Os princípios, em Direito, são pilares sobre os quais ficam assentadas as instituições jurídicas. Servem, na prática, sobretudo, como guias de interpretação das normas. Não é sem razão, portanto, que o eminente professor Celso Antônio Bandeira de Mello cunhou uma expressão que se tornou clássica: Os princípios são mais importantes do que a lei.
O profissional de Direito será tão bem sucedido quanto for capaz de compreender os princípios que regem o ramo jurídico com o qual opera. O mero conhecimento dos códigos e das leis avulsas de nada servirá se não existir a visão ampla, que é dada exatamente pelo conhecimento dos princípios e o seu aproveitamento na interpretação da norma e na construção da tese. O mesmo raciocínio vale para os operadores do processo disciplinar, dentro das repartições públicas, porquanto têm compromisso com a regular ordem jurídica.
Quem trabalha com processo disciplinar tem que ter familiaridade, de plano, com os cinco princípios que estão postos no art. 37, caput, da Constituição Federal. São os chamados princípios constitucionais. Mas não são os únicos. Há outros princípios que se encontram na lei infra-constitucional. Por exemplo, na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), na Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93) e na Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99). E há princípios que são consagrados na doutrina do Direito Administrativo.
Os princípios servem, ainda, para suprir a lacuna da lei. Como no Brasil o processo administrativo não é codificado, há soluções que somente podem ser extraídas de princípios. Por isso, o estudo é relevante.
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A Assembléia Nacional Constituinte, ao formatar a Carta de 1988, elegeu quatro princípios para a Administração Pública: legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade. A Emenda Constitucional nº 19 acrescentou o princípio da eficiência. A Constituição estadual de São Paulo tem mais um: o princípio da razoabilidade.
Legalidade
Enquanto o cidadão comum pode fazer tudo o que a lei não proíbe, o agente público somente pode fazer aquilo que a lei expressamente autoriza. Freqüentemente vê-se uma autoridade tomando uma decisão polêmica, fundamentada no raciocínio de que nenhuma lei o proíbe. A questão, todavia, deve ser examinada sob outra ótica: há alguma lei que a autoriza?
Embora pareça primário, esse princípio é um dos mais descumpridos na Administração Pública. Logo ela que, em tese, tem técnicos, tem assessoria -que espera-se especializada -, deixa de atender essa condição fundamental ao elaborar atos e ações administrativas. Isso, talvez, em razão da seguinte peculiaridade: o governante toma a decisão política; cabe aos profissionais, aos técnicos da Administração Pública, verificar a legalidade. Mas, muitas vezes, para não desgostar a quem governa, acabam dando formas de aparente legalidade àquilo que é ilegal.
É claro que os profissionais do serviço jurídico, dentro das estruturas administrativas, gozam das prerrogativas da advocacia. Os seus pronunciamentos técnicos – verdadeiramente técnicos – podem ser feitos á sombra da absoluta independência. O compromisso é com a ordem jurídica e não com as chefias. No entanto, aqui e acolá, desgraçadamente, encontramos aqueles que, por despreparo ou conveniência, sob o pretexto de defender o interesse público, patrocinam, na verdade, o interesse o administrador público – o que é substancialmente diferente.
Os agentes da Administração Pública, ao exercem a atividade processante, têm compromisso com a legalidade, aqui compreendido todo o espectro do Direito. A legalidade, por sua vez, não se limita a fazer aquilo que a lei autoriza. Este é o ponto inicial, mas não esgota outros itens que estruturam esse princípio. Assim, depois de verificar o que a lei autoriza, o agente público necessita examinar a QUEM autoriza; e, por fim, a FORMA que a lei vincula. Assim, é possível que determinado ato tenha autorização legal, mas, praticado por agente sem competência, continuará à margem da legalidade. O mesmo acontece se o agente, autorizado para tanto, não obedecer a forma preceituada no comando legal.
Ouvir testemunhas é um ato que está autorizado na lei. Um membro da comissão, entretanto, não poderá fazê-lo sozinho; ou a comissão, completa, não estará atendendo a legalidade se deixar de tomar o compromisso de testemunha isenta; ou se obrigar o cônjuge do argüido a prestar compromisso. Então, a legalidade compreende os três requisitos: fazer o quê a lei autoriza, por quem a lei autoriza, na forma que a lei determina.
Moralidade
Outro princípio esculpido na Constituição Federal de 1988 é o da moralidade. Pode-se dizer que nem tudo o que está dentro da moldura da lei está dentro da moldura da moral.
O prefeito, por exemplo, pode - e deve - determinar a instauração de processo disciplinar contra servidor em razão de prática de ilícito funcional. Essa autorização está na lei. Mas se o fizer movido por vingança, por perseguição política, com o fito de dar uma aparente forma legal à exclusão irregular do funcionário, estará agindo à margem da moralidade. E o seu ato, ainda que fundamentando em lei, será eivado de vício, que pode ser atacado perante o Poder Judiciário.
A imoralidade está na demora da decisão de um processo, fazendo com que um desafeto sofra na angústia da indefinição. E está até nas filas dos guichês de atendimento, onde as pessoas, para obter uma certidão para exercício de direito, são reduzidas a vermes, a humilhações e à exaustão, mutiladas na sua cidadania.
O que moral? Podemos dizer que é a média do pensamento do povo; é aquilo que a sociedade tolera. Por outro lado, preferimos lembrar a solução ditada por um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. Perguntado sobre o que é moral, disse: "Não sei. Não consigo dizer o que é moral. Mas mostre-me uma imoralidade e eu reconhecerei". O caipira diria: "Eu não boto ovo, mas sei quando está podre".
Se invadirmos, portanto, o campo da filosofia, seremos capazes de devorar obras e obras, de encontrar as mais interessantes formulações da genialidade humana, mas todas subjetivas e sujeitas a contestação. O conceito de moral, para as soluções jurídicas, é, na verdade, simples e deve brotar do bom senso, dos critérios naturais dos homens comuns. "Eu, para ficar em paz com a minha consciência, faria isso?" Se a resposta for não, o ato é imoral.
Impessoalidade
A impessoalidade é outro princípio que tem dignidade constitucional. Ele está relacionado à finalidade da Administração Pública, que é, antes de tudo, atender aos interesses comuns da sociedade.
Para atingir a finalidade, o agente público deve ser impessoal. Isto é, deve despir-se de critérios pessoais e cercar-se de critérios técnicos. É por isso, por exemplo, que a admissão no serviço público é feita mediante concurso. Assim, a autoridade não pode escolher quem bem entende para admitir na Administração Pública (embora ainda possa escolher um restrito quadro de assessores, que, na verdade, compõem a estrutura de apoio à atividade de Governo.) Aqueles que entram para o serviço administrativo são selecionados por meios impessoais.
As licitações são feitas, também, para, entre outros itens, atender a impessoalidade do gestor. Ele não pode escolher, livremente, quem irá contratar com o Poder Público.
Hoje, mesmo os funcionários celetistas só podem ser demitidos sem justa causa a partir de uma motivação. É preciso que a autoridade explique as razões que levaram a demitir João, Pedro ou Maria. Não basta que pague os direitos trabalhistas. (Terá que demonstrar, por exemplo, que os demitidos trabalhavam na limpeza e esse serviço foi terceirizado.) E se for por justa causa, esta deverá ser demonstrada a partir de um expediente apuratório formal, assegurada a amplitude da defesa.
É por isso, ainda, que é irregular o costume de alguns funcionários ostentarem, no local de serviço, identificações das suas agremiações políticas. Depois da eleição, o Governo é do povo, não é do partido; as preferências pessoais ficam de fora. E a Administração, estrito senso, como estrutura técnica, ainda mais do que o Governo, não pode vincular-se a qualquer facção.
Tudo, no serviço público, deve estar relacionado à satisfação da sociedade. Não mais se tolera a promoção pessoal de governantes, ou a prevalência de critérios pessoais sobre os técnicos na formulação das ações públicas. Nessa linha devem agir as autoridades administrativas também no controle da disciplina. A avaliação das causas é feita dentro da moldura da lei, que identifica as transgressões disciplinares; não cabe aos agentes do controle adotar valores pessoais, ditados por religião ou arraigados padrões de ética particular.
Publicidade
Os atos administrativos são públicos. Esta é a regra. Há, curiosamente, uma tendência, por resquício de períodos ditatoriais, de que o que está em repartição pública é secreto. Até hoje, encontramos em alguns estatutos funcionais ou em normas de serviço a informação de que determinado assunto é sigiloso.
A palavra sigiloso, em serviço público, não pode ser admitida como sinônimo de secreto. No máximo podemos concebê-la como recomendação de resguardo, de reserva, de prudência. Significa que os agentes da Administração não podem andar espalhando por todos os ventos as questões tratadas sob a rubrica do "sigilo". Isso, entretanto, não quer dizer que desses assuntos não possam tomar conhecimento aquelas pessoas que têm direito e que têm interesse legítimo.
Os advogados, por suas prerrogativas, têm acesso a qualquer expediente, ainda que sem procuração. A exceção estaria em tarefas de investigação, procedida de forma legítima por autoridade competente, ou em casos nos quais estiver presente a rubrica "secreto" ou "confidencial". Mas esta só é admitida em casos que envolvam a segurança nacional e que estejam previamente motivados. (Esses casos são regulados por legislação específica e não ficam ao poder discricionário das autoridades.)
Por conta do princípio da publicidade, os atos administrativos - em grande parte - devem ser publicados. Por que a exigência da publicação?
Curiosamente, poucos sabem a razão, ainda que esta prática seja secular. Quando do Brasil Colônia, havia os chamados "bandos", encarregados exatamente disso. O Reino, em Portugal, editava um ato e o "bando", composto por um grupo de homens fardados, portando bandeiras coloridas, com um tambor à frente para chamar a atenção, desfilava pelas ruas das vilas. Um integrante do grupo ia lendo o texto, para que dele tomassem ciência as pessoas do povo. Assim, dava-se publicidade.
Hoje publica-se em veículo oficial (e em outros indicados pela lei), para que, com a publicação:
-os interessados tomem conhecimento do ato;
-os órgãos de controle possam fiscalizar;
-marque contagem de prazo para prescrição e decadência;
-marque contagem de prazo para interposição de recursos ou medidas judiciais (como mandado de segurança).
Nos Tribunais de Contas, por exemplo, há profissionais que têm como principal atividade ler diariamente o Diário Oficial. Ali, por amostragem, identificam eventuais irregularidades em, por exemplo, licitações, contratações públicas, aposentadorias especiais e viagens de funcionários para o exterior.
As sindicâncias de natureza investigativa são sigilosas. Isso porque o sigilo é fundamental á investigação. Diz-se, em técnicas de investigação, que os investigados não devem saber dos movimentos de quem os investiga. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça considera dispensável a publicação de portaria de instauração de sindicância (na espécie investigativa); e essa regra foi posta no Provimento nº 05/2008 do Tribunal de Justiça do Mato Grosso:
A sindicância investigatória será instaurada quando o fato ou a autoria não se mostrarem evidentes ou não estiver suficientemente caracterizada a infração.Sindicância investigatória
Art. 18.
§ 1º - A sindicância será instaurada para apuração dos fatos, obedecendo, no que couber, a metodologia do inquérito policial, tramitando sob sigilo, sendo dispensada a publicação do ato instaurador.
(Destacamos)
Entenda-se que, aqui, trata-se de sindicância da qual, diretamente, não brotará conseqüência a terceiros. É um expediente preliminar, preparatório. Vindo à tona provas que comprometam pessoas, estas são chamadas para esclarecimentos, têm a oportunidade de oferecer explicações e, por fim, é produzido relatório que poderá recomendar a abertura do devido processo legal. No processo, por sua vez, os atos serão regidos pela publicidade.
A publicidade no processo disciplinar não significa que os atos processuais sejam praticados em público; que seja permitido espalhar, pela imprensa, tudo o que acontece nos autos. Preferimos, então, à luz do princípio da razoabilidade, interpretar a publicidade como sendo, neste caso, um meio caminho entre o sigilo e o absoluto conhecimento. Na prática, podemos dizer que têm acesso aos autos – e aos atos processuais – aqueles que têm direito, prerrogativa ou interesse legítimo. Exemplos:
- Têm direito: o argüido, o seu advogado, o defensor dativo.
- Têm prerrogativa: qualquer advogado, a autoridade policial, o Ministério Público, a autoridade judicial, os profissionais da área do Controle.
- Têm interesse legítimo: o estagiário de direito, a vítima, o autor de representação, os representantes de sindicatos e associações aos quais o acusado estiver vinculado.
É claro que a autoridade processante, verificando a conveniência no caso concreto, poderá restringir ou postergar o conhecimento àqueles que têm interesse legítimo, sobremaneira quando esse acesso – ou presença em ato processual – puder causar constrangimento ou comprometer concretamente a regularidade ou segurança dos trabalhos. De qualquer forma, é fundamental que se compreenda que o processo não pode ser realizado em portas hermeticamente fechadas, no sentido de a ninguém lhes ter conhecimento. Os processos judiciais criminais não são menos sérios do que os processos administrativos e, ainda assim, são dados a conhecer ao povo. Os julgamentos no Supremo Tribunal Federal são transmitidos ao vivo pela televisão. "Administração fechada dentro de um cofre, sem ventilação, tende a apodrecer aos poucos", ensina o eminente professor angolano Mario Frota, da Universidade Lusíada do Porto.
Eficiência
Com a Emenda Constitucional nº 19, a Constituição Federal ganhou mais um princípio: o da eficiência.
Na verdade, é um princípio de ordem moral. É um voto de esperança de que o serviço público funcione com resultado positivo, porque não basta que os agentes cumpram a lei, atuem com moralidade e impessoalidade e publiquem os seus atos. É fundamental que, disso tudo, saia algo de positivo a favor da coletividade.
Por conta desse princípio, a máquina administrativa deve funcionar voltada à produção de resultados. O inferno da burocracia, que se esgota em si, não tem mais espaço na Administração Pública do século XXI.
Hoje, impõe-se:
- que os serviços sejam prestados com rapidez;
- que o atendimento seja prático;
- que os equipamentos utilizados pela Administração sejam modernos;
- que o cidadão seja atendido com competência, presteza e urbanidade.
O processo disciplinar, como um dos instrumentos de controle da disciplina, tem que produzir um resultado. O resultado que se espera está vinculado à finalidade do controle da disciplina. Essa finalidade, por sua vez, tem dois objetos:
- Melhorar o funcionário; e
- Melhorar o serviço.
A primeira hipótese seria, pela aplicação de uma sanção branda ou média, levar o agente à reflexão, tornando-o um profissional melhor, comprometido com a regularidade do serviço e com os fins da Administração Pública; ou, pela imposição de uma pena extrema (demissão, por exemplo), melhorar o serviço, expurgando do seu meio o indivíduo nefasto. O processo, então, avança nesse sentido: examinando a acusação e a defesa, virá a decisão, pela absolvição ou pela condenação. Em qualquer hipótese, deve-se ter vista a finalidade do controle. O processo não se esgota em si. Está associado a um resultado, que se espera justo e também eficiente.