dá a consumação do delito de furto. Trata-se de tema polêmico e de grande importância prática, afinal punir-se-á o agente por crime consumado ou tentado conforme tenha sido ultrapassado ou não o instante da consumação.
Momento consumativo do furto
Inicialmente, a fim de facilitar o estudo do tema, conveniente apresentar, mesmo que de forma sucinta, as teorias sobre o momento da consumação do furto. São quatro:
a) a teoria da "contrectatio", para a qual a consumação se dá pelo simples contato entre o agente e a coisa alheia;
b) a teoria da "apprehensio" ou "amotio", segundo a qual se consuma esse crime quando a coisa passa para o poder do agente;
c) a teoria da "ablatio", que tem a consumação ocorrida quando a coisa, além de apreendida, é transportada de um lugar para outro; e
d) a teoria da "illatio", que exige, para ocorrer a consumação, que a coisa seja levada ao local desejado pelo ladrão para tê-la a salvo.
Nos países em que os Códigos Penais usam para caracterizar o furto expressões como "subtrair"1 ou "tomar", predomina, na doutrina e jurisprudência, a teoria da "apprehensio", pela qual se faz necessária para a consumação do furto a apreensão da coisa pelo ladrão. Dita teoria é a adotada no Brasil e reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como "teoria da inversão da posse", sendo certo que toda a divergência a respeito do momento consumativo do furto está no significado e extensão que se dá ao termo apreensão/posse. O problema, portanto, é saber quando se inicia a posse do ladrão e, conseqüentemente, termina a posse da vítima. Este é, para todos os doutrinadores brasileiros, o momento da consumação do furto.
A respeito desta problemática podem-se elencar, basicamente, duas orientações distintas. Conforme a primeira (doutrina clássica) – defendida especialmente por Nélson Hungria2, Heleno Cláudio Fragoso3, Cezar Roberto Bittencourt4 e Guilherme de Souza Nucci5 – há a inversão da posse (perda pela vítima e aquisição pelo agente) quando a coisa sai da esfera de vigilância e disponibilidade da vítima, ou seja, quando não pode mais a vítima exercer os poderes inerentes à propriedade6, exigindo-se, ainda, que o agente tenha a posse tranqüila da coisa, mesmo que breve. Posse tranqüila é a que se desenvolve sem oposição atual e efetiva da vítima, noutras palavras, a que não sofre tentativa de retomada. Alertam eles, também, que posse tranqüila não se confunde com a simples detenção física da coisa, sendo necessária para a consumação do furto, ainda que por um instante, a possibilidade de disposição livre e pacífica da coisa por parte do ladrão. Para eles, portanto, é necessário o estado de mansidão para que se dê a aquisição da posse.
Para esta corrente, é furto tentado a conduta de quem imediatamente depois de apoderar-se de coisa móvel alheia é perseguido e capturado, em momento algum tendo a livre disposição do bem (posse mansa e tranqüila).
Para a segunda orientação, defendida especialmente pelo Professor Damásio Evangelista de Jesus7, a consumação do furto requer, igualmente, que a coisa saia totalmente da esfera de disponibilidade do agente, porém não se exige que a coisa esteja fora da esfera de vigilância da vítima, nem se demanda a posse tranqüila do bem por parte do ladrão. Portanto, para esta corrente a posse é adquirida pelo ladrão assim que a vítima, pelo esbulho, a perca8.
Em conseqüência, para a segunda corrente, com a subtração ocorre o crime de furto consumado, mesmo que o agente fora perseguido e capturado imediatamente após apoderar-se da coisa, em momento algum tendo a posse mansa.
Sintetizando, a divergência doutrinária acerca do instante consumativo do furto divide-se em duas correntes. Ambas consideram tal momento o da aquisição da posse, contudo para a doutrina clássica são necessárias a efetiva retirada da coisa do campo de vigilância e a posse tranqüila do bem pelo ladrão; para a segunda, basta a efetiva retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima, sendo despicienda a posse tranqüila pelo furtante, assim como a retirada da coisa da esfera de vigilância da vítima.
A vacilação doutrinária reflete, como não poderia deixar de ser, nos Tribunais. Até o ano de 1987, o Supremo Tribunal Federal adotava a doutrina clássica. Assim, o Pretório Excelso entendia consumado o furto apenas quando à retirada do bem da esfera de vigilância e disponibilidade da vítima, fosse somada a posse tranqüila do ladrão9.
O entendimento da Suprema Corte, no entanto, alterou-se no final daquele ano, a partir do REsp 102.490-SP, Relator Ministro Moreira Alves, quando, então, o Plenário do STF decidiu que a posse - momento consumativo do crime de furto – é contraída com a retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima, mesmo que não haja um período de tranqüilidade por parte do agente10. O Ministro Moreira Alves, reconhecendo que o conceito de posse adotado pelo Direito Penal brasileiro é tomado emprestado do Direito Civil pátrio, ou seja, que não há uma posse especial para o Direito Penal, entendeu ser dispensável a saída da coisa da esfera de vigilância da vítima para que o ladrão adquira a posse; é suficiente que cesse a clandestinidade ou a violência11. Nem o Código Civil nem o Penal levantam como requisito da posse a mansidão, não cabendo ao intérprete fazê-lo. Inclusive, o Direito brasileiro reconhece a posse que não seja pacífica, como no caso do desforço incontinenti, em que o esbulhado já perdeu a posse, o esbulhador já a adquiriu, mas ainda assim aquele pode – preenchido determinados requisitos – usar da força para tentar recuperá-la12. Afasta-se também, deste modo, o requisito da posse mansa e tranqüila.
Destarte, o STF, pondo fim à divergência que permeava a jurisprudência brasileira, posicionou-se no sentido de que a inversão da posse é o instante consumativo do delito de furto - sobre este ponto os doutrinadores não se debatiam – e, também, que a posse considera-se adquirida no instante em que a coisa é retirada do campo de disponibilidade da vítima, mesmo que não venha a ser tranqüila. Assim sendo, a fuga logo após o furto já é fuga com posse, e o furto está consumado mesmo que haja perseguição imediata e conseqüente retomada do objeto. Frisa-se, mesmo que não haja posse tranqüila em nenhum instante.
Tal aresto serve como referência ainda hoje para as decisões do Supremo Tribunal Federal12. Todavia, não obstante posicionamento firme desta Corte, no final do século passado a Sexta Turma do Tribunal Superior de Justiça retomou o posicionamento clássico, ou seja, voltou esta Turma a exigir a posse tranqüila para a consumação do furto13, sustentando ser "imprescindível, por tratar-se de crime material (aquele que se consuma com o resultado naturalístico), que o bem seja tomado do ofendido, estando, ainda que por breve tempo, em posse mansa e tranqüila do agente, sob pena de se transformar o furto em um crime formal, punindo-se unicamente a conduta"14.
Eis, então, o resumo do posicionamento de nossos Tribunais Superiores acerca do momento consumativo do crime de furto: até 1987 o STF adotava o entendimento de ser necessária a retirada da coisa da esfera de vigilância e disponibilidade, mais a posse tranqüila do bem, mesmo que breve (doutrina clássica). A partir daquele ano, passa a exigir, somente, que a coisa deixe a esfera de disponibilidade, sendo prescindíveis a saída do campo de vigilância e a posse tranqüila do agente. Malgrado posicionamento do STF, atualmente, o STJ tem-se comportado de duas formas. A Quinta Turma15 segue o entendimento firmado pelo STF, ou seja, não requer a posse tranqüila para consumação do delito de furto, enquanto a Sexta Turma, conforme já dito, passou a adotar a doutrina clássica.
Assim sendo, curioso perceber que para a mesma norma tipificadora do crime de furto – não houve alteração desde 1940 – várias interpretações foram e são dadas, com conseqüências totalmente diversas. Até 1987, quem subtraísse algo e fosse perseguido e capturado imediatamente, cometia furto tentado. Na década seguinte, por conduta idêntica seria condenado por crime consumado. E, atualmente, tanto pode ser condenado por crime consumado – se julgado pelo STF ou Quinta Turma do STJ – como por furto tentado, se julgado pela Sexta Turma do STJ.
Considerações Finais
O argumento dos doutrinadores, em especial do Professor Nucci, é sedutor. Para ele, descartar o requisito da posse tranqüila é transformar o crime de furto em formal (aquele que dispensa resultado naturalístico). Furto é crime material, e quanto a isto não há divergência. Imputar o crime de furto consumado ao agente que não chegou a ter a posse tranqüila, por exemplo, por ter sido perseguido e capturado imediatamente após a subtração, é punir a mera conduta, desprezando-se a ocorrência de resultado naturalístico - diminuição do patrimônio - que o crime de furto, como material, exige.
No entanto, com o devido respeito, não compartilhamos da interpretação destes mestres, que são seguidos pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça.
O furto se consuma com a inversão da posse, e isto é pacífico. Além disso, não há, ao menos no Brasil, o requisito da tranqüilidade para a aquisição da posse. Sabendo-se, também, que ao intérprete não cabe distinguir onde a lei não distingue, é inadequado estabelecer este novo elemento aquisicional de posse. Assim sendo, consuma-se o furto a partir do momento em que o agente adquire a posse, não se exigindo um período de tranqüilidade. O fato de o agente não ter tido a livre e pacífica disposição da coisa por um determinado tempo não deve obstar a consumação do crime, mas tão-somente ser levado em consideração quando da dosimetria da pena.
Por fim, percebe-se que esta vacilação jurisprudencial é nociva. Ao não dar à pessoa a oportunidade de conhecer as conseqüências jurídicas de seus atos, instaura a insegurança jurídica, além de violar o princípio da legalidade penal. Além disso, decisões conflitantes em situações estritamente parecidas desrespeitam o princípio da isonomia.
Referências
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7.ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Parte Especial, v.2. 20.ed. São Paulo: Atlas, 2003.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Especial, v.2. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial, volume 3. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Notas
1 O crime de furto está previsto no caput do art. 155, do Código Penal, que assim preceitua: "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel".
2 "O furto não se pode dizer consumado senão quando a custódia ou vigilância, direta ou indiretamente exercida pelo proprietário, tenha sido totalmente iludida."
3 "Somente estará consumado o furto quando a coisa for tirada da esfera de vigilância do sujeito passivo, do seu poder de fato, submetendo-a o agente ao próprio poder autônomo de disposição."
4 "Consuma-se o crime de furto com a retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima, assegurando-se, em conseqüência, a posse tranqüila, mesmo passageira, por parte do agente; em outros termos, consuma-se quando a coisa sai da posse da vítima, ingressando na do agente."
5 "O furto está consumado tão logo a coisa subtraída saia da esfera de proteção e disponibilidade da vítima, ingressando na do agente. É imprescindível, por tratar-se de crime material que o bem seja tomado do ofendido, estando, ainda que por breve tempo, em posse mansa e tranqüila do agente."
6 Código Civil de 2002. "Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Art. 1.228. "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha."
7 "O crime de furto consuma-se quando o sujeito consegue retirar o objeto material da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que não haja posse tranqüila."
8 Código Civil de 2002. Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196. Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.
9 Consuma-se o delito desde que o agente, embora por pequeno lapso de tempo, tenha a posse pacífica da "res furtiva" (REsp 90.988, 1.ª T., rel. Cunha Peixoto, 25.03.1980, v.u., DJ 25.04.1980, p. 2806).
10 "Para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao antigo possuidor retomá-la pela violência, por si ou por terceiro, em virtude de perseguição imediata. Aliás, a fuga com a coisa em seu poder traduz inequivocamente a existência de posse. (REsp 102.490-SP, rel. Moreira Alves, 17.12.1987, v.u., DJ 16.08.199, p. 150).
11 Código Civil de 2002: "Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
12 Código Civil de 2002. Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
12 "A jurisprudência do STF dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada "esfera de vigilância da vítima" e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da "res furtiva", ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata (HC 89958-SP, rel. Sepúlveda Pertence, 03.04.2007, v.u., DJ 27.04.2007, p. 68).
13 "Caso de tentativa, e não de crime consumado – "em nenhum momento o réu deteve a posse tranqüila da res furtiva, porquanto foi imediatamente perseguido pela vítima" (REsp 678.220-RS, 6.ª T., rel. Nilson Naves, 07.06.2005, v.u., DJ 13.03.2006 p. 391). "Na hipótese em que o agente do crime não teve, em nenhum momento, a posse tranqüila dos bens, pois foi preso logo em seguida à prática do delito, houve apenas tentativa" (REsp 197.848-DF, 6.ª T., rel. Vicente Leal, 11.05.1999, v.u., DJ 31.05.1999, p. 198).
14 Guilherme de Souza Nucci, 2007, p. 666.
15 "Para que o agente se torne possuidor, é prescindível que a res saia da esfera de vigilância da vítima, bastando que cesse a clandestinidade ou a violência (Precedente do Colendo Supremo Tribunal Federal - RTJ 135/161-192, Sessão Plenária)". (REsp 311.088-SP, 5.ª T., rel. Felix Fischer, 03.12.2002, v.u., DJ 10.03.2003, p. 274). "Considera-se consumado quando o agente retira a coisa da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que não venha a ser tranqüila a posse". (REsp 162.090-SP, 5.ª T., rel. Edson Vidigal, 24.11.1998, v.u., DJ 01.02.1999, p. 226).