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Suspensão condicional do processo: direito subjetivo do acusado?

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23/12/1998 às 00:00
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1. INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei n. 9099/95, o legislador deu cumprimento ao art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que previu a criação, no âmbito do Poder Judiciário, de "juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menos complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau".

Essa lei inaugurou uma nova fase no sistema processual penal brasileiro, a da justiça pactuada ou consensual, e vem causando perplexidade a juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores e demais operadores jurídicos.

Tal incerteza dogmática e jurisprudencial deve-se em grande monta à dificuldade de assimilação da transação penal e da suspensão condicional do processo, institutos inseridos no ordenamento brasileiro, respectivamente, pelos arts. 76 e 89 da Lei Federal n. 9099/95, que modificaram as noções sobre a indisponibilidade da ação penal pública e refletem uma inspiração despenalizadora.

O sursis processual, como vem sendo chamada a suspensão condicional, é direito subjetivo do acusado ou poder discricionário do Ministério Público? Abordar o cerne dessa polêmica é aquilo a que nos propomos, deixando claro, desde já, que preferimos que a solução do conflito exegético e valorativo acerca da aplicação concreta dos novos institutos se dê pela via do controle hierárquico da discricionariedade ministerial, tudo ocorrendo interna corporis.



2. UMA NOVA ERA: A JUSTIÇA CRIMINAL CONSENSUAL

LUIZ FLÁVIO GOMES (in Suspensão condicional do processo. São Paulo: RT, 1995, p. 124), um dos mais ilustres estudiosos do assunto, explica que a polêmica instalada no meio forense acerca da interpretação da nova lei decorre, em parte, do laconismo do legislador, que "cuidou de um dos mais revolucionários institutos no mundo atual em apenas um artigo (art. 89)", deixando margem a uma série de indagações.

Com efeito, o tratamento legislativo dado aos dois novos institutos merece essa crítica, pelo acanhamento na especificação dos seus mecanismos e omissão no aclaramento de certas conseqüências jurídicas, o que certamente deixou lacunas a serem preenchidas pela praxis e pelos aportes da doutrina e dos tribunais.

No entanto, é fora de dúvida que a Lei n. 9099/95 implantou no Brasil um novo sistema de justiça pactual, não conflitiva, tendente a estabelecer o consenso para a composição dos litígios, sempre mediante o efetivo acordo entre as partes processuais, com mediação judicial. A nova lei visou, também, a estabelecer uma política criminal individualizante, que permite de logo a exclusão do processo e de suas agruras, em benefício do acusado, adotando também uma lógica de responsabilização e reintegração do agente do fato delituoso, aproximando-o da mesa do juiz, onde se dará a composição civil ou a transação penal lato sensu (a expressão aqui empregada, abrange os dois institutos).

O que nos traz ao campo da discussão é, especificamente, a natureza jurídica do instituto previsto no art. 89 da Lei n. 9099/95. Trata-se realmente de um direito subjetivo do acusado ou de uma via alternativa à persecução penal posta à disposição do Ministério Público? As considerações a serem expendidas aplicam-se mutatis mutandi à transação penal stricto sensu, prevista no art. 76 da lei especial, que, ao nosso sentir, é legítima manifestação do direito de ação penal, em nova roupagem.

Eis o texto da lei:

"Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)".

Como se disse, a Lei n. 9099/95 é fruto do art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que, prevendo um procedimento oral e sumariísimo, mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal ao determinar a criação de juizados especiais competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo, permitindo a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Transação nada mais é que um acordo, ajuste ou pacto que dirime um litígio, mediante concessões recíprocas das partes interessadas, de forma a obter a autocomposição dos interesses em conflito. É negócio bilateral por excelência. No sistema preconizado, está sempre sujeita ao controle judicial. O magistrado assume a função de mediador da avença. A mediação é a nova tarefa do juiz no sistema de justiça pactual, que tende a facilitar a consecução da paz social, pois são as partes que se compõem espontaneamente, fazendo prevalecer o bom senso. Portanto, não se trata mais de impor uma decisão que sujeite os interesses de uma parte aos da outra, como acontecia e ainda acontece no modelo de justiça conflitiva.

O Ministério Público, por sua vez, "aderirá à justiça consensual, agindo dentro da lei e apresentando, sempre que possível, suas propostas de transação penal, disposto a discuti-las com o juiz, os conciliadores e a parte contrária" (in Juizados especiais criminais. Ada Pellegrini Grinover et alli. São Paulo: RT, 1996, p. 22). Por isso, é necessário que os membros do Parquet, como de resto todos os demais operadores do Direito, assumam uma nova postura processual e abandonem a mentalidade meramente repressiva, para que, sempre que possível, se busque o consenso.

Sem dúvida, a Lei n. 9099/95 quebrou a rigidez do princípio da obrigatoriedade, permitindo que o Ministério Público possa dispor da ação penal pública em determinadas hipóteses, taxativamente previstas em lei, por exemplo quando faz proposta penal alternativa (art. 76), agindo com exclusividade.

No entanto, apesar dos termos claros da lei e da certeza de seu propósito consensual, têm sido vistos julgados e textos doutrinários contrários ao espírito conciliatório da lei, na medida em que admitem propostas transacionais ex officio ou mediante a iniciativa do autor do fato, excluindo-se o Ministério Público do desejado consensus.

Segundo ALBERTO ZACHARIAS TORON, "Em face dos termos claros da lei, a melhor intelecção, ainda que não represente a melhor solução, é de se manter a faculdade de propor a suspensão nas mãos do Promotor de Justiça" (in Drogas: novas perspectivas com a lei 9099/95", Boletim IBCCrim, novembro/95, p. 6). Discordamos do ilustre jurista no periférico, mas com ele concordamos no substancial. A proposta de suspensão é uma opção institucional do Ministério Público, e, como tal, a solução alvitrada por parte da comunidade jurídica, delimitando seu conteúdo de facultatividade, é a melhor solução, pois valoriza o sistema acusatório e acaba por fortalecer a posição do juiz-garantidor, ao afastá-lo da condição de parte processual.

Assim, de início, deve-se fixar noção de que as propostas dos arts. 76 e 89 da Lei 9099/95 são faculdades cuja legitimidade ativa cabe, com exclusividade, ao Ministério Público, situando-se ambas dentro do espaço de discricionariedade administrativa conferido à instituição, como adiante se examinará.

No artigo A lei 9099/95 e a proposta de suspensão (in Justiça Penal 4. São Paulo: RT, 1997, p. 204), IRAHY BAPTISTA DE ABREU registra dois acórdãos de tribunais paulistas que sufragam o entendimento da exclusividade do Ministério Público no manejo da proposta do art. 89 da lei comentada:

"Caso o parquet não entenda preenchidos os requisitos retromencionados, não há como impingir-lhe a proposta, eis que, como já dito anteriormente, cuidando-se de ato consensual, indispensável a manifestação de vontade de ambas as partes, não podendo o Estado-juiz substituir-se ao Estado-Administração, para o fim de propor a suspensão condicional da ação" (TJ-SP, HC 204.579-3/0, 4ª Câm. Criminal, Rel. Des. Sinésio de Souza, j. 19.03.96)"

"(..) Não vejo como permitir ao Juiz que decida ex officio. O espírito da Lei 9099/95, no caso, é o da transação. Acordo entre acusador (que faz a proposta) e o acusado (que a aceita)" (TACrim-SP, Correição parcial n. 1.012.835-9, 12ª Câmara, v. u., j. 17.06.96).

Tais decisões seguem a mens legis e não merecem reparo. Os autores do projeto de lei n. 1480/89, que deu origem à parte criminal da Lei n. 9099/95 (essa parte criminal foi encampada pelo Dep. MICHEL TEMER, a partir do anteprojeto de uma comissão de juristas; a parte cível é de autoria de NELSON JOBIM e o substitutivo, englobando as duas, foi elaborado pelo Dep. IBRAHIM ABI-ACKEL), deixaram bem claro na exposição de motivos que se estava adotando o princípio da "discricionariedade controlada", com a proposta de suspensão partindo do Ministério Público e ficando sujeita à aceitação do acusado e à homologação do juiz.

O juiz ANTÔNIO CARLOS DOS SANTOS BITENCOURT, no seu Justiça Penal Pactuada (Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997, p. 25/26 e 50), diz que a Lei n. 9099/95 "inaugura um novo modelo de justiça consensuada para as infrações de pequeno potencial ofensivo e para as de média lesividade (estas para as quais reservou a suspensão condicional do processo), permanecendo a indisponibilidade da ação penal pública para os crimes de grave ofensa à ordem jurídica. (...) Derruba-se, enfim, o mito da indisponibilidade absoluta da ação penal pública cujos postulados são uma hipocrisia legal".

E tem razão o insigne magistrado, pois o art. 2º da Lei n. 9099/95 estatui, como princípio geral, que o processo sumariíssimo nela previsto deve buscar "sempre que possível, a conciliação ou a transação".

A contrario sensu, deve-se entender que a conciliação e a transação nem sempre são possíveis. Daí dizer-se que não se poderá jamais impor uma transação ao Parquet, a pretexto de assegurar suposto direito subjetivo do acusado, pois a própria lei admite a hipótese de a transação não ocorrer, dando mostras de sua afeição à disponibilidade e ao consenso.

O mesmo se diga a respeito do art. 62 da lei especial, que objetiva "sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade". Novamente a locução "sempre que possível", a revelar que, quando não for possível resolver o litígio pela composição, pela transação ou pela suspensão condicional, é evidente que não poderá o juiz obrigar as partes a isso, uma vez que a norma prevê a hipótese negativa, ou seja, prevê a possibilidade de não se obter de logo a composição civil e a aplicação de pena não privativa de liberdade. É a lógica do razoável, de que fala Recasén-Siches.

Confirma essa lógica o art. 72 da lei, que determina que, na audiência preliminar, "o juiz esclarecerá sobre a possibilidade de composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade". Mais uma vez realça-se a possibilidade, a faculdade, a não-obrigatoriedade da composição e da transação, informando todo o sistema da Lei n. 9099/95.

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Reforçada fica, com tudo isso, a idéia de harmonização trazida pela nova lei despenalizadora, que busca, por vocação, a conciliação, a composição e a transação, e introduz no sistema um novo fator: o da discricionariedade da ação penal, já que a proposta de pena e a de suspensão são atos dispositivos de conteúdo volitivo, cujo conteúdo e mérito são estipulados pelos interessados, para homologação judicial, evidenciando a bilateralidade.

Por depender do acordo de vontades de partes adversas que convergem (e aí está sua natureza bilateral), não se podem ver, nos arts. 76 e 89 da Lei de Juizados Especiais - LJE, direitos subjetivos do acusado. Na lição de LUIZ FLÁVIO GOMES, no primeiro instituto, há uma conformidade penal, e no segundo uma conformidade processual. Tornar conforme é conciliar; ser conforme é ajustar-se, é resignar-se com as concessões parciais.

Em suma, neles há sempre transação, porque o acusado e o Ministério Público cedem, tendo em conta a incerteza quanto ao resultado do processo, e "conformam-se" com as limitações que se impõem.



3. DIREITO SUBJETIVO versus EXPECTATIVA DE DIREITO

Os que sustentam a existência de um direito subjetivo entendem que a suspensão condicional do processo pode levar à extinção da punibilidade, e argumentam que aí estaria um dos fundamentos desse suposto direito.

O ponto de vista é frágil e não resiste a uma singela comparação. Ora, sempre, em qualquer processo, há a expectativa da extinção da punibilidade. Desde que se consuma o fato, passa a correr a prescrição e pode surgir ensejo a uma das outras modalidades extintivas do jus puniendi estatal previstas art. 107 do Código Penal.

Conseqüentemente, não se pode confundir expectativa de direito com direito subjetivo. Exemplifica-se. No âmbito do Direito Administrativo, é ponto pacífico que a mera aprovação em concurso público não gera direito à nomeação. Trata-se de uma simples expectativa, que não tem proteção por ação constitucional. HELY LOPES MEIRELLES ensina que "Ainda mesmo a aprovação no concurso não gera direito absoluto à nomeação, pois que continua o aprovado com simples expectativa de direito à investidura no cargo ou emprego disputado" (in Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 376), tudo porque o provimento do cargo fica à inteira discrição da Administração Pública, segundo os seus critérios de conveniência e oportunidade.

Da mesma forma, só porque a suspensão do processo gera uma expectativa de direito à extinção da punibilidade, não se pode dizer que ali surgiu um direito subjetivo, que reclame proteção judicial imediata ou antecipada. É que mesmo essa expectativa é remota e incerta. O direito à extinção da punibilidade apenas se configurará se as condições da suspensão processual forem inteiramente cumpridas pelo réu, o que já cria uma ponderável incerteza e desnatura a decantada liquidez desse "direito".

O estranho raciocínio, acima exposto, pode levar o réu a alegar hipotético direito subjetivo à prescrição, antes que seu termo ocorra, legitimando, por exemplo, qualquer resistência ao andamento normal de ações penais, como se dá com os famosos "recursos de gaveta", prática bem usual no foro e já consuetudinária.

Ou por outra, a elucubração ora criticada pode levar à defesa de um improvável direito subjetivo que obrigue a vítima a não representar contra o indiciado ou suspeito, já que o acusado teria direito subjetivo à decadência, antes de sua real implementação, que se dá justamente com o desinteresse voluntário do ofendido.

Aceitar a tese da existência de um direito concreto e incondicional contraria o sistema da lei e a própria tradição do direito penal, que sempre previu em prol do réu certos favores do Príncipe, como a graça e o indulto. Jamais se defendeu que tais institutos constituem direitos subjetivos, embora também levem à extinção da punibilidade. "O indulto e a graça no sentido estrito são providências de ordem administrativa, deixadas a relativo poder discricionário do Presidente da República, para extinguir ou comutar penas" (JOSÉ FREDERICO MARQUES, Tratado, vol. 3/425. São, assim, meras expectativas de direito, não sendo autoexecutável o decreto presidencial que os concede.

É por essas e outras razões que se deve afastar a idéia de que a suspensão é um direito subjetivo do acusado. É mais um "favor administrativo", manejado com exclusividade por órgão do Estado-Administração, dentro dos limites da discricionariedade, mas sob controle de legalidade pela autoridade judiciária.



4. A DESCABIDA POLÊMICA VERNACULAR

CHARLES BERLITZ (in Línguas do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 153), relata-nos um incidente lingüístico ocorrido na Organização das Nações Unidas - ONU, durante as discussões do processo de descolonização da África, em decorrência de uma tradução simultânea mal realizada. E tudo por causa de uma singela palavra:

"Um representante do minguante Império Britânico lia um relatório de atividades de uma região sob custódia do Reino Unido durante a Assembléia. Quando falava das tentativas do pessoal do lugar (...) para combater as pragas de besouros-rinocerontes, o intérprete de russo compreendeu a palavra ‘rinoceronte’, mas não ‘besouro’. O delegado soviético, portanto, interrompeu para perguntar como os nativos podiam equipar-se para resistir à invasão de inumeráveis rinocerontes. Recebeu a resposta de que o pessoal do lugar recebia vassouras e baldes de produtos químicos. Isso pareceu ao representante soviético não só armamento insuficiente para combater o ataque de hordas de rinocerontes, mas também prova da má vontade colonialista em distribuir armas de fogo aos africanos para proteção contra o ataque de animais ferozes. ‘Ao mesmo tempo’, contrapôs o delegado soviético, ‘restam apenas algumas centenas de rinocerontes na África; por que deveriam ser exterminados?’ A isso replicou o delegado britânico: ‘Ah, não! Há muitos milhões deles. Todas as primaveras eles voam do norte em grandes enxames e comem as cascas das árvores’. A essa altura a discussão já havia se complicado tanto que a sessão precisou ser suspensa até que a palavra besouro foi localizada e - finalmente - aposta a rinoceronte".

Percebemos acima a que incoerências nos leva uma palavra mal compreendida... É o que vem sendo visto no que pertine ao sentido do verbo "poder" na Lei n. 9099/95 e às conseqüências dessa opção para a compreensão dos institutos nela tratados.

Toda essa celeuma, que nos lembra a Babel da terra de Senaar, representa apenas uma formidável perda de tempo e de esforço, que poderiam ser melhor empregados na discussão de assuntos mais urgentes e mais relevantes do ponto de vista sócio-jurídico. No entanto, como se lançou o tema e para que as inovações da Lei de Juizados Especiais - LJE não sejam vãs, enfrenta-se a polêmica, na tentativa de contribuir para dissipa-la, porque, como certa feita disse o saudoso Ministro NELSON HUNGRIA HOFBAUER, é somente do entrechoque de idéias e opiniões contrárias, é que surge a hipótese feliz, a faísca que se torna chama e traz luz às controvérsias.

Mas para que isso ocorra, é preciso, antes, ficarmos em paz com o idioma (a "nossa língua portuguesa") e com a exegese das normas, recordando que, na interpretação, devemos sobretudo considerar o que está escrito, e não o que "deveria" estar escrito ou o que "gostaríamos" que estivesse.

O professor JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (in Curso Crítico de Direito Penal, Florianópolis: Obra Jurídica, p. 19) explica que "os intérpretes, de seu turno, oficiais e oficiosos, não conseguem interpretar sem legislar (...). Não custa aduzir que as práticas sociais e políticas, os costumes da administração, os manuais de doutrina e os repertórios de jurisprudência retratam sérias divergências interpretativas e flagrantes decisões contra a lei, inclusive em matéria criminal".

Muito dessa realidade decorre, sem dúvida, da quizília dos juristas com a língua portuguesa.

PAULO SÉRGIO CORNACCHIONI (in Justiça criminal x verbo poder. Boletim IBCCrim n. 59 - out/97, p. 10), aduz, com muita propriedade, perspicácia e senso de humor, que é costumeira a queixa do jurista contra a "edição de tantas leis tecnicamente deficientes. Mas o legislador nada reclama do jurista, malgrado por vezes tenha motivos de sobra para fazê-lo. Com efeito, há décadas, quase toda vez que o legislador diz ‘pode’, o jurista teima em ler ‘deve’. (...) Cuida-se de antigo descompasso entre o que escreve o legislador e o que lê o jurista. O problema, de início, convida a cogitar de uma possível reforma lingüística, ainda pouco conhecida, que quiçá haja modificado a significação do verbo ‘poder’ (...) Mas a suposição não seria mesmo razoável, já que em outros tantos dispositivos o legislador diz ‘poderá’ (...) e para espanto geral o jurista interpreta o vocábulo como ‘poderá’ mesmo (...) A falha de comunicação entre a lei e o jurista precisa, contudo, ser entendida e resolvida. Afinal, como é que o legislador fará quando quiser realmente estabelecer uma faculdade (um ‘poder’) e não uma obrigação (um ‘dever’)?".

Ao dar à LJE a redação atual, quis o legislador conferir uma faculdade ao Parquet para fins de política criminal, ou impor um dever à Instituição Ministerial, ao qual corresponde um direito subjetivo do réu?

Assim visto o problema, parece-nos de fácil solução, pois, de logo, a letra da lei nos remete à busca do sentido do verbo "poder". Basta uma consulta ao Aurélio, que apresenta as seguintes acepções para "poder": ter a faculdade de; ter possibilidade de, ou autorização para; ter oportunidade de; faculdade, possibilidade; capacidade; aptidão.

Há outros significados, mas nenhum deles é sinônimo do sentido inventado pela doutrina: o de "dever".

Os que lidam com interpretação de textos e estudos gramaticais costumam valer-se de um arranjo de palavras para demonstrar a importância do exato uso do idioma, especificamente, no que pertine à pontuação. Um general poderia obter resultados completamente diversos em uma ação de campo se dirigisse as seguintes ordens ao seu exército:

"FOGO. NÃO ARRASEM A CIDADE"

"FOGO NÃO. ARRASEM A CIDADE"

Se conseqüências tão díspares podem advir da mera relocação de um ponto de seguimento numa frase, aquilatemos o que ocorre quando um verbo (que é quase sempre o termo nuclear de uma oração) tem o seu sentido alterado pelos intérpretes. Certamente, pode-se "arrasar uma cidade", ou, o que é mais fácil, destruir um sistema jurídico, desatendendo a ordem direta, clara e estratégica do legislador.

É absolutamente sem sentido a interpretação do verbo "poder" como "dever". Em mais de uma oportunidade, o legislador efetivamente impôs aos órgãos estatais o cometimento de uma função, tal como (só para ficar no que nos interessa) com o Ministério Público, ao dispor no art. 24 do CPP que a ação penal pública "será promovida", deixando bem claro que a iniciativa é obrigatória, que o Parquet promoverá a actio.

De igual modo (impondo uma conduta), agiu o Parlamento quando determinou que o juiz, expirado o prazo da suspensão condicional do processo sem revogação, "declarará extinta a punibilidade" (§5º, do art. 89). Como se vê, o legislador não disse que o juiz "poderá declarar" extinta a punibilidade. Disse "declarará", provando conhecer bem o idioma e suas nuanças flexionais. E aqui, sem a menor sombra de dúvida, após o cumprimento das condições impostas, surge um direito público subjetivo para o acusado.

Diferentemente agiu o legislador ao escrever que o Ministério Público poderá propor a suspensão condicional do processo, dando corpo a uma faculdade a ser exercida pelo Parquet no interesse público de repressão à criminalidade e de efetivação da justiça concreta.

Para melhor compreender a extensão do problema e melhor responder à pergunta formulada (direito subjetivo?), dando a exata exegese dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/95, deve-se apreciar uma circunstância histórico-legislativa que a precedeu, qual seja, a extensa discussão doutrinária e jurisprudencial que se implantou nos meios forenses a respeito do sentido do verbo "poder", usado, por exemplo, no art. 77 do Código Penal e no art. 156 da Lei n. 7210/84, que se referem ao sursis, bem como no art. 121, §1º, do CP, que cuida do homicídio privilegiado.

IRAHY BAPTISTA DE ABREU é de opinião de que "Seria insultar a inteligência dos que a redigiram entender que erraram na utilização do verbo, mesmo após a conhecida discussão sobre a utilização dele no lugar do ‘deverá’. Se na elaboração do estatuto processual penal vigente, essa divergência podia ter lugar, impossível aceitar que, hodiernamente, alguém ainda se utilize do ‘poderá’ com o sentido de ‘deverá’, mesmo sabendo da pendência doutrinária e jurisprudencial que grassou nessa matéria" (op. cit., p. 206).

Depois desse longo e cansativo debate, firmou-se o entendimento de que onde a lei disser "pode", o jurista ou exegeta lerá "deve", por tratarem tais casos de direitos subjetivos dos réus. Todavia, tal posicionamento parece-nos inteiramente equivocado, e ainda hoje há quem o conteste, insurgindo-se contra essa injustificável limitação ao livre convencimento do magistrado, e assegurando que o sursis é instrumento de individualização da pena, deferido ao juiz.

DAMÁSIO DE JESUS (in Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 224), quanto à natureza jurídica do sursis do art. 77 do CP, ensina que "O instituto, na reforma penal de 1984, não constitui mais incidente da execução nem direito público subjetivo de liberdade do condenado (...). É medida penal de natureza restritiva da liberdade. Trata-se de forma da execução da pena. Não é um benefício. Tem caráter sancionatório".

DAMÁSIO assinala ainda que a expressão "poderá" empregada no caput do art. 77 e no §2º "deve ser interpretada no sentido de que a lei confere ao juiz a tarefa de, apreciando as circunstâncias do caso concreto em face das condições exigidas, aplicar ou não a medida. Assim, ele ‘poderá’, diante do juízo de apreciação, aplicar o sursis se presentes os requisitos; ou ‘poderá’ deixar de fazê-lo, se ausentes".

A propósito, veja-se o que estatuem os §§3º e 4º do art. 89 da Lei n. 9099/95 a respeito da revogação da suspensão do processo. Cuidam os parágrafos, respectivamente, da revogação obrigatória e da facultativa.

Quanto à primeira (obrigatória), o legislador usou a expressão determinante "será revogada". Referindo-se à segunda forma de revogação (a facultativa), valeu-se dos termos "poderá ser revogada". Com tal redação, ficou evidenciada a intenção do Parlamento de criar uma obrigação (vinculação) e uma faculdade (discricionariedade) para o juiz; e mostrou-se que o legislador fez o uso corrente da língua portuguesa, nela não inovando.

Por que, então, no caput do mesmo artigo 89, o legislador agiria diferentemente no trato com o idioma pátrio? Se usou os verbos "poderá propor" é porque quis significar facultatividade, que se confirma no poder conferido ao juiz, nos mesmos moldes, de revogar ou não a suspensão condicional, na forma do §4º desse cânone.

Se não for admitida essa simetria vernacular, que afirma a discricionariedade do Ministério Público (e, por outra via, valoriza a independência e o livre convencimento do juiz), deve-se concluir que, por força da isonomia, a acusação pública tem direito subjetivo à revogação da suspensão, nas hipóteses do §4º do art. 89. Ou seja, o juiz estará obrigado a revogar a suspensão se o acusado vier a ser processado no curso do prazo por contravenção ou se o acusado descumprir condição legalmente imposta pela autoridade judiciária.

Seguindo-se esse raciocínio (que busca somente ressaltar o absurdo do entendimento que transforma o "poder" em "dever"), toda revogação será obrigatória; não haverá revogação facultativa, por surgir sempre um direito subjetivo do Ministério Público à invalidação da sustação processual.

Da mesma forma, a expressão "poderá especificar outras condições", prevista no §2º do art. 89 resolver-se-á em dever, vale dizer, o juiz estará sempre obrigado a especificar condições adicionais para a suspensão. Não se trataria, pois, de uma faculdade judicial, mas de um dever cujo cumprimento pode ser exigido pelo Ministério Público, como titular de um outro direito subjetivo, lendo-se ali, para a satisfação dos alquimistas do Direito, que o juiz "especificará" outras condições.

E aí merece crítica o respeitado professor LUIZ FLÁVIO GOMES. Sustenta ele que o verbo "pode" no caput e no §1º do art. 89 da Lei n. 9099/95 é "deve", ao passo que o "pode" do §2º, do mesmo artigo, é "pode" mesmo! Em sua multicitada obra (p. 181), diz o acatado jurista que "O juiz, conforme o caso concreto, especificará ou não outras condições. É uma faculdade".

Ora, por uma mera questão de bom senso e simetria, deve-se concluir que onde o legislador valeu-se do "pode" estava criando mesmo uma faculdade. Ademais, como faria o Parlamento se quisesse (como quis) criar uma faculdade ao Ministério Público, senão usando o polêmico verbo?

Evidentemente, tudo isso é absurdo e o alerta só serve para reclamar a atenção dos doutrinadores que vêm sustentando esse teorema bizarro, que transfigura uma coisa noutra sem a menor cerimônia, retirando as pétalas de lógica da "última flor do Lácio". Pensemos que dificuldades teria um Champollion do futuro para decifrar essa "pedra da Rosetta" jurídica.

A que vêm tais assertivas? A resposta é simples. Vêm reafirmar que a LJE, ao dispor que o Ministério Público "pode", está dizendo que "pode" mesmo, i. e., está atribuindo uma faculdade a essa instituição. E não poderia ser diferente. A ilustre comissão de juristas que participou do processo de gênese da Lei n. 9099/95 não deixaria de atentar para uma situação tão óbvia. Certamente, todos aqueles que contribuíram para o exsurgimento da LJE tinham conhecimento dessa tortuosa questão vernacular e não dariam ensejo a uma nova e inútil polêmica.

Se tais estudiosos (Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, entre outros) permitiram que na redação dos arts. 76 e 89 permanecesse o verbo "poder", é porque era isso mesmo o que pretendiam regular: uma faculdade, uma possibilidade, uma autorização para propor ou não.

Tal realidade mostra-se com mais força quando nos lembramos de que o anteprojeto final da Lei n. 9099/95 foi fruto de um longo e amplo debate entre diversos atores jurídicos, sempre tendo como referência institutos similares no Direito Comparado.

Seria suficiente dizer que in claris cessat interpretatio, pois não se tem nos arts. 76 e 89 uma zona cinzenta. O legislador foi claro. Diria "proporá", e não "pode propor", se o quisesse. Mas não o quis. Por isso não há campo à ambigüidade.

Segundo o professor J. J. CALDEIRA BASTOS somente as "zonas cinzentas" da legislação justificam as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais detectadas no sistema. E pergunta: "Caberia no entanto perguntar que gênero de palavras usam os analistas da linguagem? Por que pretendem que suas explicações podem tudo aclarar, recusando porém a mesma chance aos órgãos legiferantes?".

Parece-nos então que chegou a hora de dar razão ao legislador. Não se pode recorrer a uma ficção contra a língua portuguesa (que afinal é o idioma no qual devem ser escritos os textos legais, conforme o art. 13, caput, da Constituição) para extrair da norma um sentido (e um valor) que ela não tem. Verdadeiramente, o que quiseram comunicar os legisladores? O que quiseram dizer quando usaram o verbo "poder"? Valeram-se do sentido usual da palavra, sem dúvida, e não daquele que resulta de uma interpretação jurisprudencial longeva e incongruente. Pensar o contrário, data venia, é estuprar o idioma.

Ora, o verbo "poder" tem apenas um sentido corrente. É unívoco e não plurívoco. Por mais respeitáveis que sejam as opiniões que tentam extrair da lei um significado oculto, supostamente acessível apenas aos letrados, é difícil explicar ao homem comum (aquele a quem a lei se dirige) que o que se lê, não é o que se quis dizer. Talvez somente o amor à polêmica justifique o entendimento tortuoso, que contribui para criar um imenso abismo entre a teoria e a prática e para distanciar o homem comum das vestais e dos sacerdotes do Direito.

Como na antiga Igreja das verdades ocultas e dos dogmas insolúveis, não se fala português. Entre os juristas, fala-se possivelmente um dialeto qualquer do latim ou um bizarro patois, contextualizando uma linguagem jurídica complicada e inacessível, quando o que a sociedade exige é simplicidade e objetividade e não hermetismo.

Para onde vai o Direito, se continuar a trafegar por estradas tão sinuosas, mesmo no que é simples? Certamente para o abismo já referido, onde, como a mítica Torre de Babel, acabará por se destroçar, porque inacessível aos que andam pela planície. A lei não é feita para o deleite dos juristas, mas para o povo, e é também essa a Justiça que se quer.

Afinal, em que se fundamenta a mágica de transformar o "pode" em "deve"? Não se sabe. Trata-se certamente de um desses mistérios insolúveis do mundo, cuja solução ficará para as calendas. Uns argumentam, sem razão, que o seu suporte jurídico está na aplicação da teoria da despenalização, que é absolutamente aceitável para delitos de bagatela, mas não explica a inaudita transubstanciação verbal.

O que resulta do sistema da nova LJE em cotejo com o art. 129, inciso I, da Constituição Republicana, é a certeza de que os institutos dos arts. 76 e 89 representam instrumentos de política criminal a serem manejados pela Justiça Pública. A pergunta é: quem pode manejá-los? O Ministério Público. Não adianta construir no vazio, elocubrar sobre o nada, criar artifícios, para refutar essa realidade. O que deve fazer o intérprete?

"Não lhe compete, por impossível, arrancar das palavras sentidos ontológicos que no fundo, isto sim, lhe são fornecidos pela vontade final de quem se encontra eventualmente no exercício do poder de ação, de decisão. Não lhe cabe esboçar teorias dogmáticas substitutivas da realidade jurídica desagradável a seus olhos". (J. J. CALDEIRA BASTOS, op. cit., p. 64).

VOLNEI CARLIN, citado por JOÃO JOSÉ CALDEIRA BASTOS (op. cit., p. 30), conclui que "Em síntese, o direito deve adaptar-se aos fatos. Para tanto, aconselhável se examine, também, a origem, o alcance e a finalidade da lei, sempre diante da simples exigência do realismo". Portanto, adaptemo-nos, todos, aos fatos. Os tempos do consenso no processo penal são chegados. É esse o espírito da lei.

E, falando em espírito, ilustremos nosso raciocínio com mais um relato de BERLITZ (CHARLES. in As línguas do mundo. p. 31), acerca das drásticas conseqüências que incompreensões dogmáticas podem acarretar para as corporações nas quais elas se implantam e vicejam:

"Milhares de pessoas foram mortas ou torturadas no império greco-romano de Bizâncio por causa de uma letra de diferença entre a grafia de duas palavras-chaves numa controvérsia religiosa. A discordância foi a respeito da natureza de Cristo e se chama a "a heresia ariana", remetendo à facção perdedora, os seguidores de Ário. Os arianos insistiam em que a natureza de Cristo é descrita pela palavra grega homoisian, significando que o Criador, o Redentor e o Espírito Santo são de natureza ‘semelhante’, enquanto a crença ortodoxa é de que são homoösian, da ‘mesma’ natureza. O conflito acarretado por essa diferença é típico das lutas internas religiosas que afetaram o Império Romano do Oriente, enfraquecendo-o cada vez mais e finalmente tornando possíveis as sucessivas invasões pelos árabes muçulmanos e a vitória final dos turcos otomanos, que conquistaram Constantinopla em 1453, pondo fim ao Império do Oriente".

O fato histórico aplica-se como uma luva à polêmica que enfrentamos. Afinal de contas, para muitos, o Direito é uma religião repleta de dogmas e quem se recusa a aceitá-los, dada a sua ilogicidade, corre logo o risco de ser acoimado de herege. Mas que não precise haver tantos juristas "mortos", quantos foram os mártires arianistas, nessa batalha pelo "poder" e pelos seus significados. Essa babel lingüística deve ficar para trás, a fim de que jamais se confunda novamente o que é "igual" com o que é apenas "semelhante", ou, que é pior, um besouro com um rinoceronte.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Suspensão condicional do processo: direito subjetivo do acusado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1083. Acesso em: 19 mar. 2024.

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