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O exercício do poder empregatício e o assédio moral.

Contexto atual

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1 As imposições da sociedade globalizada

Numa época de reestruturações e fusões de empresas, a globalização e o capitalismo pós-industrial impuseram uma gestão de pessoas calcada no medo, na "coisificação" do trabalhador e no aumento desenfreado das pressões psicológicas por produtividade e lucratividade.

A mundialização do capital, cuja prática se revela neoliberal, trouxe sérias mudanças ao mundo do trabalho. As organizações procuraram se ajustar à nova realidade social privilegiando a gestão estratégica de reorganização do trabalho e buscando outras formas de administrar, as quais se voltaram para a otimização do uso do potencial do empregado como ativador do processo do trabalho, a transferência de responsabilidade, a autonomia de decisão e o aumento de cobranças para apresentar resultados.

De acordo com Santos (2000), a exacerbação do consumo, do narcisismo, do imediatismo, do egoísmo, do abandono da solidariedade, com a implantação, galopante, de uma ética pragmática individualista, são heranças do capitalismo pós-industrial, havendo uma predominância da perversidade em todos os espaços da vida do indivíduo e da organização.

As relações de trabalho são alteradas e essas transformações afetam negativamente a classe trabalhadora com o aumento das exigências no perfil do empregado, a desilusão com as instituições e, sobretudo, a insegurança no emprego.

No mesmo diapasão é a relevante lição de Aguiar (2006, p. 72), in verbis:

A globalização é o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista, com transformações estruturais e instabilidade conjuntural no universo organizacional, colocando a empresa frente a frente com novas condições de mercado, voltada para a competitividade – inovação tecnológica, maior produtividade, melhor qualidade, redução de custos, mais eficiência -, e preocupada com a sobrevivência organizacional, precarização das condições de trabalho, instabilidade econômica, incertezas profissionais, desemprego, [...]

A sociedade pós-moderna espera que esse profissional globalizado seja cada vez mais comprometido, envolvido, participante e multifuncional, para que atenda às novas necessidades do mercado e à rentabilidade do "capital especulativo", devendo estar preparado para mudanças em sua carreira.

Além disso, para o incremento da produção diária, Aguiar (2006, p. 73) acrescenta outras posturas ao perfil do empregável: "o paradigma do trabalhador proprietário da saúde perfeita, aquele sem doenças, convicto do seu papel na organização, polivalente, de emoções flexibilizadas, disponível, aberto a mudanças".

Diante de tais esclarecimentos, é possível identificar as principais razões pelas quais a coação moral está diretamente relacionada com o contexto delineado: a busca do poder para si; a manutenção do poder em si; a dissimulação da incompetência através do poder. São vertentes do mesmo mal, com objetivos distintos, mas todas dirigidas ao domínio de um indivíduo sobre outro e surgidas no cotidiano organizacional através do abuso de poder.

Ao se voltar para a própria sobrevivência e se inserir num contexto econômico que requer lucratividade e resultados, a organização atende mais às necessidades do mercado do que às dos seus trabalhadores. Nesse sentido corrobora Aguiar (2006, p. 76), in verbis:

Sem sombra de dúvidas, a política neoliberal intensificou uma alteração nas relações interpessoais, atribuindo uma nova ordem e um novo modelo de comportamento de tal configuração que os conflitos internos, anteriormente não aflorados ou superficialmente expostos, passaram a ser mais acentuados, constituindo um clima de instabilidade entre os componentes do ambiente organizacional, uma vez que, na ‘ordem do dia’, passaram a constar novas atitudes como ‘produzir’, ‘oferecer resultados’, ‘cumprir metas’, de acordo com a resposta do capitalismo à sua crise estrutural. (grifo nosso)

Sobreleva salientar, entretanto, que a era da globalização e do capitalismo pós-moderno não criou o assédio moral relacionado ao abusivo poder de direção do empregador, pois os maus-tratos sempre significaram, notadamente no Brasil, meios de intensificação da produtividade dos trabalhadores, desde a escravidão até o momento atual.

É oportuno esclarecer que aqui não se está defendendo uma abordagem do assédio moral sem culpados, em que os agredidos são inocentes e, os agressores, apenas vítimas do sistema, atribuindo-se a responsabilidade a entidades abstratas: o capitalismo, as novas técnicas de gestão etc.

O assédio moral está, antes de tudo, vinculado a atitudes de caráter pessoal do indivíduo, cuja intenção não se relaciona a sistemas. A intencionalidade vem de pessoas que dirigem ou tiram partido de sistemas perversos. Por isso, sempre haverá indivíduos com sede de poder que aproveitar-se-ão de qualquer modificação ou de qualquer reestruturação para subir na empresa, criando, desse modo, o processo destruidor.

Ademais, considerar a violência apenas como uma conseqüência da organização do trabalho é correr o risco de livrar os agentes da responsabilidade, mesmo que, em um local de trabalho, as agressões estejam ligadas ao modelo desumano de gestão.

Qualquer que seja a vontade das empresas de transformar os assalariados em vendedores vorazes, eles continuarão a ser humanos frágeis, marcados por sua educação, seu meio social, seus traumatismos, suas limitações.

Assim, sensata se mostra uma abordagem racional, que leve em conta não somente o fator psicológico dos indivíduos envolvidos, mas também o aspecto organizacional, uma vez que, muito embora todos esses determinismos estejam interligados, o indivíduo continua tendo liberdade de ação ou reação, devendo arcar com as conseqüências dos seus atos.


2 O assédio moral decorrente do abuso do poder empregatício

O exercício irregular das prerrogativas da hierarquia pode guardar estreita correlação com o fenômeno do assédio moral, uma vez que os reincidentes abusos e ingerências constituem, em muitas conjunturas, uma das formas de atuação do agressor.

A propósito, para melhor ilustrar essa tese, cumpre trazer à baila o seguinte exemplo hipotético: o diretor de determinada organização suspendeu, por 30 (trinta) dias consecutivos (prazo máximo previsto no art. 474 da CLT), um supervisor responsável por determinado setor, simplesmente porque não atingiu, em determinado mês, a meta de vendas estipulada, alegando, para tanto, que o mesmo agiu com desídia no desempenho de suas funções. Ocorre que o funcionário punido, reconhecidamente dedicado e detentor de invejável histórico de superação de metas, há muito aspirava à promoção a um cargo de gerência, cuja seleção interna finalmente ocorreria nos 10 (dez) dias seguintes à suposta infração.

Nesse caso, é evidente que nem sequer houve infração, posto que o supervisor era assíduo, pontual e estava executando as atribuições concernentes à sua função normalmente. Afastada a tipicidade, requisito objetivo do exercício do poder disciplinar, tem-se que não houve motivo a ensejar a aplicação de sanção, o que denota infundada perseguição do diretor àquele subordinado, conduta lesiva constante em situações de assédio moral.

Certamente, as reais possibilidades de ascensão do supervisor despertaram a inveja do seu superior hierárquico, que se sentia deveras incomodado e, por que não dizer, ameaçado pela carreira meteórica que aquele profissional estava a perquirir. Analisando a promoção do seu subordinado ao cargo de gerência como uma etapa para uma eventual e futura conquista da direção daquela renomada organização, o citado diretor utilizou-se do poder disciplinar que lhe é peculiar para forjar uma situação de suposto cometimento de falta laboral e conseqüente aplicação de sanção, de modo a alcançar a sua egoísta pretensão.

O exemplo em tela retrata, aliado a outros indícios de perseguição, uma forma de assediar moralmente. Destaque-se aqui o sentimento de frustração e de impotência experimentado pelo empregado injustamente punido, ao concluir que o único meio de questionar o exercício abusivo do poder disciplinar seria a via judicial, cuja intervenção ainda se mostra tímida diante das arbitrariedades por que muitos trabalhadores têm de atravessar de forma passiva e inerte.

Outrossim, o caso traduz o desvio de finalidade do empregador na imposição da sanção de suspensão disciplinar. Conforme visto no capítulo anterior, a aplicação da penalidade deve trazer consigo um fim pedagógico (requisito circunstancial), ou seja, a intenção é disciplinar o funcionário para que não mais incorra na postura censurada e bem desempenhe o seu papel na empresa.

A violência decorrente do abuso do poder disciplinar, por vezes, concretiza-se em intimidações, ironias e menosprezo do "transgressor" diante de todos, como forma de impor controle e manter a ordem. Para as chefias arbitrárias, esse é o momento propício para o exemplo e controle do grupo: rebaixando o infrator, reafirmam sua autoridade, ao tempo em que manipulam o medo e aumentam a produção a qualquer custo.

Cumpre acrescentar, ainda, que há modalidades de penas cuja aplicação é claramente rejeitada pela ordem jurídica trabalhista brasileira. De um lado, rejeita-se todo tipo de prática punitiva que agrida a dignidade do trabalhador ou que atente contra direito individual fundamental. De outro, há práticas que, embora admitidas sob certos fundamentos e em face de determinados objetivos no contexto empregatício, são definitivamente vedadas enquanto instrumentos punitivos.

Assim sendo, se utilizadas como mecanismos de punição, certas condutas podem guardar a cruel intenção de desestabilizar o trabalhador, o qual se torna frágil, passa a não mais produzir no ambiente de trabalho, sendo por todos apontado como funcionário problemático, contexto que pode desencadear o assédio moral. Dentre tais práticas, cita-se a transferência punitiva. Conforme preceitua a Súmula 43, do Tribunal Superior do Trabalho, "presume-se abusiva a transferência de que trata o §1º do artigo 469 da CLT, sem comprovação da necessidade do serviço".

Também, embora o retorno ao cargo efetivo após ocupação de cargo de confiança seja autorizado pelo parágrafo único do art. 468 celetista, é vedado o rebaixamento punitivo, isto é, o retorno do obreiro a cargo inferior na carreira, anteriormente já ocupado, efetivado com intuito de apenação. Um funcionário que é rebaixado a uma função inferior pode perder totalmente a motivação para o trabalho, ver o seu labor como uma fardo e ter considerável redução da auto-estima, sem falar no transtorno resultante da redução salarial e na culpa que passa a carregar por ser apontado como o único responsável pelo fracasso total da sua carreira.

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De igual, o empregador não pode punir o empregado reduzindo-lhe o salário, pois a redução salarial somente é permitida em hipóteses restritas, tais como na ocorrência de negociação coletiva.

Não raras vezes, o exercício abusivo do poder disciplinar ocorre pela ausência de requisitos circunstanciais de fixação de sanções. São situações em que o empregado até comete determinada falta, mas o empregador o pune de forma desproporcional, inadequada, aplicando duas ou mais penalidades em face de uma só conduta, ou não impondo a sanção de modo imediato, passando a pressionar psicologicamente o obreiro, além dos casos em que a punição se faz de forma discriminatória, dirigindo-se somente a funcionários do sexo feminino, a negros, a homossexuais...

Enfim, não obstante os incontáveis exemplos que poderiam ser citados para ilustrar situações correlatas, o caso analisado ainda merece algumas considerações acerca de uma imposição freqüente das organizações na sociedade contemporânea globalizada capitalista: a superação de metas de vendas.

Em muitos casos, ao invés de servir como motivação para que o funcionário ultrapasse desafios e se supere cada vez mais, a meta é imposta como "dever laboral", servindo como parâmetro de comparação dos empregados. Não bastasse essa acirrada disputa que a meta provoca pelo prêmio oferecido ou mesmo pela foto estampada no quadro de melhor funcionário do mês, não cumpri-la significa ter a remuneração consideravelmente reduzida, é a certeza de ser pressionado psicologicamente e de sofrer sérias ameaças de demissão pelo gerente hierarquicamente superior. Indo mais além, há empregadores que passam a menosprezar e a humilhar os empregados que obtêm maus resultados, dirigindo-lhes piadas, deboches e outros constrangimentos que, repetidos, podem vir a configurar assédio moral.

Ora, imagine sofrer essas pressões psicológicas durante todos os doze meses do ano, vivendo todo final de mês como o último na empresa, pois se não "bater meta" no mês seguinte, será sumariamente demitido. Não há organismo que suporte a constante tensão. Corpo e mente adoecem pelo excessivo estresse provocado, e o funcionário passa a sofrer de mazelas como hipertensão arterial, síndrome do pânico, depressão, insônia, doenças psicossomáticas, sem falar no consumo de medicamentos controlados e na possível destruição do relacionamento familiar e afetivo, desencadeado pelo desequilíbrio emocional originado num ambiente de trabalho nocivo.

Vale anotar que a imposição de metas de vendas, quando se transforma nesse pesadelo relatado, traduz-se em desafio desumano e injusto, posto que atingi-las não depende exclusivamente de mão-de-obra qualificada. O processo de venda de produtos e/ou serviços é influenciado por vários fatores externos e alheios à vontade do empregado-vendedor, tais como as condições de mercado, o poder aquisitivo da população de determinada circunscrição onde está sediada a atividade comercial e até mesmo a qualidade do que é oferecido no empreendimento, cujo risco, nunca se olvide, pertence exclusivamente ao empregador, conforme preceitua o art. 2º celetista.

Some-se aos fatores supramencionados que o capitalismo pós-industrial vivenciado pela sociedade nos dias atuais, marcado pelo crescimento do desemprego e da informalidade, revela a busca incessante das empresas por lucros crescentes, até para sobreviverem à concorrência, mormente se esta oferece produtos de melhor qualidade, por um preço menor. O enfoque está no estudo das necessidades e dos perfis dos cada vez mais exigentes clientes, para que aumentem o consumo dos diferentes serviços disponibilizados no mercado.

Muitos empregadores dispensam pouca ou nenhuma atenção à higidez do ambiente de trabalho, cujas condições de labor devem ser adequadas não somente à saúde física, mas também à higidez mental dos seus subordinados, mesmo porque ambas são co-dependentes. Se não há saúde mental, inexiste saúde física, assim como uma doença física pode perfeitamente desestabilizar emocionalmente.

Por outro lado, os empregados são cada vez mais exigidos, devem estar sempre buscando qualificação para que se mantenham no mercado de trabalho formal e - o mais preocupante – submetem-se às aludidas pressões psicológicas, inerentes aos novos métodos de gestão, bem como a rotinas de humilhações e de tratamentos degradantes, tudo por medo do fantasma do desemprego, mormente quando são responsáveis pelo sustento de suas famílias.

Além disso, cumpre destacar que não há uma lógica definida nos procedimentos de assédio, posto que começam freqüentemente pela recusa de uma diferença. Mediante comportamento discriminatório, dirigido à pessoa que possui classe social, orientação sexual ou mesmo desenvoltura distinta dos demais, o agressor passa a perseguir aquele trabalhador exatamente por ser o "diferente" no grupo.

A vítima também pode ser uma pessoa menos produtiva que é isolada pelo grupo porque diminui o ritmo de trabalho ou projeta uma imagem ruim do serviço. Nesse caso, ela passa a ser menosprezada e ridicularizada, notadamente nas típicas reuniões mensais em que os gerentes de grandes empresas comerciais comparam os resultados obtidos por seus subordinados no mês.

De acordo com Hirigoyen (2005, p. 39), "as próprias empresas [...] têm dificuldade em suportar funcionários diferentes ou atípicos. As atitudes de assédio visam antes de tudo a ´queimar` ou se livrar de indivíduos que não estão em sintonia com o sistema".

Dessa forma, diz-se que o assédio moral é um dos meios de imposição da lógica da globalização, na qual as empresas buscam formatar os indivíduos para controlá-los. Os trabalhadores, por sua vez, devem se submeter para melhorar os desempenhos e a rentabilidade do grupo.

O comportamento discriminatório também pode estar associado à inveja e à rivalidade, mormente diante da acirrada concorrência que permeia o mercado de trabalho. A inveja, sentimento que surge quando duas pessoas estão em situação de comparação entre si, causa danos consideráveis ao tornar os indivíduos nocivos, capazes de prejudicar o colega mais inteligente, mais bonito, mais rico ou até mais amado pelos que o cercam.

No ambiente de trabalho, assevera Hirigoyen (2005, p. 40) a respeito da inveja:

A inveja não é proporcional ao valor da coisa invejada e se concentra muito freqüentemente em coisas pequenas e desprezíveis. Inveja-se aquele que tem a mesa perto da janela, ou aquele que tem a cadeira mais bonita, mas também se inveja aquele que é o preferido do chefe ou que tem um salário melhor e a mesma qualificação.

Já através da rivalidade, as empresas jogam uns contra os outros de repente até para se livrarem de alguém incômodo, a fim de que a própria pessoa indesejada decida pedir demissão, uma vez que demitir é bem mais oneroso que simplesmente receber pedido de demissão.

Em outras situações, certas administrações, em busca de menores gastos com pessoal, impõem que dois funcionários executem as atividades de três ou mais. Embora ninguém tenha lhes dito nada a respeito, cada um pensa, com ou sem razão, que o menos produtivo ou o menos adaptado será eliminado. Não surpreende o fato de, às vezes, um se sinta tentado a eliminar o outro.

Outro componente que faz a vítima se submeter ao assédio moral, sem dúvida, é o medo. Com o desemprego, que persiste apesar da retomada do crescimento econômico, e o aumento das pressões psicológicas relacionadas aos novos métodos de gestão, o medo se tornou um componente determinante no trabalho. Trata-se do medo de não estar à altura, desagradar ao chefe, não ser apreciado pelos colegas, da mudança, medo da crítica ou de cometer um erro profissional que possa causar a demissão.

Entretanto, esse medo é muito mais indireto do que antes. Observam-se cada vez mais empregadores exaltarem a autonomia e o espírito de iniciativa dos seus colaboradores, atribuindo-lhes a culpa pelos seus erros ou pelas dificuldades que sentem, dissimulando assim a sempre presente exigência de submissão.

De outro modo, muitos superiores escondem as próprias fraquezas por temerem que o outro as utilize como munição e passam a agredir exatamente por estarem em uma posição instável e se sentirem ameaçados.

Em certas empresas, a estratégia de gestão do pessoal repousa na regra implícita da tolerância mútua dos deslizes e dos desvios cometidos, para continuar integrando o grupo. Uma equipe pode esconder, por medo do conflito, desde pequenas falhas a comportamentos inadmissíveis de certos empregados. Aquele que ousar falar o que não está correto, fatalmente estará fadado a sair da organização.

Se essa tolerância se relaciona diretamente com o funcionamento da empresa, todo mundo consente, pois cada um pensa que tudo que pode prejudicar a "casa" também pode afetar indiretamente quem estiver empregado. E isso vai se espalhando por todos os cargos e funções, independente do nível, o que dificulta a denúncia ou o testemunho das agressões concernentes ao assédio moral.

Por oportuno, acrescente-se a lição de Hirigoyen (2005, p. 51):

Muitas vezes os dirigentes induzem comportamentos nefastos, mas não protegem o empregado que cometeu determinado erro, quando ele é apanhado. É o caso de certas direções que definem objetivos sabendo muito bem que os empregados serão levados a cometer faltas ou erros, tendo que cumpri-los. Correm o risco de vê-los escapar do controle, dando-lhes metas de desempenho sem querer saber das condições necessárias para que consigam alcançá-las: ‘Façam como bem entenderem, pois quero resultados; caso contrário, não vão ficar muito tempo nesta empresa’ (grifo nosso)

Aos empregados, notadamente os que lidam com venda de produtos e serviços, são impostas metas mensais, o que poderia até servir como motivação se não fosse mais um mecanismo de controle e de estressante pressão psicológica. Também, muito embora esses colaboradores laborem sem local fixo e tendo a autonomia de fazer seu próprio horário de trabalho, dada a ausência de prédio-sede da empresa na cidade, a cobrança ocorre diuturnamente através do celular, cujas ligações eles devem atender a qualquer hora e do computador, por meio do qual se vêem obrigados a responder e-mails e a enviar relatórios, ficando muitas vezes até a madrugada para cumprir o que lhes é demandado.

Tudo isso sem citar que grandes organizações costumam ceder, a seus supervisores de vendas, gerentes ou executivos, carro, celular, computador, combustível, enfim, ferramentas que, a princípio, são motivo de satisfação e orgulho para o empregado. Ele se sente valorizado e envaidecido por integrar uma "família" que disponibiliza ótima estrutura de trabalho e que lhe dá credibilidade, dada a liberdade de definir o horário que mais lhe convém e a autonomia decorrente do chamado home office (escritório em casa), sem presença física do seu superior na cidade.

Contrariamente, após algum tempo, percebem que o seu emprego literalmente se apoderou do seu espaço e do seu tempo, que seriam reservados ao convívio familiar, ao descanso e ao lazer. Eles passam a trabalhar no computador todos os dias até altas horas da noite, inclusive nos domingos e feriados, atendem às demandas pelo celular nos momentos mais inconvenientes, como no aniversário do sobrinho no sábado à noite ou às 7:00h do seu descanso semanal remunerado.

Intervalo intrajornada, então, vira artigo de luxo. Não podem deixar de solucionar as pendências de trabalho que aparecem justamente no momento em que param para almoçar, pois o fim do mês está chegando, só cumpriram 70% da meta e os seus superiores pressionam cada vez mais, mesmo porque dependem dos resultados dos seus subordinados para baterem suas próprias metas, o que explica o efeito dominó da pressão psicológica.

Além disso, há a preocupação com os compromissos financeiros. Geralmente, a remuneração desses profissionais é composta do salário fixo mais as comissões de vendas, que aumentam consideravelmente seus rendimentos e somente são percebidas quando conseguem cumprir, no mínimo, 100% das suas metas. Assim, não medem esforços para obter excelentes resultados e poderem pagar o aluguel ou a escola de seus filhos.

Convém acrescentar que, dentre as inúmeras atribuições do empregado que labora nas condições mencionadas, ainda existem as constantes viagens a que é obrigado a fazer, para participar de treinamentos, workshops, convenções ou mesmo reuniões nas quais o seu superior apresenta os resultados da equipe a ele subordinada, despejando-lhe críticas mordazes e observações implacáveis.

Nessas ocasiões, é comum o dirigente constranger aqueles que não obtiveram desempenho satisfatório, seja com ameaças de demissão, de perda da função de confiança e até de transferência para outras cidades ou Estados, bem como através de comentários maldosos, ofensas e humilhações, muitas vezes expondo-os ao ridículo.

Assim entende Menezes (2002, p. 12), segundo o qual o assédio moral, quando emanado do abusivo poder empregatício, surge através de procedimentos concretos como: "[...] rigor excessivo; obrigação de realizar autocríticas em reuniões públicas; exposição a ridículo (impor a utilização de fantasia, sem que isso guarde relação com sua função)[...]" (grifo nosso).

Nesse ambiente de trabalho ultrajante e hostil, a higidez psíquica do trabalhador fica totalmente comprometida. Dada a ausência de tempo, afasta-se da família e dos amigos, vive altamente estressado, sofre de insônia, ansiedade, hipertensão arterial, síndrome do pânico e até depressão, revelando-se como potencial vítima de assédio moral, mormente face ao excessivo rigor com que é tratado e às situações vexatórias e constrangedoras a que é submetido nos citados encontros da empresa.

Assim sendo, resta evidente que a gestão da organização, quando calcada no abuso de poder ou na omissão diante de comportamentos opressores, favorece o surgimento do assédio moral, como elucida Guedes (2003, p. 53):

A saúde do ambiente de trabalho depende decisivamente do modo pelo qual o poder diretivo é exercido. Tanto o exercício do poder quanto a omissão e inoperância dos dirigentes podem não apenas favorecer como potencializar o desenvolvimento de relações perversas no interior da empresa.

Incumbe, pois, aos empregadores, a responsabilidade pela higidez do ambiente laboral, já que assumem os riscos da atividade econômica (CLT, art. 2º). Ao transferirem parcela das prerrogativas da hierarquia aos seus gerentes ou administradores, devem, sobretudo, estar atentos posturas que eles mantém diante dos que laboram sob sua chefia, pois, muito embora toda organização dependa do desempenho e/ou da produtividade dos colaboradores para sobreviver à concorrência, o valor da dignidade psíquica e mental dos empregados é indiscutivelmente superior.

Não estando satisfeito com determinados funcionários - seja porque têm desempenho insuficiente, seja porque incidiram em condutas que ensejam demissão por justa causa - o empregador detém meios de excluí-los do ambiente de suas organizações de forma legítima.

Ademais, se a preocupação dos dirigentes é com a produtividade da empresa e com a imagem que possui perante a sociedade, é razoável que se empenhe em motivar os seus colaboradores, para que "vistam a camisa" e se orgulhem do esforço que despendem para o crescimento da organização. Empregados motivados podem se tornar ótimos aliados e, se a gestão for democrática, podem agregar bastante valor à melhoria dos produtos e serviços oferecidos, através de suas críticas construtivas e sugestões.


CONCLUSÃO

O contrato de trabalho envolve a direção e o controle do empregado pelo empregador, ante o requisito da subordinação jurídica. O vínculo daí advindo constantemente se confunde com a submissão aos desmandos e caprichos dos gestores da organização, o que traduz a dificuldade de se estabelecer limites às prerrogativas da hierarquia.

Por isso, a relação de emprego, por si só, revela-se suscetível à violação de um direito cuja abrangência se mostra superior à mera contraprestação pecuniária decorrente do labor: a dignidade moral do empregado.

Não bastasse a própria natureza do vínculo empregatício, a globalização e o capitalismo financeiro reestruturaram a cultura organizacional das empresas contemporâneas. Nesse cenário, surgiram novos meios de controle da mão-de-obra e intensificou-se o estresse não só no ambiente laboral, mas na vida privada do empregado, consideradas as incessantes cobranças pelo aumento da produção de capital.

Constatou-se, ainda, que o perfil do dirigente está diretamente relacionado à proliferação do assédio moral, sobretudo na medida em que se mostra medíocre profissionalmente, extrapolando as fronteiras do poder empregatício para se auto-afirmar e melhorar a auto-estima.

Portanto, é essencial que a conduta do superior hierárquico se restrinja à adequação de normas e procedimentos concernentes às atividades contratadas, sob pena de comprometer a saúde física e psicológica do empregado, bem como o salutar clima organizacional e a própria imagem da empresa.


REFERÊNCIAS

AGUIAR, André Luiz Souza. Assédio moral: o direito à indenização pelos maus-tratos e humilhações sofridos no ambiente do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

GUEDES, Márcia N. Terror psicológico no trabalho. São Paulo: LTr, 2003.

Hirigoyen, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Trad. Rejane Janowitzer. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

SANTOS, Milton. Por uma globalização: do pensamento único à consciência universal. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Sites: www.tst.gov.br; www.presidencia.gov.br/legislacao/

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Sobre a autora
Lucyne Pereira da Silva Soares

Técnica Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina (CEUT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Lucyne Pereira Silva. O exercício do poder empregatício e o assédio moral.: Contexto atual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1801, 6 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11351. Acesso em: 20 abr. 2024.

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