Educação ou repreensão? O tipo de tratamento dado por um ordenamento jurídico ao usuário [01] de drogas é sempre objeto de muitas discussões e questionamentos. Diversos países do mundo instauraram políticas de combate às drogas, não ainda se tendo um posicionamento que possa ser considerado como totalmente eficaz. Dentre as principais tendências mundiais sobressaem os modelos norte-americano e o europeu; duas políticas criminais de métodos plenamente opostos, mas com o mesmo objetivo essencial – o de abolir o consumo de substâncias ilegais.
A política estadunidense, eminentemente repreensiva, estabelece medidas radicais de abstinência e "tolerância zero", considerando as drogas, em sua essência, como sendo uma questão policial e militar, encarando, não apenas o traficante, mas também o usuário como "criminoso" e, por isso, igual merecedor de sanção privativa de liberdade.
Malgrado o modelo norte-americano não apresentar resultados concretos, motivo que o faz alvo de severas críticas e de pouca credibilidade, trata-se da posição sustentada pela ONU, que censura o sistema europeu por entender o assunto sobre outro ponto de vista.
De verdade, o modelo de "redução de danos", instaurado por diversos países europeus, adota outro enfoque ao tema: drogas são um problema, mormente, de saúde pública. Desse modo, não estabelecem a admoestação do seu uso, ex adverso, sustentam pela descriminalização gradual das drogas, defendendo a necessidade restaurativa, que consiste na prevenção, atenção e reinserção social do usuário – dependente ou não – de drogas. Tal política consiste, prioritariamente, em prevenir o uso de drogas e reduzir os danos já provocados, de modo a reintegrar socialmente o usuário, impedindo a reincidência de sua prática.
No ordenamento jurídico pátrio, a Novíssima Lei de Drogas (Lei 11.343/06) trouxe profundas inovações em alguns temas concernentes à matéria. Certamente, o que melhor transparece a sua nova intenção são as disposições que disciplinam o posicionamento do Poder Judiciário frente ao usuário e dependente de drogas. Em seu art.28 a Novíssima Lei modificou o trato dado ao usuário, abolindo com as penas privativas de liberdade, e cominando medidas alternativas para o seu tratamento. Optou-se assim, claramente, por seguir a tendência restaurativa (modelo europeu) de combate às drogas, visando, sobretudo, instaurar uma nova política preventiva, direcionando o usuário para atividades assistenciais que lhe possam propiciar a reinserção social.
A adoção dessas novas medidas causa divergências entre os operadores do Direito no tocante à descriminalização da conduta. Para Luiz Flávio Gomes, o consumo de drogas ilícitas deixou de ser considerado crime. Não houve a legalização da conduta, mas sim abolitio crimes: revogação da feição criminosa do ato, que continua sendo ilícito, embora retirado do âmbito de Direito Penal. Segundo o eminente autor, a descriminalização se descaracteriza pelo fato de o artigo 1º da LICP considerar como crime apenas a infração penal a que a lei comina pena privativa de liberdade, alternativa ou cumulativamente com a pena de multa, o que não se observa no art. 28 da Lei de Drogas. [02]
Contudo, não se trata de um entendimento unânime. O professor Fernando Capez doutrina que não houve referida descriminalização:
"O fato continua a ter a natureza de crime, na medida em que a própria Lei o inseriu no capitulo relativo aos crimes e as penas (Capítulo III); além do que as sanções só podem ser aplicadas por Juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante o devido processo legal (...)". (CAPEZ, 2008, p.707).
Comunga dessa opinião João Carlos Carollo, ao analisar a matéria à luz do art. 5º, XLVI, CR/88, observando que nada obsta o legislador ordinário de estabelecer penas mais condizentes com a política criminal atual, o que se identifica nas medidas alternativas previstas para o usuário. [03]
Aliás, nesse sentido de que não houve a descriminalização já decidiu o Excelso Tribunal, sobre os argumentos de que o artigo 1º da LICP não impede a ação do legislador ordinário de cominar penas diversas da privação de liberdade, mas, que tal dispositivo apenas estabelece critérios distintivos entre crime e contravenção. Assim, a contemplação das medidas alternativas pela Lei nº 11.343/06 não implica abolitio crimines". [04]
Não obstante, merece apreço o posicionamento do mestre Luiz Flávio Gomes, frente à questão. Isto porque, diante dos parâmetros traçados pela Novíssima Lei, percebe-se claramente o intento do legislador em não mais considerar o usuário como criminoso, tanto que não mais lhe impõe o encarceramento. Assim, pode se afirmar que não é mais tida como crime a sua conduta, uma vez que a problemática das drogas passou a ser considerada uma questão de saúde pública, não sendo mais imputada exclusivamente às autoridades Judiciárias e policiais.
Ademais, preferindo pela "descarcerização", vislumbrou-se uma maior proteção ao usuário, evitando deste modo seu ingresso em estabelecimentos prisionais, onde estaria em contato direto com delinqüentes perigosos, o que possivelmente proporcionaria um aumento de chances de esse não-criminoso se envolver com crimes de maior potencial ofensivo. Vale ressaltar ainda que isto implica em prisões menos lotadas e economias para os orçamentos públicos.
Mesmo livre do encarceramento, o usuário não fica impune. A novíssima Lei ao dispor medidas alternativas a serem por ele cumpridas, afasta a idéia de despenalização, pois mesmo não constituindo crime a conduta do usuário continua a ser ilícita, tendo em vista que oferece perigo a incolumidade pública. Não se trata de um intuito de punir uma atitude meramente interna do agente, pois, se assim fosse, colidiria com o princípio da alteridade preconizado na Constituição da República de 1988, que coíbe o Direito Penal de punir ato causador de dano apenas ao próprio agente. Mas, não é esse o caso. O que se proíbe não é o consumo, mas sim, o porte da substância entorpecente, que facilita a propagação da droga pela sociedade.
Ex positis, mister se faz aqui ressaltar a finalidade do legislador em seguir a tendência européia de não consideração do usuário de drogas como criminoso, mas sim, visando a redução dos danos de sua conduta, de modo a alcançar a diminuição do consumo e, por conseguinte, afetar de forma efetiva o tráfico ilícito de drogas que lancina a sociedade. É uma maneira de se buscar maior eficácia na recuperação do infrator, uma vez que sua anterior sujeição à pena privativa de liberdade em nada contribuía para a sua reabilitação, pois o sistema penitenciário brasileiro não disponibiliza meios que possam levar a sua recolocação social. Nesse intento, seriam louváveis iniciativas cívico-governamentais que subsidiassem programas de prevenção e recuperação do usuário de modo que ele se reintegre a sociedade e não se torne mais uma vítima em potencial dessas substâncias.
Notas
- O usuário eventual e o dependente não se confundem. Entretanto, neste trabalho, o termo "usuário", sempre que não especificado, será utilizado de modo a abranger tanto o usuário eventual como o dependente de drogas ilícitas.
- Para o professor Luiz Flavio Gomes, a prática do usuário passou a configurar uma infração "sui generis", uma vez que lhe foram impostas tão-somente penas alternativas. GOMES, Op. Cit. P. 108-113.
- CAROLLO. Op. Cit. P. 20.
- STF, 1ª T., RE. – QO 430. 105/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j.
13-2-2007, DJ, 27-4-2007, p.00069.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Paulo Henrique Silva de. FONSECA JÚNIOR, Wilson Pereira da (2009). Usuário na ótica da novíssima lei de drogas. Projeto de Seminário de Pesquisa. Curso de Direito. Faculdade do Noroeste de Minas, Paracatu – MG.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, vol. IV. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
CAROLLO, João Carlos. Nova Lei de Drogas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Drogas Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
REVISTA JURIDICA CONSULEX. A nova lei de tóxicos. Brasília: Consulex, nº 139, 31 out. 2002, p. 12-23.
_______. A nova lei de drogas. Brasília: Consulex, nº 234, 15 out. 2006, p. 28-39.