Através da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio o novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, em substituição ao anterior, que era de 1999.
Muito já se comentou sobre esse novo Estatuto, sendo saudado como um avanço no tratamento dispensado a tais empresas, conceituado como "um conjunto de normas que visam beneficiar a criação, a estruturação e a manutenção dos pequenos negócios mediante a instituição de um ambiente favorável a este seguimento mediante condições especiais de tratamento e recolhimento de tributos, créditos, fiscalização, normas trabalhistas, etc" [01].
Porém, em pelo menos uma questão – sobre a qual ainda não vi ninguém comentar – entendo que esse Estatuto representa um retrocesso: na anotação e manutenção dos cartões de ponto dos empregados.
Microempresas e empresas de pequeno porte:
Já há algum tempo o legislador pátrio tem produzido leis para regulamentar situações específicas. Assim, nos últimos anos vimos surgir leis que atendem a determinadas pessoas e/ou situações jurídicas, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que têm o objetivo específico de regular a situação de pessoas diferenciadas. A medida é salutar e vem ao encontro do espírito da nossa Constituição Federal.
Nesse contexto, havia sido editada a lei 9841/99, que tratava da microempresa e da empresa de pequeno porte, agora revogada pela Lei Complementar 123/06, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (art. 1º). Denomina-se estatuto, em linguagem técnica-jurídica, qualquer lei que disciplina direitos e deveres de uma específica categoria de determinadas pessoas.
Assim, para que tal lei possa ser aplicada, é necessário estabelecer o que é microempresa e o que é empresa de pequeno porte. A definição é dada pelo art. 3º da Lei Complementar 123/06, e tem relação direta com o faturamento da empresa: consideram-se microempresa ou empresa de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples ou o empresário individual, sendo que:
- Microempresa é a empresa que tem receita bruta anual igual ou inferior a R$ 240.000,00;
- Empresa de pequeno porte é a que tem receita bruta anual superior a R$ 240.000,00 e inferior ou igual a R$ 2.400.000,00.
Somente os empresários, as sociedades empresárias e as sociedades simples que se enquadrem em tais situações serão consideradas microempresa ou empresa de pequeno porte, conforme o caso, e poderão se valer das disposições constantes da Lei Complementar 123/06, em razão do princípio da especificidade.
Cartões de ponto - controle de jornada dos empregados:
O art. 74 da CLT trata da questão do horário de trabalho dos empregados, sendo que o caput cuida do quadro de horário, determinando que ele deva conter o horário de trabalho de todos os empregados e ser afixado em local bem visível.
Mas o mais importante, especialmente na prática forense trabalhista, é o que consta do § 2º do art. 74, que obriga os estabelecimentos com mais de 10 empregados a manter a anotação da hora de entrada e de saída destes, em registro manual, mecânico ou eletrônico.
Assim, as empresas em cujo estabelecimento possuam mais de 10 empregados são obrigadas a manter os controle de freqüência, comumente chamados de cartões de ponto.
Com base no comando do mencionado § 2º, a jurisprudência trabalhista se pacificou no sentido de que "é ônus do empregador que conta com mais de 10 empregados o registro da jornada de trabalho" e que "a não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por provas em contrário" (Súmula 338 do TST).
Na prática processual, isso significa uma verdadeira inversão do ônus da prova, transferindo para a empresa naquela situação o ônus de provar a jornada de trabalho do reclamante. Argumenta-se que "se o empregador não apresentar os controles de ponto, há presunção de veracidade da jornada de trabalho indicada na inicial" [02].
O Juiz Francisco Antonio de Oliveira, ex-Presidente do TRT da 2ª Região, ensina que "por exigência legal, a prova da jornada de trabalho há de ser feita mediante documento, quando possua a empresa mais de dez (10) empregados" e que "quando fiscalizada ou acionada, o controle documental é que fará prova plena da jornada" [03]. Por isso diz-se que "para aquelas empresas cujo quadro funcional (empresa ou estabelecimento) fosse superior a 10 empregados, a prova de jornada seria obrigatoriamente por meio de cartões de ponto, com a obrigatoriedade de juntada com a defesa, conforme determinação expressa do art. 845 da CLT" [04]. Assim, "aquela parte que tem o documento (cartões de ponto) e o sonega ao processo não poderá fazer prova por meio de testemunhas, vez que a exigência legal é de que seja documental. E o mesmo entendimento há de ser dado para aquelas empresas que desobedecem à lei e não possuem controle de jornada" [05] (grifei).
É que, em princípio, a prova do labor extraordinário é do reclamante, autor da ação trabalhista, na forma do que dispõe o art. 818 da CLT. Tal prova não é fácil de realizar, de forma que a jurisprudência inclinou-se no sentido de transferir esse ônus para as empresas reclamadas, quando elas contarem com mais de 10 empregados no seu estabelecimento, tomando como base para o seu fundamento o disposto no § 2º do art. 74 (em sentido contrário, ver Sérgio Pinto Martins, Comentários à CLT, Atlas, 2004, p. 155).
Destarte, transfere-se o difícil encargo probatório para a empresa reclamada, tirando esse peso dos ombros do trabalhador.
A Lei 9841/99 e a dispensa dos cartões de ponto:
A Lei 9841/99, que tratava da microempresa e empresa de pequeno porte até a edição da Lei Complementar 123/06, dispunha, em seu art. 11, que tais empresas estavam desobrigadas de cumprir o disposto no art. 74 da CLT.
Com base nisso, sem muito esforço argumentativo, podíamos concluir que tais empresas estavam desobrigadas de manter controle de freqüência de seus empregados. Isso porque, ao estabelecer que elas estavam desobrigadas do cumprimento das obrigações acessórias do art. 74, por óbvio tal desobrigação se estendia aos parágrafos daquele artigo. Afinal de contas, numa interpretação sistemática, os parágrafos seguem a sorte do caput do artigo a que se referem, pois a ele se vinculam.
Assim, tendo em vista que a obrigação de manter o controle de freqüência deriva do § 2º do art. 74 da CLT, e uma vez que as microempresas e as empresas de pequeno porte estavam desobrigadas de cumprir as obrigações desse art. 74 – incluído, pois, o seu § 2º -, resta claro, por inferência lógica, que elas estavam desobrigadas de manter o controle de freqüência.
Afinal, o objetivo daquela lei era exatamente dar tratamento jurídico diferenciado e simplificado às microempresas e às empresas de pequeno porte (art.1º). E assim sendo, a lei nada mais fazia do que dar vazão ao comando da nossa Constituição Federal, que determina, nos seus arts. 170, inciso IX e 179, o tratamento diferenciado a tais empresas.
Desta forma, quando chamadas em juízo, as microempresas e as empresas de pequeno porte não poderiam sofrer nenhuma sanção nem suportar nenhum ônus decorrente da ausência de cartões de ponto, haja vista a desobrigação legal promovida pelo art. 11 da lei revogada. Nesse sentido, Francisco Antonio de Oliveira complementa seus comentários à súmula 338, aduzindo que "excepcionam-se (à obrigatoriedade de apresentar cartões de ponto) aqueles casos em que a ausência de documentos resultar de força maior, caso fortuito ou qualquer outro motivo ponderoso..." [06].
O princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
Motivo ponderoso, mais do que justificado, era a desobrigação decorrente de lei, como ocorria com o art. 11 da Lei 9841/99.
A Lei complementar nº 123/06 e a modificação para pior na situação das microempresas e das empresas de pequeno porte no que se refere aos cartões de ponto:
A Lei 9841/99 foi expressamente revogada pela Lei Complementar nº 123/06, conforme consta de seu art. 89.
É certo que, mesmo sem essa determinação, a Lei 9841 poderia ser considerada revogada tacitamente, eis que a lei nova regulou completamente a matéria [07].
Seja como for, sendo expressa, a revogação não deixa margem a dúvidas nem questionamentos. A Lei 9841/99 não tem mais nenhuma aplicação a partir de 15 de dezembro de 2006, data em que entrou em vigor a Lei Complementar 123/06 (art. 88).
Com isso, todavia, veremos que o novo Estatuto, no que se refere especificamente à questão do controle de freqüência, tornou pior a situação das microempresas e das empresas de pequeno porte, na medida em que não repetiu a redação da lei revogada. As disposições da lei nova sobre a matéria são vagas e imprecisas, o que gerará muitas incertezas no futuro.
A questão vem disciplinada no art. 51:
Art. 51. As microempresas e as empresas de pequeno porte são dispensadas:
I – da afixação de Quadro de Trabalho em suas dependência;
II – da anotação das férias dos empregados nos respectivos livros ou fichas de registro
III – de empregar e matricular seus aprendizes nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem;
IV – da posse do livro intitulado "Inspeção do Trabalho"; e
V – de comunicar ao Ministério do Trabalho e Emprego a concessão de férias coletivas.
Ainda que alguns autores tencionem apontar que as dispensas ora estabelecidas são quase as mesmas que já estavam previstas na lei revogada [08], o fato é que a alteração é bastante significativa, modificando para pior a situação das microempresas e empresas de pequeno porte.
Ao que nos interessa no momento, fixemo-nos no inciso I. Diz o dispositivo legal que as microempresas e empresas de pequeno porte estão desobrigadas de afixar Quadro de Trabalho.
Antes de mais nada, surge de pronto a indagação: o que vem a ser Quadro de Trabalho? O art. 74 da CLT se refere a Quadro de Horário e não a Quadro de Trabalho. Mas isso é assunto para outra discussão. Admitamos, por ora, que sejam a mesma coisa.
O artigo 11 da revogada lei 9841/99 fazia referência expressa aos artigos da CLT, de cujas obrigações acessórias estavam dispensadas as microempresas e empresas de pequeno porte, dentre os quais o citado art. 74. A lei nova não faz mais referências aos números dos artigos, mas apenas enumera as situações que visa desobrigar.
Assim, a lei nova não faz mais referência expressa ao art. 74 da CLT, de sorte que ele volta a ser incorporado à vida das microempresas e das empresas de pequeno porte. A única desobrigação diz respeito à afixação do Quadro de Trabalho em suas dependências.
Desta forma, temos que as microempresas e as empresas de pequeno porte, a partir de 15 de dezembro de 2006, estão novamente obrigadas a cumprir as determinações do art. 74 da CLT, com a única exceção da afixação do Quadro de Trabalho.
Isso significa dizer que tais empresas, em cujo estabelecimento contam mais de 10 empregados, estão obrigadas a manter o controle de freqüência de seus empregados, na forma do que dispõe o § 2º do art. 74, inclusive para efeitos de fiscalização. É a volta do cartão de ponto nas microempresas e empresas de pequeno porte que têm em seus quadros mais de 10 empregados.
É uma questão de tamanha importância, haja vista o grande número de empresas nessa situação e ninguém comentou nada a respeito. Estamos às vésperas de completar um ano de vigência da lei e esse assunto passou despercebido da comunidade jurídica, sendo praticamente ignorado.
As conseqüências para tais empresas serão desastrosas, eis que terão de adotar algum sistema de controle de jornada de trabalho, sob pena de sofrerem sanções administrativas e processuais. A Lei que tem por objetivo dar tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte (art. 1º), especialmente ao cumprimento de obrigações trabalhistas (inciso II), acaba por criar uma obrigação extra, que até então – na égide da Lei 9841/99 – elas não tinham.
O Capítulo VI da Lei Complementar 123/06, que trata da "simplificação das relações de trabalho" não atinge o objetivo proposto, na medida em que altera para pior a situação das microempresas e das empresas de pequeno porte, imputando-lhes obrigações – art. 74 da CLT – que antes elas não tinham. Evidente que não se está simplificando nada, mas sim, complicando.
O novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte ressuscita antigas obrigações que não mais faziam parte da rotina dessas empresas.
Sem dúvida isso configura um retrocesso legislativo sem justificativa plausível para tanto e afronta o espírito constitucional que deveria nortear a edição da Lei Complementar 123/06.
Por este aspecto, nada há a saudar na nova lei.
Notas
01 Cf. Ana Paula Rocha do Bonfim, Comentários ao Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, Lúmen Júris, 2007, p. 13.
02 Cf. Sérgio Pinto Matins, Comentários às súmulas do TST, Atlas, 2006, p. 221.
03Comentário à Consolidação das Leis do Trabalho, RT, 2005, p. 143.
04 Francisco Antonio de Oliveira, Comentários às súmulas do TST, RT, 2005, p. 848.
05 Francisco Antonio de Oliveira, Comentários às súmulas do TST, RT, 2005, p. 848.
06 Francisco Antonio de Oliveira, Comentários às súmulas do TST, RT, 2005, p. 848.
07 Nesse sentido, Hugo de Brito Machado Segundo, Comentários ao Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, Atlas, 2007, p. 442.
08 Ver, a respeito, Sérgio Pinto Martins, Comentários ao Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, Atlas, 2007, p. 314.