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A natureza jurídica dos julgamentos proferidos pelos Tribunais de Contas no Brasil

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Os Tribunais de Contas são órgãos autônomos e independentes, não integrando nenhum dos poderes estatais, e que suas atribuições são, em sua totalidade, administrativas.

Sumário: 1 – Introdução. 2 – Os Tribunais de Contas. 2.1 Origem e importância. 2.2 Previsão legal no Direito Brasileiro. 3 – A atuação dos Tribunais de Contas Brasileiros perante os poderes estatais. 3.1 Teoria da Separação de Poderes do Estado. 3.2 A Natureza Jurídica das Cortes de Contas. 4 – A natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas Brasileiros. 4.1 O julgamento das contas. 4.2 Divergência doutrinária acerca da natureza dos julgamentos. 4.2.1 Tese do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas. 4.2.2 Tese da natureza administrativa das decisões das Cortes de Contas. 4.3 A revisibilidade das decisões. 4.3.1 A coisa julgada administrativa. 4.3.2 Competências específicas e vedação à revisão judicial. 4.4 A natureza administrativa das atribuições dos Tribunais de Contas. 4.4.1 Distinção entre as funções jurisdicional e administrativa. 4.4.2 Terminologia inadequada: aparente equiparação às Cortes Judiciárias e real significado do julgamento das Cortes de Contas 4.4.3 Os Tribunais de Contas no exercício de atividades meramente administrativas. 5 – Conclusão. Referências Bibliográficas.


1 - Introdução

O Tribunal de Contas é uma instituição antiga no ordenamento jurídico brasileiro, a qual tem como incumbência realizar, em ação conjunta ao Poder Legislativo, a fiscalização financeira e orçamentária sobre os gastos da Administração Pública lato sensu, encontrando sua disciplina legal nos artigos 70 a 75, da Constituição Federal.

Apesar de sua longa existência, ainda hoje os Tribunais de Contas são objeto de discussões doutrinárias. Os questionamentos existentes são de duas ordens. No que concerne ao aspecto orgânico, indaga-se acerca da natureza jurídica das Cortes de Contas. A outra discussão, que se revela mais relevante, refere-se ao aspecto funcional, havendo discordância quanto à natureza jurídica das decisões por elas proferidas.

Nesse contexto, o que se pretende com o presente trabalho é justamente, através da análise da atuação das Cortes de Contas no âmbito do ordenamento jurídico pátrio, identificar qual a sua natureza jurídica e, principalmente, a natureza jurídica das decisões que proferem, fazendo uma comparação com a atuação do Poder Judiciário. Objetiva-se, pois, demonstrar que tais Cortes são órgãos autônomos e independentes, não integrando nenhum dos poderes estatais, e que suas atribuições são, em sua totalidade, administrativas, conclusão obrigatória ante o sistema de jurisdição una adotado pelo Brasil.

Desse modo, o estudo apresenta-se dividido em três partes. Inicia-se com uma apreciação em torno da Instituição denominada Tribunal de Contas, a qual envolve sua origem, importância e evolução histórica no Direito Brasileiro, destacando-se a existência de Cortes de Contas Estaduais e Municipais, cujo parâmetro normativo são os dispositivos legais que regem o Tribunal de Contas da União, previstos no texto constitucional.

Em um segundo momento, feita uma exposição sobre a Teoria da Separação dos Poderes do Estado, define-se a natureza jurídica das Cortes de Contas Brasileiras. A atuação dos órgãos ante os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é analisada com o objetivo de verificar se as referidas Cortes integram um dos três poderes ou se são órgãos autônomos.

O cerne do trabalho encontra-se na terceira parte, na qual se discute a natureza jurídica das decisões proferidas pelas Cortes de Contas. Destaca-se o fato de a discussão realmente significativa dar-se em torno da previsão do inciso II, do artigo 71, da Constituição Brasileira (que prevê como atribuição das Cortes de Contas o "julgamento" das contas nele previstas), bem como da utilização dos vocábulos "jurisdição" e "Tribunal" pela Carta Magna.

Dentro desse tema, há quem defenda o desempenho de função jurisdicional pelos Tribunais de Contas, enquanto outros afirmam que todas as suas decisões têm natureza administrativa. Faz-se referência às divergentes correntes doutrinárias existentes sobre a questão, analisando-se os pontos aparentemente semelhantes entre a atuação das Cortes de Contas e do Poder Judiciário. Por fim, defende-se a natureza meramente administrativa dos julgamentos proferidos pelas Cortes de Contas Brasileiras, atribuindo-se o posicionamento contrário a uma série de equívocos que foram expostos ao longo deste trabalho.

O presente estudo apresenta indiscutível relevância por analisar a efetividade das decisões dos Tribunais de Contas. É inquestionável que a classificação do julgamento proferido como ato administrativo ou jurisdicional tem conseqüências práticas diversas. A atual discussão sobre a natureza jurídica dos referidos julgamentos está intimamente relacionada com a sua maior ou menor efetividade, o que é reflexo direto do grau de definitividade de que são dotados e dos limites impostos à sua revisão pelo Poder Judiciário.


2 – Os Tribunais de Contas

Não é recente a preocupação da sociedade com a regularidade da aplicação do dinheiro público. O desenvolvimento do Estado gerou a necessidade de um órgão de controle da atividade financeira por ele exercida. Revelou-se indispensável, destarte, a criação de uma instituição autônoma e independente para fiscalizar os atos de natureza administrativo-financeira praticados pelo Estado.

Segundo os historiadores, esse tipo de controle remonta às civilizações grega e romana, ainda que de forma rudimentar. Posteriormente, a transformação do Estado grego em uma República Democrática provocou o surgimento de diversos conceitos fundamentais ao controle financeiro, tais como a responsabilização dos administradores pelos atos de gestão praticados, a obrigatoriedade na prestação de contas de recursos recebidos, bem como a submissão dos gestores públicos a normas de bom senso administrativo. Com o passar do tempo, a atividade de controle passou a exigir maior especialização técnica e surgiram, então, os primeiros orçamentos, constituindo-se na própria expressão da vontade e da soberania popular sobre os atos de seus governantes. Com o advento dos orçamentos, o controle das finanças públicas, antes limitado a um exame superficial da legalidade e à análise genérica dos gastos, ganhou um nível maior de detalhamento, exercendo também um controle de conformidade, que persistiu durante muito tempo como a única forma de controle dos atos governamentais. [01]

Modernamente, esse controle é exercido através do sistema de Tribunais de Contas ou do sistema de Controladorias (Auditoria Geral). Os Tribunais de Contas aparecem em países de tradução latina, como Alemanha, França, Portugal, Itália, Espanha, Brasil, Uruguai, Argentina, apresentando-se como órgãos colegiados, cujos membros possuem as prerrogativas da magistratura judiciária.

Independentemente de as Cortes de Contas integrarem o Poder Judiciário (o que é raro, mas se verifica em alguns casos), nos países em que se adota o contencioso administrativo, as decisões administrativas do órgão de controle não podem ser revistas judicialmente. É o que ocorre em países como França, Portugal, Alemanha, Itália, Suécia e Bélgica. [02]

Em breves considerações, o contencioso administrativo se contrapõe ao sistema de jurisdição una. Nos países que seguem a unidade da jurisdição (sistema inglês), impera a regra do monopólio da jurisdição pelo Poder Judiciário. Já no sistema da dualidade da jurisdição (sistema francês), aqueles litígios em que for parte a Administração ou suas autarquias não são apreciados por um órgão do Poder Judiciário, mas por "tribunais" integrados na estrutura do próprio Poder Executivo, que decidem com eficácia vinculativa plena. As decisões de tais órgãos transitam materialmente em julgado, não podendo a questão ser reexaminada pelo Judiciário. [03] Em resumo, o contencioso administrativo ou sistema dualista de jurisdição é o sistema no qual a Administração é dotada de funções judicantes para processar e julgar conflitos entre a Fazenda Pública e os administrados.

O sistema de Controladorias (Auditoria Geral) aparece nos países de tradição britânica, como Inglaterra, África do Sul, Austrália, Canadá e Estados Unidos. Há um órgão unipessoal dirigido por um Controlador ou Auditor-Geral com mandato limitado e, em alguns países, o Auditor-Geral tem as mesmas garantias e prerrogativas conferidas à magistratura. [04]

Conforme já aludido, inicialmente o controle exercido pelos Tribunais de Contas, que é o ponto central do presente trabalho, era meramente formalístico, limitando-se a aspectos atinentes à legalidade dos atos públicos, em seu sentido estrito. O sistema de Controladorias, por outro lado, enfatizava aspectos atinentes ao mérito dos atos administrativos, como economicidade e resultados de gestão, tendo exercido expressiva influência sobre o sistema das Cortes de Contas. [05]

2.2 Previsão legal no Direito Brasileiro

No Brasil imperial, embora não houvesse uma fiscalização das contas da Coroa (o Imperador era considerado sagrado e inviolável, sendo completamente irresponsável pelos atos praticados), já se cogitava a criação de um órgão de controle. Apesar disso, só com a República teve início um movimento que procurava institucionalizá-lo. Após a queda do Império, ainda no Governo Provisório, o então Ministro da Fazenda Rui Barbosa propugnou por um Tribunal de Contas. Assim, em 1890, por iniciativa sua foi editado o Decreto nº. 966-A, que criou formalmente o Tribunal de Contas da União, com o objetivo de fiscalizar os atos do Poder Executivo e julgar as contas de todos os responsáveis pelos dinheiros públicos.

Contudo, apesar de aprovado o decreto, o mencionado órgão não passou a existir de fato. Só com a Carta de 1891 é que a Corte de Contas foi instituída e passou a cumprir efetivamente suas atribuições, com o dever de liquidar as contas da receita e da despesa e verificar a sua legalidade antes de serem prestadas ao Congresso. A previsão constitucional foi deveras importante, pois em todas as constituições posteriores se fez presente a figura do Tribunal de Contas, sempre como órgão autônomo e com destacadas funções, ainda que, no correr da República, tenham essas sofrido modificações. [06]

A partir de então, paulatinamente, foram sendo criados os Tribunais de Contas Estaduais e alguns Municipais. Ressalte-se que as Cortes de Contas dos Estados, regra geral, têm jurisdição sobre o Estado e seus Municípios, à exceção dos Municípios onde haja um Tribunal específico para controlar as suas contas ou, em alguns casos, do Estado que possua um Tribunal de Contas dos Municípios, responsável pelas contas de todos os Municípios. Apesar de a nova ordem constitucional de 1988 ter preservado as Cortes de Contas Municipais criadas até o início de sua vigência, proibiu a criação de novos órgãos com tal natureza, de acordo com o seu artigo 31, § 4º. [07]

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Os tribunais estaduais passaram a exercer atribuições semelhantes ao órgão federal, dentro de sua esfera de atuação. Ressalte-se que não existe vinculação hierárquica de qualquer espécie entre o Tribunal de Contas da União e as Cortes Estaduais e Municipais. Não há entre eles um sistema de recursos, de forma que cada órgão exerce as competências que lhes são traçadas pelos respectivos diplomas legais de regência. No entanto, o TCU serve como paradigma para organização e o funcionamento dos demais tribunais de contas.

A Constituição Federal de 1988 dedicou uma seção inteira ao tema de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, disciplinando a atuação das Cortes de Contas nos artigos 70 a 75. Estatui o caput do artigo 71, da Carta Magna, que o Tribunal de Contas da União tem a função de auxiliar o Congresso Nacional no exercício do controle externo da Administração Pública, o qual consiste na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, conforme o disposto no caput do artigo 70, do mencionado diploma legal.

Portanto, no ordenamento jurídico vigente, o texto constitucional prevê a prestação de contas como princípio a ser observado na ordem financeira. O aludido controle é atribuído, reitere-se, aos Tribunais de Contas, que têm a função de apreciar e julgar a gestão da coisa pública, como verdadeiros guardiões do princípio republicano. [08]


3 – A atuação dos Tribunais de Contas Brasileiros perante os poderes estatais

Inicialmente, é mister destacar que, embora seja clássica a expressão "separação de poderes", é ponto pacífico que o poder do Estado é uno e indivisível. É evidente que existe uma relação muito estreita entre "poder" e "função" do Estado, havendo quem sustente que é totalmente inadequado se falar em uma separação de poderes, quando o que existe realmente é apenas uma distribuição de funções. Não obstante tal discussão, neste estudo optou-se pelo emprego da expressão clássica "separação de poderes", significando, no entanto, a existência de um único poder exercido através de três funções distintas.

Montesquieu foi o responsável por conceber a teoria como um sistema composto por um Legislativo, um Executivo e um Judiciário, harmônicos e independentes entre si. Em sua obra, defendeu a existência de funções intrinsecamente diversas e inconfundíveis, mesmo quando confiadas a um só órgão. Segundo ele, o ideal seria a existência de um órgão próprio para cada função, considerando indispensável a organização do Estado em três poderes. [09]

A separação de poderes foi concebida com a intenção de enfraquecer o poder do Estado (associada à idéia de Estado Democrático) e deu origem à construção doutrinária conhecida como "freios e contrapesos", que classifica os atos estatais em duas espécies: atos gerais e atos especiais. Os atos gerais (leis) só podem ser praticados pelo Poder Legislativo, ou com a sua autorização, e constituem-se em regras gerais e abstratas, não possuindo destinatários determinados. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do Poder Executivo, por meio de atos especiais, que são meios concretos de ação. Contudo, o Executivo está impossibilitado de atuar discricionariamente, pois seus atos estão limitados pela legislação. Havendo exorbitância de qualquer dos Poderes, surge a ação fiscalizadora do Poder Judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competências. [10]

Uma grande crítica ao sistema de separação de poderes é feita por Dalmo de Abreu Dallari, o qual afirma que tal sistema é meramente formalista, visto que jamais foi colocado em prática, devido à permanente e intensa interpenetração entre os poderes, o que impossibilita a divisão das funções em compartimentos estanques. [11]

Por se tratar de um princípio geral do Direito Constitucional, a divisão de poderes foi adotada pela Constituição Brasileira como um dos seus princípios fundamentais, com previsão expressa em seu artigo 2º, que dispõe: "São Poderes de União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Ressalte-se que, no ordenamento jurídico pátrio, as expressões Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário apresentam duplo sentido. Referem-se, ao mesmo tempo, às funções estatais (legislativa, executiva e jurisdicional) e aos respectivos órgãos.

A doutrina destaca, inclusive, que no Brasil há uma verdadeira separação de poderes, e não apenas uma divisão de funções, visto que há órgãos especializados para o desempenho de cada parcela do poder estatal. Isto não significa, contudo, que há uma rígida separação. Fala-se em uma predominância no exercício, e não em sua exclusividade. Com efeito, revela-se impossível que os órgãos de cada poder desempenhem exclusivamente funções de igual denominação. Todos os poderes exercem as três parcelas, embora em graus distintos. Assim, é inegável que há primazia no desempenho das funções que denominam cada Poder, mas não há que se falar em exclusividade ou monopólio do seu exercício.

Antes de se prosseguir, revela-se oportuno relembrar em que consiste cada função estatal. A legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. A executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis, mas não se limita à simples execução das mesmas. Por fim, a jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse. [12]

3.2 A natureza jurídica das Cortes de Contas

A natureza jurídica dos Tribunais de Contas, bem como a natureza de suas relações com os três poderes do Estado (especialmente o Poder Legislativo, com o qual estreitamente colabora), é matéria polêmica, jamais pacificada na doutrina e na jurisprudência, desde o surgimento da primeira Corte de Contas no Brasil. [13]

A Carta Magna cuida dos Tribunais de Contas no capítulo dedicado ao Poder Legislativo, na seção referente à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, estabelecendo, em seu artigo 71, já mencionado anteriormente, que "o controle externo de competência do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas". Ante tal previsão legal, questiona-se acerca da natureza das Cortes de Contas, sobre como devem ser consideradas em termos institucionais e, igualmente, sobre a sua inserção entre os Poderes.

A sua inclusão no âmbito do Poder Executivo está fora de cogitação, pois não há possibilidade de um órgão controlador estar subordinado ao órgão controlado. Aliás, ressalta-se, desde logo, que as atribuições dos Tribunais de Contas não podem sofrer ação inibidora por parte de qualquer dos poderes estatais, visto que, nas palavras de Carlos Roberto Siqueira Castro,

Visam permitir o pleno exercício da função fiscalizatória em face da administração da receita e da despesa pública, que são exercidas pelos três Poderes da República. Com efeito, é da incumbência insubtraível do Tribunal de Contas fiscalizar o Executivo, o Judiciário e o próprio Legislativo, de cuja estrutura é integrante. [14]

As Cortes de Contas tampouco integram o Poder Judiciário, pois não constam do artigo 92, da Constituição Federal, que versa sobre os órgãos judiciários. Essa afirmação é confirmada pelo artigo 73, da Carta Magna, que determina a aplicação aos Tribunais de Contas, no que couber, das disposições do seu artigo 96, que versa sobre a organização interna dos órgãos judiciários. Nesse mesmo passo, trata o §3º, também do artigo 73, da previsão de concessão, aos membros dos Tribunais de Contas, das garantias, prerrogativas e impedimentos dos integrantes do Poder Judiciário. Tais dispositivos legais visam a equiparar as Cortes de Contas ao Poder Judiciário, de onde se pode concluir que elas não detêm a natureza de órgãos do Judiciário, pois, se assim fosse, desnecessários seriam preceitos desse teor.

Contudo, tal entendimento está longe de ser pacífico. Alguns doutrinadores, influenciados pela doutrina européia atinente ao contencioso administrativo, à justiça administrativa como ordem judiciária, específica e autônoma em relação à justiça comum (civil e penal), assim como ao Poder Executivo, defendem a inserção dos Tribunais de Contas no Poder Judiciário.

No sistema do contencioso administrativo, as Cortes de Contas são de fato tribunais, uma das justiças administrativas especializadas. Nos países em que se adota tal sistema, elas são verdadeiramente uma jurisdição, pois integram o poder jurisdicional, que se bifurca em duas ordens judicantes, autônomas e independentes (de um lado, a administrativa; de outro, a civil e a penal). No Brasil, contudo, inexiste o contencioso administrativo (abolido do respectivo ordenamento jurídico desde os primórdios da República), o que torna inadmissível que os Tribunais de Contas pátrios sejam considerados jurisdição administrativa.

As Cortes de Contas Brasileiras não se situam formal ou materialmente no âmbito do Poder Judiciário. Quanto ao aspecto formal, prevalece o entendimento de que não são, realmente, órgãos judiciários. É no aspecto material que residem as maiores discussões, pois parcela da doutrina entende que, apesar de as referidas Cortes não integrarem o Poder Judiciário, exercem funções jurisdicionais. O assunto constitui o mérito do presente estudo, razão pela qual será explorado posteriormente, em tópico específico.

Ao se excluir a sua inserção nos Poderes Executivo e Judiciário, resta apenas verificar se as Cortes de Contas inserem-se no âmbito do Poder Legislativo. A expressão "com o auxílio do Tribunal de Contas", constante do artigo 71, da Constituição Federal, é objeto de controvérsias no tocante ao vínculo entre esse órgão e o Poder Legislativo.

De fato, há uma corrente doutrinária que considera os Tribunais de Contas subordinados hierarquicamente ao Poder Legislativo, dada à posição de auxiliares que a eles teria sido conferida, sendo, por tal razão, usual a menção aos órgãos como "auxiliares do Poder Legislativo". [15] Todavia, verifica-se que a Constituição Federal em momento algum fala em "órgão auxiliar", apenas dispõe que o controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, o qual tem como função o exercício do controle financeiro e orçamentário em colaboração com o poder responsável, em última instância, por essa fiscalização. Sob esse aspecto, tal corrente confunde a função com a natureza do órgão.

Excetuada a hipótese em que os Tribunais de Contas emitem parecer prévio sobre as contas do Chefe do Poder Executivo (artigo 71, inciso I, da Carta Magna), o Poder Legislativo não exerce papel de instância técnica superior a tais Cortes. Essa é a única hipótese em que a opinião das Cortes de Contas se sujeita à revisão política, ou seja, as demais decisões não podem ser reexaminadas pelo Poder Legislativo. [16]

Com efeito, os Tribunais de Contas elaboram o seu próprio Regimento Interno e têm plena autonomia administrativa e financeira, gerindo e decidindo as questões da sua economia interna, inclusive em tema de pessoal. Ademais, têm a faculdade de propor a iniciativa de lei, em especial sobre essas questões da sua administração, a teor do que prescreve o caput do art. 73, da Constituição Brasileira.

José Cretella Júnior [17] e Hely Lopes Meirelles [18] classificam os Tribunais de Contas como "órgãos administrativos independentes". Já para Odete Medauar, a qualificação "administrativo" não deve ser empregada, devido à possibilidade de imediata associação ao Poder Executivo, considerando a expressão "instituições estatais independentes" mais adequada à natureza que tais órgãos detêm no ordenamento pátrio. [19]

Na esteira desse raciocínio, Jarbas Maranhão possui posicionamento semelhante, a seguir transcrito, in verbis:

Na verdade, o Tribunal de Contas é um órgão independente, em relação aos três Poderes, mas de relevante contribuição, auxiliando-os no desempenho de suas atividades de governo, ou em suas específicas atribuições constitucionais e legais. (...) O Tribunal é órgão que, funcionalmente, auxilia os três Poderes, porém, sem subordinação hierárquica ou administrativa a quaisquer deles. O contrário seria confundir e negar a sua natureza e destinação de órgão autônomo. (...) São os Tribunais de Contas, assim, órgãos situados entre os Poderes e de cooperação funcional com eles, impondo-se, todavia, que mantenham independência como órgão e função. [20] (grifos ausentes no original)

O aludido autor, em outro trabalho, relaciona a atuação dos referidos órgãos de controle ante cada um dos poderes estatais:

Em relação ao Poder Executivo a função do Tribunal de Contas é de controle e revisão. (...) Relativamente ao Poder Legislativo que, além de legislar, tem amplo poder de fiscalização, o Tribunal de Contas coopera tecnicamente na realização do Controle Externo. Quanto ao Poder Judiciário tem com ele similitudes. Como órgão tem composição não idêntica, mas semelhante. Os ministros e conselheiros do Tribunal de Contas têm os mesmos direitos, garantias e impedimentos dos Magistrados do Poder Judiciário. [21]

Verifica-se, dessa forma, que os Tribunais de Contas têm a natureza de órgãos constitucionais dotados de autonomia administrativa e financeira sem qualquer relação de subordinação com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tendo em vista que eles agem ora em colaboração com o Poder Legislativo, ora no exercício de competências próprias. [22]

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Sobre a autora
Marília Soares de Avelar Monteiro

Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduanda do Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual: grandes transformações – Unama / UVB / LFG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Marília Soares Avelar. A natureza jurídica dos julgamentos proferidos pelos Tribunais de Contas no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1699, 25 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10981. Acesso em: 2 mai. 2024.

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