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Teoria da legislação e controle de constitucionalidade:

algumas notas

01/12/2000 às 00:00
Leia nesta página:

"Legislar é fazer experiências com o destino humano" (Jahrreiss)


1. Considerações Preliminares

A moderna doutrina constitucional ressalta que a utilização de fórmulas obscuras ou criptográficas, motivadas por razões políticas ou de outra ordem, contraria princípios básicos do próprio Estado de Direito, como os da segurança jurídica e os postulados de clareza e de precisão da norma jurídica.

O Estado de Direito busca submeter todas as relações ao regime da lei. É da essência do sistema democrático, por outro lado, que as decisões fundamentais para a vida da sociedade sejam tomadas pelo Poder Legislativo, instituição fundamental do regime democrático representativo.

Assim, vê-se o legislador confrontado com ampla e variada demanda por novas normas. A competência legislativa implica responsabilidade e impõe ao legislador a obrigação de empreender as providências essenciais reclamadas. Compete a ele não só a concretização genérica da vontade constitucional. Cumpre-lhe, igualmente, colmatar as lacunas ou corrigir os defeitos identificados na legislação em vigor. O poder de legislar converte-se, pois, num dever de legislar.

A instituição de mecanismos especiais destinados ao controle judicial da omissão legislativa, tais como o mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI) e a ação direta de controle da omissão (CF, art. 103, § 2º), revela que o próprio sistema constitucional passou a reconhecer a existência de pretensão à edição de um ato normativo.

Assinale-se, por outro lado, que as exigências da vida moderna não só impõem ao legislador um dever de agir, mas também lhe cobram uma resposta rápida e eficaz aos problemas que se colocam (dever de agir com a possível presteza e eficácia). É exatamente a formulação apressada (e, não raras vezes, irrefletida) de atos normativos que acaba ocasionando as suas maiores deficiências: a incompletude, a incompatibilidade com a sistemática vigente, incongruência, inconstitucionalidade, etc.

Nunca é demasiado enfatizar a delicadeza da tarefa confiada ao legislador. A generalidade, a abstração e o efeito vinculante que caracterizam a lei revelam não só a grandeza, mas também a problemática que marcam a atividade legislativa. A despeito dos cuidados tomados na feitura da lei (os estudos minudentes, os prognósticos realizados com base em levantamentos cuidadosos, etc.), não há como deixar de caracterizar o seu afazer como uma experiência. Trata-se, porém, da mais difícil das experiências, a "experiência com o destino humano".

Essas peculiaridades do processo de elaboração legislativa foram percebidas por Victor Nunes Leal, que anotou, a propósito:

"Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As conseqüências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis".

Os riscos envolvidos no afazer legislativo exigem peculiar cautela de todos aqueles que se ocupam do difícil processo de elaboração normativa. Eles estão obrigados a colher variada gama de informações sobre a matéria que deve ser regulada, pesquisa esta que não pode ficar limitada a aspectos estritamente jurídicos. É certo que se faz mister realizar minuciosa investigação no âmbito legislativo, doutrinário e jurisprudencial. Imprescindível revela-se, igualmente, a análise da repercussão econômica, social e política do ato legislativo.

Somente a realização dessa complexa pesquisa, que demanda a utilização de conhecimentos interdisciplinares, poderá fornecer elementos seguros para a escolha dos meios adequados para atingir os fins almejados.


2. O Caráter Subsidiário da Atividade Legislativa

É certo que a lei exerce um papel deveras relevante na ordem jurídica do Estado de Direito.

Assinale-se, porém, que os espaços não ocupados pelo legislador não são dominados pelo caos ou pelo arbítrio.

Embora a competência para editar normas, no tocante à matéria, quase não conheça limites (universalidade da atividade legislativa), a atividade legislativa é, e deve continuar sendo, uma atividade subsidiária. Significa dizer que o exercício da atividade legislativa está submetido ao princípio da necessidade, isto é, que a promulgação de leis supérfluas ou iterativas configura abuso do poder de legislar.

É que a presunção de liberdade, que lastreia o Estado de Direito democrático, pressupõe um regime legal mínimo, que não reduza ou restrinja, imotivada ou desnecessariamente, a liberdade de ação no âmbito social. As leis hão de ter, pois, um fundamento objetivo, devendo mesmo ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que estabelecem restrições dispensáveis.


3. Vinculação Normativa do Legislador e Controle de Constitucionalidade

A atividade legislativa há de ser exercida em conformidade com as normas constitucionais (CF, art. 1º, parágrafo único, e art. 5º). Da mesma forma, o poder regulamentar (CF, art. 84, IV) deve ser exercido dentro dos limites estabelecidos pela lei. Isso significa que a ordem jurídica não tolera contradições entre normas jurídicas ainda que situadas em planos diversos.

Nem sempre se logra observar esses limites normativos com o necessário rigor. Fatores políticos, razões econômico-financeiras ou de outra índole acabam prevalecendo no processo legislativo, dando azo à aprovação de leis manifestamente inconstitucionais ou de regulamentos flagrantemente ilegais.

Assinale-se, porém, que a aprovação da lei não garante sequer a sua aplicação inicial, pois é muito provável -- sobretudo quando se tratar de matéria concernente a direitos individuais -- que as questões controvertidas sejam submetidas ao Judiciário.

A Constituição de 1988 ampliou as possibilidades de se questionar a constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público. O constituinte preservou íntegro o sistema de controle incidental de normas, permitindo que qualquer Juiz ou Tribunal afaste a aplicação da lei inconstitucional no caso concreto.

A par desse amplo sistema de controle de constitucionalidade difuso, houve por bem o constituinte ampliar, de forma significativa, o chamado controle abstrato de normas (ação direta de inconstitucionalidade), que, no modelo anteriormente consagrado, somente podia ser instaurado pelo Procurador-Geral da República. Nos termos da Constituição de 1988, podem propor a ação direta de inconstitucionalidade os seguintes órgãos ou autoridades: a) Presidente da República; b) Mesa do Senado Federal; c) Mesa da Câmara dos Deputados; d) Mesa de Assembléia Legislativa; e) Governador de Estado; f) Procurador-Geral da República; g) Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; h) Partido político com representação no Congresso Nacional; i) Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

A amplitude outorgada ao controle abstrato de normas acabou por conferir-lhe quase o significado de uma ação popular de inconstitucionalidade, pois permite que qualquer um do povo logre induzir um dos entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade pretendida.

Assinale-se, ainda, que, tal como a Constituição de 1967/69 (art. 119, I, "p"), a Constituição de 1988 (art. 102, I, "p") outorgou ao Supremo Tribunal Federal a competência para conceder medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade. Assim, o Tribunal poderá suspender, liminarmente, a execução do ato normativo, se considerar presentes os pressupostos relativos à plausibilidade jurídica da argüição (fumus boni juris) e à possibilidade de que a aplicação da lei venha acarretar danos irreparáveis ou de difícil reparação (periculum in mora).

Todo esse complexo instrumentarium de controle de constitucionalidade está a recomendar a todos os partícipes do processo de elaboração de leis especial cautela no exame da constitucionalidade das proposições normativas. Mesmo aqueles que se orientam por parâmetros de índole marcadamente pragmática devem estar advertidos de que, já do prisma estritamente prático, eventual ofensa à Constituição não deverá trazer qualquer utilidade, pois é muito provável que se suspenda a eficácia do dispositivo questionado antes mesmo de sua aplicação inaugural.

Um levantamento na jurisprudência do STF indica que, entre 5 de outubro de 1988 e 27 de maio de 1998, 99 disposições federais e 602 preceitos estaduais tiveram a sua eficácia suspensa, em sede de cautelar. No mesmo período, 174 disposições estaduais e 27 normas federais tiveram a sua inconstitucionalidade definitivamente declarada pelo Supremo Tribunal no âmbito do controle abstrato de normas

Esses números ressaltam a importância do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Eles demonstram também que, enquanto pretenso "legislador negativo", o Supremo Tribunal Federal. bem como qualquer outra Corte com funções constitucionais. acaba por exercer um papel de "legislador positivo". É que o poder de eliminar alternativas normativas contém, igualmente, a faculdade de, por via direta ou transversa, indicar as fórmulas admitidas ou toleradas.

Tudo isso eleva o controle de constitucionalidade à condição de elemento fundamental da teoria da legislação e da técnica legislativa. Todos os órgãos encarregados de tarefa nomogenética ou legiferante devem ater-se, detidamente, no exame da constitucionalidade da proposta formulada sob pena de verem frustrados significativos esforços de formulação ou reformulação legislativa.

Isso significa que as pessoas encarregadas da elaboração legislativa deverão ter sempre presente a existência de um órgão de controle, de um Tribunal que dispõe de competência não só para decretar a invalidade de eventual decisão legislativa, mas também para suspender, cautelarmente, a eficácia de qualquer providência adotada.

Vê-se, assim, que a prática constitucional (jurisprudência, "obiter dicta") desenvolvida no âmbito do controle judicial de constitucionalidade passa a ser referência obrigatória para a tarefa de elaboração legislativa.

Tendo em vista a necessidade de sistematização de um controle de legitimidade rigoroso das proposições legislativas, alguns ordenamentos jurídicos vem adotando um sistema de prova de constitucionalidade das leis com o objetivo de permitir um exame criterioso das questões mais comuns em sede de controle de constitucionalidade. Mencione-se, a propósito, o modelo de provas estabelecido pelo Regimento Comum dos Ministérios Federais da Alemanha (Gemeinsame Geschäftsordnung der Bundesministerien. GGO II, art. Parágrafo 23), que tenta fornecer um elenco de questões básicas que devem ser analisadas no exame da constitucionalidade da proposta legislativa.

Conscientes da existência desse novo contexto político-normativo, estamos a discutir, no âmbito do Poder Executivo federal, a eventual introdução de uma "checklist" semelhante, inspirada diretamente naquela fixada pelo Regimento Comum alemão, com o objetivo de que se exercite um controle cada vez mais rigoroso sobre constitucionalidade dos projetos de lei e de atos normativos no âmbito da própria Administração.

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Caso adotada, essa fórmula deverá servir de referência básica para todos aqueles que tiverem que apreciar a proposta de alteração legislativa sob a perspectiva de sua legitimidade.

É o que se propõe nos "Pontos para análise da constitucionalidade de projeto de lei ou de ato normativo federal" reproduzidos no Apêndice.


Apêndice - Pontos para Análise da Constitucionalidade da Proposta

  • 1. Qual é o fundamento constitucional da competência da União?

    • 1.1. Trata-se de competência privativa?

    • 1.2. Tem-se um caso de competência concorrente?

    • 1.3. Na hipótese de competência concorrente, está a proposta formulada de modo a assegurar a competência substancial do Estado-membro?

    • 1.4. A proposta não apresenta uma formulação extremamente detalhada que acaba por exaurir a competência estadual?

    • 1.5. A matéria é de fato de iniciativa do Poder Executivo? Ou estaria ela afeta à iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores ou do Procurador-Geral da República?

  • 2. Em se tratando de proposta de medida provisória, há justificativas plausíveis para edição da providência?

    • 2.1. O que acontecerá se nada for feito? A proposta não poderia ser submetida ao Congresso em regime de urgência?

    • 2.2. Trata-se de matéria que pode ser objeto de medida provisória (cf. v.g. art. 246. da CF)?

    • 2.3. Trata-se de matéria relativa ao direito penal e ao direito processual penal?

    • 2.4. Trata-se de matéria reservada à lei complementar?

    • 2.5. Trata-se de matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional?

    • 2.6. No caso de reedição, a alteração proposta é necessária e guarda relação de pertinência com a matéria objeto da medida provisória?

  • 3. As regras propostas afetam direitos fundamentais? As regras propostas afetam garantias institucionais?

  • 4. Os direitos de liberdade podem ser afetados?

    • 4.1. Direitos fundamentais especiais podem ser afetados?

    • 4.2. Qual é o âmbito de proteção do direito fundamental afetado?

    • 4.3. O âmbito de proteção sofre restrição?

    • 4.4. Cuida-se de direito individual submetido a simples reserva legal?

    • 4.5. Cuida-se de direito individual submetido a reserva legal qualificada?

    • 4.6. Qual seria o outro fundamento constitucional para a aprovação da lei (v.g: regulação de colisão de direitos?)?

    • 4.7. A proposta não abusa de formulações genéricas (conceitos jurídicos indeterminados)?

    • 4.8. Pode o cidadão prever e aferir as limitações ou encargos que poderão lhe advir?

    • 4.9. A fórmula proposta não se afigura extremamente casuística?

    • 4.10. As normas previstas preservam o direito ao contraditório e à ampla defesa no processo judicial e administrativo?

    • 4.11. Observou-se o princípio da proporcionalidade ou do devido processo legal substantivo?

      • 4.11.1. Destina-se a regra a atingir objetivo previsto na Constituição?

      • 4.11.2. A disciplina proposta é adequada para consecução desses fins?

      • 4.11.3. A regra proposta é necessária ou seria suficiente fórmula menos gravosa?

      • 4.11.4. A disciplina proposta não produz resultados intoleráveis ou insuportáveis para o atingido?

    • 4.12. A proposta preserva o núcleo essencial dos direitos fundamentais afetados?

  • 5. Os direitos de igualdade foram afetados?

    • 5.1. O princípio geral de igualdade foi observado?

    • 5.2. Observaram-se os direitos especiais de igualdade?

      • 5.2.1. Quais são os pares de comparação?

      • 5.2.2. Os iguais foram tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual?

      • 5.2.3. Existem razões que justifiquem as diferenças decorrentes ou da natureza das coisas ou de outros fundamentos de índole objetiva?

      • 5.2.4. As diferenças existentes justificam o tratamento diferenciado? Os pontos em comum legitimam o tratamento igualitário?

  • 6. A proposta pode afetar situações consolidadas? Há ameaça de ruptura do princípio de segurança jurídica?

    • 6.1. Observou-se o princípio de proteção do direito adquirido?

    • 6.2. A proposta pode afetar o ato jurídico perfeito?

    • 6.3. A proposta contém possível afronta à coisa julgada?

    • 6.4. Trata-se de situação jurídica suscetível de mudança. institutos jurídicos, situações estatutárias, garantias institucionais?

    • 6.5. Não seria recomendável a adoção de cláusula de transição entre o regime vigente e o regime proposto?

  • 7. Trata-se de norma de caráter penal?

    • 7.1. A pena proposta é compatível com outras figuras penais existentes no ordenamento jurídico?

    • 7.2. Tem-se um agravamento ou uma melhoria da situação do atingido?

    • 7.3. Trata-se de uma pena mais grave?

    • 7.4. Trata-se de norma que propicia a despenalização da conduta?

    • 7.5. Eleva-se o prazo de prescrição do crime?

    • 7.6. No caso de proposta que confere tratamento mais gravoso à conduta, ressalva-se expressamente a aplicação da lei nova somente aos fatos supervenientes a partir de sua entrada em vigor?

  • 8. Pretende-se instituir ou aumentar tributo? Qual é o fundamento constitucional?

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Sobre o autor
Gilmar Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. Teoria da legislação e controle de constitucionalidade:: algumas notas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -943, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Este trabalho foi publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, de maio de 2000

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