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O direito constitucional francês

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O direito constitucional francês remete-nos à tradição revolucionária iluminista e vincula-se originariamente ao ideário contratualista que vicejou naquele país. Recorrente na história do pensamento e do direito, a revolução de 1789 é marco na tradição normativa ocidental, saudada e festejada, como ponto de inflexão de um novo tempo, que anunciava igualdade, liberdade e fraternidade. E é aí que começam os problemas.

Jules Michelet saudou a revolução; para o historiador francês a convocação dos Estados Gerais de 1789 é a era verdadeira do nascimento do povo (MICHELET, 1990, p. 91). Do outro lado do Canal da Mancha Edmund Burke denunciou o movimento revolucionário francês, em atitude conservadora que percebia que os direitos do homem seriam incompatíveis com a idéia de sociedade, escrevendo que esses direitos metafísicos, ao penetrarem na vida prática como raios de luz atravessando um meio denso, são desviados, pelas leis da natureza, de sua linha reta (...) sem dúvida, na imensa e complicada massa de paixões e preocupações humanas, os direitos primitivos do homem experimentam tal variedade de refrações e reflexos, que se torna absurdo discuti-los como se continuassem na simplicidade de sua direção original (BURKE, 1999, p. 90).

O pensamento iluminista é o eixo conceitual e temático que fundamentou as revoluções do século XVIII, junto às civilizações do Atlântico. E os problemas continuam. Nos dizeres de seu apólogo,

O Iluminismo é a saída do homem de sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo (KANT, s.d., p. 11).

Por outro lado, lembrando-se que a tradução em seguida usada toma a expressão esclarecimento por iluminismo, percebe-se visão oposta, plasmada pelos frankfurtianos:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores (...) O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber (...) O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente ela e os homens. Nada mais importa (...) No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade (...) O esclarecimento é totalitário (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 19 e ss.).

A questão, o que é o iluminismo (was ist Aufklärung) foi retomada por Michel Foucault, para quem a filosofia moderna consistia na tentativa perene de resolver a questão colocada por Kant (cf. FOUCAULT, 1984, p. 32). A atitude para com o iluminismo, favorável ou desfavorável, é indicativo de percepção para com a revolução francesa, e consequentemente para com a normativa decorrente, a exemplo do constitucionalismo que se desenvolveu na França. A questão passa a ser historiográfica, e então se vincula história e direito, instâncias culturais que matizam relação equivocada (GODOY, 2004). E os problemas não terminam por aqui.

A historiografia jurídica suscita reflexões em torno das relações entre relato e verdade. Suspeita-se que a história do direito tem sido utilizada como argumento, adereço retórico, ornamento, descrevendo menos e criando mais (HESPANHA, 1998, p. 18), qual discurso legitimador, prenhe de conteúdo apologético. À história do direito reserva-se a triste tarefa de justificar e legitimar o direito atual (FONSECA, 1999, p. 12), função legitimadora (HESPANHA, 1992, p. 12). Disfarça-se esse ônus empírico, alegando-se que a história do direito oxigena a cultura geral do operador jurídico, que alarga horizontes, que fomenta a compreensão do presente, que explicita a realidade ôntica da experiência jurídica, que revela mistérios, que apresenta exemplos, que prevê tempos vindouros.

Trata-se de identificar-se à função da produção historiográfica, da finalidade da história do direito. Concepções weberianas podem apontar justificativas de dominação tradicional (cf. WEBER, 1986, p. 131); o direito fundamentar-se-ia no passado, como indicador de validade, premissa recorrente na formatação da tradição romanística. Sentir mais hegeliano (cf. INWOOD, 1997, p. 160) indica a razão realizando-se na história, configurando-se na realidade (cf. HEGEL, 1999, p. 34), a suscitar devir conivente com constitucionalismo escatológico da perfeição institucional. Tradição marxista insiste que os homens fazem a própria história (cf. MARX, 2000, p. 15), fundamentada na luta de classes, projetando-se a partir da dinâmica econômica (BREISACH, 1994, p. 297). O iluminismo concebera historiografia identificadora do progresso (cf. SOUZA, 2001, p. 23), matizada em Voltaire, cunhador da filosofia da história, enquanto conceito (cf. LOPES, 2001). A tradição positivista decorrente premoniu a história como ciência pura (cf. TÉTART, 2000, p. 94), aquele "como realmente aconteceu" (wie es eigentlich gewesen), atribuído a Ranke (cf. SILVA, 2001, p. 104), alvo da crítica de Walter Benjamin na Tese VI sobre a Filosofia da História (cf. BENJAMIN, 1985, p. 255).

É nesse sentido que pode se perceber apoteose em torno do constitucionalismo francês e de toda a mitologia que o envolve, com estações nos nomes mais emblemáticos da tradição revolucionária, a exemplo de Montesquieu, Rousseau, Robespierre, Marat, Danton, Saint-Just, Napoleão, para se citar apenas a primeira leva, e mais representativa. Há também todo o desdobramento do século XIX, com paradas em movimentos revolucionários e contra-revolucionários, típicos de momentos dramáticos, a exemplo dos eventos de 1830, de 1848 e de 1871. E há também o século XX, que testemunha revanchismo que contribuiu para o conflito mundial de 1914, a par dos eventos que marcaram o colaboracionismo forçado da República de Vichy, após a tomada de Paris pelas tropas hitleristas, bem como os episódios do fim da guerra, do gaullismo e do movimento contemporâneo em direção à União Européia, com todas as vicissitudes que plasmam suas características mais intrigantes.

Tudo radica na revolução burguesa de 1789, que convocou uma Assembléia Nacional Constituinte, engendrando movimento determinado a defender juridicamente a propriedade, o barulho das revoluções, no dizer de crítico (cf. PROUDHON, 1997, p. 11). Trata-se da mais veemente questão que o terceiro estado colocava, embora sob discurso que fazia aproximação com classes populares, aliança suposta que oxigenou o movimento revolucionário, e que é sentido na oposição que se fazia à aristocracia em excerto célebre:

Não vamos examinar o estado de servidão em que o povo viveu durante tanto tempo, e nem o de coação e humilhação em que ainda é mantido. A sua condição civil mudou e deve mudar ainda. É completamente impossível que o corpo da nação, ou mesmo alguma ordem em particular, venha a se tornar livre, se o Terceiro Estado não é livre. Não somos livres por privilégios, mas por direitos, direitos estes que pertencem a todos os cidadãos. Se os aristocratas tentam, inclusive ao preço deta liberdade de que se mostram indignos, manter o povo na opressão, este povo vai ousar perguntar: Em nome de quê? (SIEYÈS, 2001, p. 7).

A herança francesa que se projeta no pensamento constitucionalista é, no entanto, inegável, e é pensador italiano que deu conta da assertiva:

Com a Revolução Francesa, entrou prepotentemente na imaginação dos homens a idéia de um evento político extraordinário que, rompendo a continuidade do curso histórico, assinala o fim último de uma época e o princípio primeiro de outra. Duas datas, muito próximas entre si, podem ser elevadas a símbolos desses dois momentos: 4 de agosto de 1789, quando a renúncia dos nobres aos seus privilégios assinala o fimdo do antigo regime feudal; 26 de agosto, quando a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem marca o princípio de uma nova era. Não vale a pena sublinhar, por ser muito evidente, o fato de que uma coisa é o símbolo e a outra é a realidade dos eventos gradativamente examinados por historiadores cada vez mais exigentes. Mas a força do símbolo (...) não desapareceu com o passar dos anos. (BOBBIO, 2004, p. 123).

E também foi na França que grandes temas que marcam o constitucionalismo foram levados ao limite da discussão. É o caso de teorias que se referem a eventual fracionamento dos poderes. Para Montesquieu, o poder executivo deve estar nas mãos de um monarca porque essa parte do governo, que quase sempre requer uma ação instantânea, é melhor administrada por um, do que por muitos, enquanto o que depende do poder legislativo é freqüentemente melhor ordenado por muitos, do que por uma única pessoa (MONTESQUIEU, 2004, p. 193). Em Rousseau a concepção vem expressa de outra forma:

Toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção: uma moral, que é a vontade que determina o ato, e a outra física, que é o poder que o executa. Quando me dirijo a um objeto, é preciso, primeiro, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me levem até lá. Queira um paralítico correr e não o queira um homem ágil, ambos ficarão no mesmo lugar. O corpo político tem os mesmos móveis. Distinguem-se nele a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder executivo. Nada nele se faz, nem se deve fazer, sem o seu concurso (ROUSSEAU, 1978, p. 73).

Problematizam-se as fontes ideológicas da democracia clássica, centrada em direitos individuais (cf. VEDEL, 2002, p. 177) e fundamentada no controle e na atribuição de poderes (cf. DUHAMEL, 1993, p. 173). Esses dois pontos identificam-se diretamente com a tradição do século das luzes (cf. CASSIRER, 1951). Até historiografia reputadamente equilibrada entende o esforço revolucionário de 1789 como o maior esforço empreendido por um povo (TOCQUEVILLE, 1988, p. 87). Foi quando regra negativa de proibição de acúmulo de poderes desenhou definitivamente o conteúdo do princípio do modelo de freios e contrapesos (cf. HAMON, TROPER e BURDEAU, 2005, p. 92). E então começa uma outra história.

A constituição de 1791 abriu o ciclo constitucional francês, veiculando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A constituição de 1793 deu fim à monarquia e formalizou uma Convenção Nacional. É a época da radicalização, de forte inspiração rousseauniana. A constituição do ano III, assim chamada por conta do calendário revolucionário, determinou a formação de um regime diretorial, que abrirá as portas para a ascensão napoleônica. A primeira das constituições napoleônicas, do ano VIII, concebeu um modelo de consulado, encabeçado pelo general corso. Em 1802 uma nova constituição tornou o consulado vitalício e em 1804 um novo texto constitucional formalizou o império (cf. GARCÍA-PELAYO, 1984).

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A queda de Napoleão assinalou a constituição de 1814, desligando-se o povo e o exército francês do juramento de fidelidade que havia sido feito ao pequeno caporal. Como conseqüência da revolução de julho de 1830 fez-se nova constituição, naquele ano, quando o poder revolucionário nomeia Luis Felipe de Orleans tenente-geral do reino, dando-se continuidade a processo entendimento, que assinalava onda contra- revolucionária, que ainda se vinculava ao ultrarealismo que caracterizou os anos que se seguiram à queda de Napoleão Bonaparte. Luis Felipe apoiou-se na burguesia. Em 1848 novas jornadas revolucionárias colocaram o povo nas ruas de Paris (cf. TOCQUEVILLE, 1991). Proclamou-se a segunda república francesa, cristalizada na constituição de 1848. Elegeu-se um sobrinho de Napoleão, Luís Napoleão, que protagonizou golpe de estado em 1851, restaurando o império, coroando-se como Napoleão III e implantando o segundo império francês.

O império não resistiu à guerra franco-prussiana de 1871, caindo, conhecendo-se o retorno da ordem republicana, sintetizada na nova constituição, de 1875. A segunda guerra mundial percebeu a França dividida em dois governos, um colaboracionista, centrado em Vichy sob a liderança do marechal Pétain, e outro no exílio, sob a liderança de Charles de Gaulle, cujo retorno apoteótico a Paris, com o fim da ocupação nazista, anunciava a constituição de 1946.

Após a crise da Algéria desenvolveu-se movimento político reformista que redundará na concepção da quinta república francesa, que conheceu as administrações de De Gaulle (1958-1969), de Georges Pompidou (1969-1974), de Valéry Giscard D´Estaing (1974-1981) e de François Mitterand (1981-1995), quando se abre fase mais contemporânea, e mais problematizada com movimento centrípeto com vistas à União Européia.

A vigente constituição francesa substancializa as tendências políticas dominantes na Vª República. Originalmente, é de 28 de setembro de 1958, data de referendo, quando o texto foi aprovado pelos eleitores franceses. Seu texto encontra-se de forma mais acabada a partir de 4 de outubro de 1968. Recebeu algumas emendas, por meio de leis constitucionais, a exemplo da Loi Constitutionelle nº 2005-205, de 1º de março de 2005, referente à chamada carta do meio-ambiente (la Charte de l´environment). No preâmbulo lê-se que o povo francês proclama sua ligação com os direitos do homem e com os princípios de soberania nacional, tal como definidos pela Declaração de 1789, confirmados e complementados por emenda constitucional de 1946, entre outros textos normativos. Por conta da adoção desses princípios, determinou-se que a República oferece aos povos do além-mar as instituições constitucionais de que a constituição trata, fundadas em ideais comuns de liberdade, de igualdade e de fraternidade, concebidos à luz da evolução da democracia.

Proclamou-se que a França é república indivisível, laica, democrática e social. Tem-se que o texto constitucional francês assegura a todos a igualdade em face da lei, de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça e religião (l´égalité devant la loi de tous les citoyens sans distinction d´origine, de race ou de religion). Ainda em tema de religião, indicou-se que a república francesa respeita todas as crenças (elle respecte toutes les croyances).

Escreveu-se que a república é descentralizada. O francês é a língua oficial. O emblema nacional é a bandeira tricolor: azul, branca e vermelha. A Marselhesa persiste como hino nacional. A divisa radica no mote revolucionário: liberdade, igualdade e fraternidade. Tem-se como princípio a adoção de lema que indica que o governo é do povo, pelo povo e para o povo (gouvernement du peuple, par le peuple et pour le peuple). Decretou-se que a soberania nacional pertence ao povo francês, que a exerce por meio dos representantes políticos e por via de referendo. O voto é direto e eventualmente indireto, nos termos de determinação legal, nos limites indicados pelo texto constitucional. O sufrágio é universal, igualitário e secreto.

Consignou-se que eleitores são todos os cidadãos e cidadãs, maiores de idade, detentores de direitos civis e políticos. Prevê-se que a lei deva favorecer igualmente homens e mulheres, em relação a mandatos eleitorais e funções eletivas. Partidos e agrupamentos políticos podem exercer livremente suas atividades, na busca de votos, respeitando-se naturalmente a soberania nacional e a democracia.

Do presidente da república exige-se o respeito pela constituição. Ele assegura, por meio de arbitragem, o funcionamento regular dos poderes públicos, bem como o implemento do princípio da continuidade do Estado. Tem-se no presidente a garantia da independência nacional, da integridade do território e do respeito aos tratados. O mandato presidencial na França é de cinco anos. O voto é direto. Exige-se a maioria absoluta dos votos válidos. Na medida em que candidato não alcance a referida maioria, organiza-se um segundo turno, a ser realizado quatorze dias depois do primeiro escrutínio. Regulamenta-se com pormenor a colmatação da vacância do cargo de presidente, por morte ou afastamento.

O presidente da república nomeia o primeiro-ministro. É este último quem indica os demais membros do governo. Forma-se um Conselho de Ministros, que será dirigido pelo presidente da república. Ao presidente da república compete promulgar as leis, em prazo não superior a quinze dias após a aprovação das mesmas. Ele tem a prerrogativa de submeter a referendo todos os projetos de lei relativo à organização dos poderes públicos, de reformas referentes à política econômica ou social da nação, além dos referentes à retificação de tratados internacionais. O presidente também pode decretar a dissolução da Assembléia Nacional, ouvidos o primeiro-ministro e o presidente das assembléias.

É o presidente da república quem assina as ordens e os decretos de deliberação do Conselho dos Ministros. É ele quem nomeia servidores civis e militares (il nomme aux emplois civil set militaires de l´État). Indica e acredita embaixadores e enviados extraordinários aos países estrangeiros. É o chefe do exército. Preside os conselhos e comitês superiores da defesa nacional. Há dispositivo que concede poderes excepcionais ao presidente, em casos indicados pela constituição. Trata-se de ameaças graves e imediatas às instituições da república, à independência da nação, à integridade territorial e à continuidade dos poderes públicos e constitucionais. Ao exercer circunstancialmente poderes excepcionais o presidente deve comunicar imediatamente a nação, por meio de mensagem formal, nos termos da constituição. Consignou-se que a Assembléia Nacional não pode ser dissolvida durante o período no qual o presidente exerce os referidos poderes excepcionais. Ao presidente conferiu-se o direito de perdão –graça- (le président de la Republique a le droit de faire grace).

Título relativo ao governo (le gouvernement) indica que esse último determina e conduz a política da nação. O governo dispõe da administração e das forças armadas. O primeiro-ministro dirige a nação e o governo. É o responsável pela defesa nacional. Assegura a execução das leis. Pode delegar alguns poderes e incumbências a ministros. Determinou-se que as funções de membro do governo são incompatíveis com o exercício de mandatos parlamentares.

O parlamento é bicameral. Compreende a Assembléia Nacional e o Senado. Os deputados que compõem a Assembléia Nacional são eleitos pelo voto direto. A representação do Senado é escolhida pelo voto indireto. Essa última tem por objetivo assegurar a representação de coletividades territoriais na república. Os franceses que residem fora da França são representados no Senado (les français établis hors de France sont representes au Sénat). Lei orgânica fixa as características de ambas as casas legislativas francesas.

O parlamento vota leis referentes a direitos civis e garantias fundamentais pertinentes aos cidadãos e ao exercício das liberdades públicas. Define leis relativas à nacionalidade, ao estado e a capacidade das pessoas, ao regime matrimonial, a sucessões e doações. Identifica tipos penais e respectivas penas. Trata do regime de emissão de moeda e legisla em matéria tributária. O parlamento francês determina regras relativas ao regime eleitoral de assembléias parlamentares e locais, a garantias fundamentais de funcionários públicos (civis e militares), identifica princípios fundamentais atinentes à organização geral da defesa nacional, à livre administração dos espaços públicos, matéria de ensino, preservação do meio ambiente, regime de propriedade, direitos reais e obrigações civis e comerciais, direito do trabalho, direito sindical e seguridade social. O parlamento tem competência para autorizar declaração de guerra (la déclaration de guerre est autorisée par le Parlement). O estado de sítio é decretado pelo Conselho de Ministros. A iniciativa no processo legislativo é concorrente entre o primeiro-ministro e os membros do parlamento.

A competência para negociação e ratificação de tratados internacionais é do presidente da República. Ele deve ser informado a respeito de todas as negociações referentes à conclusão de tratado internacional que não carece de ser submetido à ratificação (il est informe de toute négociation tendant à la conclusion d´um accord international non soumis à ratification), dado que a constituição francesa estabelece distinções decorrentes da natureza dos vários tratados internacionais que entabula. Entre os temas de tratativas internacionais que exigem ratificação encontram-se os tratados de paz, de comércio, relativos à organizações internacionais, os que suscitem aumento de gastos públicos, os que modifiquem disposições de natureza legislativa, que sejam relativos ao estado das pessoas, que demandem cessão ou troca de territórios, entre outros; tratados que tratem dessas matérias não têm vigência e existência normativa interna antes de apropriadamente ratificados e aprovados. Cessão e troca de territórios exigem consulta prévia das populações interessadas e envolvidas.

O Conselho Constitucional é uma das instituições mais típicas do direito constitucional francês. É composto de nove membros. O mandato é de nove anos, e não se admite que seja reprisado. O Conselho se renova a cada três anos em um terço de seus componentes. Três membros são indicados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembléia Nacional e três pelo presidente do Senado. O presidente do Conselho Constitucional é nomeado pelo presidente da República, seu voto é de qualidade e sua voz é preponderante em caso de impasse (il a voix preponderante em cas de partage). Há incompatibilidade entre as funções de membro do Conselho Constitucional e as de ministro ou membro do Parlamento. Lei orgânica fixará outras incompatibilidades, nos termos da constituição francesa vigente. É incumbência do Conselho Constitucional velar pela regularidade da eleição para presidente da República. Tem função eleitoral, na medida em que examina reclamações e proclama resultados (il examine les réclamations et proclame les résultats du scrutin).

A competência do Conselho Constitucional suscita efeitos concretos. Disposição declarada inconstitucional não pode ser promulgada ou implementada (une disposition déclarée inconstitutionelle ne peut être promulgée ni mise em application). Não há previsão recursal para as decisões do Conselho Constitucional (les décisions du Conseil constitutionnel ne sont susceptibles d´aucun recours). Definiu-se que essas decisões devem ser acatadas pelos poderes públicos e por todas as autoridades administrativas e jurisdicionais.

A autoridade do poder judiciário é garantida pelo presidente da república, nos exatos termos da constituição francesa (le président de la Republique est garant de l´indépendance de l´autorité judiciaire). O estatuto da magistratura francesa é definido por lei orgânica. A constituição garante a inamovibilidade dos magistrados. Há um Conselho Superior da Magistratura, também presidido pelo presidente da república. O ministro da justiça exerce a vice-presidência do referido conselho. O modelo do judiciário divide-se em dois grupos. Há os juízes propriamente ditos (les magistrats du siège) e os magistrados ligados ao ministério público (magistrats du parquet).

Prevê-se uma Alta Corte de Justiça (La Haute Cour de Justice). A referida é composta por membros eleitos pela Assembléia Nacional e pelo Senado. A própria corte elege seu presidente entre seus membros atuantes. Determinou-se que lei orgânica fixa a composição da Alta Corte, suas regras de funcionamento, além do modelo procedimental que a rege. No que toca à responsabilidade por atos políticos definiu-se que os membros do governo são penalmente responsáveis pelos atos praticados no exercício das funções. A competência para o julgamento dos componentes do governo é da Corte da Justiça da República. Essa corte é composta por 15 membros.

Cogita-se de Conselho Econômico e Social, ligado ao governo, que aconselha em projetos de lei, bem como em todos os problemas de natureza econômica e social. Determinou-se que todos os projetos de lei que tratem de temas econômicos e sociais deverão ser submetidos ao crivo prévio do Conselho Econômico e Social.

Há título específico sobre as unidades territoriais descentralizadas, a exemplo dos departamentos, regiões e coletividades, além de regiões situadas no além-mar. Há previsão interessante relativa a acordos de associação (des accords d´association), pela qual autoriza-se a república francesa a concluir tratados com Estados que desejem associar-se a França, com objetivo de desenvolvimento de ambas as civilizações.

Consignou-se que a República Francesa participa da Comunidade Européia, e especialmente da União Européia. Remete-se às condições de tratado europeu assinado em 29 de outubro de 2004. Indicou-se que sob reserva de reciprocidade e de acordo com as modalidades previstas pelo Tratado da União Européia assinado em 7 de fevereiro de 1992, a França consente em transferir competências necessárias para o estabelecimento de uma união econômica e monetária européia. Ainda, sob os mesmos pontos, determinou-se comprometimento da França na consecução de projetos de livre circulação de pessoas no meio europeu. Determinou-se que todo projeto de lei autorizando a ratificação de tratado relativo à adesão de um Estado à União Européia e às Comunidades Européias deve ser submetido a referendo pelo Presidente da República.

No que se refere à revisão constitucional, indica-se que a iniciativa pertence concorrentemente ao presidente da República, mediante proposta do primeiro-ministro e aos membros do Parlamento. A proposta de revisão deve ser votada pelas duas assembléias e posteriormente deve ser sujeita a aprovação por referendo, com exceções, a exemplo de projeto que o presidente submete ao Congresso, e que lá recebe maioria qualificada de três quintos dos votos válidos. A forma republicana de governo não pode ser objeto de revisão constitucional.

Assim, tem-se resumidamente a trajetória constitucional francesa, que surge do romantismo revolucionário do século XVIII e que esgrima com o realismo europeizante do século XXI, testemunhando metamorfoses e transformações, do alto das torres da catedral de Notre Dame, de onde se aprecia o charme e se desconfia dos problemas da cidade das luzes, palco de interminável festa, a preferirmos a imagem inesquecível de Ernest Heminghway.


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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. O direito constitucional francês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1656, 13 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10851. Acesso em: 21 nov. 2024.

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