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A teoria da ação de Liebman e sua aplicação recente pelo Superior Tribunal de Justiça.

Alguns aspectos dogmáticos da teoria da asserção

30/06/2009 às 00:00

Resumo:


  • Enrico Túlio Liebman desenvolveu uma teoria eclética sobre o direito de ação, considerando-o um direito autônomo e instrumental.

  • Segundo Liebman, as condições da ação (legitimação de agir, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido) são requisitos constitutivos da ação, devendo ser alegadas e demonstradas pelo autor.

  • A teoria da asserção ou prospecção, aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro, busca analisar as condições da ação com base nas alegações feitas pelo autor na petição inicial, permitindo uma maior eficiência processual.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

I – Colocação da questão por Liebman

Apesar da existência de inúmeras teorias para se explicar a ação, desde a imanentista (a todo direito material estaria imanente um direito de ação), passando pelas teorias concretas ou concretistas (o direito de ação seria um direito subjetivo, público, autônomo a uma sentença favorável – Rechtsshutzanspruch: pretensão a uma tutela jurídica), pelas teorias abstratas (o direito de ação seria um direito subjetivo, público, autônomo a uma sentença; independente do conteúdo, mas, para alguns, como Alexander Plósz, dependente da boa fé do autor), ainda pela teoria de Elio Fazzalari, da situação jurídica composta [01] (FAZZALARI, 1957) e chegando às teorias constitucionais (que buscam uma análise do direito de ação visando um amplo acesso à justiça com a criação de técnicas idôneas a ofertar uma aplicação eficiente do direito material e a defesa adequada dos direitos fundamentais), percebe-se que este tema não é consolidado no estudo processual.

Alguns chegam a afirmar que quase todo processualista se propõe a delinear uma perspectiva "própria", "única".

No entanto, para os objetivos do presente breve ensaio o maior interesse seria o delineamento da teoria idealizada por Enrico Túlio Liebman, italiano que viveu no Brasil durante a década de 1940, deixando raízes profundas em nosso país. [02]

Sua teoria, chamada de eclética por possuir caracteres próprios de duas linhas teóricas (a abstrata e a concretista), foi divulgada inicialmente em palestra realizada em 1949, na Universidade de Turim.

Segundo Liebman a essência da ação se encontra na relação que ocorre no ordenamento jurídico entre a iniciativa dos particulares e o exercício em concreto da jurisdição, deste modo o juiz deva determinar de acordo com as normas que regulam sua atividade o conteúdo positivo ou negativo do provimento final. Segundo o jurista qualquer um que abandone os dois aspectos do problema corre o risco de idealizar uma teoria do processo que desconsidere o processo (LIEBMAN, 1950, p. 53).

Apesar do fato da ação tender a produzir efeitos em relação à contraparte (réu) não se poderia negar que ela possui como objeto imediato o provimento (decisão) e se dirige a quem deve pronunciá-lo na qualidade de órgão do estado.

Assim a ação seria para Liebman um direito ao meio e não ao fim, em face de dois motivos: a) a lei confere o direito ao cumprimento dos atos destinados a atuar a tutela jurídica, mas não garante o êxito de seu exercício, eis que o conteúdo concreto do provimento depende de condições objetivas de direito material e processual e da apreciação que o juiz fará delas, condições estas que fogem do controle do autor. Estas ponderações, segundo o autor também se aplicam ao processo de execução. B) A lei não reconhece ao particular o poder de impor à parte contrária o efeito jurídico almejado, mas, sim, ao Estado que atribui ao particular o direito de provocar aquela atividade de modo a impedir no sistema processual atual, face à igualdade dos cidadãos, a utilização do exercício particular das próprias razões (LIEBMAN, 1950,p. 54).

A teoria de Liebman considera a ação um direito autônomo que pode ser exercitado nos casos em que o seu titular não possui um verdadeiro direito subjetivo substancial para fazer valer, mas identifica ainda a ação com a relação jurídica substancial existente entre as partes perfilada em uma particular direção, pois dirigida a atuar no processo (LIEBMAN, 1950, p. 55.)

O direito de ação constitucional, genérico e abstrato, sempre segundo Liebman, tem o seu lugar bem definido no direito constitucional e possui importância fundamental (direito de petição). Entrementes, em sua abstração e indeterminação, esse não possui relevância alguma na vida e no funcionamento prático do processo, pois o atribuindo a qualquer um em qualquer hipótese não permite no caso concreto a determinação da interdependência do processo com a fattispecie (direito material) pela qual este é proposto (LIEBMAN, 1950, p. 63)

Liebman então passa a analisar a atividade que forma o processo e as normas que o disciplinam. Afirma que o conteúdo e os efeitos destas normas instrumentais se diferenciam das substanciais e regulam os modos e as formas dos atos do processo criando, coordenando e conferindo posições subjetivas juridicamente relevantes para o cumprimento de um ou outro destes (LIEBMAN, 1950, p. 64)

Atribui à ação a índole de direito subjetivo instrumental, mas não de natureza obrigatória, afastando a perspectiva de relação civilística. A ação é direcionada contra o titular do poder jurisdicional, o Estado, sendo o direito à jurisdição, um direito de impulsionar e de iniciativa ao desenvolvimento de uma função que também é de interesse do Estado. Apesar de somente ao autor interessar a propositura da ação, uma vez proposta este interesse passa parcialmente a coincidir com o do Estado em prover sobre aquele (LIEBMAN, 1950,p. 65).

Assim, o autor constrói a essência de sua teoria eclética. Segundo ele a ação "se refere a uma fattispecie determinada e exatamente individuada, e é o direito a obter que o juiz proveja ao seu respeito, formulando (ou atuando) a regra jurídica especial que a governa. Ela é por isso condicionada a alguns requisitos (que devem verificar-se caso por caso em via preliminar), vale dizer ao interesse ad agire, que é o interesse do autor a obter o provimento demandado; à legitimazione ad agire, que é a competência (atribuição) da ação a aquele que a propõe e em confronto com a contraparte; e à possibilidade jurídica, que é a admissibilidade, em abstrato, do provimento requerido, segundo as normas vigentes do ordenamento jurídico nacional. Faltando uma destas condições, se tem aquilo que, com exata expressão tradicional, se qualifica carência da ação, e o juiz deve refutar de prover sobre o mérito da demanda. Neste caso não se tem verdadeiro exercício da jurisdição, mas, somente uso das suas formas para fazer aquela avaliação preliminar (confiada aos magistrados) que serve a excluir de início aquelas causas nas quais estão defeituosas as condições que são requeridas para o exercício do poder jurisdicional" (LIEBMAN, 1950, p. 66).

Para o autor a ação e a jurisdição são correlatas não ocorrendo uma sem ocorrer a outra (LIEBMAN, 1950, p. 66).

Aspecto importante a ser lembrado é que Liebman a partir da terceira edição de seu Manuale di diritto processuale civile, de 1973, face à entrada em vigor da lei 898 de 01-12-1970 acabando com o divórcio, cuja hipótese (vedação legal do divórcio) conduziu o delineamento da condição da ação da possibilidade jurídica, passou a excluí-la como condição autônoma e a englobá-la conjuntamente com o interesse de agir.


II - Ação em Liebman – Teoria eclética – Aspectos sintéticos

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Para se obter uma sentença de mérito há necessidade de se demonstrar a matéria de processo [pressupostos processuais: I) De existência- elementos necessários para que o procedimento em contraditório se instaure: a) Existência de órgão jurisdicional e de partes; II) De validade: a) Competência, b) Imparcialidade, c) Originalidade da demanda – ausência de litispendência e coisa julgada, d) Capacidade de ser parte, de estar em juízo (legitimatio ad processum) e postulatória] e matéria de ação (condições de ação).

As três condições da ação precisam ser alegadas e demonstradas pelo autor; a constatação de sua ausência, em qualquer momento ou grau de jurisdição, conduz ao proferimento de uma sentença processual (terminativa), com a extinção do procedimento sem a resolução do mérito;

As três condições da ação constituem a parte concretista da perspectiva de Liebman, em face da necessidade de sua demonstração pelo autor no curso da demanda; constituiriam um elo do direito processual com o direito material;

As três condições da ação são requisitos constitutivos da ação. São as seguintes: a) Legitimação de agir: é a titularidade ativa e passiva da ação; os sujeitos vinculados entre si por uma relação jurídica material. Ex. credor e devedor; b) Interesse de agir: decorre da necessidade e adequação na utilização da ação; c) Possibilidade jurídica do pedido: ausência de vedação expressa de realização do pedido no ordenamento nacional; Liebman a idealizou por força da proibição de divórcio àquela época na Itália; recentemente, o Superior Tribunal de Justiça analisou questão interessante acerca dessa terceira condição da ação: O agrônomo brasileiro Antônio Carlos Silva propôs ação em face do canadense Brent James Townsend para declarar a existência de união estável entre eles e dividir o patrimônio adquirido pelo "casal" durante o relacionamento. O casal propôs a ação de reconhecimento da união na 4ª Vara de Família de São Gonçalo (RJ) alegando que eles viveram juntos quase 20 anos de forma duradoura, contínua e pública. O pedido não foi analisado no mérito, eis que o juiz extinguiu o procedimento sem resolução do mérito, por entender faltar a possibilidade jurídica do pedido no Brasil. O casal recorreu para o TJRJ, que manteve a decisão de primeiro grau. No entanto, desta decisão do TJRJ o casal recorreu para o STJ que reformou (alterou) a decisão permitindo e ordenando que o juízo de primeiro grau analisasse o mérito. Afirmou-se que a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. E que a despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito.

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Já no mérito [lide (conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida); complexo de questões; pretensão processual; lide nos limites do pedido] a teoria eclética seria abstrata, eis que independe se o juiz acolher (julgar procedente o pedido) ou negar (julgar improcedente o pedido) a demanda, o simples fato de ser possível a análise deste já representaria o pleno exercício da ação para seu autor;

Da análise de inúmeros dispositivos do Código de processo civil se constata a adoção da teoria de Liebman (confira: Arts. 2º, 3º, 6º, 267, entre outros)


III - Teoria da Asserção Ou Prospecção – Interpretação Diferenciada das Condições da Ação de modo a subsidiar maior Aproveitamento Processual – Tendência de aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça Brasileiro

No que diz respeito às condições da ação, afirma-se que a teoria de Liebman seria uma teoria da exposição ou apreciação, de forma que a presença das condições deveria ser comprovada pelo autor. Nesses termos, em inúmeras situações, o processo terminaria sem uma análise do mérito, ou seja, sem apreciação de seu objeto, daquilo para o que se propôs o procedimento.

A atividade processual, nesses moldes, teria sido inútil, e a sentença judicial (terminativa) não inviabilizaria a propositura de nova demanda, envolvendo o mesmo objeto litigioso.

Em face dessa constatação e buscando um maior aproveitamento da atividade processual se delineou a teoria da asserção ou da prospecção (prospettazione), na qual a verificação da presença das condições da ação se dá à luz das afirmações feitas pelo autor na petição inicial, independentemente de sua comprovação durante o processo.

Isso conduz à seguinte situação:a ausência de condição da ação para Liebman (condição não comprovada pelo autor) conduz a extinção do processo sem resolução do mérito (com o proferimento de uma sentença terminativa), mesmo que esta se dê após o julgamento do mérito (sentença definitiva), em grau de recurso, uma vez que as condições podem ser analisadas e demonstradas em qualquer momento e grau de jurisdição, conduzindo assim, à anulação da sentença definitiva; já para a teoria da asserção, as condições da ação serão analisadas com base tão-somente nas alegações feitas pela parte na peça de ingresso (petição inicial do autor), deste modo as matérias referentes à legitimidade, interesse e possibilidade jurídica serão analisadas junto com o mérito, o que conduz, caso não estejam presentes, à improcedência do pedido, sentença de mérito (definitiva), em qualquer momento ou grau de jurisdição, ou seja, no tribunal ocorrerá, assim, a reforma (não anulação) da sentença de mérito.

A discussão em torno da aplicação dessa teoria no Brasil é tormentosa. Mas existem precedentes no STJ, com sua adoção, e afirmando que "as condições da ação são vistas in status assertionis ("Teoria da Asserção"), ou seja, conforme a narrativa feita pelo demandante, na petição inicial" [03] deste modo "se o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações contidas na petição, após esgotados os meios probatórios, terá, na verdade, proferido juízo sobre o mérito da questão." [04]

Em recente precedente, o Superior Tribunal de Justiça afirmou que "se mostra saudável a lembrança de que a doutrina moderna, bem como, em decisões recentes, também o Superior Tribunal de Justiça, têm entendido que o momento de verificação das condições da ação se dá no primeiro contato que o julgador tem com a petição inicial, ou seja, no instante da prolação do juízo de admissibilidade inicial do procedimento. Trata-se da aplicação da teoria da asserção, segundo a qual a análise das condições da ação seria feita à luz das afirmações do demandante contida em sua petição inicial. Assim, basta que seja positivo o juízo inicial de admissibilidade, para que tudo o mais seria decisão de mérito". [05]

De modo "que a interpretação literal do art. 267, § 3º do CPC leva a entender que o preenchimento das condições da ação pode ser averiguado a qualquer tempo e grau de jurisdição. No entanto, a aplicação literal e irrefletida da literalidade do enunciado normativo, neste particular, gera, muitas vezes, consequências danosas, tal qual a extinção do processo sem julgamento do mérito após longos anos de embate processual."


notas

  1. FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957.
  2. LIEBMAN, Enrico Tullio. L’azione nella teoria del processo civile. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano: Giuffrè. Anno IV, 1950.
  3. STJ, 2T, Resp. 470.675/SP , Rel. Min. Humberto Martins, j. 16/10/2007 , p. DJ 29/10/2007.
  4. STJ, 3T, Resp. 832.370/MG , Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 02/08/2007 , p. DJ 13/08/2007.
  5. STJ, 2T, REsp 879188/RS, Rel. Humberto Martins, j. 21/05/2009, p. DJE 02/06/2009.
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Sobre o autor
Dierle José Coelho Nunes

Doutor em Direito Processual (PUC Minas / Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professor Universitário da PUCMinas, da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e da UNIFEMM. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. Advogado militante. Autor dos livros: "Processo jurisdicional democrático" (Juruá, 2008), "Direito constitucional ao recurso" (Lumen Juris, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Dierle José Coelho. A teoria da ação de Liebman e sua aplicação recente pelo Superior Tribunal de Justiça.: Alguns aspectos dogmáticos da teoria da asserção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2190, 30 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13066. Acesso em: 26 dez. 2024.

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