Cuida-se de discussão sobre a legitimidade dos partidos políticos para a impetração de mandado de segurança coletivo. De início, far-se-á uma breve exposição sobre o mandado de segurança individual, para logo em seguida tratar mais especificadamente do tema proposto.
O inciso LXIX do artigo 5º da Constituição Federal é bem elucidativo acerca das hipóteses em que é cabível a propositura da ação constitucional, denominada mandado de segurança, in verbis:
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
Trata-se, como se observa, de uma ação protetora do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado, realizadas pelas suas autoridades. O mandado de segurança, desde a sua origem com a Constituição brasileira de 1934, é um remédio constitucional garantidor de direitos individuais, os quais pressupõem uma abstenção do Estado no sentido de este não atentar contra esses direitos.
A Constituição de 1988, no seu artigo 5º, inciso LXX, inovou na matéria e previu o mandado de segurança coletivo, para a proteção dos direitos coletivos e dos difusos. Dispõe a Carta Magna brasileira:
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
O tema a ser debatido gira em torno da alínea "a" do inciso, acima transcrito, referente à legitimidade ativa dos partidos políticos para a propositura do mandado de segurança coletivo. Antes, uma rápida explicação sobre o que sejam direitos coletivos e direitos difusos.
Ambas as espécies de direito são caracterizadas por um elemento subjetivo e outro objetivo, a transindividualidade dos titulares e a indivisibilidade do objeto, respectivamente. Em outras palavras, não pertencem individualmente ao patrimônio de uma determinada pessoa, mas sim ao de um grupo de pessoas determinadas ou indeterminadas. Também são direitos não passíveis de serem tutelados somente para um dos indivíduos titulares, ao contrário, quando reconhecidos judicialmente todos os seus titulares são beneficiados, daí a taxação de indivisíveis.
A diferença essencial entre os direitos coletivos e os difusos está, sobretudo, relacionada ao elemento subjetivo. Os titulares de direitos coletivos pertencem a um grupo ou categoria de pessoas determinadas, interligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base, exemplo, relação institucional como um sindicato, enquanto que os titulares de direitos difusos são indetermináveis e interligam-se entre si por circunstâncias fáticas genéricas, conjunturais, como por exemplo, habitar a mesma região ou consumir o mesmo produto [01]. Essa diferença fica ainda mais clara com a doutrina de Marcelo Abelha Rodrigues, ad litteram:
A diferença entre o interesse difuso e o interesse coletivo é ontológica, porque enquanto o interesse coletivo está diretamente ligado ao atendimento de um interesse privado de uma coletividade, exclusivo e egoísta dessa mesma coletividade, que quase sempre se organiza para atender às suas exigências e pretensões (caráter egoísta em prol da coletividade), o interesse difuso possui uma veia pública, não exclusiva, heterogênea (por causa da dispersão) e plural. [02]
Apresentada a diferença entre essas espécies de direitos, passemos ao foco desta discussão.
As agremiações partidárias, a nosso ver, não têm a sua legitimidade ativa, ou seja, a sua capacidade de impetrar mandado de segurança coletivo, restrita à proteção de seus membros em matéria relacionada a direitos políticos, como quer a doutrina tradicional e dominante. Ao contrário, têm legitimidade para interpor mandado de segurança coletivo em defesa de quaisquer direitos difusos ou coletivos amparados por esse remédio constitucional. Explica-se.
Note que o texto constitucional do inciso LXX do artigo 5º já é bastante elucidativo. Somente em relação às organizações sindicais, entidades de classe ou associação legalmente constituída é que a Lex Fundamentalis faz a exigência da defesa dos interesses de seus próprios membros ou associados. Em relação aos partidos políticos, a única ressalva feita é a representação no Congresso Nacional, em outras palavras, o partido deve possuir pelo menos um Deputado Federal ou um Senador. Esse também é o entendimento da Ministra do STF Hellen Gracie, ao relatar o RE 196.184/AM, no qual foi voto vencido em relação ao aspecto aqui em debate. In verbis:
A tese do recorrente no sentido da legitimidade dos partidos políticos para impetrar mandado de segurança coletivo estar limitada aos interesses de de seus filiados não resiste a uma leitura atenta do dispositivo constitucional supra. Ora, se o legislador constitucional dividiu os legitimados para a impetração do Mandado de Segurança Coletivo em duas alíneas, e empregou somente em relação à organização sindical, à entidade de classe, e à associação legalmente constituída a expressão "em defesa dos interesses de seus membros ou associados" é porque não quis criar esta restrição aos partidos políticos. Isto significa dizer que está reconhecido na Constituição o dever do partido político de zelar pelos interesses coletivos, independente de estarem relacionados a seus filiados. [03]
A Constituição Federal de 1988 consagrou importante papel aos partidos políticos na luta pela construção de um Estado Democrático de Direito. Isso foi, sem dúvida, uma resposta ao momento político anterior, antidemocrático, em que, por um bom tempo, no Brasil somente existiram dois partidos, um governista e outro fragilizado da oposição.
A Lex Mater abriu um capítulo inteiro, no título dos direitos e das garantias fundamentais, para os partidos políticos, instituiu a sua legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo e ação direta de inconstitucionalidade, além da indispensabilidade de filiação partidária para o exercício do direito de ser votado em eleições para a escolha dos representantes do povo.
Relevante é a dicção do caput do artigo 17, a saber:
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I - caráter nacional;
(...)
Observe que, no projeto político dos partidos políticos, deve haver a guarda do regime democrático e dos direitos fundamentais da pessoa humana, observado o caráter nacional. Tendo isso e a dicção do inciso LXX do artigo 5º em mente, não se pode duvidar que os partidos tenham o dever de defender os interesses dos quais seja titular uma pluralidade de pessoas, localizada em qualquer lugar do Brasil, através do mandado de segurança coletivo. Pluralidade de pessoas, porque não se compatibiliza o papel dos partidos, que é a representação de coletividades, com a proteção de direitos individuais. As agremiações partidárias, portanto, têm como umas de suas funções a defesa de quaisquer direitos coletivos ou difusos, principalmente destes que têm como marca uma veia pública, heterogênea e plural, como visto na citação do magistério do Professor Marcelo Abelha.
Eis a lição de Alexandre de Moraes que corrobora a nossa argumentação supracitada:
Ora, se todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (CF, art.1º, parágrafo único), sendo indispensável para o exercício da capacidade eleitoral passiva (elegibilidade), o alistamento eleitoral (CF, art.14, §3º, III), a razão de existência dos partidos políticos é a própria subsistência do Estado Democrático de Direito e da preservação dos direitos e garantias fundamentais (CF, art.1º, V – consagra o pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil). Nessa esteira de raciocínio, o legislador constituinte pretende fortalecê-los concedendo-lhes legitimação para o mandado de segurança coletivo, para a defesa da própria sociedade contra atos ilegais ou abusivos por parte da autoridade pública. Cercear essa legitimação somente para seus próprios interesses ou de seus filiados é retirar dos partidos políticos a característica de essencialidade em um Estado democrático de Direito e transformá-lo em mera associação privada, o que, certamente, não foi a intenção do legislador constituinte. [04]
Outro ponto interessante inserto no estudo dos partidos políticos é a sua busca pelo poder. José Afonso da Silva assim define partido político: "O partido político é uma forma de agremiação de um grupo social que se propõe organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de assumir o poder para realizar seu programa de governo" [05]. Observe que a finalidade primordial das agremiações partidárias é obter mandatos eletivos para colocar em prática a sua ideologia. Se se consegue mandatos através do voto do povo e o voto, por sua vez, é obtido através da simpatia que os eleitores nutrem pelo partido ou por candidato de determinado partido, nada mais eficiente, para angariar essa simpatia do povo, do que proteger os direitos das coletividades contra arbitrariedades do Estado, através do mandado de segurança coletivo.
O Ministro do STJ Jesus Costa Lima, em voto vencido no MS 197/DF, teve entendimento semelhante, in verbis:
O legislador constituinte, ao assegurar aos partidos políticos o direito de impetrar mandado de segurança coletivo, desde que tenham representação no Congresso Nacional, está dando cumprimento à sua destinação e outorgando-lhes o instrumento legal, para o exercício de uma de suas finalidades. De outra parte, não se pode esquecer que o texto de nossa atual Constituição é marcadamente parlamentarista, cujo regime, para sobreviver, exige a presença de partidos políticos fortes e uma das formas de fortalecê-los é outorgando-lhes o direito de impetrar mandado de segurança coletivo em favor de determinado seguimento social, sem representatividade ativa, cujo sucesso, sem dúvida, atrairá para suas hostes, se não novos filiados, pelo menos, simpatizantes. Portanto, tenho para mim, com a devida vênia, que os partidos estão legitimados ativamente, por lei, a ingressar em juízo na defesa dos postulados que lhes cumpre preservar e defender". [06]
Por fim, se para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, não há limitação temática para os partidos políticos, ou seja, possuem eles legitimidade universal, conforme já se posicionou o STF, não se pode exigir que, para o mandado de segurança coletivo, haja a limitação para os temas que envolvem direitos políticos dos seus filiados. Assim, os mesmos argumentos utilizados pelo STF para a interpretação ampliativa da legitimidade ativa dos partidos na ADIN encaixam-se no caso do mandado de segurança coletivo. Esse é o posicionamento da Ministra Hellen Gracie, ao relatar o já citado RE 196.184/AM, a saber:
Também entendo não haver limitações ao uso deste instituto por agremiações partidárias, à semelhança do que ocorre na legitimação para propor ações declaratórias de inconstitucionalidade.
(...)
Dessa forma, tudo o que foi dito a respeito da legitimação dos partidos políticos na ação direta de inconstitucionalidade pode ser aplicado ao mandado de segurança coletivo.
A previsão do art.5º, LXX, da Constituição objetiva aumentar os mecanismos de atuação dos partidos políticos no exercício de seu mister, tão bem delineado na transcrição supra, não podendo, portanto, ter esse campo restrito à defesa de direitos políticos, e sim de todos aqueles interesses difusos e coletivos que afetam a sociedade.
A defesa da ordem constitucional pelos Partidos Políticos não pode ficar adstrita somente ao uso do controle abstrato de normas. A Carta de 1988 consagra uma série de direitos que exigem a atuação dessas instituições, mesmo em sede de controle concreto. Á agremiação partidária, não pode ser vedado o uso do mandado de segurança coletivo, em hipóteses concretas em que estejam em risco, por exemplo, o patrimônio histórico, cultural ou ambiental de determinada comunidade.
Para fechar nossa argumentação, eis o posicionamento do Ministro do STF Carlos Britto, no julgamento desse mesmo recurso extraordinário, dando apoio à Ministra Hellen Gracie:
Sr.Presidente, acompanho o voto da Eminente Relatora, fazendo um registro: estou de pleno acordo com toda a sua fundamentação no que toca a inexistência, digamos assim, de pertinência temática para os partidos políticos, quando se trata de defender interesses coletivos ou difusos, mesmo em processo de feição subjetiva ou concreta. (...) [07]
Ante todo o exposto, resta evidenciado que a verdadeira vontade da Constituição é reservar aos partidos políticos uma legitimidade ativa ampla no mandado de segurança coletivo, de modo que os atos arbitrários do Estado atentatórios contra quaisquer direitos coletivos ou difusos da sociedade possam ser defendidos pelas agremiações partidárias.
Notas
- RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; FÖPPEL, Gamil; SÁ, Rafael; BUENO, Cassio Scarpinella; SODRÉ, Eduardo; MAZZEI, Rodrigo; RODRIGUES, Geisa. DIDIER JR, Fredie (Coord.); SARNO, Paula; OLIVEIRA, Rafael; CUNHA JR, Dirley da; GOÉS, Gisele; Ações Constitucionais, Salvador: Podivm, 2006, p.285
- Marcelo Abelha, op.cit, p.286.
- www.stf.gov.br
- Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo: Atlas, 2004, p.176.
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p.394
- www.stj.gov.br
- www.stf.gov.br