A Lei 11.343/2006, denominada de "Lei Antidrogas" contém em si algumas armadilhas que podem transformá-la na "Lei Pró-Drogas". Vejamos.
Primeiramente, deve-se ter em mente que o tráfico de drogas é, essencialmente, uma espécie de comércio que, a despeito de ser ilegal, obedece às leis universais da oferta e da demanda. Obviamente, só existem traficantes porque existem usuários de drogas. Quanto mais fácil for para o usuário comprar a droga, mais incentivos terá o traficante para vendê-la. O usuário e o traficante vivem em uma situação de dependência mútua [01]. A situação de um deles afeta diretamente a situação do outro.
Por isso, a política de drogas deve ter uma coerência interna: deve reprimir conjuntamente o tráfico e o uso de drogas. Ou, em outro extremo, liberar ambos. Qualquer alternativa seria, no mínimo, contraditória.
Porém, foi isso que a lei fez. Ao deixar de considerar o porte de drogas um crime [02], criou penas cuja força repressiva é tão insignificante que beira o escárnio [03]: advertência sobre os efeitos das drogas; freqüência a curso ou programa educativo e prestação de serviços à comunidade. Dessa maneira, ninguém se sentirá incitado a não portar drogas. Pelo contrário: o porte de drogas tem uma relação custo–benefício bastante interessante para o usuário, pois, mesmo na remotíssima hipótese de ser condenado, a sanção penal não lhe provocaria nenhum temor.
A esquizofrenia legal fica patente quando verificamos que a pena mínima do traficante de drogas foi aumentada de três para cinco anos [04]. O objetivo é, evidentemente, evitar que os condenados por tráfico de drogas recebam o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos [05].
Como justificar o paradoxo de uma lei que "estimula" o usuário e reprime ainda mais o traficante? É razoável "estimular" a demanda e reprimir a oferta? Porém, o paradoxo é apenas aparente, como veremos a seguir.
Na verdade, apenas em duas ocasiões, a pena foi diminuída: no citado art. 33, caput, e no art. 36, que trata do financiamento do tráfico. Vários tipos penais foram criados prevendo tratamento mais benéfico para determinadas categorias: 1) quem semeia, cultiva ou colhe plantas que dão origem a drogas é apenado nos termos do art. 28, caput, se o objetivo for consumo próprio e em pequena quantidade (art. 28, § 1°); 2) quem induz, instiga ou auxilia alguém a consumir drogas recebe a pena de detenção de um a três anos (art. 33, § 2°); 3) quem oferece droga de modo eventual e gratuito a pessoa de sua convivência recebe a pena de seis meses a um ano (art. 33, § 3°); 4) o traficante primário, de bons antecedentes e que não tenha carreira criminosa nem integre organização criminosa pode ter a pena diminuída de um a dois terços (art. 33, § 4°); 5) quem colabora como informante de organização criminosa recebe a pena de reclusão de dois a seis anos (art. 38); e 6) o membro da quadrilha que delata seus comparsas tem a redução de um a dois terços da pena (art. 41). Ressaltamos que, de acordo com a lei anterior, em todos esses casos o agente responderia por tráfico de drogas, recebendo pena de reclusão de três a quinze anos.
Portanto, o aumento da pena mínima do tipo básico de tráfico de drogas (art. 33, caput) – de três para cinco anos, foi uma alteração pouco mais que cosmética, em meio a vários dispositivos que beneficiaram traficantes e usuários. Trata-se de uma lei que, sub-repticiamente, considera o uso e o tráfico de drogas "mais aceitáveis" ou "menos graves".
Tudo isso é resultado de uma ideologia bastante disseminada entre os doutrinadores penais brasileiros: o laxismo penal, cujo conceito é exposto com brilhantismo por Silveira:
"Laxismo Penal é a tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator, tudo sob o pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, o delinqüente se sujeita, quando muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo" [06].
Destacamos que todas essas mudanças ocorrem quando (ainda) está em vigor o dispositivo constitucional que considera o tráfico de drogas um crime equiparado a hediondo (art. 5°, XLIII). Ora, se hediondo é o crime de maior gravidade, que deve receber a punição mais rigorosa, não estaria sendo, por via oblíqua, violada a Constituição? Se o tráfico é hediondo, ou seja, gravíssimo, o consumo de drogas, que é sua causa, poderia ser uma infração penal de gravidade ínfima? Em termos lógicos, é razoável que, do "quase nada jurídico" que se transformou o porte de drogas, surja um crime que a Constituição equipara a hediondo?
Estamos diante de uma questão de hermenêutica constitucional. É razoável a nova lei em vista do caráter hediondo do tráfico de drogas? A discussão está em aberto, mas é importante ressaltarmos que, a princípio, seria mais coerente uma emenda à Constituição para que se possa alterar tão radicalmente a política de drogas no Brasil.
Além disso, temos que o crime, como diria Durkheim, traz suas "vantagens" para o Estado. Uma delas é justificar a hipertrofia da Administração Pública. Milhares de agentes públicos são contratados com a justificativa de combaterem a criminalidade. Da mesma forma, vários órgãos públicos são criados para, pelo menos declaradamente, combater o crime.
A lei faz com que o crime possa trazer uma nova "vantagem" para o Estado. O art. 62 determina que os instrumentos e os produtos do tráfico de drogas devem ser apreendidos, mas, contrariando a regra, a sua alienação não é obrigatória, pois a polícia judiciária pode requerer permissão para fazer uso desses bens. Aqueles bens que forem eventualmente alienados terão seu valor transferido para o Fundo Nacional Anti-Drogas (Funad).
A princípio, o dispositivo parece ser bastante salutar em sua idéia de utilizar os bens dos traficantes para combater o próprio tráfico, uma prática que poderia levar-lhes, paulatinamente, à asfixia econômica. Porém, será que é mesmo interessante à polícia o desmantelamento de uma grande quadrilha de traficantes?
A dúvida, por estranho que pareça, está calcada na seguinte lógica: a lei constituiu uma "simbiose" entre o tráfico de drogas e os órgãos encarregados de combatê-lo. "Graças" aos criminosos, a polícia pode ter mais verbas e ser mais bem aparelhada. Além disso, dá-se aos policiais a oportunidade de fazerem uso de bens de alto luxo, aos quais nunca teriam acesso normalmente [07].
Considerando que o ser humano é movido a incentivos, temos uma situação em que a polícia é estimulada a utilizar sua força repressiva a conta-gotas, de modo que nunca chegue a desmantelar totalmente uma organização criminosa voltada para o tráfico, que, periodicamente, pode render-lhe uns "presentinhos" [08].
Mais de uma vez, o presidente da República e o ministro da Justiça à época da promulgação da lei, Márcio Thomaz Bastos, manifestaram sua discordância da política repressiva no combate às drogas [09]. Também há denúncias, infelizmente não investigadas de modo devido, de que o Partido dos Trabalhadores (PT) tenha recebido dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) [10], movimento comunista diretamente ligado ao tráfico de cocaína. Por fim, o partido do governo participa, a cada dois anos, do Foro de São Paulo, reunião dos partidos e dos movimentos de esquerda da América Latina, que inclui os narcoterroristas das Farc, conforme registram as próprias atas da reunião [11].
O movimento mundial pela liberalização das drogas tem vozes respeitáveis, como o Prêmio Nobel Milton Friedman [12]. Porém, essa não foi a opção de nossa Constituição. Pelo contrário: não só considerou o tráfico como crime equiparado a hediondo, mas também determinou o confisco de imóveis rurais onde sejam cultivadas plantas tóxicas (art. 243). Cumpre agora aos operadores do Direito evitar que a lei, já excessivamente liberal no tocante ao usuário ao descriminalizar o porte de drogas, também se converta em um passo, ainda que sutil, no caminho da descriminalização do próprio tráfico de drogas.
Bibliografia:
FARC-PT: Abin não disse a verdade, dizem pessoas que trabalharam na investigação da Abin. Disponível em: http://pt.wikinews.org/wiki/FARC-PT:Abin_n%C3%A3o_disse_a_verdade,_dizem_pessoas_que_trabalharam_na_investiga%C3%A7%C3%A3o_da_Abin.
Foro de São Paulo. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/pop_foro.htm. Acesso em 26.12.2007.
GIORDANO, Al. A guerra das drogas é uma guerra de classes. Disponível em: http://www.narconews.com/Issue30/artigo773.html. Acesso em 26.12.2007.
GOMES, Luiz Flávio et al. Nova lei de drogas comentada. São Paulo: RT, 2006.
PAIGE, Randy. Entrevista com Milton Friedman sobre a "Guerra à Droga". Disponível em http://www.geocities.com/Athens/8613/bbfridm.html. Acesso em 26.12.2007.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2001.
SILVEIRA, Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da. Laxismo penal e a Lei nº 11.343/2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10098. Acesso em: 26.12.2007.
Notas
01 Como foi muito bem demonstrado no filme "Tropa de Elite".
02. Anteriormente, a Lei 6.368/76 aplicava a pena de detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
03 Vide o art. 28, caput, da lei.
04 Vide o art. 33, caput, da lei.
05 Vide o art. 44, caput, do Código Penal.
06 SILVEIRA, Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da. Laxismo penal e a Lei nº 11.343/2006..
07 Recentemente, um delegado da Polícia Federal foi flagrado utilizando, para fins particulares, um veículo apreendido de um traficante. O automóvel estava avaliado em quase R$300.000,00.
08 Aqui estamos considerando apenas a atuação lícita da polícia, sem levar em conta as extorsões periodicamente feitas por policiais em traficantes.
09 Cf. http://www.narconews.com/Issue30/artigo773.html.
11 Disponíveis em http://www.midiasemmascara.com.br/pop_foro.htm.
12 Cf. a interessantíssima entrevista disponível em http://www.geocities.com/Athens/8613/bbfridm.html.