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O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público

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Resumo:


  • O Princípio do Bem Comum é um conceito chave na Ética Social e é abordado sob a perspectiva aristotélico-tomista, que busca harmonizar o bem individual com o bem da comunidade.

  • Compreende-se o Bem Comum através de cinco noções essenciais: Finalidade, Bondade, Participação, Comunidade e Ordem, que juntas formam a base para a sua aplicação prática na sociedade.

  • O Bem Comum deve ser priorizado em relação ao bem individual, mas respeitando o princípio da proporcionalidade, garantindo que não se sacrifique um bem espiritual para alcançar um bem material, e que a parte não seja prejudicada em prol do todo em uma escala desmedida.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. Introdução – Perspectiva

O presente estudo sobre o Princípio do Bem Comum, que é um dos temas centrais da Ética Social, será feito sob a perspectiva filosófica aristotélico-tomista, aproveitando a tradição da filosofia grega e escolástico-medieval, que WILHELM LEIBNIZ denominou de "philosophia perennis" ("Discurso de Metafísica" – 1686).

Essa perspectiva se justifica tendo em vista que a filosofia moderna, a partir do nominalismo e racionalismo cartesiano, e a filosofia contemporânea, em suas vertentes liberal-individualista ou social-coletivista, acabaram conduzindo a uma aparente dicotomia entre o bem comum e o bem individual, conforme ressaltado por JOHANNES MESSNER:

"A teoria social do individualismo partiu do indivíduo como ser acabado em si mesmo e em si mesmo exclusivamente baseado quanto ao seu valor; mas nunca chegou realmente a um conceito de comunidade enquanto realidade portadora de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo".

"Em contrapartida, a teoria social de todas as formas de coletivismo parte do ser da sociedade, tomando-o por valor primário e incondicionado; mas sem compreender jamais a realidade total da pessoa humana, com seus fins supra-sociais e o seu valor de ordem supra-social" (grifos nossos).

Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza das coisas e possui inúmeras conseqüências práticas para o convívio social.

Comentando a encíclica Mater et Magistra, ALCEU AMOROSO LIMA afirma sobre o bem comum:

"A alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano. Há três estados naturais do homem, que representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e cada nacionalidade."

Ao se perquirir sobre o que seja o Bem Comum, 5 noções básicas devem ser aprofundadas, como instrumental indispensável para sua compreensão: são as noções de Finalidade, de Bondade, de Participação, de Comunidade e de Ordem. Da conjugação desses conceitos fundamentais é que se extrairá a noção de Bem Comum.

Servir-nos-emos, para o desenvolvimento deste estudo, da seleção de textos de S. TOMÁS DE AQUINO sobre o "Bem Comum", feita por CARLOS CARDONA, e sobre o "Bem", feita por JESÚS GARCÍA LÓPEZ.


2. Noção de Finalidade

A primeira noção básica para se compreender o bem comum é a de finalidade ou causa final. ARISTÓTELES, quando estudava o tema da causalidade, como explicativa do ser das coisas (a ciência seria o conhecimento certo através das causas), reduziu todas as possíveis causas a 4 espécies:

  • Causa Material – do que a coisa é feita (matéria, como princípio comum);

  • Causa Formal – qual a essência da coisa (o que a distingue das demais);

  • Causa Eficiente – qual a origem ou motor que colocou a coisa em movimento;

  • Causa Final – qual o fim ou objetivo da coisa.

Destaca entre as 4 precisamente a última, a causa final, como a que melhor explica o ser das coisas: para que serve ou qual o fim para o qual existe. Para se compreender a noção de bem (bondade das coisas), a noção de finalidade representa um papel fundamental.


3. Noção de Bem

SÃO TOMÁS DE AQUINO diz que "Bem é aquilo que a todos apetece". Apetece porque possui uma perfeição, capaz de atrair. Assim, o bem é o fim buscado pelo agente, porque o atrai.

ARISTÓTELES, quando solveu a antiga dicotomia existente entre as posturas radicais de HERÁCLITO (o que existe é apenas o devir) e PARMÊNIDES (o que existe é apenas o ser estático), desenvolveu sua teoria hilemórfica (diferenciação entre ser em ato e ser em potência), que serve para explicar o bem como causa final que atua no ser: Perfeito é o ente que está em ato, isto é, que tem atualmente todas as perfeições que lhe são próprias. Se não tem alguma dessas perfeições, está em potência de adquiri-la.

Nesse sentido, temos que a perfeição atua como fim para o qual tende o ente: o bem que busca possuir. Daí que "primeiro e principalmente se chama bem ao ser aperfeiçoador de outro a modo de fim" .

Quanto mais perfeito e universal for o bem, a mais seres atrai. O Ser Perfeito, diz-se que é por essência. O que não é perfeito, mas tem perfeições, diz-se que é por participação: "O que é totalmente algo, não participa disso, senão que é isso por essência. Pelo contrário, o que não é totalmente algo, dizemos que participa" .


4. Noção de Participação

Necessário se faz, então, compreender o que seja participação, como 3ª noção básica para se delimitar o bem comum.

Etimologicamente, participar significa tomar uma parte (do latim "partem capere"). No entanto, a melhor noção de participação vem da etimologia grega, que significa ter conjuntamente ou ter com outro ("metekó" - µete??). Daí os dois sentidos básicos da palavra participação:

  • Sentido Material (latino) – dividir um todo material entre aqueles que dele participarão: o todo desaparecerá e cada sujeito participante terá uma parte do objeto participado, guardando uma relação apenas histórica com o antigo todo;

  • Sentido Espiritual (grego) – ter parcialmente o que outro possui integralmente: uma alegria que é plena no sujeito que obteve uma vitória, é participada em menor intensidade naquele que recebe a comunicação da vitória e com ela se alegra, sem que a participação diminua a alegria do sujeito que obteve a vitória, antes a tem aumentada.

Assim, o bem é difusivo por si só, porque atua como causa final que atrai a que outros participem de sua bondade.


5. Noção de Comunidade

A participação implica uma comunidade entre os participantes em função do participado. Esta 4ª noção básica está nominal e umbilicalmente ligada à própria expressão bem comum.

Diz SÃO TOMÁS DE AQUINO que "a comunidade é um certo todo". Há uma certa unidade entre os participantes, como integrantes de um todo: os homens, por participarem da mesma natureza humana, formam uma comunidade. Comunidade é, pois, uma "comum unidade" ou "comum união", uma comunhão entre aqueles que participam de uma mesma natureza e tendem a um mesmo fim.

Assim, a noção de comum refere-se àquilo que pertence ou que se predica de vários: mesma natureza ou mesma espécie.


6. Noção de Ordem

Finalmente, para se fechar o cerco dos elementos que propiciam a compreensão do que seja o bem comum, temos a noção de ordem a desempenhar um papel fundamental, como a noção inicial de finalidade.

Para haver ordem, são necessárias 3 coisas:

  • Distinção com conveniência – que haja multiplicidade de indivíduos, com um elemento semelhante que os aglutina, mas com diferenças de talentos e perfeições colocadas à disposição do todo;

  • Cooperação – que aquilo que falta a um seja suprido pelo que possui o outro (os inferiores se submetem aos superiores e os ajudam; os superiores provêem aos inferiores; cada um desenvolve suas próprias potencialidades, atuando onde se encontra).

  • Fim – que exista um objetivo comum em torno do qual se aglutinem todos os membros da comunidade.

Assim, uma comunidade não é um aglomerado de pessoas, mas um todo orgânico, com uma ordem entre as partes, onde deve imperar a harmonia e concórdia. "Todas as coisas que existem aparecem ordenadas entre si, de modo que umas servem a outras. Mas as coisas que são diversas não conviriam numa ordem comum se não houvessem sido ordenadas por algo uno".

Há, portanto, duas espécies de ordem:

  • Ordem das partes entre si (intrínseca) – subordinação de umas a outras, conforme uma hierarquia;

  • Ordem do todo ao fim (extrínseca) – busca de todos pelo bem comum.

A ordem intrínseca se subordina à extrínseca, como as partes se subordinam ao todo: só há uma ordem interna (das partes entre si), se as partes convêm num fim ordenador comum (externo). A própria ordem do Universo somente se explica em face dessa dupla ordenação.

Deus, como último fim da Criação e o bem mais comum de todos os seres, é o princípio ordenador do Universo: se não houvesse essa ordenação de todos a esse Fim Último e Bem Supremo, não formaríamos uma comunidade, nem haveria relação ordenada entre os homens.

Podemos dizer, portanto, que o objetivo que une os homens em sociedade e determina o modo com se organizarão é o bem comum que pretendem alcançar, que se distingue do bem particular buscado por cada indivíduo isoladamente, e que se divide, basicamente, em duas espécies:

  • transcendente (externo e eterno) – finalidade última buscada por qualquer sociedade (glória de Deus e felicidade - Bem Comum dos homens)

  • imanente (interno e temporal) – ordenação das partes da sociedade visando ao fim último (condições e meios para que os membros da sociedade possam alcançar seus fins particulares).

Há, pois, uma hierarquia entre os bens que podem ser buscados pelos indivíduos (espirituais e materiais, morais e intelectuais), de acordo com a ordem dos fins existenciais próprios da natureza humana (fim último sobrenatural colocado acima dos fins meramente naturais).

Assim, verifica-se que nenhum indivíduo possa alcançar seu fim particular senão como parte ou co-partícipe de um todo no qual está inserido. Daí que apenas colaborando na consecução do fim comum e ajudando aos demais membros da comunidade a alcançar seu bem particular, é que se atinge o próprio bem, uma vez que se trata de um bem comum.


7. Conceito de Bem Comum

Municiados com as noções elencadas, podemos conjugá-las para se chegar, agora, a compreender o que seja o bem comum.

Bem Comum nada mais é do que o próprio bem particular de cada indivíduo, enquanto este é parte de um todo ou de uma comunidade: "O bem comum é o fim das pessoas singulares que existem na comunidade, como o fim do todo é o fim de qualquer de suas partes". Ou seja, o bem da comunidade é o bem do próprio indivíduo que a compõe. O indivíduo deseja o bem da comunidade, na medida em que ele representa o seu próprio bem. Assim, o bem dos demais não é alheio ao bem próprio.

O bem particular buscado por cada um dos membros da comunidade é, em última análise, a própria felicidade, que só se alcança com o perfeito aquietamento do apetite, ou seja, quando nada resta a desejar. O objeto formal de nossa vontade é o bem, sem limitações, e não este ou aquele bem. Daí que apenas um bem que seja universal é capaz de saciá-la plenamente. Um bem é tanto mais bem quanto é bem para mais pessoas.


8. Noção de Interesse

Noção afim à de bem comum é a de interesse público. Ao princípio ético do bem comum corresponde o princípio jurídico do interesse público.

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Interesse é a relação existente entre uma pessoa e um bem, na qual este se mostra capaz de satisfazer uma necessidade daquela. A etimologia latina da palavra é a chave para apreender o seu significado: "inter" (entre) + "esse" (ser) = "interesse" (ser entre). Ou seja, o interesse é a ponte entre o sujeito e o bem, que os relaciona entre si, onde o sujeito busca aquilo que reputa ser um bem capaz de satisfazê-lo.

Há, portanto, uma distinção a ser feita, para uma perfeita compreensão do que seja "interesse". É a distinção entre o bem simpliciter e o bem secundum quid.

  • O bem simpliciter, ou seja, considerado de forma absoluta, é um dos transcendentais elencados por ARISTÓTELES como facetas do ser : o "ser" enquanto passível de ser conhecido por uma inteligência é "verdadeiro", enquanto passível de ser apreciado pelo sentido estético é "belo" e enquanto passível de ser querido por uma vontade é "bom". Nesse sentido, todo ente, pelo simples fato de existir, é "bom" simpliciter, isto é, tem uma bondade intrínseca, que o torna capaz de ser tido como um bem por algum sujeito.

  • Já o bem secundum quid, ou seja, segundo determinado aspecto, é aquele que tem adequação à perfeição exigida por determinada natureza. Assim, os bens mais próprios à natureza racional do homem são os de ordem espiritual, enquanto a natureza animal exige exclusivamente bens de ordem material.

Ora, o interesse, como manifestação volitiva de um sujeito em relação a um bem, apanha-o em sua faceta transcendental de bem simpliciter. Trata-se de busca do interesse privado que pode, ou não, coincidir com a busca do bem secundum quid, hipótese em que teremos o encontro do bem particular, ou seja, aquele que, efetivamente, corresponde ao bem próprio do sujeito que o busca, adequado à sua natureza e capaz de satisfazê-lo e aperfeiçoá-lo.


9. Noção de Interesse Público

Seguindo nessa esteira, temos que, quando o sujeito que busca um bem é uma comunidade, está-se diante do que se denomina de interesse público, que aparece como a relação entre a sociedade e o bem comum que ela almeja, perseguido por aqueles que, na comunidade, estão investidos de autoridade.

Cabe ao governante ou administrador público, numa sociedade politicamente organizada, promover o bem comum, externando, através de suas ações e comandos, o interesse público. Este também poderá não se adequar ao bem comum da sociedade, quando houver descompasso entre o Direito Positivo e o Direito Natural, ou seja, a lei positiva, emanada da autoridade, vai de encontro aos direitos humanos fundamentais, inalienáveis e que não cabe ao Estado outorgar, mas apenas reconhecer, como pré-existentes, como inerentes à dignidade da pessoa humana.

A moderna teoria dos interesses veio a ampliar o rol dos interesses existentes na sociedade, fixando uma gradação entre o interesse público e o privado, que inclui as noções de interesse difuso, interesse coletivo e interesse individual homogêneo:Interesse público – o que diz respeito a toda a coletividade (Ex: segurança pública);

  • Interesse difuso – que afeta a parcela indeterminada da sociedade (Ex: meio ambiente, direitos do consumidor);

  • Interesse coletivo – que afeta a um grupo definido da sociedade (Ex: condições de trabalho numa empresa);

  • Interesse individual homogêneo – que diz respeito a pessoas em situações semelhantes (Ex: empregados acidentados por desobservância de normas de segurança no trabalho por uma empresa);

  • Interesse privado – que diz respeito exclusivamente ao indivíduo (Ex: filho natural que pretende o reconhecimento de paternidade através do teste de DNA).

A diferenciação entre tais interesses e o possível conflito entre eles pode ser melhor aquilatado no caso da defesa da moralidade administrativa relativa à forma de contratação para os entes públicos. O concurso público como forma seletiva democrática para o recrutamento de pessoal para o serviço público, premiando o mérito pessoal, é encontrada desde a China da dinastia Han (sec. II a.C.). Impede os apadrinhamentos e promove a escolha dos mais aptos para o desempenho da atividade pública, possibilitando uma melhor prestação do serviço público.

Pois bem, a defesa da moralidade administrativa e do interesse difuso dos potenciais postulantes de um cargo ou emprego público, quando verificada a contratação irregular de pessoal por ente público ou empresa estatal sem prévia aprovação em concurso público, não pode dar azo a ação judicial do Ministério Público, postulando, em nome desses interesses difusos, a nulidade das contratações, com imediato desligamento dos servidores contratados ilegalmente, se esse afastamento provocar a paralisação na prestação dos serviços públicos prestados pelo ente ou empresa em questão. O interesse público, superior ao interesse difuso, de menor abrangência, prevalece sobre o primeiro, exigindo, como solução, que se mantenham os servidores irregularmente contratados, até que se ultime a realização do concurso, de modo que não haja solução de continuidade na prestação dos serviços públicos e se possa dar oportunidade àqueles que tenham, efetivamente, condições de ser efetivados no cargo, que prestem o concurso e possam ser aprovados.

A hipótese é paradigmática para se verificar como o bem comum deve ser levado em conta, quando diferentes interesses, de abrangências distintas, estão em conflito.


10. Relação entre Bem Comum e Interesse Público

Num Estado Democrático de Direito, cabe ao Poder Judiciário dirimir os conflitos de interesses existentes na sociedade. O Judiciário, para apreciar uma ação movida por qualquer cidadão, exige, entre outras condições, que ele demonstre ter interesse pelo bem que pretende submeter ao seu domínio, em face da resistência de outro membro da sociedade.

Ora, a solução do conflito de interesses pelo Estado-Juiz se dará pelo reconhecimento de que o bem disputado cabe, por direito, a uma das partes litigantes. Daí que a correspondência entre bem e interesse se dá conforme a proteção jurídica efetiva ao interesse da parte (interesse privado) ou da comunidade como um todo (interesse público) se faz pelo reconhecimento de que, no caso concreto, correspondem ao direito individual (bem particular) ou social (bem comum).

Podemos, então, estabelecer duas relações:

  • interesse privado relacionado ao bem particular;

  • interesse público relacionado ao bem comum.

Em ambos os casos, há duas notas que devem ser destacadas:

Tanto o bem particular quanto o bem comum são buscados por pessoas concretas (cidadão ou governante);

Tanto o interesse privado quanto o público podem estar desviados do verdadeiro bem particular ou comum que corresponderia ao aperfeiçoamento pessoal ou social.

Daí a possibilidade de existir conflito entre o interesse privado e o bem comum, quando o membro da comunidade deixa de captar qual é o ser verdadeiro bem particular e busca outro que nem o satisfará, nem corresponde à sua natureza própria. E o conflito entre o interesse público e o bem comum, quando a lei civil, que o governante ou magistrado devem aplicar, desrespeita os preceitos básicos da Lei Natural.

Portanto, na maior parte das vezes, quando se pretende existente um conflito entre o bem particular e o bem comum, o que existe é uma oposição entre o interesse privado (desviado do bem particular) e o bem comum.


11. Primazia do Bem Comum sobre o Bem Particular

Compreendido o que seja bem comum, bem particular, interesse privado e interesse público, passamos a tirar as conseqüências teóricas e práticas dessas noções. E a primeira delas diz respeito à relação entre bem comum e bem particular.

Se, por um lado, o bem comum é a potencialização do bem particular, por outro, tem primazia sobre o bem particular, pois o bem de muitos é melhor do que o bem de um só. Assim, se cada componente da comunidade é bom, o conjunto desses componentes é ótimo, uma vez que acresce ao bem particular de cada um a perfeição do conjunto. Isto porque, no bem do todo, está incluído o bem de cada uma das partes. Daí que se deva preferir o bem comum ao bem próprio. E daí também que, quando amamos o bem em toda a sua integralidade, é quando melhor nos amamos a nós mesmos.

Na verdade, ao se buscar o bem comum, busca-se necessária e conseqüentemente o próprio bem, pelo benefício que a parte recebe do todo. Daí que "todas as coisas singulares amam mais o bem de sua espécie que seu bem singular".

O bem comum está, portanto, para permitir aos indivíduos a consecução de seus bens particulares, mas é superior a estes: o bem particular de um indivíduo não pode ser buscado em detrimento do bem comum da sociedade.

Nesse sentido, a discussão que se trava sobre as hipóteses de intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho é interessante. No Direito Comparado, verifica-se que a maior parte dos países, para solução dos conflitos coletivos de trabalho, admitem a arbitragem voluntária como forma heterônoma de composição, a par da negociação coletiva autônoma das partes. No entanto, em face de greves em serviços essenciais, países como a Espanha, Itália, Chile, Colômbia e Venezuela admitem a arbitragem obrigatória como fórmula última para superação do impasse, quando o acirramento do conflito não permite uma solução de auto-composição. Já o Brasil, Austrália, México, Peru e Venezuela são os países que contemplam um poder normativo ao Judiciário, em matéria de conflitos coletivos de trabalho, para solucionarem os dissídios, estabelecendo normas e condições de trabalho não previstas em lei.

Quando, no Brasil, se discute, na Reforma Judiciário, a limitação do poder normativo da Justiça do Trabalho, ponto que se tornou pacífico é o de que esse poder deve ser mantido para solução das greves em serviços essenciais quando afetado o interesse público. A própria lei de greve brasileira exige a manutenção de um percentual mínimo de empregados trabalhando, para o atendimento às necessidades inadiáveis da população, quando se tratar de greve em serviço essencial. Ou seja, os empregados têm o direito de greve, mas não é um direito absoluto, uma vez que o interesse coletivo não pode conflitar como interesse público, que é mais abrangente: a sociedade não pode ficar como refém de trabalhadores grevistas, para obterem melhores condições de trabalho.

Outro exemplo que serve para mostrar como a busca do bem comum, ainda que não tenha efeitos imediatos palpáveis, é de fundamental importância para a sociedade, diz respeito ao aperfeiçoamento do sistema penitenciário. A superlotação de detentos nas prisões, sem uma infra-estrutura mínima, como se verifica no Brasil, leva à corrupção do preso e não à sua reeducação. No entanto, a atitude das autoridades públicas, no sentido de não dar relevância a tal problema, por não haver retorno visível e imediato dos investimentos públicos, acaba gerando um aumento da violência na sociedade, na medida em que o pequeno infrator que tenha passado pelo sistema carcerário brasileiro acaba saindo pior do que quando nele ingressou, pelo contato com os demais presos em péssimas condições. Daí a reforma da política criminal ter resultado na lei de penas alternativas (Lei 9.714/98): em vez da reclusão, os serviços à comunidade.

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Sobre o autor
Ives Gandra da Silva Martins Filho

ministro do Tribunal Superior do Trabalho, mestre em Direito Público pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS FILHO, Ives Gandra Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -943, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Roteiro da palestra proferida no Workshop Internacional sobre "Eficiência e Ética na Administração Pública", realizado em Brasília nos dias 17, 18 e 19 de maio de 2000, no Centro de Convenções Corporate Financial Center, e promovido pelo ISE – Instituto Superior da Empresa e pela ABRH-DF - Associação Brasileira de Recursos Humanos, Seccional do Distrito Federal. Texto publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, em junho de 2000

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