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O "direito" do condenado à castração química

Leia nesta página:

Sumário: 1. A controvérsia a respeito da castração química. 2. O que é a castração química. 3. O conflito constitucional. 4. A questão criminológica. 5. Uma alternativa: a castração química como "direito" do condenado. 6. A título de conclusão. Bibliografia.


1. A controvérsia a respeito da castração química

A castração química é uma moda mundial. Nos Estados Unidos, a Califórnia e a Flórida adotam-na desde 1997 para pedófilos. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, defendeu o mesmo depois que um pedófilo que havia cumprido 18 dos 27 anos de pena violentou um menino de cinco anos de idade. No Brasil, o assunto também tem chamado a atenção. Em Santo André (SP), um psiquiatra admitiu que realiza a castração em pedófilos que a requerem voluntariamente. Há vários projetos de lei prevendo a castração como pena para os criminosos sexuais, sendo, o mais recente, aquele proposto pelo senador Gerson Camata (PMDB/ES). O debate nacional sobre o assunto acirrou-se depois que um doente mental foi acusado de abusar sexualmente de meninos na Serra da Cantareira.


2. O que é a castração química

Primeiramente, é importante definir em que consiste a castração. Castrar é o ato de cortar ou inutilizar os órgãos reprodutores. O homem perde a função de seus testículos, e a mulher, de seus ovários. Além da óbvia conseqüência de inviabilizar a reprodução desses indivíduos, a castração masculina tem sérias conseqüências sobre o corpo como um todo: depressão, queda de cabelo e perda de massa muscular são apenas algumas delas.

A castração é utilizada por diversas razões: terapeuticamente, para a cura do câncer testicular ou de próstata ou mesmo para a mudança de sexo. Como punição, é usada desde a Antiguidade para impor humilhações a vencidos em guerras e, na primeira metade do século XX, com o objetivo de "purificar a raça", tornando vários tipos de criminosos estéreis. A castração pode ser, inclusive, decorrente de transtornos psiquiátricos. A história também registra a castração por motivos religiosos, como no caso dos castrati, destinados a ter voz aguda para cantarem em igrejas.

A castração poder ser física ou química. A primeira consiste na simples retirada dos órgãos reprodutores (no homem, o pênis e os testículos). Tem a característica marcante de ser irreversível, ou seja, o castrado fica permanentemente incapacitado. Já a castração química consiste na aplicação de hormônios femininos (o mais usado é o acetato de medroxiprogesterona) que diminuem drasticamente o nível de testosterona. Nesse caso, os efeitos só se mantêm enquanto durar o tratamento.


3. O conflito constitucional

Todos os ramos do Direito são caracterizados por uma profunda tensão entre princípios divergentes que precisam ser harmonizados. Assim, o Direito Administrativo precisa compatibilizar o interesse público com os direitos individuais; o Direito do Trabalho precisa compatibilizar os direitos do trabalhador com a livre iniciativa, etc. Mas, de todos os ramos jurídicos, o Direito Penal é aquele que tem a tensão mais profunda: sua função é proteger bens considerados essenciais (como vida, liberdade e propriedade), sancionando aqueles que lesarem ou ameaçarem de lesão esses bens com penas que também afetam bens essenciais, como a liberdade (no caso da pena de prisão).

Essa tensão significa que nenhum dos pólos (segurança pública e direitos dos condenados) pode ser anulado. Harmonizá-los é o desafio do legislador e do intérprete. A Constituição de 1988 deixou isso claro ao considerar determinados crimes como hediondos e, por outro lado, proibir determinadas penas (como as de caráter perpétuo e as cruéis). A questão é saber se, dentro dos limites constitucionais, a pena de castração seria admissível para criminosos sexuais, especialmente para os pedófilos.

Primeiramente, a castração física deve ser rejeitada de pronto pelo motivo já colocado: trata-se de uma intervenção permanente no corpo da pessoa, o que é inviabilizado pela vedação constitucional das penas de caráter perpétuo. Aliás, só recentemente, a jurisprudência passou a admitir a castração voluntária realizada nas cirurgias de mudança de sexo.

A castração química também não é isenta de problemas. A privacidade do condenado é brutalmente atingida, pela interferência em sua integridade física. Além disso, a maior parte da doutrina nacional considera que qualquer pena que atinja o corpo do condenado é cruel e, portanto, vedada constitucionalmente. De modo mais explícito, o art. 5°, XLIX, dispõe que "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e mental".

Portanto, a castração, física ou química, é inaceitável como pena em nosso ordenamento jurídico, e os projetos de lei nesse sentido são flagrantemente inconstitucionais. A esse respeito, vide a contundente crítica de Spalding à lei da Flórida que prevê essa pena. Apesar de se referir ao ordenamento jurídico norte-americano, suas conclusões aplicam-se perfeitamente à situação brasileira.


4. A questão criminológica

Várias pesquisas indicam que a testosterona, hormônio ligado à sexualidade e à violência, é um dos fatores comumente presentes naquelas pessoas que cometem crimes. Não é à toa que a maioria dos homicidas são homens na faixa etária de 15 a 39 anos. Eles têm níveis de testosterona 15 a 20 vezes maiores que as mulheres, e é nessa faixa etária que esse hormônio atinge o auge no corpo.

Porém, a biologia não explica tudo. Fatores culturais, educacionais e mesmo psicológicos têm tem grande peso no cometimento do crime. E não se pode deixar de considerar o livre-arbítrio do criminoso, até porque as teorias deterministas estão há muito desacreditadas.

Abrahansen (The Psicology of Crime, p. 140 apud DIAS, p. 179) coloca a questão das causas dos crimes nos seguintes termos matemáticos: C = (T + S)/R, onde C (crime) é o resultado das tendências impulsivas (T) mais o peso das variáveis situacionais (S), sobre as resistências (R) racionais e emocionais do indivíduo ao cometimento do crime. Nesse sentido, o crime só ocorre o indivíduo não tem a força de vontade necessária para resistir a seus impulsos internos e à influência do meio.

O condenado que não quer, de fato, sua reabilitação, pode ser capaz de praticar crimes sexuais mesmo que esteja privado de sua testostenora. Há relatos, inclusive, de pessoas impotentes que praticaram crimes de conotação sexual. Por outro lado, o condenado que quer, sinceramente, sua reabilitação, poderia frear seus instintos com uma força de vontade mais ferrenha. Nessa situação, incluem-se os pedófilos que voluntariamente requereram a castração química, na cidade de Santo André, e o protagonista do competente filme "O Lenhador", um pedófilo que, depois de cumprida a pena, tenta levar uma vida normal.


5. Uma alternativa: a castração química como "direito" do condenado

A pena tem várias finalidades, dentre as quais se destacam a ressocialização do condenado e a prevenção geral de crimes. Por mais imperfeita que seja, a pena privativa de liberdade é o meio mais eficiente e humano que a civilização conseguiu, para a repressão e a prevenção de crimes.

Existem, porém, outros meios que merecem serem utilizados ou, ao menos, tentados. A castração química é um desses meios. Pesquisas indicam que a reincidência de criminosos sexuais cai de 75 para 2% após a aplicação do hormônio feminino. Trata-se de uma estatística que não pode ser desprezada. Várias pessoas deixariam de ser vitimadas por estupros e atentados violentos ao pudor com o uso dessa alternativa.

Porém, já foi visto que a castração química como pena encontra óbices constitucionais intransponíveis. Inclusive em países com legislação penal bem mais rigorosa, como os Estados Unidos, a questão gera profundos questionamentos.

Além disso, a "ressocialização" do criminoso sexual depende fundamentalmente de sua força de vontade, que deve ser amparada por um consistente tratamento psicológico. A junção desse fator com a castração química pode trazer efetivos avanços na recuperação dessas pessoas.

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A alternativa que respeitaria os direitos constitucionais do condenado e colaboraria com a diminuição dos crimes sexuais seria transformar a castração química em um direito. Assim, aquele que se dispusesse a realizar o tratamento seria beneficiado com uma redução da pena que poderia variar entre um e dois terços, em analogia ao benefício da delação premiada, prevista na Lei 8.072/90. A lógica é simples: parte da pena de prisão tornar-se-ia desnecessária, pois a função ressocializadora estaria sendo atingida também por meio da castração química.

O condenado teria a opção de cumprir a pena nos termos da lei atual ou de submeter-se ao tratamento durante todo o período em que ele não estivesse encarcerado. Obviamente, esse tratamento somente poderia ser feito após laudo médico que comprovasse sua necessidade e com o pertinente apoio psicológico.

Hipoteticamente falando, um estuprador condenado a nove anos de reclusão poderia cumprir de três a seis anos da pena, sendo que, no restante do período, ele deveria comparecer ao local adequado para exames e aplicação do hormônio feminino. Caso ele interrompesse o tratamento, a solução seria prendê-lo novamente para que cumprisse o restante da pena.

Essa não é a solução ideal, já que, ao fim do prazo previsto para a condenação, o criminoso não seria mais submetido a tratamento, exceto se o requeresse expressamente. Porém, considerando que a Constituição veda, em cláusula pétrea, a pena de caráter perpétuo, essa é, talvez, a melhor solução constitucionalmente viável.


6. A título de conclusão

O debate sobre a castração química é urgente e, dele, não se pode fugir. É fato contundente que, no Brasil, um quarto das vítimas de crimes sexuais são crianças de zero a seis anos. Porém, esse debate não pode ser irracional e sim determinado pela pauta de valores constitucionais. Para isso, a experiência internacional tem muito a nos ensinar. Soluções que funcionam em outros países devem ser aqui adotadas desde que compatíveis com a nossa Constituição.

Qualificar a castração química de "nazista e medieval", como fez um famoso doutrinador, é apenas uma forma de se evitar o debate utilizando-se de expressões sem conteúdo nenhum (aliás, essa é uma das estratégias de retórica descritas por Schopenhauer no livro "Como vencer um debate sem precisar ter razão"). A eficácia das sanções penais, compatibilizada com os direitos individuais, deve ser o maior objetivo do sistema penal.

Por fim, mais do que decidir entre prender e castrar, a questão é: como evitar o crime com o menor custo (humano, social e econômico) possível?


Bibliografia:

DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. O homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra Editora, 1997.

HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para autores de crimes sexuais e o caso brasileiro. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/9823. Acessado em 25.10.2007.

SPALDING, Larry Helm. FLORIDA''S 1997 CHEMICAL CASTRATION LAW: A RETURN TO THE DARK AGES. Disponível em: http://www.law.fsu.edu/journals/lawreview/frames/252/spalfram.html. Acessado em 25.10.2007.

WICKAM, DeWayne. Castration often fails to halt offenders. Disponível em: http://www.usatoday.com/news/opinion/columnists/wickham/2001-09-04-wickham.htm. Acessado em 25.10.2007.

WUNDERLICH, Alberto. Guerra de hormônios. Pense na castração química como punição para crime sexual. Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/53566,1. Acessado em 25.10.2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. V. 1. Parte Geral. São Paulo: RT, 2005.

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Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "direito" do condenado à castração química. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1593, 11 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10613. Acesso em: 5 nov. 2024.

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