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O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral.

Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy

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01/12/2007 às 00:00

Resumo:


  • A tese do caso especial de Alexy estabelece que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral.

  • A conexão conceitualmente necessária entre Direito e moral é fundamentada pela pretensão de correção, que implica uma pretensão de justificação e generalizabilidade.

  • O Direito, segundo Alexy, deve ser visto como um sistema de regras, princípios e procedimentos, o que o diferencia do positivismo jurídico tradicional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A tese do caso especial procura conceitualizar uma intuição muito simples na reflexão jurídica: a de que o Direito não pode operar hermeticamente por seus próprios termos.

SUMÁRIO:1 Introdução. 2 Fundamentos da tese do caso especial. 2.1 Teoria do discurso.2.2 Discurso prático geral e unidade da razão prática. 2.3 Pretensão de correção. 3 A tese do caso especial. 4 Conseqüências da tese do caso especial. 4.1 Conexão conceitualmente necessária entre Direito e moral. 4.2 Direito como um sistema de regras, princípios e procedimentos. 4.3 Tese da integração. 5 Conclusão.Bibliografia


1 Introdução

A popularidade de Robert Alexy, nos últimos tempos, deveu-se, em grande parte, à sua conhecida teoria dos princípios, na qual o jusfilósofo alemão faz uma análise detalhada da distinção entre regras e princípios e elabora regras e critérios para lidar com esses. Sem negar a importância e relevância atual deste tema, este artigo, contudo, procura tratar de outra importante teoria de Alexy, mais especificamente, a chamada tese do caso especial, que se situa no centro de sua teoria discursiva do Direito.

Tal teoria encontra seu fundamento principalmente na ética do discurso desenvolvida por Jürgen Habermas, cujas premissas servem de suporte para Alexy desenvolver uma teoria do Direito centrada na argumentação. Mais do que o alicerce de uma teoria da argumentação erigida sob a idéia de discurso, a tese do caso especial possui importantes implicações para temas centrais da filosofia do Direito, nomeadamente: a relação entre Direito e moral; a relação entre Direito e razão prática; e a relação entre argumentação jurídica e argumentação prática.

O fio condutor da análise, portanto, será a tese do caso especial, segundo a qual o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Segundo ela, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral porque compartilha com ele de certas semelhanças (ambos lidam com questões práticas e erigem uma pretensão de correção), ao mesmo tempo em que se diferencia do mesmo em um aspecto crucial: a pretensão de correção levantada no Direito é restringida por uma série de condições limitadoras, como leis, precedentes e dogmática.

Primeiramente, será feita uma exposição daqueles que são os fundamentos da tese do caso especial: a teoria do discurso, o conceito de Alexy de discurso prático geral e a pretensão de correção como um elemento necessário do Direito. Aqui a preocupação será fixar o paradigma dentro do qual se procurará refletir sobre as questões acima assinaladas. Obviamente, essas mesmas questões podem ser respondidas de formas extremamente díspares em outras tradições filosóficas. No entanto, a fim de poder abordá-las de maneira mais profunda, a análise será restrita à visão de Alexy da teoria do discurso.

Posteriormente, será analisada a tese do caso especial em si, e o que ela traz de inovador com relação à teoria do Direito. Nesta parte será demonstrado que ela está substancialmente correta, e que as críticas a ela dirigidas não se sustentam. Por fim, serão abordadas as conseqüências, tanto da tese do caso especial como de seu principal elemento, a pretensão de correção. Dentre as principais conseqüências, está não só um ataque à principal tese positivista (separação conceitual entre Direito e moral) como também o desenvolvimento de uma nova teoria do Direito fundada sob a idéia de que este é a institucionalização da razão prática e que, por isso, não só ele deve ser concebido como um sistema de regras, princípios e procedimentos, como também a argumentação prática geral deve ser integrada na argumentação jurídica e ser utilizada a todo o momento.


2 Fundamentos da tese do caso especial

Alexy recolheu influências de diversas origens a fim de sustentar seu projeto discursivo do Direito. No entanto, embora Hare, Baier, a Escola de Erlangen, Perelman, entre outros, tenham importância nesse projeto, é inegável que a maior contribuição surgiu da teoria do discurso. [01] Na primeira parte do capítulo serão expostos, em linhas gerais, os seus principais conceitos, a fim de tornar mais compreensível a própria teoria de Alexy, que faz uso desses termos constantemente. A abordagem dos princípios e regras do discurso prático geral é imprescindível para se entender satisfatoriamente o discurso jurídico e verificar se a tese do caso especial está correta e se este é um caso especial daquele.

Na segunda parte serão abordados alguns aspectos distintivos da teoria de Alexy com relação à teoria do discurso, como os conceitos de "discurso prático geral" e "unidade da razão prática", que servem para fundamentar a tese do caso especial, que será o principal objeto de análise desse artigo.

Já na terceira parte o foco será naquele que é o cerne da tese do caso especial, e o principal elemento que liga o discurso jurídico ao discurso prático geral, qual seja, a pretensão de correção. Com estes três alicerces, a tese do caso especial se estrutura não só como uma sistematização e reinterpretação da teoria do discurso prático habermasiana, mas também como uma extensão dessa tese para o campo específico do Direito. [02]

2.1 Teoria do discurso

A teoria do discurso é uma teoria kantiana da racionalidade prática. A ética kantiana possui um caráter deontológico, cognitivista, formalista e universalista. [03] A teoria do discurso compartilha da maior parte dessas características, embora entre ambas haja algumas diferenças. [04] Uma das principais é que a ética do discurso faz derivar os conteúdos de uma moral universalista a partir dos pressupostos gerais da argumentação, pois quem empreende a tentativa de participar numa argumentação, "admite implicitamente pressupostos pragmáticos gerais de teor normativo; é, então, possível abstrair o princípio moral a partir do teor destes pressupostos argumentativos." [05] Assim, segundo Habermas:

Na ética do discurso, o método da argumentação moral substitui o imperativo categórico. É ela que formula o princípio ‘D’:

-as únicas normas que têm o direito a reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático.

O imperativo categórico desce ao mesmo tempo na escala, transformando-se num princípio de universalização ‘U’, que nos discursos práticos assume o papel de uma regra de argumentação:

-no caso das normas em vigor, os resultados e as conseqüências secundárias, provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses de cada um, terão de poder ser aceites voluntariamente por todos. [06]

O princípio da ética do discurso, portanto, assenta neste fato pragmático-universal: apenas as regras morais que podem obter a anuência de todos os indivíduos em causa, na qualidade de participantes num discurso prático, podem reclamar validade. [07]

E muito embora, no dia-a-dia, as pretensões de validade que se ligam a cada ato de fala são aceitas de modo mais ou menos ingênuo, essas pretensões podem ser problematizadas. Quando o que se problematiza são as pretensões de verdade ou de correção, ocorre a passagem da ação comunicativa [08] para o discurso. Um discurso é uma série de ações interligadas devotadas a testar a verdade de asserções (caso se trate de um discurso teórico) ou a correção de afirmações normativas (caso se trate de um discurso prático). [09]

Feita essa distinção, deve-se analisar agora de que forma Alexy procura fundamentar racionalmente os juízos práticos ou morais em geral com a teoria do discurso. Para isso, ele procura fugir de dois extremos: de um lado, as posições subjetivistas, relativistas, decisionistas ou irracionalistas; de outro, as objetivistas, absolutistas ou racionalistas. Assim, acaba aderindo a uma teoria moral procedimental, [10] como o é a teoria do discurso, que formula regras ou condições da argumentação ou decisão prática racional: "la pieza nuclear de la teoría del discurso está formada por un sistema de reglas del discurso y de principios del discurso, cuya observancia asegura la racionalidad de la argumentación y de sus resultados." [11]

Segundo todas as teorias procedimentais, a adequação de uma norma ou a verdade de uma proposição depende de se a norma ou a proposição é ou pode ser o resultado de um procedimento determinado. [12] Dito de outra forma, uma norma ou diretriz isolada que satisfaça os critérios determinados pelas regras do discurso pode ser considerada justa ou correta.

Obviamente, o fato de uma norma ter passado por um teste discursivo não lhe garante algo como um selo de racionalidade absoluta. No entanto, a investigação discursiva, ainda que não leve à certeza, leva pelo menos a sair do campo da mera opinião e da crença subjetiva, [13] já que "mais do que isso não é possível em questões práticas." [14]Uma das tarefas da teoria do discurso é precisamente a de criar normas que, por um lado, sejam suficientemente fracas, portanto, de pouco conteúdo normativo, o que permite que indivíduos com opiniões normativas muito diferentes possam concordar com elas –e, por outro lado, sejam tão fortes, que qualquer discussão feita com base nelas seja designada como ‘racional’. [15] Embora as regras de racionalidade deixem um amplo espaço para diversas normas contraditórias serem consideradas racionais (discursivamente possíveis), igualmente elas definem algumas como discursivamente necessárias e outras como discursivamente impossíveis. "As regras de racionalidade já excluem certos resultados. Com elas, não é compatível que um indivíduo, mesmo um que consinta, aceite um estado duradouro sem direitos, ou seja, o estado de escravo." [16] Apesar do espaço do discursivamente possível ser muito grande e o do discursivamente impossível muito pequeno, essas regras não são inúteis nem triviais. Sua principal função seria a de formular o que Alexy chama de um código de razão prática, que "no sólo complementa las reglas específicas del discurso jurídico, sino que constituye también la base para su justificación y crítica, en el marco de una justificación y crítica del sistema jurídico en su conjunto." [17]

Agora, se uma norma, segundo uma teoria procedimental como o é a teoria do discurso, pode ser considerada correta ao passar por um determinado procedimento, ou seja, obedecer a certas regras, como, por sua vez, fundamentar essas regras? Pois uma coisa é fundamentar uma norma aludindo a sua capacidade de passar por um teste discursivo, outra é fundamentar as regras que devem formar esse teste. A fim de fazer isso, deve-se entrar num outro nível: o do discurso sobre as regras do discurso. [18]

Segundo a ética do discurso, as regras do discurso não podem ser questionadas porque subjazem à estrutura da linguagem e expressam a existência de uma moral correta enraizada nela. Quem negar validez a essas regras incorrerá necessariamente em uma contradição performativa. [19] Pois essas regras estão implícitas em todo processo de argumentação, já que todo falante une a suas manifestações pretensões de inteligibilidade, veracidade, correção e verdade. E quem emite um juízo de valor ou de dever necessariamente erige uma pretensão de correção. Essas condições são constitutivas de toda prática argumentativa. Essa maneira de fundamentar as regras do discurso é denominada fundamentação pragmática universal (ou pragmática transcendental, para Alexy). A pragmática universal tem por objeto a reconstrução da base universal de validez da fala, [20] e como tarefa identificar e reconstruir as condições universais do entendimento possível. [21]

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Alexy não aceita totalmente tal método, e procura fundamentar a validez universal das regras do discurso com um argumento constituído de três partes. A primeira consiste em uma versão muito fraca de um argumento pragmático-transcendental. O segundo elemento parcial aponta para a maximização individual de utilidades. E esta vinculação pressupõe, como terceiro elemento, uma premissa empírica. Dito mais detalhadamente:

Las reglas del discurso expresan, primero, una competencia que pertenece a la forma más universal de vida de la persona. Todo el que participa en ella expresa alguna vez frente a alguien una aseveración, plantea a alguien la pregunta ‘por qué?’ y aduce alguna vez frente a alguien una razón. Al hacerlo, ejerce aquella competencia, aunque más no sea rudimentariamente. Segundo, todo aquel que tenga un interés en la corrección tiene que hacer uso de aquella competencia. Tercero, para quien no tiene ningún interés en la corrección, la observancia objetiva de las reglas del discurso es, desde el punto de vista de la maximización individual de utilidades, ventajosa al menos a largo plazo. [22]

Esses fundamentos, no entanto, não são suficientes para sustentar a tese do caso especial. A fim de fazer isso, Alexy precisa diferenciar-se da visão de Habermas em alguns pontos, principalmente no conceito de discurso prático geral.

2.2 Discurso prático geral e unidade da razão prática

Embora Alexy nunca tenha sido suficientemente claro na explicitação do conceito de discurso prático geral, [23] é esse conceito uma das principais linhas diferenciadoras entre ele e Habermas, se constituindo num dos principais fundamentos da tese do caso especial.

A idéia de discurso prático geral ganhou importância na tese de Alexy ao surgir como resposta à crítica de Habermas, que afirmava não ser possível o discurso jurídico ser um caso especial do discurso prático moral, [24] já que o discurso moral, no sentido de Habermas, [25] se refere à universalização e somente à universalização de normas, enquanto o discurso jurídico "precisa manter-se aberto a argumentos de outras procedências, especialmente a argumentos pragmáticos, éticos e morais." [26]

No entanto, como esclarece Alexy, o genus proximum do discurso jurídico não é o discurso moral, mas o discurso prático geral. Por discurso prático geral Alexy entende exatamente um discurso em que participam argumentos relativos a questões pragmáticas, éticas e morais. A distinção entre esses três tipos de argumentos ele extrai igualmente de Habermas. Segundo esse: "somos assaltados por vários problemas práticos em diferentes situações. Estes ‘têm’ de ser dominados, caso contrário podem surgir conseqüências, no mínimo, importunas." [27] Dessa forma a questão "O que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral, consoante a forma como o problema é apresentado. Em todos os casos se está perante a fundamentação de decisões tomadas entre possibilidades alternativas de conduta, mas cada tarefa reclama um tipo de conduta e cada questão correspondente reclama um tipo de resposta. [28] "O terminus ad quem do respectivo discurso pragmático é a recomendação de uma tecnologia adequada ou de um programa exequível." [29] Já o terminus ad quem do respectivo discurso ético-existencial "é um conselho sobre a correcta orientação na vida e sobre a realização de uma forma de vida individual." [30] E o terminus ad quem do discurso prático-moral "é um acordo acerca da solução justa para um conflito no âmbito da acção regulada por normas." [31]

Assim, o discurso prático geral é mais complexo do que o discurso moral, e enfeixa argumentos de diversos tipos, os quais têm peso igualmente na argumentação especificamente jurídica. Para Habermas, tal visão:

is not sufficiently sensitive for the desired separation of powers. Once the judge is allowed to move in the unrestrained space of reasons that such a "general practical discourse" offers, a "red line" that marks the division of powers between courts and legislation becomes blurred. [32]

Embora Alexy ofereça argumentos para defender princípios formais como a separação de poderes, [33] sua visão de discurso prático geral como fundamento do discurso jurídico não afeta tal separação substancialmente. A sua preocupação, diferentemente de Habermas, é não insular os argumentos morais dos argumentos jurídicos no raciocínio dos juízes, [34] já que um dos pontos de partida mais importantes da argumentação jurídica são as leis que resultam do processo legislativo, e "si la argumentación jurídica debe someterse a lo que ha sido decidido en el proceso democrático tiene que tomar en consideración los tres tipos de razones presupuestas por, o conectadas con, sus resultados." [35]

Uma última questão deve ser vista. Foi abordado anteriormente que o discurso prático geral combina questões pragmáticas, éticas e morais num único discurso, e que os argumentos práticos gerais, portanto, podem ser definidos no mesmo sentido. Porém, de que forma tais elementos se harmonizam? Segundo Alexy há uma relação de prioridade e permeabilidade entre o adequado (discurso pragmático), o bom (discurso ético) e o justo (discurso moral).

El discurso práctico general sería, dicho brevemente, un discurso que combinara los puntos de partida de la adecuación o utilidad, del valor o identidad y de la moralidad o justicia. Existiría tanto un orden prioritario como una relación de permeabilidad entre lo adecuado, lo bueno y lo justo. [36]

Há uma prioridade do justo sobre o bom nas questões mais elementares concernentes aos direitos humanos como, por exemplo, a escravidão, tortura e tratamento degradante. Tais questões de justiça, que podem ser deduzidas da argumentação pragmático-transcendental, são objetivas e independentes de qualquer concepção de bem. [37] Embora essa prioridade seja algo simples quando o que se ordena está claramente deslindado entre si, como quando falamos de direitos humanos elementares, não o é se se concebe a justiça como um compromisso entre todas as questões de distribuição e retribuição, pois:

los argumentos relativos a cómo comprenderse a uno mismo y a la comunidad en la que se vive desempeñan un papel esencial. Por ello, lo justo depende de lo bueno. Un cambio en la autocomprensión o la interpretación de la tradición en la que alguien ha sido educado puede implicar un cambio en su concepción de la justicia. Todo esto muestra que el discurso práctico general no es una simple mezcla o combinación, sino una conexión sistemáticamente necesaria que expresa la unidad sustancial de la razón práctica. [38] Éste es el fundamento de la tesis del caso especial. [39]

2.3 Pretensão de correção

O terceiro fundamento da tese do caso especial poderia ser rastreado a partir de perguntas cotidianas que freqüentemente surgem quando se discute sobre o valor das sentenças e a legitimidade do juiz em proferi-las. Assim, indaga-se se serão as sentenças (ou proposições jurídicas em geral) arbitrárias, subjetivas ou refletindo somente emoções do juiz ou do falante; se pode o juiz dar uma sentença sem afirmar, mesmo que implicitamente, que ela é correta; se teriam as discussões em torno de controvérsias jurídicas algum significado se elas fossem consideradas como somente uma opinião subjetiva, sem fundamentos que poderiam ser aceitos por todos, entre outras. Segundo Alexy, a resposta para as três indagações seria a mesma: não. Isso porque toda proposição jurídica erige necessariamente uma pretensão de correção. Correção significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos. [40] Uma proposição que se pretende correta nada mais é do que uma proposição que pode ser justificada racionalmente através de uma argumentação racional, e não arbitrária e despojada de valor, ou seja, meramente subjetiva.

Implícita na afirmação de que toda proposição jurídica necessariamente erige uma pretensão de correção está algo mais além de uma disputa acerca do caráter científico da jurisprudência. É a própria legitimidade do judiciário como instância de julgamento que está em jogo. Se a sentença deve ser vista como refletindo valores subjetivos do juiz ou ela é conseqüência, como afirmava um dos grandes realistas americanos, "do que o juiz tomou no café da manhã", por que haver um corpo constituído de juízes para tomar decisões? Em que sentido a legitimidade deles seria maior do que a de qualquer outro cidadão? E por que a argumentação jurídica (que, por essa visão, não seria nada além de uma retórica para disfarçar a verdadeira intenção do julgador) não poderia ser substituída por um método mais rápido e barato de decisão como, por exemplo, jogar uma moeda? [41]

Evidentemente, Alexy não acredita que o juiz possa se despojar de toda a carga pessoal na fundamentação. Há, por certo, na tomada de decisão, uma mistura entre a sua impressão inicial com a necessidade de justificar a decisão. Mas essa justificação não se reduz a um esclarecimento da psique do juiz. Ela deve ser feita à luz do ordenamento jurídico vigente, e vista como uma tentativa de ser a resposta mais adequada ao caso. [42] Num outro sentido, a pretensão de correção que necessariamente todo ato de fala normativo erige visa mais criar um critério ideal de verdade prática que, embora não possa ser alcançado, deve ser incessantemente buscado a fim de que os atos dos participantes tenham sentido. É por isso que Alexy não abandona por completo a tese de Dworkin da única resposta correta:

la idea regulativa de la única respuesta correcta no presupone que exista para cada caso una única respuesta correcta. Sólo presupone que en algunos casos se puede dar una única respuesta correcta y que no se sabe en qué casos es así, de manera que vale la pena procurar encontrar en cada caso la única respuesta correcta. [43]

Mas nenhum desses argumentos prova a existência de uma pretensão de correção enraizada nas proposições jurídicas. Pode-se vislumbrá-la como um elemento necessário do Direito pelo método da contradição performativa. Seu argumento pode ser reconstruído sinteticamente por dois exemplos: imagine-se a redação do artigo primeiro de uma nova Constituição para o Estado X, no qual a minoria oprime a maioria. A minoria deseja seguir desfrutando das vantagens da opressão, mas também ser honesta. Sua assembléia constituinte, então, aprova como artigo primeiro da Constituição o seguinte:

X é uma república federal, soberana e injusta

Esse artigo evidentemente é falho, mas em que sentido reside sua falha? Não se trata somente de uma falha técnica, moral ou convencional: [44] a falha nesse artigo é, mais do que tudo, uma falha conceitual. No ato de fazer uma constituição, uma pretensão de correção está necessariamente conectada, nesse caso uma pretensão de justiça. O autor de uma constituição comete uma contradição performativa se o conteúdo de seu ato constitucional nega essa pretensão, enquanto ele a erige com a execução desse ato. [45]

Da mesma forma, um juiz que sentenciasse o réu da seguinte maneira:

O acusado é condenado, em virtude de uma falsa interpretação do direito vigente, à prisão perpétua.

O que se tem aqui é mais do que uma irregularidade social ou jurídica. [46] O juiz comete uma contradição performativa e, nesse sentido, um erro conceitual. Uma decisão judicial sempre pretende que se esteja aplicando o Direito corretamente. O conteúdo do veredicto contradiz a pretensão feita pelo ato institucional de anunciar a sentença.

A pretensão de correção, entretanto, possui características diferentes numa norma individual ou no sistema jurídico como um todo. Embora tanto um como outro necessariamente levantem uma pretensão de correção, a ausência dessa terá conseqüências diversas caso se trate de um sistema jurídico ou uma norma jurídica:

Los sistemas normativos que no formulan explícita o implícitamente esta pretensión no son sistemas jurídicos. En este sentido, la pretensión de corrección tiene relevancia clasificatoria. Los sistemas jurídicos que formulan esta pretensión pero no la satisfacen son sistemas jurídicos jurídicamente deficientes. En este sentido, la pretensión de corrección tiene una relevancia cualificante. En el caso de las normas aisladas y de las decisiones judiciales aisladas, la pretensión de corrección tiene una relevancia exclusivamente cualificante. Son jurídicamente deficientes si no formulan o no satisfacen la pretensión de corrección. [47]

O fato de uma sentença explicitamente não possuir uma pretensão de correção, como uma sentença de morte que fosse pronunciada somente para satisfazer um tirano, não refuta a tese de que o Direito necessariamente erige uma pretensão de correção. Da mesma forma que anteriormente, é necessário distinguir entre uma pretensão de correção erigida subjetivamente e outra objetivamente. Pois embora o tirano possa subjetivamente não ter levantado a pretensão na sua sentença, devido a ele agir como uma autoridade jurídica tal pretensão está objetivamente ligada a seu cargo. Em segundo lugar, deve-se ater ao fato de que decisões individuais, bem como normas, estão imersas num sistema jurídico. Esse necessariamente erige uma pretensão de correção, caso contrário, não pode ser considerado um sistema jurídico. [48] Sistemas jurídicos só perdem seu caráter jurídico no caso de uma grande quantidade de decisões e normas seguirem esse padrão de injustiça, quando então poderia se dizer que o sistema como um todo abandonou a pretensão de correção. [49]

A pretensão de correção, portanto, é uma necessidade resultante da própria estrutura dos atos jurídicos e do raciocínio jurídico. [50] Como afirma Alexy, "this claim necessarily connects the correctness as an ideal dimension and milestone of criticism with the law. The faultiness is therefore more than a merely deplorable negative property. It is something that according to the concept of law should not be there." [51] E se o Direito está necessariamente conectado com uma pretensão de correção, ele consiste em mais do que puro poder, ordens fundadas em ameaças ou uma espécie de "coerção organizada". [52] Sua natureza compreende não só um lado real, mas também um crítico, ou ideal. [53] Esta conexão, além do mais, é o principal fundamento tanto para um ataque àquele que é o principal alicerce do positivismo, a separação conceitual entre Direito e moral, como também é o principal argumento de Alexy para estabelecer uma ligação entre discurso jurídico e discurso prático geral. Isso realiza a transição para o próximo capítulo.

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Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Advogado em Porto Alegre (RS). Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral.: Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10723. Acesso em: 22 dez. 2024.

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