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A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro

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25/05/2008 às 00:00
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O trabalho estuda a definição do crime de tortura no Brasil. Enfocando a definição da conduta típica da tortura em face ao Princípio da Legalidade Estrita, propõe-se uma reforma do modelo vigente com vistas à melhoria das normas legais que regulam a matéria.

"Eu não sei se eram

os antigos que diziam

em seus papiros Papillon já me dizia

que nas torturas toda carne se trai

e normalmente, comumente,

fatalmente, felizmente

displicentemente o nervo se contrai

...com precisão"

Vila do Sossego - Zé Ramalho

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Relatividade dos Direitos e Garantias Individuais - 3. Breve Histórico da Tortura e sua relação com o Processo e Direito Criminais - 4. A Definição Legal de Tortura - 5. O artigo 1º. da Lei 9455/97 em face do Princípio da Legalidade Estrita - 6. Formulando uma proposta - 7. Conclusão.

RESUMO: O presente trabalho versa sobre a problemática da definição do crime de tortura no ordenamento jurídico-penal brasileiro. Destaca-se a relevância do tema, considerando a natureza dos bens jurídicos postos em jogo, bem como a relação da prática nefasta da tortura com os modelos de processo e direito penal. Uma análise crítica da legislação vigente, sob o enfoque da questão da definição da conduta típica da tortura em face ao Princípio da Legalidade Estrita, é levada a efeito, resultando numa proposta de reforma do modelo vigente com vistas à melhoria das normas legais que regulam a matéria.

PALAVRAS - CHAVE: Tortura - Direitos e Garantias Individuais - Direitos Humanos - Dignidade da pessoa humana - Processo Penal - Direito Penal - Definição de Tortura - Lei de Tortura - Princípio da Legalidade - Garantismo - Legalidade Estrita - Proposta de reforma legal.


1 - INTRODUÇÃO

A prática da tortura, principalmente pelas instituições encarregadas da repressão penal, constitui-se em algo absolutamente inadmissível num Estado Democrático de Direito, além de configurar uma verdadeira contradição interna do sistema, pois órgãos encarregados do cumprimento das leis não poderiam agir de forma ilícita.

A tolerância com essa espécie de conduta não pode prosperar; revela-se uma grave omissão a falta de instrumentos adequados à sua prevenção e repressão.

A Constituição Federal é expressa em repudiar a prática da tortura e penas degradantes, desumanas ou cruéis (artigo 5º. III, XLIII e XLVII), bem como em proteger a integridade física e moral do preso (art. 5º., XLIX). Entretanto, quando da promulgação da Carta Magna, nossa legislação ordinária encontrava-se em descompasso com tal preocupação, pois jamais havia sido elaborada qualquer normativa com o fito de proceder a uma definição do crime de tortura. O máximo existente era a menção, em alguns dispositivos legais, da palavra "tortura", prevista, por exemplo, como uma qualificadora no crime de homicídio (art. 121, § 2º., III, CP) ou como agravante genérica (art. 61, II, "d", CP). A própria Constituição Federal, embora mencionando o termo, não chegou a defini-lo, deixando essa missão ao legislador ordinário; procedimento, aliás, estritamente correto sob o aspecto da técnica legislativa. 

Ocorre que o legislador ordinário tardou bastante a dedicar-se a esse importante e urgente mister, sendo objeto deste trabalho a análise expositiva e crítica do caminho até agora trilhado no ordenamento jurídico pátrio quanto ao tema da definição da conduta criminosa da tortura. Note-se que o bom termo dessa empreitada apresenta-se como um relevante aspecto na construção continuada do nosso pretendido Estado Democrático de Direito sob dois aspectos: primeiro, considerando a necessidade de extirpar quaisquer práticas atentatórias à dignidade humana da realidade brasileira, sendo um dos instrumentos (embora não o único e nem o mais eficaz) uma legislação rigorosa; segundo, tendo em vista os cuidados exigidos na elaboração de qualquer norma repressiva, que deve obedecer estritamente aos princípios da legalidade e da taxatividade.


2 - RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

É cediço na doutrina constitucional que mesmo os direitos e garantias individuais albergados pela Constituição Federal não comportam uma interpretação que os tome como absolutos ou jamais sujeitos a qualquer espécie de limitação. A regra é que todo direito é relativo. 

Alexandre de Moraes assim manifesta-se sobre o tema: 

"Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º. da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro ‘escudo protetivo’ da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como agravamento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito" 1

Portanto, ao indivíduo não é dado abrigar-se sob o manto protetor dos direitos e garantias, caso haja no caso concreto um conflito com outros direitos ou interesses igualmente protegidos, coletiva ou individualmente. Apresentam-se aqui à colação princípios como os da proporcionalidade e razoabilidade, a imporem certos limites mesmo ao exercício de garantias e direitos constitucionais, inclusive legitimando a atuação repressiva do Estado com instrumentos constritivos como o Direito Penal e o exercício do chamado Poder de Polícia. 

Malgrado isso, quando se fala na inexistência de direitos e garantias individuais absolutos, certamente não pode ali ser agrupada a garantia contra a prática da tortura. Pode-se dizer que, neste caso, existe efetiva e excepcionalmente uma garantia absoluta. Não há como pensar numa situação que justifique a prática da tortura nos dias atuais. Isto seria um medonho retrocesso atávico a épocas (incrivelmente não muito distantes) em que a tortura era um meio de prova, inclusive legalmente regulamentado.2

Bobbio faz notar que, embora impere a regra da relatividade mesmo entre direitos fundamentais do homem, há casos excepcionais de direitos que não comportam limitações ou confrontos, sob qualquer justificativa moralmente aceitável. Dessa natureza, seriam para o autor dois direitos: o direito de não ser escravizado e o direito à garantia contra a tortura. Toma-se a liberdade de transcrever suas palavras: 

"Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados, porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais. Porém, até entre os chamados direitos fundamentais, os que não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados para determinada categoria de pessoas, são bem poucos: em outras palavras, são bem poucos os direitos considerados fundamentais que não entram em concorrência com outros direitos também considerados fundamentais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e em relação a determinadas categorias de sujeitos, uma opção."3

Nessa linha, as mais atuais concepções teóricas acerca do conceito de Justiça4 apontam para a imprescindibilidade de um quadro mínimo de garantias, tidas como pré-requisitos inalienáveis e absolutos para que se possa iniciar uma discussão sobre a Justiça Humana. Trata-se daquilo que se define como uma "estrutura básica" ("basic structure of society") ensejadora da chamada "posição original" ("original position"), a partir da qual torna-se viável um projeto de Justiça.5 O mínimo exigível para que se possa sequer projetar ou pensar em uma sociedade justa é a existência de uma estrutura básica justa, propiciando um contexto social, econômico, institucional e legal no qual as pessoas tenham oportunidade de desenvolver-se livre e dignamente, enfim um chamado "contexto social de fundo" ou uma "justiça de fundo" ("background justice") como a base sobre a qual se constrói um projeto de Justiça.6 Torna-se cristalino que um Estado que não oferta oportunidades igualitárias às pessoas ou que se omite e até permite a opressão dos indivíduos por seus próprios órgãos não é apto a sequer mencionar o termo Justiça como integrante de sua conformação. E, dessa forma, a questão do repúdio e repressão à prática da tortura é um elemento bastante importante para a construção de uma sociedade justa. 


3 - BREVE HISTÓRICO DA TORTURA E SUA RELAÇÃO COM O PROCESSO E DIREITO CRIMINAIS

Como já foi destacado anteriormente, a tortura não foi sempre objeto de repúdio na sociedade. Sem necessidade de remontar a épocas muito distantes, podem ser constatados exemplos da tortura como meio legal de prova, visando a busca da verdade no processo ou então como espécie de pena cruel imposta para determinados crimes. Isso sem falar na tortura aceita ou tolerada informalmente pelo Estado e seus agentes, inobstante a imprevisão ou até mesmo proibição legais, que é, sem dúvida e lamentavelmente, uma realidade não só histórica como atual. Apenas a título ilustrativo, é possível mencionar o fato recente de que a forçosa "necessidade da elucidação da autoria dos ilícitos penais" levou o Tribunal Superior do Estado de Israel a admitir "uma legítima pressão sobre os corpos dos suspeitos para compeli-los à admissão da culpa!". Chegou ainda o mesmo Tribunal a reconhecer a "oportunidade" de castigar os "renitentes prisioneiros!"7 

Foucault bem retrata o uso indiscriminado da tortura, especialmente como espécie de punição dirigida diretamente ao "corpo dos condenados" e caracterizada pela "ostentação dos suplícios" como uma demonstração do poder soberano ilimitado do governante sobre os súditos.8 

Na obra clássica de Verri constata-se que o uso sistemático da tortura teve seu início a partir do século XI na Europa e atingiu seu ápice entre os séculos XIII e XVII, com o advento da Inquisição.9 A mitigação das penas e a condenação da tortura só vão ocorrer em finais do século XVIII e início do século XIX, com o surgimento do capitalismo industrial.10

Foi no século XVIII que os ideais iluministas submeteram à devida crítica a prática da tortura, seja por seu aspecto cruel de desrespeito ao ser humano, seja por seus efeitos deletérios práticos na aplicação da lei e na gênese de injustiças com condenações indevidas, baseadas apenas na força irracional.11

Em especial no bojo do processo a tortura tradicionalmente ocupou, em épocas pretéritas, um papel de relevo, pois vigorava um sistema de hierarquia das provas, no qual a confissão era dotada de um peso enorme, chegando a ser considerada a "rainha das provas" ("Sistema da Prova Legal")12. Assim sendo, quase tudo era permitido com o fito de obter a confissão do suspeito, a qual seria o grande fator de legitimação para a aplicação justa da reprimenda cabível. Além disso, o dogma por muito tempo imperante na teoria do processo, que dividia a verdade almejada em real e formal, estando a primeira adstrita ao processo penal, de índole pública, e a segunda ao processo civil, de caráter estritamente privado13, era um reforço à legitimação de quaisquer instrumentos destinados à procura dessa "verdade real" nos processos criminais. 

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Diversamente, na moderna Teoria Processual vige o "Princípio da Persuasão Racional ou do Livre Convencimento", segundo o qual "o juiz forma livremente o seu convencimento, porém dentro de critérios racionais que devem ser indicados". Especificamente no Direito Processual brasileiro vigora esse princípio, conforme determinam expressamente os artigos 131 do Código de Processo Civil e 157 do Código de Processo Penal.14 

Ademais, a vetusta distinção entre verdade real e verdade formal no processo já não encontra guarida hodiernamente. Como bem destaca Flávio Martins A. Nunes Jr., "a verdade almejada pelo processo é uma ‘verdade processual’", ou seja, uma "verdade judicial" encontrada por meio de uma atuação "processualmente legítima", aproximando-se o máximo possível da certeza.15 E arremata a questão com a expressiva manifestação de Barbosa Moreira:

"(...) dizer que o processo penal persegue a chamada ‘verdade real’, ao passo que o processo civil se satisfaz com a denominada ‘verdade formal’, é repetir qual papagaio tolices mil vezes desmentidas".16 

Por sinal é de estranhar que esse verdadeiro mito17 tenha prosperado durante tanto tempo, quando autores clássicos desde antanho já haviam demonstrado à exaustão a impossibilidade da busca de uma chamada "verdade real" ou "certeza" no processo, seja ele de qualquer natureza (penal, administrativo, civil etc.), dada sua característica de reconstrução histórica de fatos passados.18 

Portanto, é absolutamente inadmissível que se pretenda advogar uma busca da verdade "a qualquer preço" no processo. A conclusão inelutável é de que "o processo penal é presidido por insuprimível regra moral que submete o descobrimento da verdade a rigorosos princípios éticos. Certo é que a lisura moral e a ética efetivamente impõem restrições à busca da verdade e até formam uma espécie de barreira intransponível que prejudica a reconstituição fiel e integral dos fatos. Esse é o preço a ser pago em benefício da preservação de direitos e garantias individuais proeminentes. A questão se resolve em sede de política criminal e de acordo com a opção legislativa que emoldura o sistema processual, de sorte que se permite vedar a utilização de algum direito justamente para garantir-se a preservação de outro que a lei considere mais relevante".19

Nem mesmo a gravidade do crime em apuração pode ter o condão de mitigar certos princípios. Railda Saraiva é enfática neste sentido ao afirmar que "a gravidade do crime em investigação ou em julgamento não pode autorizar a adoção de meios repressivos que repugnam consciência de país democrático, violando a dignidade da pessoa humana, reduzindo o valor da liberdade e da igualdade, e levando o Estado à imoral competição com os criminosos na prática da violência, em atos de desumanidade".20

Em suma, ao menos sob o ponto de vista teórico, a legitimação da tortura no Direito Criminal não goza atualmente de qualquer credibilidade. Tratar pormenorizadamente da irracionalidade e crueldade que caracterizam essa espécie de conduta seria repisar desnecessariamente aquilo que já é notório desde as primeiras manifestações do iluminismo. Podemos afirmar com Bobbio que "o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de ‘justificá-los’, mas o de ‘protegê-los’. Trata-se de um problema não filosófico, mas político."21 A ingente e inadiável tarefa que se apresenta é, na verdade, a normatização desses direitos, seja em nível internacional, seja nos ordenamentos internos de cada Estado soberano. E ainda mais que isso, pois essa iniciativa já vem sendo implementada com considerável sucesso22, faz-se mister materializar o respeito a esses direitos fundamentais para que não se reduzam a previsões formais, despidas de eficácia prática no cotidiano da humanidade.  

A criminalização da tortura no Brasil pela Lei 9455/97 em obediência à normativa constitucional e aos tratados internacionais é um passo em direção à normatização de um desses direitos fundamentais do homem, sua efetiva aplicação na repressão a essas condutas será uma materialização de seus preceitos formalmente previstos no diploma legal e ainda mais importante: a assimilação da relevância da extirpação da tortura de nossa realidade, ensejando ações concretas do Estado e dos próprios cidadãos, é que poderá reformular verdadeiramente a conformação de nossa sociedade, muitas vezes maculada pela violência individual e institucional.


4 - A DEFINIÇÃO LEGAL DE TORTURA

Um dos primeiros passos para a materialização do respeito à dignidade humana perfaz-se na positivação dos direitos e garantias. No caso da tortura, essa positivação pode ser constatada no ordenamento jurídico interno (normas constitucionais e ordinárias) e também no plano internacional.

Desde a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, a preocupação com a dignidade humana tem sido objeto de convenções internacionais. Nesse diapasão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, datada de 10.12.1948, estabelece em seu artigo V que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante". Na mesma linha, estabelece a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), de 1969, em seu artigo 5º., n. 2, que "ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".

Entretanto, é a Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 10.12.84, que vem, em seu artigo 1º., a conceituar tortura como: 

"Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência". 

A Convenção Européia para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, em 1º..02.89, apresenta uma série de medidas regulamentadoras da fiscalização entre os Estados Membros com respeito a práticas ilícitas relacionadas com atos de tortura. Assim também o faz a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, datada de 1985 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 98.386, de 09.11.89, trazendo, porém, em seu bojo uma conceituação própria de tortura: 

"Art. 2º. - Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim. 

Entender-se-á também por tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou psíquica".

No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, exsurge uma declaração solene contra a tortura e outros tratamentos desumanos23, conforme se verifica da leitura do art. 179, § 19 daquele diploma: 

"Desde já ficam abolidos os açoutes, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis".24 

Portanto, conforme assevera José Afonso da Silva, a condenação explicitada na Constituição de 1988 (art. 5º. III, XLIII, XLVII e XLIX) à prática da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos já era prevista em constituições anteriores, bem como é parte integrante das "constituições modernas em geral".25 Malgrado isso, é interessante observar, em consonância com o que destaca Adriana Ferrari, que "em nossas constituições republicanas nada é apresentado sobre a prática da tortura"26 (Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967). Tirante a manifesta repulsa a determinadas penas cruéis e uma menção direta no artigo 150, § 14 da Constituição Federal de 1967 quanto ao "respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário", não se encontra realmente nenhuma referência explícita à tortura. Isso somente se opera com o advento da Lei Maior de 1988, através de seus dispositivos supra mencionados, os quais são, porém, normas constitucionais de eficácia limitada, precisando da atuação do legislador infraconstitucional para que seus efeitos se produzam.27 Em suma, a Constituição de 1988 deixou claro um princípio de repúdio à prática da tortura, mas reservou ao legislador ordinário a definição das condutas que a constituem, bem como a determinação dos regramentos legais tendentes à repressão e prevenção dessa grave violação dos direitos fundamentais. 

Como já visto, embora houvesse a mera menção da palavra "tortura" em alguns dispositivos legais de nosso ordenamento jurídico, restava uma lacuna quanto à definição de um crime de tortura e até mesmo quanto à conceituação daquilo que consistiria em tortura para fins de interpretação da expressão existente em tais dispositivos vigentes (v.g. art. 121, § 2º., III, CP).

A primeira manifestação do legislador ordinário pátrio acerca da tipificação do crime de tortura deu-se com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90). Em seu artigo 233, o ECA previa como crime o ato de "submeter criança ou adolescente, sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura". Também a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), logo em seguida, veio a equiparar o crime de tortura aos chamados crimes hediondos, em plena consonância com a disposição constitucional (art. 5º., XLIII, CF c/c arts. 1º. e 2º. da Lei 8072/90).28 

Ocorre que nenhum dos dois diplomas sob enfoque chegou a estabelecer em que consiste a "tortura", deixando-a sem a devida conceituação legal.29 Nessas circunstâncias, a única solução seria tomar de empréstimo, para a interpretação das normas legais, os conceitos apresentados pela doutrina.30 

De Plácido e Silva leciona, de forma extremamente genérica, que tortura "é o sofrimento ou a dor provocada por maus tratos físicos ou morais".31 

Hungria conceitua tortura como o "meio supliciante, a inflição de tormentos, a ‘judiaria’, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade".32 

Para Aníbal Bruno, tortura consiste no "sofrimento desnecessário e atormentador, deliberadamente infligido à vítima".33 

Noronha conceitua o termo como o ato de "infligir-se um mal ou sofrimento desnecessário e fora do comum".34 

Finalmente, dentre outras diversas conceituações doutrinárias, Mirabete expõe que "tortura é a inflição de mal desnecessário para causar à vítima dor, angústia, amargura, sofrimento".35

Verifica-se por um simples passar de olhos que mesmo as definições ofertadas pela doutrina são bastante vagas. Dessa forma, chegou-se a ventilar na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de suprimento da lacuna da lei penal com uma definição de tortura inferida, por um processo de integração, dos tratados e convenções internacionais sobre o tema, firmados pelo Brasil. Para a interpretação do termo "tortura" poder-se-ia lançar mão das definições propostas, por exemplo, pelo artigo 1º. da Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, ou pelo art. 2º. da Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, inobstante o fato de que tais diplomas não tipificam crimes, mas são balizas, declarações de princípios para a elaboração de normas e execução de ações concretas internas pelos países signatários.36 

Esse proceder estaria justificado porque os dispositivos de tratados e convenções internacionais integrariam a legislação brasileira, com suas conseqüentes irradiações e efeitos jurídicos. Há mesmo posições doutrinárias defendendo que esses tratados e convenções internacionais ingressariam em nosso ordenamento jurídico, no que se refere a direitos e garantias individuais, com força de normas constitucionais equiparadas às do artigo 5º., CF, inclusive com característica de "cláusulas pétreas" (art. 60, § 4º., IV, CF), por força do § 2º. do artigo 5º. da Lei Maior. Não obstante, em posição oposta, há quem defenda tratarem-se somente e sempre de normas ordinárias porque o processo legislativo para aprovação de emenda constitucional é completamente diferente e muito mais exigente do que aquele necessário à ratificação de tratados e convenções internacionais. Assim sendo, a referida equiparação burlaria o processo legislativo constitucional.37

Toda essa argumentação acabava apresentando efeitos ambíguos. Por um lado, possibilitava a aplicação dos dispositivos legais, viabilizando uma interpretação do termo tortura. De outra banda, "o elastecimento do princípio da reserva legal, nele vislumbrando-se a possibilidade de interpretação dos textos penais segundo processo de integração, de analogia, ou à luz do ‘senso comum’, nada mais traduziria senão o desrespeito ao conteúdo ‘material’ da legalidade, legalidade essa cuja afronta fere, em igual medida e gravidade, direitos fundamentais absolutos".38

A questão da aplicabilidade do art. 233 do ECA, mesmo carente de uma descrição pormenorizada daquilo que consistiria em tortura, foi exaustivamente discutida no STF, vindo à baila todas as linhas argumentativas acima mencionadas, inclusive a tese da inaplicabilidade do dispositivo por infração ao Princípio da Legalidade. Prevaleceu naquela corte superior, por apertada maioria (6x5), a tese da constitucionalidade da tipificação do delito de tortura pelo artigo 233 do ECA, quando o ato fosse perpetrado contra criança ou adolescente.39 

A doutrina em geral, porém, não apoiou essa tese, chegando Alberto Silva Franco a qualificar de "absurdo" o entendimento de que o artigo 233 do ECA tipificava um crime de tortura no ordenamento jurídico brasileiro porque tratar-se-ia da admissão de um "tipo penal aberto" em flagrante violação ao Princípio da Legalidade.40 Em apoio a esse entendimento, Paulo de Tarso Dias Klautau, advoga a inconstitucionalidade da norma sob comento por infração ao art. 5º., XXXIX, CF e ainda ao art. 1º. do Código Penal. É de seu parecer que com a redação dada ao art. 233 do ECA o legislador desatendeu a princípios básicos exigíveis na elaboração de uma norma penal. Da forma como fez, acaba atribuindo "pela via do tipo aberto, a característica de crime a uma conduta que somente pode encerrar o tipo fechado". Segundo o autor, a "natureza multifacetária da tortura" tornaria imperioso que seus delineamentos fossem "límpidos, claros, inequívocos, transparentes, cerrados, enfim, ‘numerus clausus’, para evitar a utilização da analogia incriminadora, vedada solenemente pelo Direito Penal".41

Sob o enfoque do tema deste trabalho é forçoso reconhecer que realmente as previsões vazias até então operadas não serviam para dirimir qual seria a definição de tortura na legislação brasileira, muito simplesmente porque em nenhum momento "definiam" tal conduta. O máximo a que chegou o ECA foi prever um crime tratando da figura específica da tortura, mas sem delimitar o conteúdo daquilo em que ela consistiria. Em suma, a legislação existente sobre essa questão era extremamente tautológica, pois responderia à pergunta sobre o que é tortura dizendo: ora, tortura é tortura!

Toda essa celeuma somente teve uma pacificação com o advento da Lei 9455, de 07.04.97, a qual "define o crime de tortura e dá outras providências", conforme estabelece sua ementa. Essa lei revogou expressamente o art. 233 do ECA (art. 4º., da Lei 9455/97) e processou à previsão do crime de tortura através do disposto em seu artigo 1º., incisos, alíneas e parágrafos :

"Art. 1º. - Constitui crime de tortura:

I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: 

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; 

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; 

c) em razão de discriminação racial ou religiosa; 

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. 

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. 

§ 1º. - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". 

A lei também prevê um crime específico para as autoridades que se omitirem diante das práticas acima elencadas (art. 1º., § 2º., da Lei 9455/97), com pena de detenção de um a quatro anos. No entanto, "esse delito, apesar de previsto na Lei 9455/97 não constitui crime de tortura".42 No seguimento prevê formas qualificadas, aumentos de pena, regramentos sobre liberdade provisória, regime de cumprimento de pena e territorialidade, cujo detalhamento foge aos estreitos limites deste trabalho. 

A partir deste ponto, a questão a ser discutida versa sobre a validade da conclusão de que, com o advento das normas supra transcritas da Lei 9455/97, ter-se-ia dado cabo do problema da falta de uma definição pormenorizada e taxativa das condutas que consistem em tortura, satisfazendo o Princípio da Legalidade e ensejando tanto aos operadores do direito quanto, principalmente, à população em geral, a tão almejada segurança jurídica no campo penal.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1789, 25 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11304. Acesso em: 24 nov. 2024.

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