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Lei seca (Lei nº 11.705/2008).

Exageros, equívocos e abusos das operações policiais

17/07/2008 às 00:00
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A tragédia gerada no Brasil pelos acidentes de trânsito está devidamente quantificada: cerca de 35 mil mortes por ano, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e 22 bilhões de reais por ano só para cobrir os gastos com os acidentes das estradas federais. Política de tolerância zero: essa é a bandeira da Lei 11.705/2008. Mas estão ocorrendo muitos exageros, equívocos e abusos.

1º) Quantidade ínfima de álcool no sangue deve ser desconsiderada. Uma pessoa chegou a ser flagrada depois de ter ingerido dois bombons com licor. Isso é um exagero. Por mais que se queira evitar tantas mortes no trânsito brasileiro (mais de 35 mil por ano), não pode nunca a administração pública atuar com falta de razoabilidade. Quem usa um anti-séptico bucal não pode sofrer nenhum tipo de sanção. A infração administrativa do art. 165 exige estar sob a influência do álcool ou outra substância psicoativa.

Nem toda quantidade de álcool no sangue é suficiente para configurar a infração administrativa do art. 165. O parágrafo único do novo art. 276 diz:  "Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos." Nesse caso o sujeito deve ser liberado e o carro também. Não se aplica multa e não se fala em prisão. Não é necessário que uma terceira pessoa venha conduzir o veículo.

2º) Um grave equívoco que deve ser evitado consiste em prender em flagrante o sujeito todas as vezes que esteja dirigindo com seis decigramas ou mais de álcool por litro de sangue (0,3 no bafômetro – que equivale a dois copos de cerveja). A existência do crime do art. 306 pressupõe não só o estar bêbado (sob a influência do álcool ou outra substância psicoativa), senão também o dirigir anormalmente (em zig-zag, v.g.). Ou seja: condutor anormal (bêbado) + condução anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).

Não se pode nunca confundir a infração administrativa com a penal. Aquela pode ter por fundamento o perigo abstrato. Esta jamais. O Direito penal atual, fundado em bases constitucionais, é dotado de uma série de garantias. Dentre elas está a da ofensividade, que consiste em exigir, em todo crime, uma ofensa (concreta) ao bem jurídico protegido. Constitui grave equívoco interpretar a lei seca "secamente". Não há crime sem condução anormal. A prisão em flagrante de quem dirige normalmente é um abuso patente, que deve ser corrigido prontamente pelos juízes.

Em síntese: quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue, com menos ou mais que seis decigramas) mas não chega a perturbar a segurança viária, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante. O agente, nesse caso, sofre as conseqüências administrativas previstas no art. 165 do CTB (multa, suspensão da habilitação etc.), mas não pode ser preso em flagrante, não há que se falar em fiança etc. Claro que o carro fica apreendido até que um terceiro, sóbrio, venha a conduzi-lo. Mas nem sequer é o caso de se ir à Delegacia de Polícia.

3º) A prova da embriaguez se faz por meio de exame de sangue ou bafômetro ou exame clínico. A premissa básica aqui é a seguinte: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo. O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova. Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro. Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais).

O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência. Isso é equivocado. Não é isso o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Sua redação é a seguinte: "Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo".

Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165 (e mesmo assim, somente quando houver recusa ao exame clínico). A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não pode sujeitar o motorista a nenhuma sanção, porque ele conta com o direito constitucional de não se autoincriminar.

4º) A fiscalização intensa da polícia nos últimos dias veio comprovar que ela é que é fundamental na prevenção de acidentes. É um equívoco imaginar que leis mais duras são suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da educação, conscientização, engenharia e punição.

5º) O legislador adotou a política da tolerância zero, mas ainda há graves falhas na legislação brasileira, que não conta, por exemplo, com o delito de condução homicida (que consiste em dirigir veículo com temeridade manifesta e total menosprezo à vida alheia. Por exemplo: dirigir veículo na contramão numa rodovia).

Há muito ainda que se fazer para aprimorar a legislação brasileira. Temos que declarar "guerra" contra as 35 mil mortes por ano no trânsito. Mas tudo tem que ser feito sem exageros e sem abusos. Não queremos viver perigosamente nas ruas e estradas brasileiras, mas também não estamos dispostos a suportar os excessos do poder público, que só pode atuar legitimamente dentro da razoabilidade.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Lei seca (Lei nº 11.705/2008).: Exageros, equívocos e abusos das operações policiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1842, 17 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11496. Acesso em: 24 nov. 2024.

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